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2 PAULO GHIRALDELLI JÚNIOR MARIANGELA CABELO Organizadores PANDEMIA E PANDEMÔNIO Ensaios sobre biopolítica no Brasil CEFA EDITORIAL São Paulo - 2020 3 Direção Editorial Leandro Sousa Costa Coordenação de Produção Hugo Lopes de Oliveira Edição Hugo Lopes de Oliveira e Leandro Sousa Costa Assistência Editorial Nicolas de Melo Pedroso, Isaias Bispo de Miranda, José Ildon Gonçalves da Cruz e Fabbio Cerezzoli Preparação Hugo Lopes de Oliveira e Leandro Sousa Costa Revisão de texto Eliane Otani – da Bridge3 Capa Mariangela Cabelo Diagramação José Ildon Gonçalves da Cruz Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) _____________________________________________________ Cabelo, Mariangela; Ghiraldelli Jr., Paulo. (Org.) Pandemia e Pandemônio: Ensaios sobre biopolítica no Brasil/Cabelo, Mariangela; Ghiraldelli Jr., Paulo. (Organizadores) – São Paulo: CEFA Editorial, 2020. ISBN 978-65-990994-2-7 1. Pandemia 2. Pandemônio 3. I Título CDD - 100 Índices para catálogo sistemático: 1. Filosofia e disciplinas relacionadas 100 É vedada a reprodução de qualquer parte deste livro sem a expressa autorização da editora – cefaeditorial@cefa.pro.br Todos direitos reservados à São Paulo – SP 4 CENTRO DE ESTUDO EM FILOSOFIA AMERICANA CEFA Paulo Ghiraldelli Júnior (Fundador) Francielle Chies (Coordenadora Geral) Adriana Gonzaga Fabbio Cerezzoli Hugo Lopes de Oliveira Isaias Bispo de Miranda José Ildon Gonçalves da Cruz Leandro Sousa Costa Luma da Silva Miranda Mariangela Cabelo Mariza Souza Neres Micaias Souza Nicolas de Melo Pedroso Ricardo Ferrari Thiago Ricardo de Mattos CONSELHO EDITORIAL CEFA Paulo Ghiraldelli – CEFA Marisa Souza Neres – UFT Luma da Silva Miranda – Universidade Eötvös Loránd Camila Jourdan – UERJ Leandro Sousa Costa – UNESPAR e UNIUV José Ildon Gonçalves da Cruz – CEFA Mariangela Cabelo – CEFA e Todos pela Saúde Hugo Lopes de Oliveira – UFRuralRJ e CEFA 5 Pandemia e Pandemônio: Ensaios sobre biopolítica no Brasil Paulo GHIRALDELLI Natália PASTERNAK Maria Lúcia FATTORELLI Camila JOURDAN Carlos ORSI Acácio AUGUSTO Paulo Sérgio BOGGIO Mariangela CABELO Leonardo CAMARGO Estevão CRUZ Thiago STADLER Luma MIRANDA Hugo OLIVEIRA Nicolas MELO Thiago MATTOS 6 SUMÁRIO Prefácio ............................................................................................................. 8 Pandemia e Pandemônio: O Bolsovírus ........................................................ 9 Paulo Ghiraldelli Júnior A saúde na era Bolsonaro ............................................................................. 16 Mariangela Cabelo Uma aula de como não testar um medicamento ........................................ 27 Natalia Pasternak e Carlos Orsi O desvaneio de Bolsonaro em tempos de pandemia ................................. 40 Hugo Lopes de Oliveira O novo coronavírus no Brasil e sua repercussão na mídia estrangeira . 44 Luma da Silva Miranda O grande mal e os trabalhos ......................................................................... 51 Thiago Ricardo de Mattos Pandemia e o negacionismo nosso de cada dia ........................................ 55 Estevão Cruz O papel da responsabilidade na crise sanitária contemporânea .............. 65 Leonardo Camargo Entre esgotamento e estupidez, um vírus ................................................... 78 Thiago David Stadler 2020 – A crônica do Brasil distópico ........................................................... 91 Paulo Sérgio Boggio 7 Não vai passar .............................................................................................. 102 Camila Jourdan e Acácio Augusto Devemos despolitizar o vírus?.................................................................... 111 Mariangela Cabelo Revolta e Suicídio na necropolítica atual .................................................. 116 Camila Jourdan Oportunismo Trilionário dos Bancos em plena Pandemia ...................... 124 Maria Lucia Fattorelli Carneiro A filosofia do zumbi ..................................................................................... 134 Nicolas de Melo Pedroso 8 Prefácio Pandemia e Pandemônio: Ensaios sobre biopolítica no Brasil é uma organização de textos sobre a Covid-19 no contexto brasileiro sem desconsiderar o panorama global dessa situação. Os textos presentes nesta publicação são de estilos diversos e foram escritos ao longo das primeiras semanas do despontar da doença no Brasil, em 2020. São contribuições de pesquisadores e pesquisadoras de várias áreas e que estão na realidade brasileira: filosofia, história, medicina, biologia, psicologia, sistemas de informação, jornalismo, economia e letras. Os textos colocam em evidência os problemas derivados da crise sanitária que surgiram numa situação em que a realidade brasileira enfrentava uma complexa crise política e econômica. As perspectivas trabalhadas pelos autores e autoras nesta obra, suscitam uma série de elementos que nos permitem traçar os cenários da disseminação do novo Corona Vírus na realidade brasileira e suas nuances. Essa compilação, iniciativa do CEFA Editorial, pretende ser um escape seguro diante do bombardeio cotidiano de informações, da paranóia instituída e das políticas de isolamento impostas pelo estado como medida de resguardo diante do inimigo invisível. Boa leitura! Prof. Esp. Hugo Lopes de Oliveira Diretor Geral do CAIC Paulo Dacorso Filho UFRRJ – Prefeitura Municipal de Seropédica Prof. Dr. Leandro Sousa Costa Professor do Curso de Filosofia da Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR) – Campus União da Vitória São Paulo, 08 de julho de 2020. 9 PANDEMIA E PANDEMÔNIO: O BOLSOVÍRUS Paulo Ghiraldelli1 O mundo do Capitão Corona Você já esteve na feira de Wuhan? Não? Nem eu! Mas, nesses tempos, já li muita coisa sobre o local. Não à toa! Foi de lá que escutamos os primeiros gritos a respeito do novo coronavírus. Nessa feira, na cidade de Wuhan, na China, os cuidados higiênicos são os piores possíveis. O que hoje conhecemos como a pandemia da Covid‑19, segundo uma boa parte dos pesquisadores, teve sua origem lá naquele lugar. Foi de lá que a Covid‑19 decidiu infestar todo e qualquer país. A história da trajetória dessa doença, que, enquanto escrevo, vem matando muita gente no mundo todo, poderia ser contada de acordo com a perspicácia de diversos intelectuais. Entretanto, o único que parece acertar, de fato, a mão, é Stan Lee, o grande produtor da Marvel. Na ficção da ficção de Stan Lee contando essa história, tudo pode ser entendido conforme o desdobrar de forças cósmicas. Sabe-se lá por qual razão, irradiações de uma estrela distante atingiram a China, fazendo nascer em Wuhan um elemento completamente malévolo: a insaciável Covid‑19. Ela não pode ser considerada nem mesmo um ser vivo, já que é incapaz de apresentar DNA. Mostra-se apenas como um fio de RNA e, talvez, por isso mesmo, é portadora de um atroz e gigantesco ressentimento. Por que os homens não lhe deram o status de ser vivo? Dominada por essa mágoa da subalternização, a Covid‑19 saiu devorando o mundo. Então, encontrou um estranho lugar chamado Brasil. Nesse país, o governante máximo tinha exatamente a mesma falha em sua estrutura psicofísica, quase como um vírus. E a fusão dos dois foi imediata. Uma “quase pessoa” uniu-se a um “quase ser vivo”! 1Doutor e mestre em Filosofia pela USP. Doutor e mestre em Filosofia da Educação pela PUC- SP. Bacharel em Filosofia pelo Mackenzie e Licenciado em Ed. Física pela UFSCar. Pós-doutorem Medicina Social na UERJ. Titular pela Unesp. Autor de mais de 40 livros e referência nacional e internacional em sua área, com colaboração na Folha de S. Paulo e Estadão. Foi professor em várias universidades no Brasil e pesquisador no exterior. Aposentado pela UFRRJ. 10 O presidente Bolsonaro contraiu o novo coronavírus e, aparentemente, não apresentou sintomas. Por isso, passou a acreditar que o correto seria que todos viessem a ser contaminados para que, então, fossem imunizados. Isso deveria ocorrer a partir do momento que 50% da população tivesse contraído o vírus. Essa seria a “imunização de rebanho”, embora alguns especialistas afirmem que isso não é viável, pois o novo coronavírus não gera uma imunização fácil. De qualquer maneira, verdadeira ou falsa, a teoria de Bolsonaro implicava a morte de muitos. Para o presidente, o importante era que os negócios não parassem. E, se os mais velhos e os mais pobres viessem a morrer, não fariam falta. A lógica neonazista aí embutida é a de que os fortes sobrevivem e, sem os fracos, o resultado é a depuração da raça. A fusão entre o presidente e a Covid‑19 assim se fez, e tudo isso se tornou claro de maneira bem rápida. Logo, o presidente começou a apresentar sintomas não corriqueiros da doença. Em vez de febre, tosse e falta de ar, ele passou a pensar como o vírus pensa. Por sua vez, o próprio vírus sentiu que seu hospedeiro queria exatamente o que ele mesmo queria. Nunca o conceito de biopoder havia encontrado lugar e hora para se efetivar de maneira tão promissora. O corpo do presidente passou a funcionar sob ordem do vírus, procurando contaminar outros e criar um combate à política de isolamento que, enfim, era o único modo de conter a expansão da doença. O presidente foi apelidado de Capitão Corona. A população percebeu sua forte conexão com a intenção virótica. De fato, o projeto de Bolsonaro era (e, no momento que escrevo este texto, ainda é) a criação de uma sociedade realizada como um pastiche do já pastiche anarcocapitalismo. Para tal, nada melhor que um caos instaurado em doses homeopáticas. Ora, o vírus comportou-se como capaz de promover tal caos. O presidente e o vírus vieram a se entender, e o poder se fez presente no corpo do presidente, que passou a exercer esse poder diretamente sobre os corpos dos seus cidadãos. A política de saúde, praticamente solapada pelo Capitão 11 Corona, tornou-se a política par excellence. Nada mais foi pensado – como não é, nesse momento que escrevo – de forma desvinculada do corpo. Foi tomado coletivamente como “biopolítica da população” e individualmente como “anátomo-política do corpo”, para bem lembrar dois conceitos de Michel Foucault. O nosso cotidiano em fins de maio e as antropotécnica Até aqui, isso é o que pudemos notar da pandemia. A partir de agora, neste texto, relato o que vivemos cotidianamente, estando em meio à pandemia. Na perspectiva da biopolítica da população, todas as manhãs, passamos a contabilizar quantos foram infectados e quantos morreram, e se morreram em casa ou hospitais. Tentamos calcular o número de leitos e covas necessários e de apetrechos hospitalares disponíveis. Na perspectiva da anátomo-política do corpo, procuramos manter a quarentena e nos desdobramos para ficarmos saudáveis. Mas é difícil. A potencialização do corpo, sua transformação, ganhou novo ritmo. Todos sentem que a vida se tornou, de fato, naquilo que foi teorizado pelo filósofo italiano Giorgio Agamben, a vida nua, isto é, a vida puramente biológica. Ou seja, importa mais antes sobreviver do que viver, ainda que, na classe média, o entendimento se manteve aquele de que a sobrevivência ainda não é a prioridade – para ela própria, classe média, é claro. A mera sobrevivência é o que se pode dar aos outros, mas não em épocas de crise! Ao mesmo tempo, os corpos começam a se transmutar e a aceitar um novo conceito de silhueta. A máscara é algo necessário. Já se mostra, até mesmo, como uma peça de adorno, à semelhança do ocorrido, no passado, com os óculos. Os ocidentais experimentam o erotismo dado pelos olhos, que só os orientais conheciam. Isso para os que ainda podem pensar em erotismo em uma sociedade cuja distância social reordenada vê ocorrer um novo boom de virtualização. Uma juventude de classe média, talvez até mais sexualizada 12 em alguns casos, mas, em geral, menos erotizada, inicia a adoção de uma vida remodelada. Nessa vida, se ainda alguma tara sexual viesse a ser lembrada, ela arrastaria junto uma frase de Millôr Fernandes de 1971: “de todas as taras sexuais, não existe nenhuma mais estranha do que a abstinência”. Essas mutações corporais podem ser colocadas em uma caixa sob a rubrica de “antropotécnicas” – técnicas de produção do homem pelo homem. Peter Sloterdijk, que criou esse conceito, o toma como uma maneira de escaparmos da divisão pouco produtiva entre cultura e natureza. Na verdade, o homem se faz homem por técnicas que ele cria, as antropotécnicas. Toda essa reordenação da anátomo-política do corpo nada mais é do que a criação de antropotécnicas. A máscara é uma antropotécnica, e a distância social deve ser outra. O zelo com o álcool gel também se insere nessa “caixa”. Uma vez que o Capitão Corona comandou uma ação contra tudo isso, ele se mostrou como uma força contrária às antropotécnicas e, portanto, como um reacionarismo diante do homem, da própria noção de civilização. O biopoder é exercido sobre o corpo. Gera nova política. Naquilo que tem de reacionário, se faz contra as antropotécnicas geradas no afã de ludibriar o vírus. A missão do Capitão foi a de não viabilizar isso. Ele continua no mesmo afã e ritmo. Se assim olhamos tudo, somos obrigados a admitir que a política chegou ao fim, e tudo o que temos é a biopolítica, o exercício do biopoder. Lutar pelo impeachment do presidente deve ser entendido, desse modo, ao menos no momento que escrevo, não como imperativo político, uma vez que este não mais existe. O que temos é um imperativo no âmbito da biopolítica. Todavia, é um imperativo da política crivada, agora, por uma nova conceituação. Nesse caso, tirar Bolsonaro do poder põe-se na conjuntura de tornar o Brasil livre do vírus e, concomitantemente, da perigosa anomia social que nos ronda. Os políticos, ao menos até o momento em que produzo este texto, não entendem muito bem isso. Atuam como se, de um lado, houvesse a Covid‑19 e, de outro, o presidente. De um lado, a morte pela infecção e, de outro, a morte pelo descaso e pelo desgoverno. Mas não é isso que ocorre; o descaso é o gerenciador da morte. O vírus promove o caos pedido por Bolsonaro e este 13 abre passagem para o vírus continuar ceifando vidas e executando sua vingança. Ademais, se computarmos que Bolsonaro também sempre foi um medíocre, deveremos perceber que ele está se vingando. Ele vinga-se das esquerdas e de todas as forças iluministas. Vinga-se da sociedade que, enfim, o viu como quem foi expulso do Exército. O vírus vinga-se da humanidade que o viu como alguém capaz de ganhar cidadania sem ganhar o qualificativo de ser vivo. O conceito de imunização Roberto Espósito desenvolveu o conceito de imunização, que também é utilizado por Sloterdijk, mesmo que seja de maneira ligeiramente distinta. Posso me aproveitar desses conceitos como insights para operar com a atual situação brasileira em que o império do biopoder está sob o descomando do Capitão Corona. O conceito de imunização remete ao fato de que precisamos de algo que nos ataca para que, com ele, possamos gerar uma vacina. Ora, a vacina para o novo coronavírus, no Brasil, dependerá menos de laboratórios do que da compreensão de que todo tipo de mal já foi causado pelo Capitão Corona. Estamos prontos para a produção de anticorpos. A imunização diante do biopoder é sempre uma imunização biopolítica.No momento em que escrevo, há mais de 20 mil mortos no Brasil. Todos são de responsabilidade do Capitão Corona – o “Bolsovírus”. A imunização pedida por ele é aquela que, em nome da vida, gera a morte. Segundo Espósito, o conceito de imunização pode mostrar exatamente isso: o deslize do positivo no negativo. Ele menciona uma transfiguração da intenção do compromisso de Hipócrates, que fora levada a cabo pelos médicos que aderiram ao nazismo – e não foram poucos! Ao se pedir a raça pura por imunização de rebanho, os médicos com tendências nazistas podem acreditar que a vida da nação e, portanto, do povo que irá ultrapassar o vírus, é o que 14 importa. Quem adota isso talvez acredite que está com Hipócrates. A ideologia é que permite essa subversão, mas o que se gera é a mortandade. Essa inversão do compromisso com Hipócrates, que, de fato, ocorreu na Alemanha entre os médicos nazistas, deveria ser observada pelo nosso ensino de medicina e precisaria ser estudada pelo nosso ensino de direito. É uma visão em que a vida é entendida segundo uma conceituação que elimina o rosto da vida individual. Trata-se de perceber que vivemos na época da biopolítica. Que o poder é exercido pelo seu entrosamento com os corpos. Mas que o corpo parece estar sob o invólucro de um imperativo que pode ser explicitado mais ou menos assim: “só vale a pena a vida ser vivida se ela é a vida mais imune à morte”. Nesse caso, a ideia de vida e de corpo desloca-se para o plano de um tipo de seleção forjada pela natureza, ao menos em princípio, mas que, na verdade, é executada pelo Estado, pelos agentes públicos e privados de uma política de higienização pervertida. Escolhe-se quem deve morrer: velhos, desnutridos, pobres, populações vulneráveis e assim por diante. Isso é genocídio, não Hipócrates. No Brasil, o Estado faz isso por desaparelhamento, portanto, em um sentido diferente do estado hitleriano. Somos o pastiche do neoliberalismo e do anarcocapitalismo! Não vivemos sob a ditadura nazifascista. O ideal seria tentar uma imunização que não deslizasse para a morte. Para isso, seria necessário adquirir anticorpos sociais contra o próprio chefe da tropa virótica, o Capitão Corona. Teríamos de absorvê-lo em nossas entranhas, a fim de o domesticar. A nossa chance pode ser o processo de impeachment, durante o qual todos os seus crimes poderão vir à tona. À medida que a sociedade entender que são crimes mesmo, talvez surja a oportunidade de anular o vetor que os leva a serem cometidos. Ao fim e ao cabo, o bolsonarismo não será ejetado do corpo de cada um de nós e da sociedade em geral, mas, diante de sua permanência, saberemos controlá-lo. É semelhante a controlar o fascismo que pode haver em cada um de nós e na sociedade. 15 Para finalizar, se não decidirmos parar Bolsonaro, não conseguiremos impor a “nossa” imunização, e ocorrerá a dele. Teremos perdido o próprio Brasil. 16 A SAÚDE NA ERA BOLSONARO Mariangela Cabelo2 No dia 23 de abril de 2020, o inimaginável aconteceu. Em verdade, inimaginável em outras épocas, mas não na era Bolsonaro. Naquela tarde quente de Campo Grande (MS), Paulo Ghiraldelli chamou-me para ler a notícia sobre a divulgação do parecer (nº 04/2020) do Conselho Federal de Medicina (CFM), em que este autorizava o uso de hidroxicloroquina (HDX) para o tratamento da Covid-19, mesmo sem evidências sólidas que embasassem tal decisão. A própria autarquia e o presidente do CFM lembraram da falta de comprovação científica. Aliás, um estudo sobre o assunto3, na época, foi interrompido, pois o grupo de pacientes que tomou HDX apresentou maior mortalidade. Resta-nos perguntar: qual é o sentido disso? O que fez a entidade médica mais importante do país autorizar o uso dessa droga para tratar a Covid-19? O sentido foi o de abaixar a cabeça para a ideologia do presidente Jair Messias Bolsonaro. Na manhã do mesmo dia, houve uma reunião entre o chefe do Executivo, o ministro da Saúde e o presidente do CFM; e, então, o que era consenso no mundo todo foi abandonado pelo CFM. A boa prática médica foi desconsiderada. As diretrizes da Food and Drug Administration (FDA) e as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) deixaram de valer. O CFM passou a obedecer ao comando do segundo maior “tosco” da República (Bolsonaro disse que era Mourão o mais tosco!). O presidente vinha defendendo que o isolamento social, pedido por especialistas de todo o mundo, era uma medida “histérica” que atrapalhava a economia do país. Assim, havendo um remédio mágico para a doença, o trabalhador poderia voltar às ruas e o Estado não precisaria ajudá-lo. A benção do CFM foi-lhe de extrema valia. 2 Graduanda em Medicina pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e criadora do canal Todos pela Saúde. 3 O estudo que posteriormente era atacado pelo Planalto disponível em: https://www.medrxiv.org/content/10.1101/2020.04.07.20056424v2. Acesso em: 08 de junho de 2020. 17 Houve reação dos médicos quando o conselho de maior importância para a profissão foi maculado por uma ideologia genocida? Parece que a covardia se apoderou da classe médica. Notei isso quando permitiram que Drauzio Varella fosse atacado em cadeia nacional e não vieram em defesa do colega; quando permitiram que o Bolsonaro fritasse o então ministro da Saúde Henrique Mandetta; quando o “gabinete do ódio” começou a atacar os colegas da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz); quando não reagiram ao desmanche do ministério da Saúde (MS). Se eu disser que houve um silêncio generalizado, estaria mentindo, mas a resposta foi fraca e sem união, e, diga-se de passagem, com aquela típica isenção política por parte de quem não entende o conceito de biopolítica e biopoder4 inerentes a uma pandemia. Alguns pediram em suas redes sociais que as pessoas ficassem em casa, outros elogiaram o Mandetta, mas nada falaram do cerne do problema, nada disseram a respeito de políticas públicas, e poucos5 lembraram que o maior inimigo dos médicos e dos brasileiros era o próprio presidente, que iniciou sua marcha em favor do novo coronavírus no dia 24 de março de 2020. Será que as confrarias existentes há séculos, pelas quais a prática médica surgiu e se institucionalizou, não significaram nada? Será que os médicos não perceberam que eles tinham grande força em um momento de pandemia? Talvez a história da ciência brasileira não esqueça esse silêncio. Alguns órgãos, a exemplo do Instituto Questão de Ciência, chegaram a enviar cartas à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) e ao Ministério da Saúde (MS) alertando sobre as crescentes evidências de que a droga não tinha eficácia. Aliás, avisaram, ainda, que a droga colocava em risco a vida dos pacientes com Covid-196. Será que apoiamos como deveríamos os gladiadores da ciência no país, que, apesar das constantes agressões, continuaram a lutar? O 4 Vide o primeiro capítulo desta obra. 5 O neurologista Miguel Nicolelis referiu-se ao presidente Bolsonaro como um pandemônio que só piorava a pandemia. 6 PASTERNAK, Natalia; ORSI, Carlos. CFM abandona médicos que seguem a ciência à própria sorte. 23 de abril de 2020. Revista Questão de Ciência. Disponível em: https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/index.php/artigo/2020/04/23/cfm-abandona- medicos-que-seguem-ciencia-propria-sorte. Acesso em: 13 de junho de 2020. https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/index.php/artigo/2020/04/23/cfm-abandona-medicos-que-seguem-ciencia-propria-sorte https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/index.php/artigo/2020/04/23/cfm-abandona-medicos-que-seguem-ciencia-propria-sorte 18 silêncio desse momento era o grito mais alto que um profissional, com responsabilidade ao diploma, poderia dar! De certo, a opinião médica durante essa pandemia tinha “algum” valor,ou seja, nós, da área da saúde, tínhamos tudo para ter lutado e defendido nossas instituições, nosso ministério e nossos médicos contemplando a postura e a ética médicas. Digo isso pois algumas atitudes do ex-ministro Henrique Mandetta foram, por certo, as que um médico, à frente do respectivo ministério, tomaria. Outras eram execráveis, oriundas do mais podre jogo político, como a de permanecer no cargo, mesmo às custas da ruína do MS. Fato esse que ficou evidente no episódio do dia 25 de março de 2020, em pronunciamento coletivo para a imprensa. Henrique Mandetta tentou, ao máximo, racionalizar o discurso do presidente, falando de isolamento vertical (depois, mudou de opinião), elogiando Bolsonaro em sua fala da noite anterior, ato que nenhuma associação médica conseguiu fazer. Inclusive, a Sociedade Brasileira de Infectologia foi a primeira a vir a público (em 25/03/2020) apresentando uma nota que, veementemente, discordava do discurso e da postura presidencial; atitude oposta à tomada pelo então ministro. Para esclarecer o início do fim de Mandetta no ministério da Saúde, temos de voltar à noite do dia 24 de março de 2020. Nessa noite, ocorreu o pronunciamento do presidente da República em rede nacional. Jair Messias Bolsonaro fez um ataque frontal ao MS e a suas decisões técnicas, que, na época, recebia atenção e elogios do mundo todo. Ao afrontar esse ministério, ele também atacou a OMS e a boa prática científica, uma vez que o Brasil vinha se guiando por ela. É que, para Bolsonaro, uma pandemia, capaz de mudar os paradigmas da história, deixando um rastro de mortes, não poderia ter mais atenção que o próprio presidente, ou seja, não poderia roubar seus holofotes. De fato, o nosso país estava atento às orientações do ministério da Saúde. Começamos bem o isolamento social em março e, a cada dia, estávamos com maior adesão, até a data cabalística que coincide com o discurso do excelentíssimo. 19 Você pode estar se perguntando: por que, em meio ao caos do governo Bolsonaro e ao caos que se instalou em outros ministérios, o problema da Covid-19 no Brasil conseguiu ser bem encaminhado na pasta da Saúde? A resposta é que tínhamos competentes médicos e profissionais da área em cargos importantes no ministério da Saúde, atentos desde 31 de dezembro de 2019, quando foi notificado o primeiro caso à OMS de uma pneumonia atípica na China. Foi no dia 23 de janeiro de 2020 a primeira vez que o ministério se pronunciou acerca do novo coronavírus e nos esclareceram tudo que sabiam da doença até o momento. Isso ocorreu na voz do dr. Julio Croda, o então diretor do Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde (DEVIT/SVS/MS). Foi uma verdadeira aula aos jornalistas. Croda é infectologista, foi meu professor na faculdade de medicina da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. Ele e sua equipe foram os primeiros responsáveis a enfrentar o problema, elaboraram os protocolos iniciais e ensinaram os passos que deveriam ser tomados dali em diante. No fim de janeiro de 2020, havia muito desespero; alguns jornalistas confundiram casos suspeitos com confirmados e alarmaram a população. Havia medo e desconhecimento por parte das pessoas e dos próprios profissionais de saúde. Entretanto, o MS iniciou um ótimo trabalho de educação em saúde, com pronunciamentos transmitidos ao vivo em redes sociais cotidianamente e notícias atualizadas em seu site. Estávamos adiantados em relação ao vírus, e uma prova disso foi a ativação no Centro de Operações de Emergência nível 1 (COE) no mês de janeiro. A título de esclarecimento, o COE é ativado quando uma secretaria convoca outras da mesma pasta, secretarias de saúde estaduais e órgãos como a Anvisa para um trabalho em conjunto. Inicialmente, poderia ser um problema do DEVIT, mas, a partir daquele momento, passou a ser um problema de todos. Não era histeria, era o trabalho profissional de preparação para a chegada iminente do vírus que, enfim, chegou. No dia 26 de fevereiro de 2020, o MS confirmou o primeiro caso brasileiro. Continuou analisando todas as notificações e trabalhando junto às secretarias estaduais e municipais em uma 20 força-tarefa para conter a doença, até sugerir o isolamento social, que se deu na segunda quinzena de março. Eram sete horas da manhã de uma segunda-feira, dia 16 de março de 2020, e notei uma aglomeração em uma parte do hospital universitário em que eu estava. Houve um problema com o agendamento e o ambulatório geral tinha pegado fogo na última sexta-feira. Os pacientes deveriam ter tido seus horários remarcados, o que evidentemente não havia ocorrido. Andei um pouco pelo hospital e cheguei a um corredor que havia mais de cinquenta pessoas, a maioria em pé. Profissionais de saúde, demais trabalhadores do hospital e acadêmicos transitando e trabalhando por ali. A situação foi, depois de algum tempo, regularizada. Mas aquilo já era um alerta: será que o nosso SUS sucateado, com suas filas enormes, com falta de equipamento e de mão de obra, aguentaria uma pandemia avassaladora? Enquanto isso, os jornais do mesmo dia noticiavam 2.158 mortes confirmadas na Itália pelo novo coronavírus. Eu não havia imaginado que, já no dia seguinte, terça-feira, a minha vida começaria a ficar diferente. De um dia para o outro, a faculdade de medicina pediu para os alunos não aparecerem no ambulatório na manhã seguinte. Naquela terça-feira, então dia 17, já não fui mais à universidade e todas as federais fecharam suas portas. Em sequência, vieram as escolas estaduais e municipais. Nesse período, a Itália mostrava ao mundo o perigo de atrasar o isolamento social. Meus plantões na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) e no Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) foram cancelados; não podiam mais gastar equipamento de proteção individual (EPI) com os alunos. De repente, aquelas máscaras que usávamos até então despreocupadamente em relação à quantidade se mostraram um utensílio muito valioso – fariam uma falta vital em nosso país. Evidentemente, os internos (acadêmicos dos 5º e 6º anos de medicina) não pararam, pois, além de estarem mais avançados no curso, residentes e internos são imprescindíveis em um hospital. Dia 18 de março de 2020: 2.978 mortos na Itália. A curva logarítmica, que pensei ter esquecido lá nas aulas de matemática do ensino médio, apareceu. Para nossa infelicidade, sua ordenada significava vidas interrompidas. 21 No dia do primeiro pronunciamento oficial de Jair Bolsonaro sobre o tema, já havia 6.820 corpos desalmados na península itálica. Antes do final de março, o rastro de destruição que passou por aquele país já tinha ceifado 12.428 vidas. Assim, a Itália perplexa chorou. A nação arrependeu-se de subestimar a nova peste. Por incrível que pareça, diante dessa dor da humanidade, diante de algo que nos atingiu frontalmente, a autoridade maior brasileira referiu-se à nova peste como uma gripezinha. Ele, o presidente, no dia 24 de março de 2020, já tinha suficiente informação para saber que o vírus não estava para brincadeira. Era contagioso e vinha para testar nossos sistemas de saúde. Colapsando-os, derrotando-os um por um, até a da mais rica metrópole estadunidense, Nova York. Todos ajoelharam-se: um simples pedaço de RNA nos havia vencido. A Covid-19 é uma doença que pode matar por asfixia. Eis uma das razões pelas quais os sistemas de saúde colapsaram. Eram necessários ventiladores mecânicos para uma parcela dos pacientes sintomáticos graves. Diga-se de passagem que os médicos sabem o protocolo e conhecem os medicamentos e os procedimentos que devem ser utilizados em casos de síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA) – ninguém estava deixando ninguém morrer. No entanto, efetivamente, não existia – como não existe até o momentoem que escrevo – um remédio capaz de derrotar o vírus. Nesse cenário, o nosso Capitão Corona7 tinha a solução, com o seu pseudodiploma de médico, e passou a receitar. O coronel Homero de Giorge Cerqueira, presidente do Instituto Chico Mendes, foi a público informar que seguiria os conselhos do Capitão. Tomou hidroxicloroquina. O general Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), se deu alta do hospital depois do pronunciamento do presidente e foi infestar o mundo, cada vez que abria a boca, com novos milhões de RNAs mortíferos. A prova da existência de uma família genocida na presidência da República se deu com uma propaganda do Planalto, divulgada em massa no 7 Apelido para Jair Bolsonaro, cunhado pelo professor Paulo Ghiraldelli, explicado no início deste livro. 22 dia 27 de março de 2020. O primogênito do clã, senador Flávio Bolsonaro, deu o chute inicial na campanha #BrasilNaoPodeParar. Depois disso, iniciou-se algo bizarro: bolsonaristas fanáticos organizaram carreatas e manifestações a favor do vírus, ou melhor, pedindo o fim do isolamento social. Isso considerando que, até aquele momento, não havia impedimento legal, por parte de ação dos governadores, quanto à circulação de cidadãos. Tudo isso ocorreu em cerca de uma semana – tempo necessário para desmanchar o trabalho de meses do MS e iniciar sua ruína. O último dos ministérios que ainda tentava funcionar adequadamente estava com os dias contados. Foram suficientes esses poucos dias para preparar o óleo no qual Mandetta seria frito nas semanas subsequentes. Houve um verdadeiro êxodo da equipe técnica do MS durante esse período. No dia 25 de março de 2020, Júlio Croda, diretor de departamento, deixou o ministério, sendo o precursor. Ele percebeu, como outros depois dele, que a ideologia bolsonarista atrapalharia a luta contra a nova peste. É inútil varrer papéis em uma ventania. É inútil lavar o carro na chuva. Assim como é inútil escrever protocolos pedindo isolamento, quando o chefe do Executivo fala, em rede nacional, contra o trabalho dos especialistas. Atenção deve ser dada aqui ao fato de que é a ideologia, e não a política, que atrapalhou o trabalho científico-médico. Sem política, não há SUS, não há políticas públicas de saúde, nem há vida em sociedade. Nossa civilização ocidental nasceu da polis, e, por isso, é impossível tirá-la do nosso cotidiano. Uma política bem feita pode, a exemplo de outros países, ser a chave para achatar a curva de infectados. Se política não é a mesma coisa que partido, então os médicos não precisam ter medo de usar essa palavra. Devemos e podemos utilizá-la em favor da saúde pública. Em 24 de março de 2020, eu reiterei, em meu canal “Todos pela Saúde”8, que o avanço do vírus não seria contido apenas com as recomendações médicas de lavar as mãos e de instaurar a quarentena. Sem a atuação do 8 O canal “Todos pela Saúde” foi criado em 2019 e foi entabulado para servir ao propósito de educação em saúde e divulgação científica. Ressalta-se que ele não possui qualquer relação com o banco Itaú, que iniciou uma campanha com o mesmo nome. 23 Estado, seria inviável conter a pandemia, sobretudo porque são cerca de 35 milhões de brasileiros sem acesso à água tratada. Metade da população não tem acesso aos serviços de coleta de esgoto. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que 1.935 municípios brasileiros (34,7% do total) ainda registram epidemias ou endemias relacionadas à falta ou à deficiência de saneamento básico. Será que preciso lembrar das favelas? É impossível sete pessoas da mesma família ficarem juntos, o tempo todo, em um único cômodo. E quando uma janela de sua casa dá para o interior da casa do vizinho? Que tipo de isolamento seria esse? Considerando esses pressupostos, no dia 25 de março de 2020, Drauzio Varella, em seu canal no Youtube, além de desmentir o discurso do presidente, salientando a importância de ficar em casa, nos lembrou de que aquelas recomendações médicas seriam insuficientes. Ele disse que o Brasil estava atrasadíssimo em relação às medidas de controle pandêmico. Expos que o Estado deveria estar há semanas na favela, entregando cestas básicas e resolvendo o problema da água. Alguns dias antes, o filósofo Paulo Ghiraldelli9 nos lembrou também dos escritos de Byung- Chul Han10. Esse filósofo sul-coreano escreveu como o país dele lidou com o novo vírus. Seria uma interessante solução para o Brasil imitar algumas medidas tomadas na Coreia do Sul. Lá, algumas regiões têm semelhanças com as favelas brasileiras no que diz respeito às condições de vida. Se a quarentena é difícil/impossível em uma favela, então, os moradores suspeitos e contaminados deveriam ser retirados pelo poder público. Deveriam ter uma estadia à parte. Assim, a mazela não acometeria milhares de pessoas simultaneamente. Desse modo, o trabalho do MS, seja qual for, já era insuficiente em um país tão desigual como o nosso. Precisávamos, efetivamente, dos políticos, dos governadores, dos deputados, dos vereadores e dos senadores, enfim, de todos aqueles que são pagos com dinheiro público. Naquele momento, eles não poderiam faltar diante das necessidades da população. Então, qual é a utilidade de isenção política médica se uma pandemia é toda biopolítica? Ah, 9 Em seu canal no YouTube. 10 Dentre outros escritos, destaca-se a obra Sociedade do cansaço. 24 esqueci! Na verdade, de isento o CFM não tinha nada quando aceitou a ideologia presidencial. Se o nosso compromisso primeiro é a saúde, qualquer um que tomasse uma postura anticientífica deveria receber uma admoestação, no mínimo. O silêncio custa vidas. Já que o assunto é a aceitação da ideologia bolsonariana, Mandetta deveria ter sido firme e, no dia 25, não poderia ter amenizado seu discurso. Será que ele não conhecia realmente o chefe para quem trabalhava? Será que ele não percebeu que um homem, no qual o “guru” é um tipo como Olavo de Carvalho, não poderia conciliar com argumentos racionais? Será que não percebia a impossibilidade de tentar qualquer diálogo lógico com o chefe? Olavo dizia que o vírus não existia, em meio à plena pandemia. Até mesmo o YouTube removeu de sua plataforma alguns vídeos dele, pois ameaçavam a vida. Nem é preciso recordar que o bastião da pseudociência e do anti- intelectualismo, o desescolarizado Olavo de Carvalho, fazia ataques ao Drauzio Varella, lutava em favor do câncer, defendendo os interesses da indústria tabagista, e falava em favor do lucro de caixões infantis ao defender campanhas antivacinação. Não era de se espantar que o Capitão Corona escutasse esse tipo de discurso. Muitos acharam que seria o fim de Bolsonaro, quando ele atacou mais diretamente o ministério mais popular e importante do momento. O presidente prometeu, no dia 24/03/2020, que conversaria com Mandetta e iria “dobrá-lo”. O Capitão conseguiu o que queria. Longe de ser seu fim, ele interferiu o quanto quis no trabalho do MS. Como um “imperadorzinho”, comparecia às reuniões para dizer seus gostos à pasta da Saúde e, no dia, concordava com algumas pautas, mas, no dia seguinte, discordava publicamente. Fez o MS engolir sua cloroquina; no dia 07 de abril de 2020, foi publicado um protocolo estapafúrdio do MS. Na ocasião, os únicos dois estudos sobre a droga eram inconclusivos, e um deles era evidentemente uma fraude científica11. Bolsonaro, depois de fritar e dourar bem Henrique Mandetta, exonerou-o no dia 15 de abril. A essa altura, o Brasil tinha uma equipe técnica impedida de trabalhar corretamente. Era como se soldados lutassem uma guerra com seus braços presos para trás 11 Vide o item “Texto II” do próximo capítulo, no qual Natália Pasternak e Carlos Orsi nos contarão um pouquinho sobre a história de Didier Raoult. 25 e seus olhos vendados. No Brasil, pareceque é o próprio coronavírus que tem a caneta. O “segundo maior tosco” do Brasil não parou com seus pronunciamentos oficiais criminosos. Além disso, em meio ao isolamento social, o presidente começou a sair às ruas, causando aglomerações e, assim, as incentivando. Desprezava as máscaras e, sempre que podia, falava contra as orientações do MS. No momento em que escrevo, Jair Bolsonaro continua com as mesmas práticas de produção de aglomerações. Enfim, uma série de crimes contra a humanidade foi cometido em pouco tempo por esse homem. Nenhum júri e nenhuma sentença seriam suficientes para reverter o mal que foi feito. Nada devolverá as vidas que foram ceifadas devido à sua política de extermínio. Entretanto, certamente, isso não tira a necessidade de um julgamento, inclusive, em tribunal internacional. Nenhuma exceção ou tentativa de racionalização podia ser feita daqueles discursos do presidente. O papel da política é fundamental para que a saúde possa se desenvolver. Aos que achavam que de um lado estava a área técnica e de outro, a política, digo que esse vírus nos ensinou algumas lições: a lição de que cada política pública assumida implicaria um número diferente de internações e de mortes; a lição de que precisamos de mais “Drauzios” lutando pelo SUS, falando dos problemas decorrentes da desigualdade social e de como isso interfere no trabalho médico. Enquanto ficarmos curando doenças em consultórios e hospitais, vamos falhar miseravelmente. Talvez seja relativamente tarde para ouvirmos mais os sanitaristas. Já que explicitei a importância da política em uma pandemia, tenho de imputar ao governo federal a responsabilidade para com as mortes que viriam em abril. Elas efetivamente vieram. Dia 28 de abril de 2020: 72.899 casos confirmados e mais de 5 mil indivíduos mortos no Brasil. Nesse dia, os jornalistas confrontaram o chefe do Executivo sobre os dados do país. Novamente, eclodiu-se mais uma amostra do sarcasmo de Bolsonaro e sua desconsideração para com a vida da nação. 26 A resposta foi: “O que eu tenho a ver com isso? E daí!? Sou Messias, mas não faço milagre”. Deveras, o que poderia um presidente ter a ver com o seu país? Não teremos chances contra a nova peste enquanto existir um Capitão Corona no governo do Brasil. Como diria o neurologista Miguel Nicolelis, não dá para lutar contra uma pandemia e um pandemônio ao mesmo tempo! 29 de abril de 2020 27 UMA AULA DE COMO NÃO TESTAR UM MEDICAMENTO Natalia Pasternak 12 e Carlos Orsi13 Entre a segunda metade de março e a primeira quinzena de abril de 2020, a população brasileira foi bombardeada por uma bem-orquestrada operação de relações públicas – envolvendo entrevistas na grande imprensa, comentários em redes sociais e, até mesmo, intervenções do presidente da República –, dando conta de que o grupo provado de saúde paulista Prevent Senior “em breve” publicaria um estudo atestando a utilidade da combinação de drogas hidroxicloroquina e azitromicina no combate à infecção causada pelo vírus SARS-CoV-2. As comunidades médica, científica e jornalística, compreensivelmente, aguardavam, com enorme interesse, a prometida publicação. Apontada, inicialmente, como tratamento promissor por um pequeno estudo francês, repleto de inconsistências e defeitos metodológicos graves, a combinação não vinha se saindo bem na maior parte dos estudos internacionais posteriores e seguia um padrão bem conhecido no universo dos tratamentos médicos que acabam descartados ou transformados em terapias alternativas: quanto maior o rigor e a qualidade do estudo, menor o efeito constatado. A possibilidade de um trabalho de boa qualidade, realizado no Brasil, reverter o rumo do crescente consenso negativo em torno do uso da combinação de drogas no contexto da pandemia mantinha leigos e especialistas acordados madrugadas adentro. Quando o estudo veio a público – não no formato de artigo científico, revisado pelos pares e publicado em um periódico de prestígio, mas, sim, de um documento digital distribuído a jornalistas por uma assessoria de marketing –, revelou-se, infelizmente, uma decepção acachapante. Um artigo 12 Formada em Ciências Biológicas pelo Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo IBUSP, PhD com pós-doutorado em Microbiologia, na área de Genética Molecular de Bactérias pelo Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo, ICB-USP. 13 Jornalista formado pela Escola de Comunicação e Artes. Membro da diretoria do Instituto Questão de Ciência. 28 publicado originalmente na Revista Questão de Ciência14, e reproduzido a seguir, explica o porquê. Pelo menos desde a última quinta-feira, 16, circula entre jornalistas e cientistas brasileiros um documento em PDF que parece ser o preprint – a versão “quase final” de um artigo científico, supostamente submetida à revisão dos pares – do trabalho que descreve os resultados obtidos pelo grupo de medicina privado brasileiro Prevent Senior com um protocolo de tratamento de Covid-19 baseado em telemedicina (isto é, consultas remotas) e na perigosa combinação das drogas hidroxicloroquina (HCQ) e azitromicina (AZ). Dizemos “parece” porque, até o momento em que escrevemos (manhã de sábado, 18), o documento não se encontra disponível em nenhuma das plataformas usuais de preprints dedicadas ao conteúdo relativo à nova pandemia. No entanto, jornalistas receberam nota oficial de divulgação da assessoria de marketing e comunicação do grupo médico, e representantes do Prevent Senior concederam entrevistas sobre o assunto – em todo esse material, já disponível ao público, o conteúdo é consistente com o que vemos apresentado no PDF. A repercussão do aparente manuscrito na comunidade científica tem sido a pior possível. Especialistas em medicina baseada em evidências de renome internacional, como o oncologista norte-americano David Gorski e o geneticista francês Gaetan Burgio, referiram-se ao material como “execrável” (crappy, no original) e “atroz”. O desfecho descrito é necessidade de hospitalização: se tomarmos o trabalho pelo valor de face, ele mostra que o uso de HCQ e AZ em pacientes de Covid-19 reduz a necessidade de internação hospitalar. O valor real, no entanto, é muito menor do que o valor de face – tende, de fato, a zero. As razões para isso são inúmeras. Para dar ao leitor uma visão panorâmica dos problemas que atingem o que parece ter sido uma desastrada 14 PASTERNAK, Natalia; ORSI, Carlos. Uma aula de como não se deve testar um medicamento. 18 de abril de 2020. Revista Questão de Ciência. Disponível em: https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/questao-de-fato/2020/04/18/uma-aula-de-como- nao-se-deve-testar-um-medicamento. Acesso em: 19 de junho de 2020. https://newsroom.heart.org/news/caution-recommended-on-covid-19-treatment-with-hydroxychloroquine-and-azithromycin-for-patients-with-cardiovascular-disease-6797342 https://newsroom.heart.org/news/caution-recommended-on-covid-19-treatment-with-hydroxychloroquine-and-azithromycin-for-patients-with-cardiovascular-disease-6797342 https://connect.medrxiv.org/relate/content/181 https://connect.medrxiv.org/relate/content/181 https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/04/estudo-da-prevent-senior-com-cloroquina-nao-permite-conclusoes-sobre-eficacia-contra-covid-19.shtml 29 operação de marketing de uma empresa que sentiu a necessidade de polir a própria reputação, além de promover a suposta eficácia da plataforma de telemedicina que oferece aos clientes, dividimos esta análise [capítulo] em seções que vão dos problemas éticos ao técnicos, e conclui mostrando que as falhas técnicas são, no fim, também falhas éticas. Conflito de interesse Há alguns anos, a Coca-Cola Company viu-se como alvo de duras críticas, algumas veladas, feitas pela comunidade científica e outras bem explícitas, na mídia, por financiaruma série de estudos que sugeriam que a falta de atividade física, e não o consumo excessivo de calorias (como, por exemplo, as calorias do açúcar presente em refrigerantes como os da Coca- Cola Company), era a principal responsável pela epidemia de obesidade que atinge os Estados Unidos. A razão das críticas é a questão do conflito de interesse: é, no mínimo, suspeito que uma empresa pague para que cientistas investiguem uma hipótese cuja confirmação pode ter impacto positivo no marketing da companhia. Isso acontece o tempo todo. Recentemente, descobriu-se que um estudo sobre os “benefícios” do consumo “moderado” de álcool era bancado por fabricantes de bebidas. E qualquer médico, cientista ou farmacêutico digno do diploma lhe dirá que estudos financiados pela indústria farmacêutica tendem a favorecer o remédio ou o tratamento sendo testado. Esse favorecimento pode ser bem sutil – um leve exagero nos benefícios descritos, efeitos colaterais que são apresentados com um pouco menos ênfase do que seria de se esperar –, mas é sistemático na literatura científica. Muito raramente, ele descamba para fraude deliberada. Entretanto, é algo que a comunidade científica precisa levar em conta sempre que um novo estudo sobre intervenções em saúde humana aparece. https://valor.globo.com/empresas/noticia/2020/04/02/prevent-senior-rebate-criticas-de-mandetta-sobre-acao-na-pandemia.ghtml https://valor.globo.com/empresas/noticia/2020/04/02/prevent-senior-rebate-criticas-de-mandetta-sobre-acao-na-pandemia.ghtml https://journals.plos.org/plosmedicine/article?id=10.1371/journal.pmed.1001578#s3 https://well.blogs.nytimes.com/2015/08/09/coca-cola-funds-scientists-who-shift-blame-for-obesity-away-from-bad-diets/ https://www.nytimes.com/2017/07/03/well/eat/alcohol-national-institutes-of-health-clinical-trial.html https://www.nytimes.com/2017/07/03/well/eat/alcohol-national-institutes-of-health-clinical-trial.html https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC156458/ https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC156458/ 30 É por isso que a boa prática científica requer que autores de estudos que afetam interesses comerciais declarem conflitos de interesse. Basicamente, se você ou seu patrocinador têm algo a ganhar (ou perder) dependendo do resultado do trabalho, você precisa avisar a comunidade científica disso. Não o fazer acende todo tipo de sinal de alerta e é motivo para pôr em dúvida a integridade e as boas intenções dos envolvidos. Se isso é verdade para estudos sobre dieta e obesidade conduzidos por pesquisadores independentes – muitas vezes, em universidades –, mas com algum aporte financeiro de uma empresa como a Coca-Cola, o que se poderia dizer de um estudo conduzido dentro de uma empresa privada, por funcionários da empresa, com dinheiro dos clientes da empresa e testando o produto que a empresa vende e do qual sua reputação depende? No entanto, o manuscrito não traz nenhuma menção a conflito de interesse. De fato, o espaço reservado para declarações de conflitos diz, de modo muito explícito, que não há nenhum. Informação de menos Para determinar se uma terapia “T” é eficaz contra uma doença “D”, o primeiro passo obviamente necessário é determinar se as pessoas que estão sendo tratadas com “T” realmente sofrem de “D”. Não faz sentido, por exemplo, dar um antitérmico para alguém que não está com febre e, meia hora depois, concluir que, se a pessoa não tem febre, o antitérmico funciona. Essa necessidade óbvia, no entanto, escapou à equipe do Prevent Senior. Os pacientes envolvidos no estudo tinham “suspeita” de Covid-19, mas nenhum resultado de exame que confirmasse a presença do vírus. De fato, o manuscrito diz que o critério inicial de seleção para o estudo era a presença de flu-like symptoms, ou seja, sintomas semelhantes aos da gripe. A presença desses sintomas era avaliada por consultas remotas. A variedade de condições que produzem sintomas semelhantes aos da gripe talvez só não seja maior que o número de anjos que podem dançar na 31 cabeça de um alfinete. Além da gripe propriamente dita, há resfriado, asma, excesso de poeira no ar, rinite, alergias diversas, sinusite, um sem-número de infecções bacterianas e assim por diante. Em pacientes idosos e com comorbidades, como os clientes da Prevent Senior, a prevalência desses sintomas pode ser ainda maior. Resumindo: o Prevent Senior não sabia o que estava tratando. Apenas conjecturava que parte dessas pessoas talvez estivesse contaminada pelo vírus SARS-CoV-2. Alguns pacientes passaram por tomografias de tórax, o que talvez pudesse ser visto como uma tentativa de aferir a plausibilidade da conjectura, mas as tomografias não foram feitas de modo consistente e o manuscrito não diz quando foram obtidas (se antes, durante ou depois do “estudo”). Um representante da empresa declarou que os exames para detectar a presença do vírus demorariam muito para ser completados e que o objetivo do estudo era avaliar a eficácia da intervenção precoce. Ninguém explicou, no entanto, por que os exames não foram feitos de qualquer forma, e seus dados integrados depois, na fase de análise dos resultados. Seria, no mínimo, interessante saber se, dos vinte pacientes que acabaram internados (oito do grupo-tratamento e doze do grupo-controle), quantos realmente estavam infectados pelo vírus, e, se estavam, qual era a carga viral, se precisaram de oxigênio, ventilação, UTI, etc. Informação demais Se ninguém sabia o diagnóstico, todos sabiam quem estava recebendo a combinação HCQ+AZ e quem não. Cerca de 600 pacientes com os tais flu-like symptoms receberam a oferta de ter acesso às drogas; 400 disseram sim, 200 disseram não. Os 200 que disseram não foram usados como grupo-controle (não está claro se alguém fez a gentileza de avisá-los). 32 O manuscrito não diz se houve algum monitoramento da taxa de adesão ao protocolo – isto é, se alguém viu os pacientes tomando os remédios –, o que já é um problema, mas está longe de ser o maior. A questão é que, em princípio, todos, de pacientes às equipes de telemedicina que iriam decidir se eles precisariam ser internados ou não, tinham um forte investimento emocional (e, no caso das equipes do Prevent Senior, interesse financeiro) em que o número de hospitalizações fosse o menor possível. Do outro lado, as equipes que acompanhavam os pacientes-controle tinham o incentivo oposto. Para além de considerações egoístas (provavelmente de natureza inconsciente), se as equipes que acompanhavam os controles realmente acreditavam na eficácia da HCQ+AZ, era natural considerarem que os pacientes sem medicação corriam maior risco e, também, serem mais rigorosas na interpretação dos sintomas que poderiam levar à hospitalização. Do lado dos pacientes que recebiam as drogas, o investimento emocional e o desejo de agradar os cuidadores – às vezes, chamado de “efeito Hawthorne”, o que nos leva a escovar os dentes com cuidado especial antes de ir ao dentista – também pode ter influenciado o resultado. É justamente para evitar dificuldades desse tipo, além da exacerbação do efeito placebo, que os testes clínicos de melhor qualidade são chamados de duplos-cegos, nos quais nem pacientes nem cuidadores sabem quem recebe o tratamento e quem está no grupo de controle. À falta de cegamento, soma-se a autosseleção: foram os próprios pacientes que escolheram fazer parte do grupo de tratamento. Em termos do controle do efeito placebo, isso é muito diferente do que o paciente que aceita ser randomizado – isto é, que concorda em ser designado, por sorteio, para o grupo que vai receber a droga ou para algum dos controles. Não apenas o investimento emocional é de outra ordem, como também se quebra uma condição fundamental para a validade de qualquer teste 33 clínico – a de que os grupos comparados sejam o mais parecidos possível,diferindo, no caso ideal, apenas na natureza do tratamento recebido. É possível, por exemplo, que parte dos pacientes que recusaram o tratamento tenha tomado a decisão por conta de problemas cardíacos ou histórico cardíaco na família – questões que os colocam num grupo de maior risco de complicações causadas pela Covid-19. As tabelas fornecidas junto com o manuscrito indicam, por exemplo, que mais pacientes do grupo de tratamento entraram no estudo se queixando de febre, tosse, coriza, diarréia e dor de cabeça. Talvez, essas pessoas tenham aceitado as drogas por estarem assustadas. Mas, se parte delas estava no auge de um resfriado comum, podem apenas ter sarado naturalmente no curso da pesquisa – afinal, “resfriado passa com repouso e canja de galinha”. Informação nenhuma Uma das possíveis definições para informação é “aquilo que reduz nossa ignorância”. Nesse aspecto, o estudo conduzido pelo Prevent Senior tem valor informativo zero. As eventuais dúvidas da comunidade médico-científica sobre a eficácia e a conveniência do uso de HCQ+AZ no tratamento da Covid-19 continuam exatamente como estavam. Nada foi agregado. Ruído, por sua vez, pode ser definido como algo que ocupa espaço num canal de comunicação, mas não conduz informação: estalos e zumbidos num telefonema, chuvisco numa televisão, caracteres ao acaso no meio de um texto. O “estudo” do Prevent Senior pode ser definido como ruído científico, o que, numa situação de pandemia, é condenável – já que consome recursos, tanto financeiros quanto cognitivos, que poderiam ser muito melhor aplicados. Representantes do grupo médico em questão têm tentado defender o resultado afirmando que fizeram o melhor possível. Se quisessem mesmo fazer o melhor possível, poderiam ter seguido princípios básicos de ética médica e registrado seu desenho experimental no site internacional de registro de testes 34 clínicos, para que a comunidade científica pudesse opinar e, até mesmo, orientar sobre as graves falhas metodológicas. Essa prática é uma praxe em estudos de medicamentos justamente para respeitar a transparência da ciência e para que os demais especialistas possam avaliar se o trabalho foi desempenhado de acordo com a proposta inicial; desvios entre o projeto registrado e o trabalho executado não são bem vistos. Infelizmente, o registro desse “estudo” do grupo médico foi feito após a elaboração e a divulgação do manuscrito e descreve um estudo bem diverso do apresentado. Estudos clínicos controlados sobre medicamentos existem para tentar eliminar fatores de confusão que podem comprometer os resultados. O estudo do Prevent Senior fez o oposto: gerou confusão com a desculpa de que qualquer tipo de informação é melhor do que nada. Qualquer turista que já tenha ido parar num bairro violento após seguir indicações falsas do GPS sabe que isso está longe de ser verdade. Texto II A onda global de entusiasmo com os fármacos cloroquina (CQ) e hidroxicloroquina (HCQ) como possíveis remédios para a Covid-19 eclodiu a partir de um único “estudo” em humanos sobre o assunto; porém, esse estudo contém tantos defeitos, erros e imprecisões que o coautor de maior prestígio dentro da comunidade científica, o médico e microbiologista francês Didier Raoult, rapidamente passou a ser tratado como maluco excêntrico pela mídia internacional. Dentre os problemas do ensaio conduzido por Raoult, publicado num periódico que tem, como editor, um de seus coautores, estão a ausência de um grupo de controle significativo, o número minúsculo de pacientes envolvidos, a mixórdia experimental (no início, era sobre hidroxicloroquina e, depois, transformou-se num estudo sobre a associação entre a HCQ e o antibiótico azitromicina) e a manipulação excessivamente liberal dos dados gerados (os https://clinicaltrials.gov/ct2/show/NCT04348474?term=NCT04348474&draw=2&rank=1 https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/artigo/2020/03/19/ninguem-provou-que-hidroxicloroquina-cura-covid-19 https://www.irishtimes.com/news/world/europe/coronavirus-france-hoping-unorthodox-virologist-can-save-world-1.4210278 35 pacientes que pioraram depois de receber HCQ foram, convenientemente, excluídos da análise final). O choque entre a reputação construída e a realidade do trabalho publicado foi tamanho que inclusive o currículo acadêmico de Raoult ficou sob novo escrutínio: o jornal Le Figaro resgatou uma acusação feita no livro Malscience, do biólogo Nicolas Chevassus-au-Louis, que aponta que o número de publicações científicas atribuídas ao francês, num período de quinze anos (1996-2011) supera 12 mil. Segundo a base de dados de artigos científicos da área médica PubMed, só em 2020 já saíram 36 artigos onde seu nome consta como autor, o que dá uma média aproximada de uma publicação a cada dois dias. “Demais para ser honesto?”, questiona Le Figaro. Esse despertar do senso crítico, porém, chegou tarde e fora muito lento, sobretudo diante do estrago causado pela recepção inicial dada ao “estudo”, divulgado no fim de março de 2020. Até mesmo cientistas sérios e comunicadores da ciência experientes, aparentemente ofuscados pela reputação prévia de Raoult e abalados pelo custo humano da Covid-19, optaram, de início, por fazer vista grossa para os problemas óbvios que invalidam o trabalho e, então, saudaram a publicação como uma contribuição relevante para o combate à pandemia. A opção preferencial pela complacência ignorou uma lição que deveria ser o bê-á-bá de qualquer cientista ou comunicador da área: a dos indícios clássicos de crackpottery, expressão da língua inglesa quase intraduzível para o português que define um espectro de distorções da prática científica que vai desde a incompetência ingênua ao charlatanismo desbragado, sempre em parceria com obstinação e soberba. Alguns dos indícios clássicos são: pesquisador que apresenta seus resultados de modo espetacular ao público leigo, antes de buscar a revisão dos pares; pesquisador que faz alegações grandiosas com base em amostras pequenas ou na ausência de estudos formais; pesquisador que faz alegações grandiosas sobre um assunto científico fora de sua área de expertise; pesquisador que se mostra mais preocupado em convencer o público leigo e https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=%22Raoult%20D%22%5BAuthor%5D 36 lideranças políticas do que em responder às críticas técnicas dos demais especialistas da área. Exemplos comumente citados são a recomendação do uso de superdoses de vitamina C como panaceia, o fiasco da fusão a frio, a conexão espúria entre vacinas e autismo e, aqui no Brasil, a famigerada “pílula de câncer”, a fosfoetanolamina sintética. Embora o uso da CQ ou da HCQ como antiviral não seja, em si, uma ideia crackpot – há pelo menos um bom estudo in vitro, isto é, envolvendo células em cultura de laboratório, que sugere a possibilidade –, o trabalho específico do grupo de Raoult, se não chega a completar o bingo da crackpottery (o pesquisador, afinal, é da área), emitia, desde o início, claros sinais de alerta. Indícios como o fato de Raoult ter optado por ir ao YouTube para se gabar da “descoberta” antes da publicação do artigo científico e a amostra muito pequena (grupo de tratamento inicial com apenas 26 pessoas) já deveriam ter deixado todo mundo com o pé atrás. Depois, a mera leitura do artigo, tal como apresentado, deveria ter sido suficiente para eliminar toda e qualquer dúvida de que se tratava de um caso de crackpottery da mais fina estampa: dentre os diversos problemas do estudo, salta aos olhos a informação de que os pacientes que pioraram (e o que morreu!) durante o tratamento foram desconsiderados. É como se os autores tivessem partido do princípio de que o remédio só poderia fazer bem. E mesmo o “bem” constatado é duvidoso. Em entrevista, o virologista alemão Christian Drosten, principal consultordo governo Angela Merkel em sua bem-sucedida resposta à pandemia, diz que “os resultados possivelmente teriam sido os mesmos se os pacientes tivessem tomado um comprimido para dor de cabeça”. A complacência inicial de comunicadores e cientistas para com a publicação teve, e segue tendo, consequências nefastas: a perspectiva de uma cura fácil e ao alcance da mão encantou líderes populistas, como Donald Trump e Jair Bolsonaro, que têm uma visão pragmática do que conta como evidência científica – o pragmatismo, nesse caso, é dar relevância apenas ao https://www.ndr.de/nachrichten/info/17-Coronavirus-Update-Malaria-Medikament-vorerst-kein-Hoffnungstraeger,podcastcoronavirus144.html https://www.ndr.de/nachrichten/info/17-Coronavirus-Update-Malaria-Medikament-vorerst-kein-Hoffnungstraeger,podcastcoronavirus144.html 37 que pode ser usado para promover suas agendas políticas. Tanto Trump quanto Bolsonaro, aliás, são reincidentes: o mandatário estadunidenseflertou, quando lhe foi conveniente, com o movimento antivacinação, e o brasileiro foi um promotor da “pílula do câncer”. Se, nos Estados Unidos, as autoridades sanitárias, após uma hesitação inicial, demonstraram a altivez necessária para conter os arroubos presidenciais – tanto a FDA quanto o médico Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas, não se furtaram ao dever de contradizer, sem meias palavras, as falsidades proferidas por Trump sobre o assunto –, no Brasil, não tivemos a mesma sorte: o nosso então ministro da Saúde Henrique Mandetta chegou a dizer que havia “validado” a cloroquina para ser usada no Brasil em pacientes graves de Covid-19. Hospitais privados, como o Albert Einstein, de São Paulo (SP), dispuseram-se, bovinamente, a conduzir testes do “protocolo” apresentado por Raoult. Dada a péssima qualidade dos dados oferecidos em defesa do tal “protocolo”, tratou-se de uma escolha difícil de ser justificada em bases científicas. De acordo com um levantamento feito pelo jornalista Carl Zimmer para o The New York Times, existem pelo menos 69 fármacos promissores a serem testados contra o SARS-CoV-2. A cloroquina/hidroxicloroquina é apenas mais um deles, e um dos menos relevantes. O hype teve que, dentre outras consequências, distorcer as prioridades de pesquisa em todo o mundo: mais de um mês depois da publicação original, a cloroquina era o fármaco mais pesquisado no mundo em relação à Covid-19. A Organização Mundial da Saúde (OMS), que, em primeira avaliação, havia considerado a cloroquina e a hidroxicloroquina inadequadas para um teste em escala mundial de fármacos promissores para o combate ao SARS-CoV-2, viu-se coagida a incluí-las. Muito provavelmente, isso tudo representa perda de tempo e um trágico desperdício de recursos. Ouvida pela revista Science, a especialista Susanne Herold lembra que “pesquisadores vêm testando essa droga contra um vírus https://www.bloomberg.com/news/articles/2020-03-19/trump-touts-malaria-drug-as-potential-coronavirus-treatment https://www.nytimes.com/2020/03/20/health/coronavirus-chloroquine-trump.html https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,mandetta-afirma-que-pais-validou-e-esta-fornecendo-cloroquina-para-pacientes-mais-graves-de-covid-19,70003241781 https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,mandetta-afirma-que-pais-validou-e-esta-fornecendo-cloroquina-para-pacientes-mais-graves-de-covid-19,70003241781 https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,einstein-e-prevent-senior-farao-testes-clinicos-da-cloroquina-em-pacientes-com-coronavirus,70003242396 https://www.nytimes.com/2020/03/22/science/coronavirus-drugs-chloroquine.html?searchResultPosition=1 https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/05/cloroquina-e-droga-mais-testada-no-mundo-contra-covid-19.shtml 38 atrás do outro, e ela nunca funciona em humanos”. O fracasso mais recente envolveu o vírus chicungunha. Diversos países passaram a sofrer desabastecimento de medicamentos à base de cloroquina, usada no combate à malária, e de hidroxicloroquina, usada contra lúpus e artrite reumatoide. Na Nigéria e nos Estados Unidos, foram registradas mortes causadas pela automedicação com cloroquina/hidroxicloroquina contra o vírus. Não se trata de um fármaco inócuo; ele é capaz de causar efeitos colaterais graves, atacando, por exemplo, os olhos e o coração. Uma dose de apenas dois gramas pode matar um homem adulto. Há quem defenda que, em condições de guerra, os rigores usuais da ciência não se aplicam mais. É um raciocínio profundamente falacioso, visto que os rigores da ciência não são luxos, e sim salvaguardas que reduzem – mas jamais eliminam – o risco de mentirmos para nós mesmos, de permitirmos que medos ou esperanças nos ceguem para os fatos. Ademais, condições de guerra não nos tornam menos vulneráveis a esses riscos. Muito pelo contrário. Pode ser que a CQ seja eficiente para combater a Covid-19. No entanto, as evidências que vêm se acumulando desde a desastrada publicação original sugerem, cada vez mais, que ela não é. Cumprindo um padrão que é, infelizmente, um velho conhecido de quem estuda a parte da história da Medicina que dá conta das fraudes, dos erros e das falsas esperanças, a cloroquina contra a Covid-19 refaz o caminho da fosfoetanolamina, da homeopatia e de tantos outros tratamentos “aprovados” por clamor popular: como já mencionado, quanto mais bem desenhado e conduzido o estudo, menor o efeito constatado – que tende a zero à medida que a qualidade da avaliação aumenta. A priorização da CQ e da HCQ na pandemia de 2020 entrará para a história como um momento em que políticos e parte da comunidade médico- científica resolveu jogar roleta-russa com a saúde da população. http://revistaquestaodeciencia.com.br/artigo/2020/03/23/cloroquina-e-hidroxicloroquina-trazem-riscos-graves 39 O DESVANEIO DE BOLSONARO EM TEMPOS DE PANDEMIA Hugo Lopes de Oliveira15 Em novembro de 2016, quando os delegados do estado de Wisconsin (EUA) foram computados e o republicano Donald Trump ultrapassou o número mínimo de 270 delegados, muita gente não imaginava o que viria dali em diante. Os analistas estavam surpresos com a vitória de um candidato do Partido Republicano que era um outsider da política, sem nenhuma tradição de militância em qualquer área. Os EUA estavam prestes a ganhar mais do que um presidente republicano, um presidente de extrema direita, mais radical, inclusive, do que a ala do Freedom Caucus, do próprio Partido Republicano. Para alguns analistas, Donald Trump aproveitou uma onda conservadora e nacionalista que já vinha percorrendo parte da Europa e da América. Para outros, Trump inaugurou, por si só, um estágio em vários setores, como na política externa dos EUA, rompendo várias barreiras. De fato, não se pode negar que a eleição de Trump como um presidente de extrema direita na nação mais poderosa e influente do mundo é um divisor de águas. Nesse embalo, uma parte considerável da América Latina viveu uma guinada à direita após um considerável período de governos à esquerda. A Argentina nomeou o neoliberal Maurício Macri em 2017 e a Venezuela constatou o enfraquecimento do chavista Nicolás Maduro. O Brasil não ficou de fora desse movimento e elegeu Jair Bolsonaro, que tem um discurso de extrema direita e pautas de combate à esquerda e ao que ele chamava de comunismo. Desde o início da campanha eleitoral em 2018, Bolsonaro fez questão de se aproximar de Donald Trump. Eram frequentes às menções ao líder estadunidense não fazendo nenhuma questão de esconder a simpatia pelas ideias dele. Já eleito, Bolsonaro alinhou a política externa brasileira aos princípios e desejos dos estadunidense Recebeu o então Conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca, John Bolton, em sua residência para um 15Licenciado em História pela UFRuralRJ e Especialista em Ensino de História pelo Colégio Pedro II.Diretor Geral do Centro de Atenção à Criança e ao Adolescente Paulo Dacorso Filho (UFRualRJ e PMS) e Coordenador Geral do Núcleo Municipal de Seropédica do SEPE – Sindicato Estadual dos Profissionais em Educação do Rio de Janeiro. 40 café da manhã mais do que simples, simplório! Viajou para os EUA quatro vezes em menos de quinze meses de mandato, quebrando o recorde de todos os presidentes anteriores. Cedeu aos estadunidenses em disputas comerciais e alinhou-se a eles em votações na ONU. Pela primeira vez na história, o Brasil rompeu a tradição e votou, junto com EUA e Israel, favoravelmente ao embargo econômico à ilha de Cuba. Agora, em 2020, o mundo está diante daquela que pode ser a mais terrível das pandemias da era moderna. Um vírus que começou na China alastrou-se, em poucas semanas, para o mundo inteiro e desvendou uma consequência perversa da globalização: a velocidade com que as doenças podem percorrer o planeta. Sem uma vacina eficaz, o novo coronavírus tornou- se mortal para muitas pessoas. Sobrecarregou os sistemas de saúde públicos e privados, em países ricos e pobres. Atingiu a todos, mas mostrou sua face mais perversa entre os mais pobres, em especial nas periferias da América Latina e nos países pobres da África. O novo coronavírus permitiu que o mundo se unisse no enfrentamento da pandemia. Ampliação das pesquisas, trocas de informações e compartilhamento de equipamentos e insumos foram algumas das medidas tomadas pelas autoridades na tentativa de conter o vírus e evitar mais mortes. A Organização Mundial da Saúde (OMS) conquistou uma espécie de soberania mundial, em especial se esquadrinharmos os escritos do filósofo italiano Giorgio Agamben. Conquanto, para além dessa concórdia, o mundo presenciou Donald Trump e Jair Bolsonaro, presidentes da República e líderes de duas das nações mais atingidas pela Covid-19, em uma união quase impensável em torno das críticas ao isolamento social. Trump e Bolsonaro juntaram-se para, entre outras coisas, defenderem o uso do medicamento cloroquina no tratamento da doença, criticar os efeitos econômicos do isolamento social e acusarem a China de ter criado o vírus. Trump disse que tinha evidências de que o vírus seria uma criação de Pequim, mas não apresentou provas. Já Bolsonaro, seguindo seu ídolo, afirmou que estaria convencido de que o vírus era um plano do governo chinês. Em tese, Trump acreditava que a China queria se aproveitar economicamente do vírus e 41 Bolsonaro – um militar expulso do Exército, que se formou na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) nos anos de 1980 e que ainda pensa de acordo com o que aprendeu no quartel – julgou o vírus como uma possível ameaça comunista. Ele acredita friamente de que há um inimigo em comum a ser combatido: o comunismo. Dessa forma, Bolsonaro apega-se às lições aprendidas na Doutrina de Segurança Nacional do General Golbery do Couto e Silva, na Aman, e as repete até hoje. Entretanto, Bolsonaro e Trump estão errados. O filósofo germano-coreano Byung-Chul Han escreveu recentemente um artigo publicado no jornal El País16 mostrando que não há motivos plausíveis para que a China tire algum proveito do vírus. Essa conjectura deve-se, em parte, ao fato de vários analistas ocidentais, em especial os europeus, viverem com o passado nazista nas costas e, assim, temerem medidas antidemocráticas por parte dos Estados no combate ao vírus. Giorgio Agamben, filósofo italiano, tem se preocupado com as decisões tomadas pelos governos da Itália e de outros países europeus no que concerne ao isolamento social. Apesar de seus esforços estarem concentrados na reflexão sobre a ética que surgirá após essa pandemia, Agamben não deixa, de certo modo, de alfinetar os europeus para que não se esqueçam dos horrores do totalitarismo. As alfinetadas de Agamben não surtem efeito na China porque – como explica Byung-Chul Han –, na Ásia, medidas como o controle da população por chipes eletrônicos, a identificação em câmeras de reconhecimento facial ou o monitoramento remoto não são vistas como uma invasão do Estado na vida privada do cidadão, uma vez que os asiáticos já teriam uma tradição mais autoritária em decorrência da sua história cultural ligada ao confucionismo. Por terem uma vida mais regrada e disciplinada, as populações desses países aceitariam mais passivamente políticas de controle social adotadas em tempos de pandemia, diferentemente da maior parte da Europa e da América, onde há forte resistência a adoção desse tipo de política. Enquanto no Brasil se discutem questões éticas em torno da tecnologia de reconhecimento facial, em 16 HAN, Byung-Chul. O coronavírus de hoje e o mundo de amanhã, segundo o filósofo Byung- Chul Han. 22 de março de 2020. El País. Disponível em: https://brasil.elpais.com/ideas/2020- 03-22/o-coronavirus-de-hoje-e-o-mundo-de-amanha-segundo-o-filosofo-byung-chul-han.html. Acesso em: 02 de junho de 2020. https://brasil.elpais.com/ideas/2020-03-22/o-coronavirus-de-hoje-e-o-mundo-de-amanha-segundo-o-filosofo-byung-chul-han.html https://brasil.elpais.com/ideas/2020-03-22/o-coronavirus-de-hoje-e-o-mundo-de-amanha-segundo-o-filosofo-byung-chul-han.html 42 alguns países asiáticos quase a totalidade da população já é monitorada por esses sistemas, sem nenhuma resistência. O pensamento bolsonarista, amparado nas ideias de Trump de que o vírus seria uma criação chinesa, avistou o perigo de um possível domínio comunista no mundo – algo que não se sustenta empiricamente – e sustentou a ideia de que os chineses usariam a pandemia para imporem à população medidas de controle social. Todavia, como bem lembra Byung-Chul Han, os países asiáticos já possuem um forte esquema de controle da população a partir do uso de tecnologias, de modo que o governo chinês não tem necessidade de criar um vírus para poder controlar sua população através da imposição de medidas totalitárias. As ideias de Bolsonaro, calçadas tanto na Doutrina de Segurança Nacional aprendida durante seu serviço ao Exército quanto nos “ensinamentos” de Donald Trump, não passam de puro desvaneio ideológico, pois a China já controla sua população há tempos por meio da tecnologia. 43 O NOVO CORONAVÍRUS NO BRASIL E SUA REPERCUSSÃO NA MÍDIA ESTRANGEIRA Luma da Silva Miranda17 A cobertura da mídia sobre a Covid-19 no mundo dominou a programação de grande parte das empresas de comunicação. A pandemia do novo coronavírus foi anunciada no dia 11 de março de 2020 pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e, desde então, temos testemunhado, em vários países dos cinco continentes, um crescimento vertiginoso do número de infectados e de óbitos em decorrência da doença por ele causada. A primeira cidade que registrou a epidemia da Covid-19 foi Wuhan, que fica na província de Hubei, na China, e que foi também a primeira cidade a entrar em confinamento social. Em 23 de janeiro de 2020, a China adotou, em Wuhan e em outras cidades nos arredores, o lockdown, isto é, o bloqueio total de circulação de pessoas, incluindo fechamento de vias e proibição de deslocamentos e viagens não essenciais. Após 76 dias de confinamento total, a cidade de Wuhan voltou a abrir suas portas gradualmente, por conta da diminuição tanto dos casos de transmissão local do tal vírus quanto do número de mortes. Foi somente no dia 08 de abril que Wuhan reabriu18. Mais tarde, no dia 13 de março de 2020, o epicentro da já reconhecida pandemia passou a ser a Europa, mais especificamente a região da Lombardia, no norte da Itália, sendo esse um dos países da Europa mais afetados pela Covid-19. Recentemente, o Brasil começou a se tornar o epicentro da enfermidade, ao lado dos EUA. Apesar de o Brasil ter tido pelo menos três meses de acompanhamento midiático sobre a pandemia em países como China, Itália e Espanha, não houve, por parte
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