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Pandemia-e-Pandemônio-ensaios-sobre-biopolítica-no-Brasil

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Prévia do material em texto

2 
 
 
PAULO GHIRALDELLI JÚNIOR 
MARIANGELA CABELO 
Organizadores 
 
 
 
 
 
PANDEMIA E 
 PANDEMÔNIO 
Ensaios sobre biopolítica no Brasil 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
CEFA EDITORIAL 
São Paulo - 2020 
3 
 
 
 
 
Direção Editorial Leandro Sousa Costa 
Coordenação de Produção Hugo Lopes de Oliveira 
Edição Hugo Lopes de Oliveira e Leandro Sousa Costa 
Assistência Editorial Nicolas de Melo Pedroso, Isaias 
Bispo de Miranda, José Ildon Gonçalves da Cruz e Fabbio 
Cerezzoli 
Preparação Hugo Lopes de Oliveira e Leandro Sousa 
Costa 
Revisão de texto Eliane Otani – da Bridge3 
Capa Mariangela Cabelo 
Diagramação José Ildon Gonçalves da Cruz 
 
 
 
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) 
_____________________________________________________ 
Cabelo, Mariangela; Ghiraldelli Jr., Paulo. (Org.) 
 Pandemia e Pandemônio: Ensaios sobre biopolítica no 
Brasil/Cabelo, Mariangela; Ghiraldelli Jr., Paulo. (Organizadores) – 
São Paulo: CEFA Editorial, 2020. 
 
ISBN 978-65-990994-2-7 
 
1. Pandemia 2. Pandemônio 3. I Título 
 
CDD - 100 
 
Índices para catálogo sistemático: 
1. Filosofia e disciplinas relacionadas 100 
 
 
 
É vedada a reprodução de qualquer parte deste livro sem a 
expressa autorização da editora – cefaeditorial@cefa.pro.br 
Todos direitos reservados à 
São Paulo – SP 
4 
 
 
CENTRO DE ESTUDO EM FILOSOFIA AMERICANA 
CEFA 
 
 
Paulo Ghiraldelli Júnior (Fundador) 
Francielle Chies (Coordenadora Geral) 
Adriana Gonzaga 
Fabbio Cerezzoli 
Hugo Lopes de Oliveira 
Isaias Bispo de Miranda 
José Ildon Gonçalves da Cruz 
Leandro Sousa Costa 
Luma da Silva Miranda 
Mariangela Cabelo 
Mariza Souza Neres 
Micaias Souza 
Nicolas de Melo Pedroso 
Ricardo Ferrari 
Thiago Ricardo de Mattos 
 
 
CONSELHO EDITORIAL CEFA 
Paulo Ghiraldelli – CEFA 
Marisa Souza Neres – UFT 
Luma da Silva Miranda – Universidade Eötvös Loránd 
Camila Jourdan – UERJ 
Leandro Sousa Costa – UNESPAR e UNIUV 
José Ildon Gonçalves da Cruz – CEFA 
Mariangela Cabelo – CEFA e Todos pela Saúde 
Hugo Lopes de Oliveira – UFRuralRJ e CEFA 
5 
 
 
Pandemia e Pandemônio: Ensaios sobre 
biopolítica no Brasil 
 
Paulo GHIRALDELLI 
Natália PASTERNAK 
Maria Lúcia FATTORELLI 
Camila JOURDAN 
Carlos ORSI 
Acácio AUGUSTO 
Paulo Sérgio BOGGIO 
Mariangela CABELO 
Leonardo CAMARGO 
Estevão CRUZ 
Thiago STADLER 
Luma MIRANDA 
Hugo OLIVEIRA 
Nicolas MELO 
Thiago MATTOS 
6 
 
 
SUMÁRIO 
 
Prefácio ............................................................................................................. 8 
 
Pandemia e Pandemônio: O Bolsovírus ........................................................ 9 
Paulo Ghiraldelli Júnior 
 
A saúde na era Bolsonaro ............................................................................. 16 
Mariangela Cabelo 
 
Uma aula de como não testar um medicamento ........................................ 27 
Natalia Pasternak e Carlos Orsi 
 
O desvaneio de Bolsonaro em tempos de pandemia ................................. 40 
Hugo Lopes de Oliveira 
 
O novo coronavírus no Brasil e sua repercussão na mídia estrangeira . 44 
Luma da Silva Miranda 
 
O grande mal e os trabalhos ......................................................................... 51 
Thiago Ricardo de Mattos 
 
Pandemia e o negacionismo nosso de cada dia ........................................ 55 
Estevão Cruz 
 
O papel da responsabilidade na crise sanitária contemporânea .............. 65 
Leonardo Camargo 
 
Entre esgotamento e estupidez, um vírus ................................................... 78 
Thiago David Stadler 
 
2020 – A crônica do Brasil distópico ........................................................... 91 
Paulo Sérgio Boggio 
7 
 
 
Não vai passar .............................................................................................. 102 
Camila Jourdan e Acácio Augusto 
 
Devemos despolitizar o vírus?.................................................................... 111 
Mariangela Cabelo 
 
Revolta e Suicídio na necropolítica atual .................................................. 116 
Camila Jourdan 
 
Oportunismo Trilionário dos Bancos em plena Pandemia ...................... 124 
Maria Lucia Fattorelli Carneiro 
 
A filosofia do zumbi ..................................................................................... 134 
Nicolas de Melo Pedroso 
 
 
 
 
 
 
 
8 
 
 
Prefácio 
 
Pandemia e Pandemônio: Ensaios sobre biopolítica no Brasil é uma 
organização de textos sobre a Covid-19 no contexto brasileiro sem 
desconsiderar o panorama global dessa situação. Os textos presentes nesta 
publicação são de estilos diversos e foram escritos ao longo das primeiras 
semanas do despontar da doença no Brasil, em 2020. São contribuições de 
pesquisadores e pesquisadoras de várias áreas e que estão na realidade 
brasileira: filosofia, história, medicina, biologia, psicologia, sistemas de 
informação, jornalismo, economia e letras. Os textos colocam em evidência os 
problemas derivados da crise sanitária que surgiram numa situação em que a 
realidade brasileira enfrentava uma complexa crise política e econômica. As 
perspectivas trabalhadas pelos autores e autoras nesta obra, suscitam uma 
série de elementos que nos permitem traçar os cenários da disseminação do 
novo Corona Vírus na realidade brasileira e suas nuances. 
Essa compilação, iniciativa do CEFA Editorial, pretende ser um escape 
seguro diante do bombardeio cotidiano de informações, da paranóia instituída e 
das políticas de isolamento impostas pelo estado como medida de resguardo 
diante do inimigo invisível. 
Boa leitura! 
 
Prof. Esp. Hugo Lopes de Oliveira 
 
Diretor Geral do 
CAIC Paulo Dacorso Filho UFRRJ – Prefeitura Municipal de Seropédica 
 
 
 
Prof. Dr. Leandro Sousa Costa 
 
Professor do Curso de Filosofia da 
Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR) – Campus União da Vitória 
 
 
 
São Paulo, 08 de julho de 2020. 
 
9 
 
 
PANDEMIA E PANDEMÔNIO: O BOLSOVÍRUS 
Paulo Ghiraldelli1 
 
O mundo do Capitão Corona 
Você já esteve na feira de Wuhan? Não? Nem eu! Mas, nesses tempos, 
já li muita coisa sobre o local. Não à toa! Foi de lá que escutamos os primeiros 
gritos a respeito do novo coronavírus. Nessa feira, na cidade de Wuhan, na 
China, os cuidados higiênicos são os piores possíveis. O que hoje conhecemos 
como a pandemia da Covid‑19, segundo uma boa parte dos pesquisadores, 
teve sua origem lá naquele lugar. Foi de lá que a Covid‑19 decidiu infestar todo 
e qualquer país. A história da trajetória dessa doença, que, enquanto escrevo, 
vem matando muita gente no mundo todo, poderia ser contada de acordo com 
a perspicácia de diversos intelectuais. Entretanto, o único que parece acertar, 
de fato, a mão, é Stan Lee, o grande produtor da Marvel. 
Na ficção da ficção de Stan Lee contando essa história, tudo pode ser 
entendido conforme o desdobrar de forças cósmicas. Sabe-se lá por qual 
razão, irradiações de uma estrela distante atingiram a China, fazendo nascer 
em Wuhan um elemento completamente malévolo: a insaciável Covid‑19. Ela 
não pode ser considerada nem mesmo um ser vivo, já que é incapaz de 
apresentar DNA. Mostra-se apenas como um fio de RNA e, talvez, por isso 
mesmo, é portadora de um atroz e gigantesco ressentimento. Por que os 
homens não lhe deram o status de ser vivo? Dominada por essa mágoa da 
subalternização, a Covid‑19 saiu devorando o mundo. Então, encontrou um 
estranho lugar chamado Brasil. Nesse país, o governante máximo tinha 
exatamente a mesma falha em sua estrutura psicofísica, quase como um vírus. 
E a fusão dos dois foi imediata. Uma “quase pessoa” uniu-se a um “quase ser 
vivo”! 
 
1Doutor e mestre em Filosofia pela USP. Doutor e mestre em Filosofia da Educação pela PUC-
SP. Bacharel em Filosofia pelo Mackenzie e Licenciado em Ed. Física pela UFSCar. Pós-doutorem Medicina Social na UERJ. Titular pela Unesp. Autor de mais de 40 livros e referência 
nacional e internacional em sua área, com colaboração na Folha de S. Paulo e Estadão. Foi 
professor em várias universidades no Brasil e pesquisador no exterior. Aposentado pela 
UFRRJ. 
10 
 
 
 
O presidente Bolsonaro contraiu o novo coronavírus e, aparentemente, 
não apresentou sintomas. Por isso, passou a acreditar que o correto seria que 
todos viessem a ser contaminados para que, então, fossem imunizados. Isso 
deveria ocorrer a partir do momento que 50% da população tivesse contraído o 
vírus. Essa seria a “imunização de rebanho”, embora alguns especialistas 
afirmem que isso não é viável, pois o novo coronavírus não gera uma 
imunização fácil. 
De qualquer maneira, verdadeira ou falsa, a teoria de Bolsonaro implicava 
a morte de muitos. Para o presidente, o importante era que os negócios não 
parassem. E, se os mais velhos e os mais pobres viessem a morrer, não fariam 
falta. A lógica neonazista aí embutida é a de que os fortes sobrevivem e, sem 
os fracos, o resultado é a depuração da raça. 
A fusão entre o presidente e a Covid‑19 assim se fez, e tudo isso se 
tornou claro de maneira bem rápida. Logo, o presidente começou a apresentar 
sintomas não corriqueiros da doença. Em vez de febre, tosse e falta de ar, ele 
passou a pensar como o vírus pensa. Por sua vez, o próprio vírus sentiu que 
seu hospedeiro queria exatamente o que ele mesmo queria. Nunca o conceito 
de biopoder havia encontrado lugar e hora para se efetivar de maneira tão 
promissora. O corpo do presidente passou a funcionar sob ordem do vírus, 
procurando contaminar outros e criar um combate à política de isolamento que, 
enfim, era o único modo de conter a expansão da doença. O presidente foi 
apelidado de Capitão Corona. 
A população percebeu sua forte conexão com a intenção virótica. De fato, 
o projeto de Bolsonaro era (e, no momento que escrevo este texto, ainda é) a 
criação de uma sociedade realizada como um pastiche do já pastiche 
anarcocapitalismo. Para tal, nada melhor que um caos instaurado em doses 
homeopáticas. Ora, o vírus comportou-se como capaz de promover tal caos. O 
presidente e o vírus vieram a se entender, e o poder se fez presente no corpo 
do presidente, que passou a exercer esse poder diretamente sobre os corpos 
dos seus cidadãos. A política de saúde, praticamente solapada pelo Capitão 
11 
 
 
Corona, tornou-se a política par excellence. Nada mais foi pensado – como não 
é, nesse momento que escrevo – de forma desvinculada do corpo. Foi tomado 
coletivamente como “biopolítica da população” e individualmente como 
“anátomo-política do corpo”, para bem lembrar dois conceitos de Michel 
Foucault. 
 
O nosso cotidiano em fins de maio e as antropotécnica 
Até aqui, isso é o que pudemos notar da pandemia. A partir de agora, 
neste texto, relato o que vivemos cotidianamente, estando em meio à 
pandemia. 
Na perspectiva da biopolítica da população, todas as manhãs, passamos 
a contabilizar quantos foram infectados e quantos morreram, e se morreram em 
casa ou hospitais. Tentamos calcular o número de leitos e covas necessários e 
de apetrechos hospitalares disponíveis. Na perspectiva da anátomo-política do 
corpo, procuramos manter a quarentena e nos desdobramos para ficarmos 
saudáveis. Mas é difícil. A potencialização do corpo, sua transformação, 
ganhou novo ritmo. Todos sentem que a vida se tornou, de fato, naquilo que foi 
teorizado pelo filósofo italiano Giorgio Agamben, a vida nua, isto é, a vida 
puramente biológica. Ou seja, importa mais antes sobreviver do que viver, 
ainda que, na classe média, o entendimento se manteve aquele de que a 
sobrevivência ainda não é a prioridade – para ela própria, classe média, é 
claro. A mera sobrevivência é o que se pode dar aos outros, mas não em 
épocas de crise! 
Ao mesmo tempo, os corpos começam a se transmutar e a aceitar um 
novo conceito de silhueta. A máscara é algo necessário. Já se mostra, até 
mesmo, como uma peça de adorno, à semelhança do ocorrido, no passado, 
com os óculos. Os ocidentais experimentam o erotismo dado pelos olhos, que 
só os orientais conheciam. Isso para os que ainda podem pensar em erotismo 
em uma sociedade cuja distância social reordenada vê ocorrer um novo boom 
de virtualização. Uma juventude de classe média, talvez até mais sexualizada 
12 
 
 
em alguns casos, mas, em geral, menos erotizada, inicia a adoção de uma vida 
remodelada. Nessa vida, se ainda alguma tara sexual viesse a ser lembrada, 
ela arrastaria junto uma frase de Millôr Fernandes de 1971: “de todas as taras 
sexuais, não existe nenhuma mais estranha do que a abstinência”. 
Essas mutações corporais podem ser colocadas em uma caixa sob a 
rubrica de “antropotécnicas” – técnicas de produção do homem pelo homem. 
Peter Sloterdijk, que criou esse conceito, o toma como uma maneira de 
escaparmos da divisão pouco produtiva entre cultura e natureza. Na verdade, o 
homem se faz homem por técnicas que ele cria, as antropotécnicas. Toda essa 
reordenação da anátomo-política do corpo nada mais é do que a criação de 
antropotécnicas. A máscara é uma antropotécnica, e a distância social deve ser 
outra. O zelo com o álcool gel também se insere nessa “caixa”. 
Uma vez que o Capitão Corona comandou uma ação contra tudo isso, ele 
se mostrou como uma força contrária às antropotécnicas e, portanto, como um 
reacionarismo diante do homem, da própria noção de civilização. O biopoder é 
exercido sobre o corpo. Gera nova política. Naquilo que tem de reacionário, se 
faz contra as antropotécnicas geradas no afã de ludibriar o vírus. A missão do 
Capitão foi a de não viabilizar isso. Ele continua no mesmo afã e ritmo. 
Se assim olhamos tudo, somos obrigados a admitir que a política chegou 
ao fim, e tudo o que temos é a biopolítica, o exercício do biopoder. Lutar pelo 
impeachment do presidente deve ser entendido, desse modo, ao menos no 
momento que escrevo, não como imperativo político, uma vez que este não 
mais existe. O que temos é um imperativo no âmbito da biopolítica. Todavia, é 
um imperativo da política crivada, agora, por uma nova conceituação. Nesse 
caso, tirar Bolsonaro do poder põe-se na conjuntura de tornar o Brasil livre do 
vírus e, concomitantemente, da perigosa anomia social que nos ronda. 
Os políticos, ao menos até o momento em que produzo este texto, não 
entendem muito bem isso. Atuam como se, de um lado, houvesse a Covid‑19 
e, de outro, o presidente. De um lado, a morte pela infecção e, de outro, a 
morte pelo descaso e pelo desgoverno. Mas não é isso que ocorre; o descaso 
é o gerenciador da morte. O vírus promove o caos pedido por Bolsonaro e este 
13 
 
 
abre passagem para o vírus continuar ceifando vidas e executando sua 
vingança. Ademais, se computarmos que Bolsonaro também sempre foi um 
medíocre, deveremos perceber que ele está se vingando. Ele vinga-se das 
esquerdas e de todas as forças iluministas. Vinga-se da sociedade que, enfim, 
o viu como quem foi expulso do Exército. O vírus vinga-se da humanidade que 
o viu como alguém capaz de ganhar cidadania sem ganhar o qualificativo de 
ser vivo. 
 
O conceito de imunização 
 Roberto Espósito desenvolveu o conceito de imunização, que também é 
utilizado por Sloterdijk, mesmo que seja de maneira ligeiramente distinta. 
Posso me aproveitar desses conceitos como insights para operar com a atual 
situação brasileira em que o império do biopoder está sob o descomando do 
Capitão Corona. 
O conceito de imunização remete ao fato de que precisamos de algo que 
nos ataca para que, com ele, possamos gerar uma vacina. Ora, a vacina para o 
novo coronavírus, no Brasil, dependerá menos de laboratórios do que da 
compreensão de que todo tipo de mal já foi causado pelo Capitão Corona. 
Estamos prontos para a produção de anticorpos. A imunização diante do 
biopoder é sempre uma imunização biopolítica.No momento em que escrevo, há mais de 20 mil mortos no Brasil. Todos 
são de responsabilidade do Capitão Corona – o “Bolsovírus”. A imunização 
pedida por ele é aquela que, em nome da vida, gera a morte. Segundo 
Espósito, o conceito de imunização pode mostrar exatamente isso: o deslize do 
positivo no negativo. Ele menciona uma transfiguração da intenção do 
compromisso de Hipócrates, que fora levada a cabo pelos médicos que 
aderiram ao nazismo – e não foram poucos! Ao se pedir a raça pura por 
imunização de rebanho, os médicos com tendências nazistas podem acreditar 
que a vida da nação e, portanto, do povo que irá ultrapassar o vírus, é o que 
14 
 
 
importa. Quem adota isso talvez acredite que está com Hipócrates. A ideologia 
é que permite essa subversão, mas o que se gera é a mortandade. 
Essa inversão do compromisso com Hipócrates, que, de fato, ocorreu na 
Alemanha entre os médicos nazistas, deveria ser observada pelo nosso ensino 
de medicina e precisaria ser estudada pelo nosso ensino de direito. É uma 
visão em que a vida é entendida segundo uma conceituação que elimina o 
rosto da vida individual. Trata-se de perceber que vivemos na época da 
biopolítica. Que o poder é exercido pelo seu entrosamento com os corpos. Mas 
que o corpo parece estar sob o invólucro de um imperativo que pode ser 
explicitado mais ou menos assim: “só vale a pena a vida ser vivida se ela é a 
vida mais imune à morte”. Nesse caso, a ideia de vida e de corpo desloca-se 
para o plano de um tipo de seleção forjada pela natureza, ao menos em 
princípio, mas que, na verdade, é executada pelo Estado, pelos agentes 
públicos e privados de uma política de higienização pervertida. Escolhe-se 
quem deve morrer: velhos, desnutridos, pobres, populações vulneráveis e 
assim por diante. Isso é genocídio, não Hipócrates. No Brasil, o Estado faz isso 
por desaparelhamento, portanto, em um sentido diferente do estado hitleriano. 
Somos o pastiche do neoliberalismo e do anarcocapitalismo! Não vivemos sob 
a ditadura nazifascista. 
O ideal seria tentar uma imunização que não deslizasse para a morte. 
Para isso, seria necessário adquirir anticorpos sociais contra o próprio chefe da 
tropa virótica, o Capitão Corona. Teríamos de absorvê-lo em nossas entranhas, 
a fim de o domesticar. A nossa chance pode ser o processo de impeachment, 
durante o qual todos os seus crimes poderão vir à tona. À medida que a 
sociedade entender que são crimes mesmo, talvez surja a oportunidade de 
anular o vetor que os leva a serem cometidos. Ao fim e ao cabo, o 
bolsonarismo não será ejetado do corpo de cada um de nós e da sociedade em 
geral, mas, diante de sua permanência, saberemos controlá-lo. É semelhante a 
controlar o fascismo que pode haver em cada um de nós e na sociedade. 
 
15 
 
 
Para finalizar, se não decidirmos parar Bolsonaro, não conseguiremos 
impor a “nossa” imunização, e ocorrerá a dele. Teremos perdido o próprio 
Brasil. 
 
 
 
 
 
 
 
16 
 
 
A SAÚDE NA ERA BOLSONARO 
Mariangela Cabelo2 
 
No dia 23 de abril de 2020, o inimaginável aconteceu. Em verdade, 
inimaginável em outras épocas, mas não na era Bolsonaro. Naquela tarde 
quente de Campo Grande (MS), Paulo Ghiraldelli chamou-me para ler a notícia 
sobre a divulgação do parecer (nº 04/2020) do Conselho Federal de Medicina 
(CFM), em que este autorizava o uso de hidroxicloroquina (HDX) para o 
tratamento da Covid-19, mesmo sem evidências sólidas que embasassem tal 
decisão. A própria autarquia e o presidente do CFM lembraram da falta de 
comprovação científica. Aliás, um estudo sobre o assunto3, na época, foi 
interrompido, pois o grupo de pacientes que tomou HDX apresentou maior 
mortalidade. Resta-nos perguntar: qual é o sentido disso? O que fez a entidade 
médica mais importante do país autorizar o uso dessa droga para tratar a 
Covid-19? 
O sentido foi o de abaixar a cabeça para a ideologia do presidente Jair 
Messias Bolsonaro. Na manhã do mesmo dia, houve uma reunião entre o chefe 
do Executivo, o ministro da Saúde e o presidente do CFM; e, então, o que era 
consenso no mundo todo foi abandonado pelo CFM. A boa prática médica foi 
desconsiderada. As diretrizes da Food and Drug Administration (FDA) e as 
recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) deixaram de valer. 
O CFM passou a obedecer ao comando do segundo maior “tosco” da 
República (Bolsonaro disse que era Mourão o mais tosco!). O presidente vinha 
defendendo que o isolamento social, pedido por especialistas de todo o mundo, 
era uma medida “histérica” que atrapalhava a economia do país. Assim, 
havendo um remédio mágico para a doença, o trabalhador poderia voltar às 
ruas e o Estado não precisaria ajudá-lo. A benção do CFM foi-lhe de extrema 
valia. 
 
2 Graduanda em Medicina pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e criadora do 
canal Todos pela Saúde. 
3 O estudo que posteriormente era atacado pelo Planalto disponível em: 
https://www.medrxiv.org/content/10.1101/2020.04.07.20056424v2. Acesso em: 08 de junho de 
2020. 
17 
 
 
Houve reação dos médicos quando o conselho de maior importância para 
a profissão foi maculado por uma ideologia genocida? 
Parece que a covardia se apoderou da classe médica. Notei isso quando 
permitiram que Drauzio Varella fosse atacado em cadeia nacional e não vieram 
em defesa do colega; quando permitiram que o Bolsonaro fritasse o então 
ministro da Saúde Henrique Mandetta; quando o “gabinete do ódio” começou a 
atacar os colegas da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz); quando não reagiram 
ao desmanche do ministério da Saúde (MS). Se eu disser que houve um 
silêncio generalizado, estaria mentindo, mas a resposta foi fraca e sem união, 
e, diga-se de passagem, com aquela típica isenção política por parte de quem 
não entende o conceito de biopolítica e biopoder4 inerentes a uma pandemia. 
Alguns pediram em suas redes sociais que as pessoas ficassem em casa, 
outros elogiaram o Mandetta, mas nada falaram do cerne do problema, nada 
disseram a respeito de políticas públicas, e poucos5 lembraram que o maior 
inimigo dos médicos e dos brasileiros era o próprio presidente, que iniciou sua 
marcha em favor do novo coronavírus no dia 24 de março de 2020. 
Será que as confrarias existentes há séculos, pelas quais a prática 
médica surgiu e se institucionalizou, não significaram nada? Será que os 
médicos não perceberam que eles tinham grande força em um momento de 
pandemia? Talvez a história da ciência brasileira não esqueça esse silêncio. 
Alguns órgãos, a exemplo do Instituto Questão de Ciência, chegaram a enviar 
cartas à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), à Comissão 
Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) e ao Ministério da Saúde (MS) 
alertando sobre as crescentes evidências de que a droga não tinha eficácia. 
Aliás, avisaram, ainda, que a droga colocava em risco a vida dos pacientes 
com Covid-196. Será que apoiamos como deveríamos os gladiadores da 
ciência no país, que, apesar das constantes agressões, continuaram a lutar? O 
 
4 Vide o primeiro capítulo desta obra. 
5 O neurologista Miguel Nicolelis referiu-se ao presidente Bolsonaro como um pandemônio que 
só piorava a pandemia. 
6 PASTERNAK, Natalia; ORSI, Carlos. CFM abandona médicos que seguem a ciência à própria 
sorte. 23 de abril de 2020. Revista Questão de Ciência. Disponível em: 
https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/index.php/artigo/2020/04/23/cfm-abandona-
medicos-que-seguem-ciencia-propria-sorte. Acesso em: 13 de junho de 2020. 
https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/index.php/artigo/2020/04/23/cfm-abandona-medicos-que-seguem-ciencia-propria-sorte
https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/index.php/artigo/2020/04/23/cfm-abandona-medicos-que-seguem-ciencia-propria-sorte
18 
 
 
silêncio desse momento era o grito mais alto que um profissional, com 
responsabilidade ao diploma, poderia dar! 
De certo, a opinião médica durante essa pandemia tinha “algum” valor,ou 
seja, nós, da área da saúde, tínhamos tudo para ter lutado e defendido nossas 
instituições, nosso ministério e nossos médicos contemplando a postura e a 
ética médicas. Digo isso pois algumas atitudes do ex-ministro Henrique 
Mandetta foram, por certo, as que um médico, à frente do respectivo ministério, 
tomaria. Outras eram execráveis, oriundas do mais podre jogo político, como a 
de permanecer no cargo, mesmo às custas da ruína do MS. Fato esse que 
ficou evidente no episódio do dia 25 de março de 2020, em pronunciamento 
coletivo para a imprensa. Henrique Mandetta tentou, ao máximo, racionalizar o 
discurso do presidente, falando de isolamento vertical (depois, mudou de 
opinião), elogiando Bolsonaro em sua fala da noite anterior, ato que nenhuma 
associação médica conseguiu fazer. Inclusive, a Sociedade Brasileira de 
Infectologia foi a primeira a vir a público (em 25/03/2020) apresentando uma 
nota que, veementemente, discordava do discurso e da postura presidencial; 
atitude oposta à tomada pelo então ministro. 
Para esclarecer o início do fim de Mandetta no ministério da Saúde, 
temos de voltar à noite do dia 24 de março de 2020. 
Nessa noite, ocorreu o pronunciamento do presidente da República em 
rede nacional. Jair Messias Bolsonaro fez um ataque frontal ao MS e a suas 
decisões técnicas, que, na época, recebia atenção e elogios do mundo todo. 
Ao afrontar esse ministério, ele também atacou a OMS e a boa prática 
científica, uma vez que o Brasil vinha se guiando por ela. É que, para 
Bolsonaro, uma pandemia, capaz de mudar os paradigmas da história, 
deixando um rastro de mortes, não poderia ter mais atenção que o próprio 
presidente, ou seja, não poderia roubar seus holofotes. 
De fato, o nosso país estava atento às orientações do ministério da 
Saúde. Começamos bem o isolamento social em março e, a cada dia, 
estávamos com maior adesão, até a data cabalística que coincide com o 
discurso do excelentíssimo. 
19 
 
 
Você pode estar se perguntando: por que, em meio ao caos do governo 
Bolsonaro e ao caos que se instalou em outros ministérios, o problema da 
Covid-19 no Brasil conseguiu ser bem encaminhado na pasta da Saúde? A 
resposta é que tínhamos competentes médicos e profissionais da área em 
cargos importantes no ministério da Saúde, atentos desde 31 de dezembro de 
2019, quando foi notificado o primeiro caso à OMS de uma pneumonia atípica 
na China. Foi no dia 23 de janeiro de 2020 a primeira vez que o ministério se 
pronunciou acerca do novo coronavírus e nos esclareceram tudo que sabiam 
da doença até o momento. Isso ocorreu na voz do dr. Julio Croda, o então 
diretor do Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis da 
Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde (DEVIT/SVS/MS). 
Foi uma verdadeira aula aos jornalistas. Croda é infectologista, foi meu 
professor na faculdade de medicina da Universidade Federal do Mato Grosso 
do Sul. Ele e sua equipe foram os primeiros responsáveis a enfrentar o 
problema, elaboraram os protocolos iniciais e ensinaram os passos que 
deveriam ser tomados dali em diante. 
No fim de janeiro de 2020, havia muito desespero; alguns jornalistas 
confundiram casos suspeitos com confirmados e alarmaram a população. 
Havia medo e desconhecimento por parte das pessoas e dos próprios 
profissionais de saúde. Entretanto, o MS iniciou um ótimo trabalho de educação 
em saúde, com pronunciamentos transmitidos ao vivo em redes sociais 
cotidianamente e notícias atualizadas em seu site. Estávamos adiantados em 
relação ao vírus, e uma prova disso foi a ativação no Centro de Operações de 
Emergência nível 1 (COE) no mês de janeiro. A título de esclarecimento, o 
COE é ativado quando uma secretaria convoca outras da mesma pasta, 
secretarias de saúde estaduais e órgãos como a Anvisa para um trabalho em 
conjunto. Inicialmente, poderia ser um problema do DEVIT, mas, a partir 
daquele momento, passou a ser um problema de todos. 
Não era histeria, era o trabalho profissional de preparação para a 
chegada iminente do vírus que, enfim, chegou. No dia 26 de fevereiro de 2020, 
o MS confirmou o primeiro caso brasileiro. Continuou analisando todas as 
notificações e trabalhando junto às secretarias estaduais e municipais em uma 
20 
 
 
força-tarefa para conter a doença, até sugerir o isolamento social, que se deu 
na segunda quinzena de março. 
Eram sete horas da manhã de uma segunda-feira, dia 16 de março de 
2020, e notei uma aglomeração em uma parte do hospital universitário em que 
eu estava. Houve um problema com o agendamento e o ambulatório geral tinha 
pegado fogo na última sexta-feira. Os pacientes deveriam ter tido seus horários 
remarcados, o que evidentemente não havia ocorrido. Andei um pouco pelo 
hospital e cheguei a um corredor que havia mais de cinquenta pessoas, a 
maioria em pé. Profissionais de saúde, demais trabalhadores do hospital e 
acadêmicos transitando e trabalhando por ali. A situação foi, depois de algum 
tempo, regularizada. Mas aquilo já era um alerta: será que o nosso SUS 
sucateado, com suas filas enormes, com falta de equipamento e de mão de 
obra, aguentaria uma pandemia avassaladora? Enquanto isso, os jornais do 
mesmo dia noticiavam 2.158 mortes confirmadas na Itália pelo novo 
coronavírus. 
Eu não havia imaginado que, já no dia seguinte, terça-feira, a minha vida 
começaria a ficar diferente. De um dia para o outro, a faculdade de medicina 
pediu para os alunos não aparecerem no ambulatório na manhã seguinte. 
Naquela terça-feira, então dia 17, já não fui mais à universidade e todas as 
federais fecharam suas portas. Em sequência, vieram as escolas estaduais e 
municipais. Nesse período, a Itália mostrava ao mundo o perigo de atrasar o 
isolamento social. Meus plantões na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) e 
no Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) foram cancelados; não 
podiam mais gastar equipamento de proteção individual (EPI) com os alunos. 
De repente, aquelas máscaras que usávamos até então despreocupadamente 
em relação à quantidade se mostraram um utensílio muito valioso – fariam uma 
falta vital em nosso país. Evidentemente, os internos (acadêmicos dos 5º e 6º 
anos de medicina) não pararam, pois, além de estarem mais avançados no 
curso, residentes e internos são imprescindíveis em um hospital. 
Dia 18 de março de 2020: 2.978 mortos na Itália. A curva logarítmica, que 
pensei ter esquecido lá nas aulas de matemática do ensino médio, apareceu. 
Para nossa infelicidade, sua ordenada significava vidas interrompidas. 
21 
 
 
No dia do primeiro pronunciamento oficial de Jair Bolsonaro sobre o tema, 
já havia 6.820 corpos desalmados na península itálica. Antes do final de março, 
o rastro de destruição que passou por aquele país já tinha ceifado 12.428 
vidas. Assim, a Itália perplexa chorou. A nação arrependeu-se de subestimar a 
nova peste. 
Por incrível que pareça, diante dessa dor da humanidade, diante de algo 
que nos atingiu frontalmente, a autoridade maior brasileira referiu-se à nova 
peste como uma gripezinha. Ele, o presidente, no dia 24 de março de 2020, já 
tinha suficiente informação para saber que o vírus não estava para brincadeira. 
Era contagioso e vinha para testar nossos sistemas de saúde. Colapsando-os, 
derrotando-os um por um, até a da mais rica metrópole estadunidense, Nova 
York. Todos ajoelharam-se: um simples pedaço de RNA nos havia vencido. 
A Covid-19 é uma doença que pode matar por asfixia. Eis uma das razões 
pelas quais os sistemas de saúde colapsaram. Eram necessários ventiladores 
mecânicos para uma parcela dos pacientes sintomáticos graves. 
Diga-se de passagem que os médicos sabem o protocolo e conhecem os 
medicamentos e os procedimentos que devem ser utilizados em casos de 
síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA) – ninguém estava 
deixando ninguém morrer. No entanto, efetivamente, não existia – como não 
existe até o momentoem que escrevo – um remédio capaz de derrotar o vírus. 
Nesse cenário, o nosso Capitão Corona7 tinha a solução, com o seu 
pseudodiploma de médico, e passou a receitar. O coronel Homero de Giorge 
Cerqueira, presidente do Instituto Chico Mendes, foi a público informar que 
seguiria os conselhos do Capitão. Tomou hidroxicloroquina. O general 
Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), se deu alta do 
hospital depois do pronunciamento do presidente e foi infestar o mundo, cada 
vez que abria a boca, com novos milhões de RNAs mortíferos. 
A prova da existência de uma família genocida na presidência da 
República se deu com uma propaganda do Planalto, divulgada em massa no 
 
7 Apelido para Jair Bolsonaro, cunhado pelo professor Paulo Ghiraldelli, explicado no início 
deste livro. 
 
22 
 
 
dia 27 de março de 2020. O primogênito do clã, senador Flávio Bolsonaro, deu 
o chute inicial na campanha #BrasilNaoPodeParar. Depois disso, iniciou-se 
algo bizarro: bolsonaristas fanáticos organizaram carreatas e manifestações a 
favor do vírus, ou melhor, pedindo o fim do isolamento social. Isso 
considerando que, até aquele momento, não havia impedimento legal, por 
parte de ação dos governadores, quanto à circulação de cidadãos. 
Tudo isso ocorreu em cerca de uma semana – tempo necessário para 
desmanchar o trabalho de meses do MS e iniciar sua ruína. O último dos 
ministérios que ainda tentava funcionar adequadamente estava com os dias 
contados. Foram suficientes esses poucos dias para preparar o óleo no qual 
Mandetta seria frito nas semanas subsequentes. 
Houve um verdadeiro êxodo da equipe técnica do MS durante esse 
período. No dia 25 de março de 2020, Júlio Croda, diretor de departamento, 
deixou o ministério, sendo o precursor. Ele percebeu, como outros depois dele, 
que a ideologia bolsonarista atrapalharia a luta contra a nova peste. É inútil 
varrer papéis em uma ventania. É inútil lavar o carro na chuva. Assim como é 
inútil escrever protocolos pedindo isolamento, quando o chefe do Executivo 
fala, em rede nacional, contra o trabalho dos especialistas. 
Atenção deve ser dada aqui ao fato de que é a ideologia, e não a política, 
que atrapalhou o trabalho científico-médico. Sem política, não há SUS, não há 
políticas públicas de saúde, nem há vida em sociedade. Nossa civilização 
ocidental nasceu da polis, e, por isso, é impossível tirá-la do nosso cotidiano. 
Uma política bem feita pode, a exemplo de outros países, ser a chave para 
achatar a curva de infectados. Se política não é a mesma coisa que partido, 
então os médicos não precisam ter medo de usar essa palavra. Devemos e 
podemos utilizá-la em favor da saúde pública. 
Em 24 de março de 2020, eu reiterei, em meu canal “Todos pela Saúde”8, 
que o avanço do vírus não seria contido apenas com as recomendações 
médicas de lavar as mãos e de instaurar a quarentena. Sem a atuação do 
 
8 O canal “Todos pela Saúde” foi criado em 2019 e foi entabulado para servir ao propósito de 
educação em saúde e divulgação científica. Ressalta-se que ele não possui qualquer relação 
com o banco Itaú, que iniciou uma campanha com o mesmo nome. 
23 
 
 
Estado, seria inviável conter a pandemia, sobretudo porque são cerca de 35 
milhões de brasileiros sem acesso à água tratada. Metade da população não 
tem acesso aos serviços de coleta de esgoto. Dados do Instituto Brasileiro de 
Geografia e Estatística (IBGE) mostram que 1.935 municípios brasileiros 
(34,7% do total) ainda registram epidemias ou endemias relacionadas à falta ou 
à deficiência de saneamento básico. 
Será que preciso lembrar das favelas? É impossível sete pessoas da 
mesma família ficarem juntos, o tempo todo, em um único cômodo. E quando 
uma janela de sua casa dá para o interior da casa do vizinho? Que tipo de 
isolamento seria esse? Considerando esses pressupostos, no dia 25 de março 
de 2020, Drauzio Varella, em seu canal no Youtube, além de desmentir o 
discurso do presidente, salientando a importância de ficar em casa, nos 
lembrou de que aquelas recomendações médicas seriam insuficientes. Ele 
disse que o Brasil estava atrasadíssimo em relação às medidas de controle 
pandêmico. Expos que o Estado deveria estar há semanas na favela, 
entregando cestas básicas e resolvendo o problema da água. Alguns dias 
antes, o filósofo Paulo Ghiraldelli9 nos lembrou também dos escritos de Byung-
Chul Han10. Esse filósofo sul-coreano escreveu como o país dele lidou com o 
novo vírus. Seria uma interessante solução para o Brasil imitar algumas 
medidas tomadas na Coreia do Sul. Lá, algumas regiões têm semelhanças 
com as favelas brasileiras no que diz respeito às condições de vida. Se a 
quarentena é difícil/impossível em uma favela, então, os moradores suspeitos e 
contaminados deveriam ser retirados pelo poder público. Deveriam ter uma 
estadia à parte. Assim, a mazela não acometeria milhares de pessoas 
simultaneamente. 
Desse modo, o trabalho do MS, seja qual for, já era insuficiente em um 
país tão desigual como o nosso. Precisávamos, efetivamente, dos políticos, 
dos governadores, dos deputados, dos vereadores e dos senadores, enfim, de 
todos aqueles que são pagos com dinheiro público. Naquele momento, eles 
não poderiam faltar diante das necessidades da população. Então, qual é a 
utilidade de isenção política médica se uma pandemia é toda biopolítica? Ah, 
 
9 Em seu canal no YouTube. 
10 Dentre outros escritos, destaca-se a obra Sociedade do cansaço. 
24 
 
 
esqueci! Na verdade, de isento o CFM não tinha nada quando aceitou a 
ideologia presidencial. Se o nosso compromisso primeiro é a saúde, qualquer 
um que tomasse uma postura anticientífica deveria receber uma admoestação, 
no mínimo. O silêncio custa vidas. 
Já que o assunto é a aceitação da ideologia bolsonariana, Mandetta 
deveria ter sido firme e, no dia 25, não poderia ter amenizado seu discurso. 
Será que ele não conhecia realmente o chefe para quem trabalhava? Será que 
ele não percebeu que um homem, no qual o “guru” é um tipo como Olavo de 
Carvalho, não poderia conciliar com argumentos racionais? Será que não 
percebia a impossibilidade de tentar qualquer diálogo lógico com o chefe? 
Olavo dizia que o vírus não existia, em meio à plena pandemia. Até mesmo o 
YouTube removeu de sua plataforma alguns vídeos dele, pois ameaçavam a 
vida. Nem é preciso recordar que o bastião da pseudociência e do anti-
intelectualismo, o desescolarizado Olavo de Carvalho, fazia ataques ao Drauzio 
Varella, lutava em favor do câncer, defendendo os interesses da indústria 
tabagista, e falava em favor do lucro de caixões infantis ao defender 
campanhas antivacinação. Não era de se espantar que o Capitão Corona 
escutasse esse tipo de discurso. 
Muitos acharam que seria o fim de Bolsonaro, quando ele atacou mais 
diretamente o ministério mais popular e importante do momento. O presidente 
prometeu, no dia 24/03/2020, que conversaria com Mandetta e iria “dobrá-lo”. 
O Capitão conseguiu o que queria. Longe de ser seu fim, ele interferiu o quanto 
quis no trabalho do MS. Como um “imperadorzinho”, comparecia às reuniões 
para dizer seus gostos à pasta da Saúde e, no dia, concordava com algumas 
pautas, mas, no dia seguinte, discordava publicamente. Fez o MS engolir sua 
cloroquina; no dia 07 de abril de 2020, foi publicado um protocolo estapafúrdio 
do MS. Na ocasião, os únicos dois estudos sobre a droga eram inconclusivos, 
e um deles era evidentemente uma fraude científica11. Bolsonaro, depois de 
fritar e dourar bem Henrique Mandetta, exonerou-o no dia 15 de abril. A essa 
altura, o Brasil tinha uma equipe técnica impedida de trabalhar corretamente. 
Era como se soldados lutassem uma guerra com seus braços presos para trás 
 
11 Vide o item “Texto II” do próximo capítulo, no qual Natália Pasternak e Carlos Orsi nos 
contarão um pouquinho sobre a história de Didier Raoult. 
25 
 
 
e seus olhos vendados. No Brasil, pareceque é o próprio coronavírus que tem 
a caneta. 
O “segundo maior tosco” do Brasil não parou com seus pronunciamentos 
oficiais criminosos. Além disso, em meio ao isolamento social, o presidente 
começou a sair às ruas, causando aglomerações e, assim, as incentivando. 
Desprezava as máscaras e, sempre que podia, falava contra as orientações do 
MS. No momento em que escrevo, Jair Bolsonaro continua com as mesmas 
práticas de produção de aglomerações. Enfim, uma série de crimes contra a 
humanidade foi cometido em pouco tempo por esse homem. Nenhum júri e 
nenhuma sentença seriam suficientes para reverter o mal que foi feito. Nada 
devolverá as vidas que foram ceifadas devido à sua política de extermínio. 
Entretanto, certamente, isso não tira a necessidade de um julgamento, 
inclusive, em tribunal internacional. 
Nenhuma exceção ou tentativa de racionalização podia ser feita daqueles 
discursos do presidente. O papel da política é fundamental para que a saúde 
possa se desenvolver. Aos que achavam que de um lado estava a área técnica 
e de outro, a política, digo que esse vírus nos ensinou algumas lições: a lição 
de que cada política pública assumida implicaria um número diferente de 
internações e de mortes; a lição de que precisamos de mais “Drauzios” lutando 
pelo SUS, falando dos problemas decorrentes da desigualdade social e de 
como isso interfere no trabalho médico. Enquanto ficarmos curando doenças 
em consultórios e hospitais, vamos falhar miseravelmente. Talvez seja 
relativamente tarde para ouvirmos mais os sanitaristas. 
Já que explicitei a importância da política em uma pandemia, tenho de 
imputar ao governo federal a responsabilidade para com as mortes que viriam 
em abril. Elas efetivamente vieram. 
Dia 28 de abril de 2020: 72.899 casos confirmados e mais de 5 mil 
indivíduos mortos no Brasil. Nesse dia, os jornalistas confrontaram o chefe do 
Executivo sobre os dados do país. Novamente, eclodiu-se mais uma amostra 
do sarcasmo de Bolsonaro e sua desconsideração para com a vida da nação. 
26 
 
 
A resposta foi: “O que eu tenho a ver com isso? E daí!? Sou Messias, mas não 
faço milagre”. Deveras, o que poderia um presidente ter a ver com o seu país? 
Não teremos chances contra a nova peste enquanto existir um Capitão 
Corona no governo do Brasil. Como diria o neurologista Miguel Nicolelis, não 
dá para lutar contra uma pandemia e um pandemônio ao mesmo tempo! 
29 de abril de 2020 
27 
 
 
UMA AULA DE COMO NÃO TESTAR UM MEDICAMENTO 
Natalia Pasternak 12 e Carlos Orsi13 
 
Entre a segunda metade de março e a primeira quinzena de abril de 2020, 
a população brasileira foi bombardeada por uma bem-orquestrada operação de 
relações públicas – envolvendo entrevistas na grande imprensa, comentários 
em redes sociais e, até mesmo, intervenções do presidente da República –, 
dando conta de que o grupo provado de saúde paulista Prevent Senior “em 
breve” publicaria um estudo atestando a utilidade da combinação de drogas 
hidroxicloroquina e azitromicina no combate à infecção causada pelo vírus 
SARS-CoV-2. 
As comunidades médica, científica e jornalística, compreensivelmente, 
aguardavam, com enorme interesse, a prometida publicação. Apontada, 
inicialmente, como tratamento promissor por um pequeno estudo francês, 
repleto de inconsistências e defeitos metodológicos graves, a combinação não 
vinha se saindo bem na maior parte dos estudos internacionais posteriores e 
seguia um padrão bem conhecido no universo dos tratamentos médicos que 
acabam descartados ou transformados em terapias alternativas: quanto maior 
o rigor e a qualidade do estudo, menor o efeito constatado. 
A possibilidade de um trabalho de boa qualidade, realizado no Brasil, 
reverter o rumo do crescente consenso negativo em torno do uso da 
combinação de drogas no contexto da pandemia mantinha leigos e 
especialistas acordados madrugadas adentro. 
Quando o estudo veio a público – não no formato de artigo científico, 
revisado pelos pares e publicado em um periódico de prestígio, mas, sim, de 
um documento digital distribuído a jornalistas por uma assessoria de 
marketing –, revelou-se, infelizmente, uma decepção acachapante. Um artigo 
 
12 Formada em Ciências Biológicas pelo Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo 
IBUSP, PhD com pós-doutorado em Microbiologia, na área de Genética Molecular de Bactérias 
pelo Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo, ICB-USP. 
13 Jornalista formado pela Escola de Comunicação e Artes. Membro da diretoria do Instituto 
Questão de Ciência. 
28 
 
 
publicado originalmente na Revista Questão de Ciência14, e reproduzido a 
seguir, explica o porquê. 
Pelo menos desde a última quinta-feira, 16, circula entre jornalistas e 
cientistas brasileiros um documento em PDF que parece ser o preprint – a 
versão “quase final” de um artigo científico, supostamente submetida à revisão 
dos pares – do trabalho que descreve os resultados obtidos pelo grupo de 
medicina privado brasileiro Prevent Senior com um protocolo de tratamento de 
Covid-19 baseado em telemedicina (isto é, consultas remotas) e na perigosa 
combinação das drogas hidroxicloroquina (HCQ) e azitromicina (AZ). 
Dizemos “parece” porque, até o momento em que escrevemos (manhã de 
sábado, 18), o documento não se encontra disponível em nenhuma das 
plataformas usuais de preprints dedicadas ao conteúdo relativo à nova 
pandemia. No entanto, jornalistas receberam nota oficial de divulgação da 
assessoria de marketing e comunicação do grupo médico, e representantes do 
Prevent Senior concederam entrevistas sobre o assunto – em todo esse 
material, já disponível ao público, o conteúdo é consistente com o que vemos 
apresentado no PDF. 
A repercussão do aparente manuscrito na comunidade científica tem sido 
a pior possível. Especialistas em medicina baseada em evidências de renome 
internacional, como o oncologista norte-americano David Gorski e o geneticista 
francês Gaetan Burgio, referiram-se ao material como “execrável” (crappy, no 
original) e “atroz”. 
O desfecho descrito é necessidade de hospitalização: se tomarmos o 
trabalho pelo valor de face, ele mostra que o uso de HCQ e AZ em pacientes 
de Covid-19 reduz a necessidade de internação hospitalar. O valor real, no 
entanto, é muito menor do que o valor de face – tende, de fato, a zero. 
As razões para isso são inúmeras. Para dar ao leitor uma visão 
panorâmica dos problemas que atingem o que parece ter sido uma desastrada 
 
14 PASTERNAK, Natalia; ORSI, Carlos. Uma aula de como não se deve testar um 
medicamento. 18 de abril de 2020. Revista Questão de Ciência. Disponível em: 
https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/questao-de-fato/2020/04/18/uma-aula-de-como-
nao-se-deve-testar-um-medicamento. Acesso em: 19 de junho de 2020. 
https://newsroom.heart.org/news/caution-recommended-on-covid-19-treatment-with-hydroxychloroquine-and-azithromycin-for-patients-with-cardiovascular-disease-6797342
https://newsroom.heart.org/news/caution-recommended-on-covid-19-treatment-with-hydroxychloroquine-and-azithromycin-for-patients-with-cardiovascular-disease-6797342
https://connect.medrxiv.org/relate/content/181
https://connect.medrxiv.org/relate/content/181
https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/04/estudo-da-prevent-senior-com-cloroquina-nao-permite-conclusoes-sobre-eficacia-contra-covid-19.shtml
29 
 
 
operação de marketing de uma empresa que sentiu a necessidade de polir a 
própria reputação, além de promover a suposta eficácia da plataforma de 
telemedicina que oferece aos clientes, dividimos esta análise [capítulo] em 
seções que vão dos problemas éticos ao técnicos, e conclui mostrando que as 
falhas técnicas são, no fim, também falhas éticas. 
 
Conflito de interesse 
Há alguns anos, a Coca-Cola Company viu-se como alvo de duras 
críticas, algumas veladas, feitas pela comunidade científica e outras bem 
explícitas, na mídia, por financiaruma série de estudos que sugeriam que a 
falta de atividade física, e não o consumo excessivo de calorias (como, por 
exemplo, as calorias do açúcar presente em refrigerantes como os da Coca-
Cola Company), era a principal responsável pela epidemia de obesidade que 
atinge os Estados Unidos. 
A razão das críticas é a questão do conflito de interesse: é, no mínimo, 
suspeito que uma empresa pague para que cientistas investiguem uma 
hipótese cuja confirmação pode ter impacto positivo no marketing da 
companhia. 
Isso acontece o tempo todo. Recentemente, descobriu-se que um estudo 
sobre os “benefícios” do consumo “moderado” de álcool era bancado por 
fabricantes de bebidas. E qualquer médico, cientista ou farmacêutico digno do 
diploma lhe dirá que estudos financiados pela indústria farmacêutica tendem a 
favorecer o remédio ou o tratamento sendo testado. 
Esse favorecimento pode ser bem sutil – um leve exagero nos benefícios 
descritos, efeitos colaterais que são apresentados com um pouco menos 
ênfase do que seria de se esperar –, mas é sistemático na literatura científica. 
Muito raramente, ele descamba para fraude deliberada. Entretanto, é algo que 
a comunidade científica precisa levar em conta sempre que um novo estudo 
sobre intervenções em saúde humana aparece. 
https://valor.globo.com/empresas/noticia/2020/04/02/prevent-senior-rebate-criticas-de-mandetta-sobre-acao-na-pandemia.ghtml
https://valor.globo.com/empresas/noticia/2020/04/02/prevent-senior-rebate-criticas-de-mandetta-sobre-acao-na-pandemia.ghtml
https://journals.plos.org/plosmedicine/article?id=10.1371/journal.pmed.1001578#s3
https://well.blogs.nytimes.com/2015/08/09/coca-cola-funds-scientists-who-shift-blame-for-obesity-away-from-bad-diets/
https://www.nytimes.com/2017/07/03/well/eat/alcohol-national-institutes-of-health-clinical-trial.html
https://www.nytimes.com/2017/07/03/well/eat/alcohol-national-institutes-of-health-clinical-trial.html
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC156458/
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC156458/
30 
 
 
É por isso que a boa prática científica requer que autores de estudos que 
afetam interesses comerciais declarem conflitos de interesse. Basicamente, se 
você ou seu patrocinador têm algo a ganhar (ou perder) dependendo do 
resultado do trabalho, você precisa avisar a comunidade científica disso. Não o 
fazer acende todo tipo de sinal de alerta e é motivo para pôr em dúvida a 
integridade e as boas intenções dos envolvidos. 
Se isso é verdade para estudos sobre dieta e obesidade conduzidos por 
pesquisadores independentes – muitas vezes, em universidades –, mas com 
algum aporte financeiro de uma empresa como a Coca-Cola, o que se poderia 
dizer de um estudo conduzido dentro de uma empresa privada, por 
funcionários da empresa, com dinheiro dos clientes da empresa e testando o 
produto que a empresa vende e do qual sua reputação depende? 
No entanto, o manuscrito não traz nenhuma menção a conflito de 
interesse. De fato, o espaço reservado para declarações de conflitos diz, de 
modo muito explícito, que não há nenhum. 
 
Informação de menos 
Para determinar se uma terapia “T” é eficaz contra uma doença “D”, o 
primeiro passo obviamente necessário é determinar se as pessoas que estão 
sendo tratadas com “T” realmente sofrem de “D”. Não faz sentido, por exemplo, 
dar um antitérmico para alguém que não está com febre e, meia hora depois, 
concluir que, se a pessoa não tem febre, o antitérmico funciona. 
Essa necessidade óbvia, no entanto, escapou à equipe do Prevent 
Senior. Os pacientes envolvidos no estudo tinham “suspeita” de Covid-19, mas 
nenhum resultado de exame que confirmasse a presença do vírus. De fato, 
o manuscrito diz que o critério inicial de seleção para o estudo era a presença 
de flu-like symptoms, ou seja, sintomas semelhantes aos da gripe. A presença 
desses sintomas era avaliada por consultas remotas. 
A variedade de condições que produzem sintomas semelhantes aos da 
gripe talvez só não seja maior que o número de anjos que podem dançar na 
31 
 
 
cabeça de um alfinete. Além da gripe propriamente dita, há resfriado, asma, 
excesso de poeira no ar, rinite, alergias diversas, sinusite, um sem-número de 
infecções bacterianas e assim por diante. Em pacientes idosos e com 
comorbidades, como os clientes da Prevent Senior, a prevalência desses 
sintomas pode ser ainda maior. 
Resumindo: o Prevent Senior não sabia o que estava tratando. Apenas 
conjecturava que parte dessas pessoas talvez estivesse contaminada pelo 
vírus SARS-CoV-2. Alguns pacientes passaram por tomografias de tórax, o que 
talvez pudesse ser visto como uma tentativa de aferir a plausibilidade da 
conjectura, mas as tomografias não foram feitas de modo consistente e 
o manuscrito não diz quando foram obtidas (se antes, durante ou depois do 
“estudo”). 
Um representante da empresa declarou que os exames para detectar a 
presença do vírus demorariam muito para ser completados e que o objetivo do 
estudo era avaliar a eficácia da intervenção precoce. 
Ninguém explicou, no entanto, por que os exames não foram feitos de 
qualquer forma, e seus dados integrados depois, na fase de análise dos 
resultados. Seria, no mínimo, interessante saber se, dos vinte pacientes que 
acabaram internados (oito do grupo-tratamento e doze do grupo-controle), 
quantos realmente estavam infectados pelo vírus, e, se estavam, qual era a 
carga viral, se precisaram de oxigênio, ventilação, UTI, etc. 
 
Informação demais 
Se ninguém sabia o diagnóstico, todos sabiam quem estava recebendo a 
combinação HCQ+AZ e quem não. Cerca de 600 pacientes com os tais flu-like 
symptoms receberam a oferta de ter acesso às drogas; 400 disseram sim, 200 
disseram não. Os 200 que disseram não foram usados como grupo-controle 
(não está claro se alguém fez a gentileza de avisá-los). 
32 
 
 
O manuscrito não diz se houve algum monitoramento da taxa de adesão 
ao protocolo – isto é, se alguém viu os pacientes tomando os remédios –, o que 
já é um problema, mas está longe de ser o maior. 
A questão é que, em princípio, todos, de pacientes às equipes de 
telemedicina que iriam decidir se eles precisariam ser internados ou não, 
tinham um forte investimento emocional (e, no caso das equipes do Prevent 
Senior, interesse financeiro) em que o número de hospitalizações fosse o 
menor possível. 
Do outro lado, as equipes que acompanhavam os pacientes-controle 
tinham o incentivo oposto. Para além de considerações egoístas 
(provavelmente de natureza inconsciente), se as equipes que acompanhavam 
os controles realmente acreditavam na eficácia da HCQ+AZ, era natural 
considerarem que os pacientes sem medicação corriam maior risco e, também, 
serem mais rigorosas na interpretação dos sintomas que poderiam levar à 
hospitalização. 
Do lado dos pacientes que recebiam as drogas, o investimento emocional 
e o desejo de agradar os cuidadores – às vezes, chamado de “efeito 
Hawthorne”, o que nos leva a escovar os dentes com cuidado especial antes 
de ir ao dentista – também pode ter influenciado o resultado. É justamente para 
evitar dificuldades desse tipo, além da exacerbação do efeito placebo, que os 
testes clínicos de melhor qualidade são chamados de duplos-cegos, nos quais 
nem pacientes nem cuidadores sabem quem recebe o tratamento e quem está 
no grupo de controle. 
À falta de cegamento, soma-se a autosseleção: foram os próprios 
pacientes que escolheram fazer parte do grupo de tratamento. Em termos do 
controle do efeito placebo, isso é muito diferente do que o paciente que aceita 
ser randomizado – isto é, que concorda em ser designado, por sorteio, para o 
grupo que vai receber a droga ou para algum dos controles. 
Não apenas o investimento emocional é de outra ordem, como também 
se quebra uma condição fundamental para a validade de qualquer teste 
33 
 
 
clínico – a de que os grupos comparados sejam o mais parecidos possível,diferindo, no caso ideal, apenas na natureza do tratamento recebido. 
É possível, por exemplo, que parte dos pacientes que recusaram o 
tratamento tenha tomado a decisão por conta de problemas cardíacos ou 
histórico cardíaco na família – questões que os colocam num grupo de maior 
risco de complicações causadas pela Covid-19. 
As tabelas fornecidas junto com o manuscrito indicam, por exemplo, que 
mais pacientes do grupo de tratamento entraram no estudo se queixando de 
febre, tosse, coriza, diarréia e dor de cabeça. Talvez, essas pessoas tenham 
aceitado as drogas por estarem assustadas. Mas, se parte delas estava no 
auge de um resfriado comum, podem apenas ter sarado naturalmente no curso 
da pesquisa – afinal, “resfriado passa com repouso e canja de galinha”. 
 
Informação nenhuma 
Uma das possíveis definições para informação é “aquilo que reduz nossa 
ignorância”. Nesse aspecto, o estudo conduzido pelo Prevent Senior tem valor 
informativo zero. As eventuais dúvidas da comunidade médico-científica sobre 
a eficácia e a conveniência do uso de HCQ+AZ no tratamento da Covid-19 
continuam exatamente como estavam. Nada foi agregado. 
Ruído, por sua vez, pode ser definido como algo que ocupa espaço num 
canal de comunicação, mas não conduz informação: estalos e zumbidos num 
telefonema, chuvisco numa televisão, caracteres ao acaso no meio de um 
texto. O “estudo” do Prevent Senior pode ser definido como ruído científico, o 
que, numa situação de pandemia, é condenável – já que consome recursos, 
tanto financeiros quanto cognitivos, que poderiam ser muito melhor aplicados. 
Representantes do grupo médico em questão têm tentado defender o 
resultado afirmando que fizeram o melhor possível. Se quisessem mesmo fazer 
o melhor possível, poderiam ter seguido princípios básicos de ética médica e 
registrado seu desenho experimental no site internacional de registro de testes 
34 
 
 
clínicos, para que a comunidade científica pudesse opinar e, até mesmo, 
orientar sobre as graves falhas metodológicas. 
Essa prática é uma praxe em estudos de medicamentos justamente para 
respeitar a transparência da ciência e para que os demais especialistas 
possam avaliar se o trabalho foi desempenhado de acordo com a proposta 
inicial; desvios entre o projeto registrado e o trabalho executado não são bem 
vistos. Infelizmente, o registro desse “estudo” do grupo médico foi feito após a 
elaboração e a divulgação do manuscrito e descreve um estudo bem diverso 
do apresentado. 
Estudos clínicos controlados sobre medicamentos existem para tentar 
eliminar fatores de confusão que podem comprometer os resultados. O estudo 
do Prevent Senior fez o oposto: gerou confusão com a desculpa de que 
qualquer tipo de informação é melhor do que nada. Qualquer turista que já 
tenha ido parar num bairro violento após seguir indicações falsas do GPS sabe 
que isso está longe de ser verdade. 
 
Texto II 
A onda global de entusiasmo com os fármacos cloroquina (CQ) e 
hidroxicloroquina (HCQ) como possíveis remédios para a Covid-19 eclodiu a 
partir de um único “estudo” em humanos sobre o assunto; porém, esse estudo 
contém tantos defeitos, erros e imprecisões que o coautor de maior prestígio 
dentro da comunidade científica, o médico e microbiologista francês Didier 
Raoult, rapidamente passou a ser tratado como maluco excêntrico pela mídia 
internacional. 
Dentre os problemas do ensaio conduzido por Raoult, publicado num 
periódico que tem, como editor, um de seus coautores, estão a ausência de um 
grupo de controle significativo, o número minúsculo de pacientes envolvidos, a 
mixórdia experimental (no início, era sobre hidroxicloroquina e, depois, 
transformou-se num estudo sobre a associação entre a HCQ e o antibiótico 
azitromicina) e a manipulação excessivamente liberal dos dados gerados (os 
https://clinicaltrials.gov/ct2/show/NCT04348474?term=NCT04348474&draw=2&rank=1
https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/artigo/2020/03/19/ninguem-provou-que-hidroxicloroquina-cura-covid-19
https://www.irishtimes.com/news/world/europe/coronavirus-france-hoping-unorthodox-virologist-can-save-world-1.4210278
35 
 
 
pacientes que pioraram depois de receber HCQ foram, convenientemente, 
excluídos da análise final). 
O choque entre a reputação construída e a realidade do trabalho 
publicado foi tamanho que inclusive o currículo acadêmico de Raoult ficou sob 
novo escrutínio: o jornal Le Figaro resgatou uma acusação feita no 
livro Malscience, do biólogo Nicolas Chevassus-au-Louis, que aponta que o 
número de publicações científicas atribuídas ao francês, num período de 
quinze anos (1996-2011) supera 12 mil. Segundo a base de dados de artigos 
científicos da área médica PubMed, só em 2020 já saíram 36 artigos onde seu 
nome consta como autor, o que dá uma média aproximada de uma publicação 
a cada dois dias. “Demais para ser honesto?”, questiona Le Figaro. 
Esse despertar do senso crítico, porém, chegou tarde e fora muito lento, 
sobretudo diante do estrago causado pela recepção inicial dada ao “estudo”, 
divulgado no fim de março de 2020. Até mesmo cientistas sérios e 
comunicadores da ciência experientes, aparentemente ofuscados pela 
reputação prévia de Raoult e abalados pelo custo humano da Covid-19, 
optaram, de início, por fazer vista grossa para os problemas óbvios que 
invalidam o trabalho e, então, saudaram a publicação como uma contribuição 
relevante para o combate à pandemia. 
A opção preferencial pela complacência ignorou uma lição que deveria 
ser o bê-á-bá de qualquer cientista ou comunicador da área: a dos indícios 
clássicos de crackpottery, expressão da língua inglesa quase intraduzível para 
o português que define um espectro de distorções da prática científica que vai 
desde a incompetência ingênua ao charlatanismo desbragado, sempre em 
parceria com obstinação e soberba. 
Alguns dos indícios clássicos são: pesquisador que apresenta seus 
resultados de modo espetacular ao público leigo, antes de buscar a revisão dos 
pares; pesquisador que faz alegações grandiosas com base em amostras 
pequenas ou na ausência de estudos formais; pesquisador que faz alegações 
grandiosas sobre um assunto científico fora de sua área de expertise; 
pesquisador que se mostra mais preocupado em convencer o público leigo e 
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=%22Raoult%20D%22%5BAuthor%5D
36 
 
 
lideranças políticas do que em responder às críticas técnicas dos demais 
especialistas da área. 
Exemplos comumente citados são a recomendação do uso de 
superdoses de vitamina C como panaceia, o fiasco da fusão a frio, a conexão 
espúria entre vacinas e autismo e, aqui no Brasil, a famigerada “pílula de 
câncer”, a fosfoetanolamina sintética. 
Embora o uso da CQ ou da HCQ como antiviral não seja, em si, uma 
ideia crackpot – há pelo menos um bom estudo in vitro, isto é, envolvendo 
células em cultura de laboratório, que sugere a possibilidade –, o trabalho 
específico do grupo de Raoult, se não chega a completar o bingo 
da crackpottery (o pesquisador, afinal, é da área), emitia, desde o início, claros 
sinais de alerta. Indícios como o fato de Raoult ter optado por ir ao YouTube 
para se gabar da “descoberta” antes da publicação do artigo científico e a 
amostra muito pequena (grupo de tratamento inicial com apenas 26 pessoas) já 
deveriam ter deixado todo mundo com o pé atrás. 
Depois, a mera leitura do artigo, tal como apresentado, deveria ter sido 
suficiente para eliminar toda e qualquer dúvida de que se tratava de um caso 
de crackpottery da mais fina estampa: dentre os diversos problemas do estudo, 
salta aos olhos a informação de que os pacientes que pioraram (e o que 
morreu!) durante o tratamento foram desconsiderados. É como se os autores 
tivessem partido do princípio de que o remédio só poderia fazer bem. 
E mesmo o “bem” constatado é duvidoso. Em entrevista, o virologista 
alemão Christian Drosten, principal consultordo governo Angela Merkel em sua 
bem-sucedida resposta à pandemia, diz que “os resultados possivelmente 
teriam sido os mesmos se os pacientes tivessem tomado um comprimido para 
dor de cabeça”. 
A complacência inicial de comunicadores e cientistas para com a 
publicação teve, e segue tendo, consequências nefastas: a perspectiva de uma 
cura fácil e ao alcance da mão encantou líderes populistas, como Donald 
Trump e Jair Bolsonaro, que têm uma visão pragmática do que conta como 
evidência científica – o pragmatismo, nesse caso, é dar relevância apenas ao 
https://www.ndr.de/nachrichten/info/17-Coronavirus-Update-Malaria-Medikament-vorerst-kein-Hoffnungstraeger,podcastcoronavirus144.html
https://www.ndr.de/nachrichten/info/17-Coronavirus-Update-Malaria-Medikament-vorerst-kein-Hoffnungstraeger,podcastcoronavirus144.html
37 
 
 
que pode ser usado para promover suas agendas políticas. Tanto Trump 
quanto Bolsonaro, aliás, são reincidentes: o mandatário estadunidenseflertou, 
quando lhe foi conveniente, com o movimento antivacinação, e o brasileiro foi 
um promotor da “pílula do câncer”. 
Se, nos Estados Unidos, as autoridades sanitárias, após uma hesitação 
inicial, demonstraram a altivez necessária para conter os arroubos 
presidenciais – tanto a FDA quanto o médico Anthony Fauci, diretor do Instituto 
Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas, não se furtaram ao dever de 
contradizer, sem meias palavras, as falsidades proferidas por Trump sobre o 
assunto –, no Brasil, não tivemos a mesma sorte: o nosso então ministro da 
Saúde Henrique Mandetta chegou a dizer que havia “validado” a 
cloroquina para ser usada no Brasil em pacientes graves de Covid-19. 
Hospitais privados, como o Albert Einstein, de São Paulo (SP), 
dispuseram-se, bovinamente, a conduzir testes do “protocolo” apresentado por 
Raoult. Dada a péssima qualidade dos dados oferecidos em defesa do tal 
“protocolo”, tratou-se de uma escolha difícil de ser justificada em bases 
científicas. De acordo com um levantamento feito pelo jornalista Carl Zimmer 
para o The New York Times, existem pelo menos 69 fármacos promissores a 
serem testados contra o SARS-CoV-2. A cloroquina/hidroxicloroquina é apenas 
mais um deles, e um dos menos relevantes. 
O hype teve que, dentre outras consequências, distorcer as prioridades 
de pesquisa em todo o mundo: mais de um mês depois da publicação 
original, a cloroquina era o fármaco mais pesquisado no mundo em relação à 
Covid-19. 
A Organização Mundial da Saúde (OMS), que, em primeira avaliação, 
havia considerado a cloroquina e a hidroxicloroquina inadequadas para um 
teste em escala mundial de fármacos promissores para o combate ao 
SARS-CoV-2, viu-se coagida a incluí-las. 
Muito provavelmente, isso tudo representa perda de tempo e um trágico 
desperdício de recursos. Ouvida pela revista Science, a especialista Susanne 
Herold lembra que “pesquisadores vêm testando essa droga contra um vírus 
https://www.bloomberg.com/news/articles/2020-03-19/trump-touts-malaria-drug-as-potential-coronavirus-treatment
https://www.nytimes.com/2020/03/20/health/coronavirus-chloroquine-trump.html
https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,mandetta-afirma-que-pais-validou-e-esta-fornecendo-cloroquina-para-pacientes-mais-graves-de-covid-19,70003241781
https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,mandetta-afirma-que-pais-validou-e-esta-fornecendo-cloroquina-para-pacientes-mais-graves-de-covid-19,70003241781
https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,einstein-e-prevent-senior-farao-testes-clinicos-da-cloroquina-em-pacientes-com-coronavirus,70003242396
https://www.nytimes.com/2020/03/22/science/coronavirus-drugs-chloroquine.html?searchResultPosition=1
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/05/cloroquina-e-droga-mais-testada-no-mundo-contra-covid-19.shtml
38 
 
 
atrás do outro, e ela nunca funciona em humanos”. O fracasso mais recente 
envolveu o vírus chicungunha. 
Diversos países passaram a sofrer desabastecimento de medicamentos à 
base de cloroquina, usada no combate à malária, e de hidroxicloroquina, usada 
contra lúpus e artrite reumatoide. 
Na Nigéria e nos Estados Unidos, foram registradas mortes causadas 
pela automedicação com cloroquina/hidroxicloroquina contra o vírus. Não se 
trata de um fármaco inócuo; ele é capaz de causar efeitos colaterais graves, 
atacando, por exemplo, os olhos e o coração. Uma dose de apenas dois 
gramas pode matar um homem adulto. 
Há quem defenda que, em condições de guerra, os rigores usuais da 
ciência não se aplicam mais. É um raciocínio profundamente falacioso, visto 
que os rigores da ciência não são luxos, e sim salvaguardas que reduzem –
 mas jamais eliminam – o risco de mentirmos para nós mesmos, de permitirmos 
que medos ou esperanças nos ceguem para os fatos. Ademais, condições de 
guerra não nos tornam menos vulneráveis a esses riscos. Muito pelo contrário. 
Pode ser que a CQ seja eficiente para combater a Covid-19. No entanto, 
as evidências que vêm se acumulando desde a desastrada publicação original 
sugerem, cada vez mais, que ela não é. Cumprindo um padrão que é, 
infelizmente, um velho conhecido de quem estuda a parte da história da 
Medicina que dá conta das fraudes, dos erros e das falsas esperanças, a 
cloroquina contra a Covid-19 refaz o caminho da fosfoetanolamina, da 
homeopatia e de tantos outros tratamentos “aprovados” por clamor popular: 
como já mencionado, quanto mais bem desenhado e conduzido o estudo, 
menor o efeito constatado – que tende a zero à medida que a qualidade da 
avaliação aumenta. 
A priorização da CQ e da HCQ na pandemia de 2020 entrará para a 
história como um momento em que políticos e parte da comunidade médico-
científica resolveu jogar roleta-russa com a saúde da população. 
 
http://revistaquestaodeciencia.com.br/artigo/2020/03/23/cloroquina-e-hidroxicloroquina-trazem-riscos-graves
39 
 
 
O DESVANEIO DE BOLSONARO EM TEMPOS DE PANDEMIA 
Hugo Lopes de Oliveira15 
 
Em novembro de 2016, quando os delegados do estado de Wisconsin 
(EUA) foram computados e o republicano Donald Trump ultrapassou o número 
mínimo de 270 delegados, muita gente não imaginava o que viria dali em 
diante. Os analistas estavam surpresos com a vitória de um candidato do 
Partido Republicano que era um outsider da política, sem nenhuma tradição de 
militância em qualquer área. Os EUA estavam prestes a ganhar mais do que 
um presidente republicano, um presidente de extrema direita, mais radical, 
inclusive, do que a ala do Freedom Caucus, do próprio Partido Republicano. 
Para alguns analistas, Donald Trump aproveitou uma onda conservadora 
e nacionalista que já vinha percorrendo parte da Europa e da América. Para 
outros, Trump inaugurou, por si só, um estágio em vários setores, como na 
política externa dos EUA, rompendo várias barreiras. De fato, não se pode 
negar que a eleição de Trump como um presidente de extrema direita na nação 
mais poderosa e influente do mundo é um divisor de águas. Nesse embalo, 
uma parte considerável da América Latina viveu uma guinada à direita após um 
considerável período de governos à esquerda. A Argentina nomeou o 
neoliberal Maurício Macri em 2017 e a Venezuela constatou o enfraquecimento 
do chavista Nicolás Maduro. O Brasil não ficou de fora desse movimento e 
elegeu Jair Bolsonaro, que tem um discurso de extrema direita e pautas de 
combate à esquerda e ao que ele chamava de comunismo. 
Desde o início da campanha eleitoral em 2018, Bolsonaro fez questão de 
se aproximar de Donald Trump. Eram frequentes às menções ao líder 
estadunidense não fazendo nenhuma questão de esconder a simpatia pelas 
ideias dele. Já eleito, Bolsonaro alinhou a política externa brasileira aos 
princípios e desejos dos estadunidense Recebeu o então Conselheiro de 
Segurança Nacional da Casa Branca, John Bolton, em sua residência para um 
 
15Licenciado em História pela UFRuralRJ e Especialista em Ensino de História pelo Colégio 
Pedro II.Diretor Geral do Centro de Atenção à Criança e ao Adolescente Paulo Dacorso Filho 
(UFRualRJ e PMS) e Coordenador Geral do Núcleo Municipal de Seropédica do SEPE – 
Sindicato Estadual dos Profissionais em Educação do Rio de Janeiro. 
40 
 
 
café da manhã mais do que simples, simplório! Viajou para os EUA quatro 
vezes em menos de quinze meses de mandato, quebrando o recorde de todos 
os presidentes anteriores. Cedeu aos estadunidenses em disputas comerciais 
e alinhou-se a eles em votações na ONU. Pela primeira vez na história, o Brasil 
rompeu a tradição e votou, junto com EUA e Israel, favoravelmente ao embargo 
econômico à ilha de Cuba. 
Agora, em 2020, o mundo está diante daquela que pode ser a mais 
terrível das pandemias da era moderna. Um vírus que começou na China 
alastrou-se, em poucas semanas, para o mundo inteiro e desvendou uma 
consequência perversa da globalização: a velocidade com que as doenças 
podem percorrer o planeta. Sem uma vacina eficaz, o novo coronavírus tornou-
se mortal para muitas pessoas. Sobrecarregou os sistemas de saúde públicos 
e privados, em países ricos e pobres. Atingiu a todos, mas mostrou sua face 
mais perversa entre os mais pobres, em especial nas periferias da América 
Latina e nos países pobres da África. 
O novo coronavírus permitiu que o mundo se unisse no enfrentamento da 
pandemia. Ampliação das pesquisas, trocas de informações e 
compartilhamento de equipamentos e insumos foram algumas das medidas 
tomadas pelas autoridades na tentativa de conter o vírus e evitar mais mortes. 
A Organização Mundial da Saúde (OMS) conquistou uma espécie de soberania 
mundial, em especial se esquadrinharmos os escritos do filósofo italiano 
Giorgio Agamben. Conquanto, para além dessa concórdia, o mundo presenciou 
Donald Trump e Jair Bolsonaro, presidentes da República e líderes de duas 
das nações mais atingidas pela Covid-19, em uma união quase impensável em 
torno das críticas ao isolamento social. 
Trump e Bolsonaro juntaram-se para, entre outras coisas, defenderem o 
uso do medicamento cloroquina no tratamento da doença, criticar os efeitos 
econômicos do isolamento social e acusarem a China de ter criado o vírus. 
Trump disse que tinha evidências de que o vírus seria uma criação de Pequim, 
mas não apresentou provas. Já Bolsonaro, seguindo seu ídolo, afirmou que 
estaria convencido de que o vírus era um plano do governo chinês. Em tese, 
Trump acreditava que a China queria se aproveitar economicamente do vírus e 
41 
 
 
Bolsonaro – um militar expulso do Exército, que se formou na Academia Militar 
das Agulhas Negras (Aman) nos anos de 1980 e que ainda pensa de acordo 
com o que aprendeu no quartel – julgou o vírus como uma possível ameaça 
comunista. Ele acredita friamente de que há um inimigo em comum a ser 
combatido: o comunismo. Dessa forma, Bolsonaro apega-se às lições 
aprendidas na Doutrina de Segurança Nacional do General Golbery do Couto e 
Silva, na Aman, e as repete até hoje. Entretanto, Bolsonaro e Trump estão 
errados. 
O filósofo germano-coreano Byung-Chul Han escreveu recentemente um 
artigo publicado no jornal El País16 mostrando que não há motivos plausíveis 
para que a China tire algum proveito do vírus. Essa conjectura deve-se, em 
parte, ao fato de vários analistas ocidentais, em especial os europeus, viverem 
com o passado nazista nas costas e, assim, temerem medidas 
antidemocráticas por parte dos Estados no combate ao vírus. Giorgio 
Agamben, filósofo italiano, tem se preocupado com as decisões tomadas pelos 
governos da Itália e de outros países europeus no que concerne ao isolamento 
social. Apesar de seus esforços estarem concentrados na reflexão sobre a 
ética que surgirá após essa pandemia, Agamben não deixa, de certo modo, de 
alfinetar os europeus para que não se esqueçam dos horrores do totalitarismo. 
As alfinetadas de Agamben não surtem efeito na China porque – como 
explica Byung-Chul Han –, na Ásia, medidas como o controle da população por 
chipes eletrônicos, a identificação em câmeras de reconhecimento facial ou o 
monitoramento remoto não são vistas como uma invasão do Estado na vida 
privada do cidadão, uma vez que os asiáticos já teriam uma tradição mais 
autoritária em decorrência da sua história cultural ligada ao confucionismo. Por 
terem uma vida mais regrada e disciplinada, as populações desses países 
aceitariam mais passivamente políticas de controle social adotadas em tempos 
de pandemia, diferentemente da maior parte da Europa e da América, onde há 
forte resistência a adoção desse tipo de política. Enquanto no Brasil se 
discutem questões éticas em torno da tecnologia de reconhecimento facial, em 
 
16 HAN, Byung-Chul. O coronavírus de hoje e o mundo de amanhã, segundo o filósofo Byung-
Chul Han. 22 de março de 2020. El País. Disponível em: https://brasil.elpais.com/ideas/2020-
03-22/o-coronavirus-de-hoje-e-o-mundo-de-amanha-segundo-o-filosofo-byung-chul-han.html. 
Acesso em: 02 de junho de 2020. 
https://brasil.elpais.com/ideas/2020-03-22/o-coronavirus-de-hoje-e-o-mundo-de-amanha-segundo-o-filosofo-byung-chul-han.html
https://brasil.elpais.com/ideas/2020-03-22/o-coronavirus-de-hoje-e-o-mundo-de-amanha-segundo-o-filosofo-byung-chul-han.html
42 
 
 
alguns países asiáticos quase a totalidade da população já é monitorada por 
esses sistemas, sem nenhuma resistência. 
O pensamento bolsonarista, amparado nas ideias de Trump de que o 
vírus seria uma criação chinesa, avistou o perigo de um possível domínio 
comunista no mundo – algo que não se sustenta empiricamente – e sustentou 
a ideia de que os chineses usariam a pandemia para imporem à população 
medidas de controle social. Todavia, como bem lembra Byung-Chul Han, os 
países asiáticos já possuem um forte esquema de controle da população a 
partir do uso de tecnologias, de modo que o governo chinês não tem 
necessidade de criar um vírus para poder controlar sua população através da 
imposição de medidas totalitárias. As ideias de Bolsonaro, calçadas tanto na 
Doutrina de Segurança Nacional aprendida durante seu serviço ao Exército 
quanto nos “ensinamentos” de Donald Trump, não passam de puro desvaneio 
ideológico, pois a China já controla sua população há tempos por meio da 
tecnologia. 
 
 
 
 
 
 
 
 
43 
 
 
O NOVO CORONAVÍRUS NO BRASIL E SUA REPERCUSSÃO NA 
MÍDIA ESTRANGEIRA 
Luma da Silva Miranda17 
 
A cobertura da mídia sobre a Covid-19 no mundo dominou a programação 
de grande parte das empresas de comunicação. A pandemia do novo 
coronavírus foi anunciada no dia 11 de março de 2020 pela Organização 
Mundial da Saúde (OMS) e, desde então, temos testemunhado, em vários 
países dos cinco continentes, um crescimento vertiginoso do número de 
infectados e de óbitos em decorrência da doença por ele causada. 
A primeira cidade que registrou a epidemia da Covid-19 foi Wuhan, que 
fica na província de Hubei, na China, e que foi também a primeira cidade a 
entrar em confinamento social. Em 23 de janeiro de 2020, a China adotou, em 
Wuhan e em outras cidades nos arredores, o lockdown, isto é, o bloqueio total 
de circulação de pessoas, incluindo fechamento de vias e proibição de 
deslocamentos e viagens não essenciais. Após 76 dias de confinamento total, 
a cidade de Wuhan voltou a abrir suas portas gradualmente, por conta da 
diminuição tanto dos casos de transmissão local do tal vírus quanto do número 
de mortes. Foi somente no dia 08 de abril que Wuhan reabriu18. 
Mais tarde, no dia 13 de março de 2020, o epicentro da já reconhecida 
pandemia passou a ser a Europa, mais especificamente a região da 
Lombardia, no norte da Itália, sendo esse um dos países da Europa mais 
afetados pela Covid-19. Recentemente, o Brasil começou a se tornar o 
epicentro da enfermidade, ao lado dos EUA. Apesar de o Brasil ter tido pelo 
menos três meses de acompanhamento midiático sobre a pandemia em países 
como China, Itália e Espanha, não houve, por parte

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