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ASPECTOS GERAIS DOS DIREITOS HUMANOS Direitos humanos são aqueles que os seres humanos possuem, única e exclusivamente, por terem nascido e serem parte da espécie humana. São direitos inalienáveis, ou seja, que não podem ser retirados, nem podem ser cedidos voluntariamente por ninguém e independem de legislação nacional, estadual ou municipal específica. Devem assegurar às pessoas condições básicas que lhes permitam levar uma vida digna. Para tanto, contemplam o acesso a elementos básicos que a garantam, tais como: acesso à liberdade, igualdade, trabalho, saúde, educação, moradia, alimentação, água, etc. Vale ressaltar que a definição de direitos humanos está em constante construção, assim como a organização e valores da sociedade. Os direitos não são “naturais” ou inerentes à natureza humana: são definidos a partir de necessidades e valores sociais, que por sua vez, estão em constante transformação. Foram e são conquistados a partir de lutas históricas e, por essa razão, mudam com o tempo. Eles avançam à medida que avança a humanidade, os conhecimentos construídos e a organização da sociedade e do Estado. (FIAN,2020). Os direitos humanos foram pactuados como direitos inerentes a toda pessoa por meio de um longo processo de lutas e conflitos entre grupos, especialmente entre aqueles detentores de poder e a maioria sem poder algum. Portanto, tudo o que se refere à promoção de direitos humanos está relacionado ao estabelecimento de limites e de regras para o exercício do poder, seja este público, seja privado, econômico, político ou mesmo religioso (VALENTE, 2002). Por isso, compreender a dimensão histórica é fundamental para entender os direitos humanos. Além de situá-los como demandas de uma sociedade em determinado momento, os posiciona como conquistas dos povos historicamente oprimidos e não como algo cedido de forma benevolente. CONCEPÇÕES DO DHAA AO DHANA Construção do Direito Humano à Alimentação Adequeada (DHAA) O direito à alimentação adequada é um direito humano inerente a todas as pes soas de ter acesso regular, permanente e irrestrito, quer diretamente ou por meio de aquisições financeiras, a alimentos seguros e saudáveis, em quantidade e qualidade adequadas e suficientes, correspondentes às tradições culturais do seu povo e que garanta uma vida livre do medo, digna e plena nas dimensões fí sica e mental, individual e coletiva (ZIEGLER, 2002 apud ABRANDH, 2010 p.15). D i r e i t o H u m a n o à A l i m e n t a ç ã o e N u t r i ç ã o A d e q u a d a s ( D H A A ) D i r e i t o H u m a n o À A l i m e n t a ç ã o e N u t r i ç ã o A d e q u a d a ( D H A N A ) 01CURSO DE EXTENSÃO DIÁLOGOS SOBRE SOBERANIA E SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL: DESAFIOS E PERSPECTIVAS PARA O FORTALECIMENTO DO SISAN NOS MUNICÍPIOS MÓDULO 03 - TEXTO 01 O DHAA começa pela luta contra a fome, mas não limita-se ao acesso a comida, incorpora também a qualidade do alimento. Os seres humanos necessitam de muito mais do que atender suas necessidades de energia ou de ter uma alimentação nutricionalmente equilibrada. Na realidade, o DHAA não deve – e não pode – ser interpretado em um sentido estrito ou restritivo, ou seja, que o condiciona ou o considera como “recomendações mínimas de energia ou nutrientes”. A alimentação para o ser humano deve ser entendida como fator primordial para manutenção do corpo e consequentemente da mente. O bem-estar interior reflete diretamente na qualidade de vida dos seres humanos. Assim, o DHAA diz respeito a todas as pessoas, de todas as sociedades, e não apenas àquelas que não têm acesso aos alimentos. O termo “adequada” envolve diversos aspectos, como mostra a Figura 01, e a promoção e plena realização do DHAA envolve elementos de justiça social e econômica. Figura 01- Representação Gráfica das Dimensões da Alimentação Adequada FONTE: ABRANDH 2013 02CURSO DE EXTENSÃO DIÁLOGOS SOBRE SOBERANIA E SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL: DESAFIOS E PERSPECTIVAS PARA O FORTALECIMENTO DO SISAN NOS MUNICÍPIOS MÓDULO 03 - TEXTO 01 ALIMENTAÇÃO ADEQUADA REALIZAÇÃO DE OUTROS DIREITOS ACESSO À INFORMAÇÃO DIVERSIDADE QUALIDADE SANITÁRIA ADEQUAÇÃO NUTRICIONAL LIVRE DE CONTAMINANTES, AGROTÓXICOS E ORGANISMOS GENETICAMENTE MODIFICADOS ACESSO A RECURSOS FINANCEIROS OU RECURSOS NATURAIS, COMO TERRA E ÁGUA RESPEITO E VALORIZAÇÃO DA CULTURA ALIMENTAR NACIONAL, REGIONAL E LOCAL Disponibilidade: Adequação: Acesso: As formas como cada um desses fatores são atendidos, no entanto, depende da realidade específica de cada grupo ou povo. Por exemplo, a plena realização do DHAA para uma comunidade indígena não é igual à dos moradores de uma cidade. As comunidades indígenas necessitam de terra para plantar, coletar e caçar. Os moradores de um bairro necessitam de trabalho, renda e acesso à água. As pessoas portadoras de necessidades alimentares especiais carecem de acesso e informação sobre os alimentos adequados para sua necessidade. Aqueles que têm recursos para comprar seus alimentos precisam de informação adequada para fazerem escolhas saudáveis e seguras (por exemplo, rótulos confiáveis e de fácil compreensão). Ou seja, ainda que todos esses grupos tenham características em comum, em determinadas ocasiões requerem ações específicas para garantir seu direito (ABRANDH, 2013). A disponibilidade de alimentos pode ocorrer das seguintes formas: direta mente, a partir de terras produtivas (agricultura, criação de animais, cultivo de frutas, hortas), ou de outros recursos naturais como pesca, caça, coleta de alimentos; ou indiretamente, a partir de alimentos comprados no comér cio ou obtidos através de ações de provimento como, por exemplo, entrega de cestas básicas) Não é suficiente que os alimentos estejam disponíveis, eles precisam ser adequa dos no que diz respeito à cultura, à etapa do ciclo da vida em que as pes soas se encontram (bebê, criança, adolescente, idoso), às necessidades nutricionais ou de saúde específicas (intolerâncias e alergias, diabetes) e aos hábitos alimentares. A acessibilidade à uma alimentação adequada pode ser compreendida em, pelo menos, duas dimensões: econômica e física. A acessibilidade eco nômica implica em acesso aos recursos necessários para a obtenção de alimentos que contribuam para uma alimentação adequada com regularidade durante todo o ano. Já a acessibilidade física prevê que a alimentação deve ser acessível à todas e todos: lactentes, crianças, idosos(as), deficiente físicos, doentes acamados ou em cuidados paliativos, pessoas em situação de privação de liberdade, dentre outros. A alimentação também deve ser acessível a pessoas que vivem em áreas de risco e/ou difícil acesso, vítimas de conflitos ou de desastre ambientais. Esta discussão envolve também ambientes alimentares, isto é, como os espaços facilitam ou dificultam uma alimentação adequada e saudável (disponibilidade física de alimentos in natura em um bairro de periferia, por exem plo). Nesse contexto também importa trazer o debate acerca dos “desertos alimentares” que refere-se à falta de acessibilidade a ali mentos adequados e saudáveis em um determinado espaço, bairro, território ou região. 03CURSO DE EXTENSÃO DIÁLOGOS SOBRE SOBERANIA E SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL: DESAFIOS E PERSPECTIVAS PARA O FORTALECIMENTO DO SISAN NOS MUNICÍPIOS MÓDULO 03 - TEXTO 01 Estabilidade: Com isso, percebe-se que não é suficiente que os alimentos adequados e sustentáveis estejam dis poníveis, é preciso que estejam acessíveis de forma física e econômica. Significa dizer que tanto a disponibilidade como o acesso a alimentos ade quados devem ser garantidos de maneira estável, regular e permanente du rante todo o ano. Por exemplo, em situações e comunidades em que é necessário o fornecimento de cestas básicas, elas devem ser adequadas, suficientes, regulares e permanentes a todas as famílias, fornecidas sem interrupções até que essas famílias possam garantir seu direito de maneira autônoma. Direito Humano à Alimentação eNutrição Adequada (DHANA)¹ O DHANA pode parecer, e é, um direito óbvio. Talvez esta mesma obviedade atrapalhe sua percepção e o entendimento desse como um direito de fato, o que pode ser um entrave para sua efetivação. Devido à sua simplicidade por vezes, ele pode ser percebido como caridade ou favor, os quais não se exige, apenas se aceita com gratidão, diferente de um direito que é pautado na obrigatoriedade. Essa forma de compreender e lidar com o direito à alimentação, tão naturalizada em nossa sociedade, faz com que as pessoas que sofrem sua violação de forma mais contundente e sistemática, especialmente em relação à sua primeira dimensão, que é a superação da fome, sintam-se humilhadas e debilitadas para reivindicá-lo, como se a responsabilidade por essa situação fosse do âmbito individual e não da esfera coletiva (FIAN,2020). CONCEITO EM DISPUTA No início do texto, falamos como os direitos humanos caminham junto com as necessidades, os valores e a organização das sociedades. Algumas vezes, as mudanças fazem-se necessárias, não por avanços sociais, mas por retrocessos ou estreitamento das condições essenciais para realizar certo direito, o que exige alargamento de sua concepção. No caso do Direito Humano à Alimentação Adequada, as interpretações iniciais precisaram ser expandidas tanto devido às novas formas de violações e constrangimentos à sua realização quanto porque as demandas de grupos e povos antes invisibilizados, ago ra fazem-se presentes e podem agregar perspectivas e soluções não consideradas anteriormente, além de expandir as fronteiras do que entendemos como dignidade, saúde e bem-estar. _____________ 1. Neste curso escolhemos utilizar o conceito de DHANA, para abordar as dimensões da nutrição, da soberania alime ntar, de gênero, raça e etnia como inerentes à realização desse direito. Em algumas partes do texto, no entanto, será utilizada a nomenclatura DHAA para designar a forma como o Direito é apresentado nos documentos legais e polític os em questão. E vale explicitar que o termo mais usado, inclusive em documentos oficiais, é Direito Humano à Alime ntação Adequada (DHAA), sendo que no Brasil, há ainda a variação Direito Humano à Alimentação Adequada e Saudável (DHAAS). CURSO DE EXTENSÃO DIÁLOGOS SOBRE SOBERANIA E SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL: DESAFIOS E PERSPECTIVAS PARA O FORTALECIMENTO DO SISAN NOS MUNICÍPIOS 04 MÓDULO 03 - TEXTO 01 Primeira abordagem defende que a fome e a má nutrição podem ser resolvidas pela liberali zação do mercado em forma de assistência alimentar, doações, fortificação e biofortifica ção de alimentos e suplementação nutricional, desconsiderando o desenvolvimento de sistemas alimentares locais. As saídas sugeridas geram lucros para as indústrias alimentícia e farmacêutica. Os alimentos são reduzidos a produtos, a alimentação adequada a privilégio e os/as titulares de direitos a consumidores. As dimensões da dignidade humana, da cultura alimentar, da promoção da saúde e do prazer são minimizadas ou desprezadas, assim como as consequências que este modelo de produção e consumo gera para a saúde das pessoas e sobrevivência do planeta. Pode-se citar como exemplo a proposta de distribuição de farinata, tida como ração humana, pela prefeitura de São Paulo. (FIAN, 2020) A outra abordagem acerca do direito à alimentação tem o apoio de vários movimentos sociais, Organizações da Sociedade Civil (OSCs), acadêmicos e acadêmicas e um pequeno subconjunto de agên cias da Organização das Nações Unidas (ONU) (em particular, o sistema de direitos humanos) e alguns governos. Apoia-se num paradigma que “compreende o ato de alimentar a si mesmo, a sua família e a sua comunidade como um processo social de transformação da natureza e dos alimentos em bem-estar humano”. Assim, o direito à alimentação deve ser realizado, prioritariamente a partir de um sistema ali mentar justo, de maneira a produzir saúde, dignidade e prazer, além de respeitar os hábitos alimentares e a cultura (VALENTE, 2014). O direito à alimentação é alvo de disputas. Serão pontuadas brevemente duas principais posições antagônicas, ainda que muitos entendimentos se localizem entre os dois pólos. Sob esta perspectiva, os direitos humanos devem se sobrepor aos interes ses econômicos de grupos poderosos sempre que estas forças estiverem em contraposição, afinal, eles são construções sociais resultantes de lutas milenares dos povos contra a opressão, exploração, discriminação e abusos de poder por governos e por outros atores econômicos, políticos e religiosos. É devido a essa disputa e constantes retrocessos que os direitos humanos sofrem,assim também como o direito à alimentação. Em virtude disso, o conceito vem passando por sucessivas evolu ções no sentido de aproximar-se da dignidade humana e da atenção à nutrição nas diferentes fases dos ciclos de vida. A ideia central é que a nutrição esteja colada à alimentação e que a forma como denominamos o Direito nos lembre que a alimentação deve nutrir o corpo e alimentar o ser. Para isso, ela deve ser feita a partir de alimentos saudáveis, diversos, produzidos de maneira justa, sustentável, que valorize os modos de viver e as culturas alimentares de todos os povos e que nutram também de afeto. CURSO DE EXTENSÃO DIÁLOGOS SOBRE SOBERANIA E SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL: DESAFIOS E PERSPECTIVAS PARA O FORTALECIMENTO DO SISAN NOS MUNICÍPIOS MÓDULO 03 - TEXTO 01 05 MÓDULO 03 - TEXTO 01 CURSO DE EXTENSÃO DIÁLOGOS SOBRE SOBERANIA E SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL: DESAFIOS E PERSPECTIVAS PARA O FORTALECIMENTO DO SISAN NOS MUNICÍPIOS 06 Deve-se lembrar que a nutrição de mulheres e meninas é parte inseparável do DHANA, assim como a luta dos povos tradicionais por autonomia so bre seus territórios, suas sementes, seus modos de viver, produzir e consumir alimentos. A nutrição deve ser pensada em toda a cadeia alimentar, desde as escolhas das sementes e cultivos às formas de abastecimento e distribuição que sejam capazes de alimentar e nutrir todas as pessoas sem discriminação de gênero, etnia, povo ou região. Para a concretização do DHANA é preciso um sistema alimentar global justo, que priorize a so berania alimentar dos países e dos povos, formado por sistemas locais que dêem conta de to das essas dimensões. Fato complexo, porém viável pois a exequibilidade ou não de uma mudança depende mais dos interesses de quem tem o poder de estruturá-la do que de qualquer outro fator (FIAN, 2020). AABRANDH. Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos. O direito humano à alimentação e à nutrição adequadas e o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Brasília, 2013. FIAN. Curso básico de Direito Humanos a alimentação e nutrição adequadas. Organização pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequada. Brasília,2020. MULTIPLICASSAN. Material de apoio utilizado na primeira turma do curso com base no caderno metodológico para formação de multiplicadores em SAN/DHAAS, 2018. RAIS. Caderno metodológico para formação de multiplicadores em SAN/DHAAS,2016. VALENTE FLS. Rumo à Realização Plena do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas - Revista Development 57 (2), p. 155-170. 2014. Traduzido para o português em maio de 2016 por Daniela Calmon, a pedido da FIAN Brasil. Referência Bibliográfica
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