Prévia do material em texto
Apostila Esquematizada Direitos Reais Direito Civil IV - 2020.1 Amanda Guedes Ferreira – OAB/RJ 163.260 / amandaguedesferreira@gmail.com www.amandagferreira.com.br Instagram: @civilizandoficial 1 ATENÇÃO: a presente apostila NÃO substitui a leitura de doutrina e do material complementar e o acompanhamento das aulas. O conteúdo aqui abordado não exaure a matéria e NÃO vincula o conteúdo da prova. “A Esperança é o único bem real da vida”. (Olavo Bilac) Introito Conceito de Direitos Reais: conjunto de normas que visam regular as diferentes relações jurídicas existentes entre as coisas suscetíveis de apropriação pelo homem. Flávio Tartuce: “as relações jurídicas estabelecidas entre pessoas e coisas determinadas ou determináveis, tendo como fundamento principal o conceito de propriedade, seja ela plena ou restrita. (...) Relação de domínio exercida pela pessoa (sujeito ativo) sobre a coisa.” (TARTUCE, Flávio. Direito Civil - Vol. 4 - Direitos das Coisas, 10ª edição. Forense, 12/2017). Clóvis Beviláqua: “o complexo das normas reguladoras das relações jurídicas referentes às coisas suscetíveis de apropriação pelo homem”. (in Curso de Direito Civil – Reais; Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald – p. 31) Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald: “(...) o direito das coisas regula o poder do homem sobre certos bens suscetíveis de valor e os modos de sua utilização econômica. Certamente, ao longo de nossa abordagem, saltará claro que tal poder de atuação sobre bens encontrará seus contornos modernamente definidos pelo princípio da função social”. (p. 32) Simplificando: direito real regulamenta a relação entre pessoa e coisa, qual seja: o TITULAR DO DIREITO (ex.: proprietário, usufrutuário, titular de direito real de habitação, credor hipotecário, etc) e uma coisa passível de apropriação. O titular do direito possui poderes sobre o bem; possui uma relação sobre a coisa. Simplificando: Direito Real nada mais é do que o vínculo jurídico que liga uma pessoa a um bem (COISA). O objeto do Direito Real é a COISA! Dependendo do tipo de titular teremos direitos diferentes sobre a coisa e determinadas limitações. Por exemplo, o proprietário tem enorme poder em relação ao objeto – coisa. Por outro lado, o usufrutuário também possui direitos em relação ao objeto, mas esses direitos são mais restritos do que seria se ele fosse o proprietário, ou seja, ele poderá usar e fruir do bem, mas não poderá dispor (alienar, por exemplo) do mesmo. Ou seja, quando falamos em PROPRIEDADE, é importante observarmos as faculdades dispostas no artigo 1.228 do Código Civil de 2002: I. USAR II. GOZAR III. DISPOR IV. REAVER DICA: GRUD Apostila Esquematizada Direitos Reais Direito Civil IV - 2020.1 Amanda Guedes Ferreira – OAB/RJ 163.260 / amandaguedesferreira@gmail.com www.amandagferreira.com.br Instagram: @civilizandoficial 2 Art. 1.228 CC/02. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha. Diferentemente do caso da POSSE, em que a relação estabelecida entre o titular e a coisa gera direitos distintos e mais restritos do que na propriedade. Por exemplo: a faculdade de uso de determinado bem, inexistindo o poder de dispor do mesmo, se o possuidor também não for seu dono. NOMENCLATURA - Atenção: alguns autores como Flávio Tartuce afirmam que tecnicamente o mais correto é utilizarmos a terminologia ‘DIREITO DAS COISAS’, visto que os direitos reais são os ‘taxativamente’ dispostos no artigo 1.225 do Código Civil de 2002 (visão tradicional), quais sejam: Art. 1.225. São direitos reais: I - a propriedade; II - a superfície; III - as servidões; IV - o usufruto; V - o uso; VI - a habitação; VII - o direito do promitente comprador do imóvel; VIII - o penhor; IX - a hipoteca; X - a anticrese. XI - a concessão de uso especial para fins de moradia; (Incluído pela Lei nº 11.481, de 2007) XII - a concessão de direito real de uso; e XIII - a laje. (Redação dada pela Lei nº 13.465, de 2017) Entretanto, o objeto do estudo da presente disciplina incluirá não só os direitos reais estabelecidos pelo Código Civil, mas outros direitos como, por exemplo, a posse e os direitos de vizinhança (inclusive é uma delícia de matéria!). Por outro lado, doutrina como a de Orlando Gomes, ao diferenciar ‘bem’ de ‘coisa’ acaba concluindo que a utilização da terminologia Direito das Coisas também seria restrita, pois remete a noção de economicidade e materialidade. Tecnicamente ‘bem’ constitui gênero, do qual são espécies: a) Bens corpóreos/ materiais/ tangíveis: denominados ‘coisas’ (carro, casa, caneta, roupa etc). b) Bens incorpóreos/imateriais/ intangíveis: honra, liberdade, propriedade sobre conhecimento (softwares, know how, artes etc). Desta forma, essa doutrina entende que a terminologia ‘Direitos Reais’ é ainda mais abrangente que ‘Direito das Coisas’. Seguindo tal entendimento podemos citar a obra de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald. Na prática, em prol do princípio da operabilidade (vamos simplificar as coisas galera!), as expressões ‘Direito das Coisas’ e ‘Direitos Reais’ são utilizadas como sinônimas. Mas CUIDADO! Tal afirmação não permite que se insira todos os institutos estudados nesta disciplina como Direitos Reais, conforme veremos no decorrer do estudo. Apostila Esquematizada Direitos Reais Direito Civil IV - 2020.1 Amanda Guedes Ferreira – OAB/RJ 163.260 / amandaguedesferreira@gmail.com www.amandagferreira.com.br Instagram: @civilizandoficial 3 TEORIA PERSONALISTA OU TEORIA REALISTA?! Mas, afinal, o direito real é a relação entre sujeito e coisa; ou entre pessoas?! Duas correntes buscam responder tal questionamento: 1ª Corrente - Teoria Personalista: Esta corrente NÃO admite a existência de relação jurídica entre um homem e uma coisa – premissa kantiana. Assim, é imprescindível que a relação jurídica possua um sujeito ativo, que é o titular do direito real, e um sujeito passivo: a coletividade / universalidade. Se equipara, com menos intensidade, à relação existente nos direitos pessoais (obrigacionais), salvo em razão da ausência de delimitação dos sujeitos passivos. Nesse sentido, Antunes Varela (Das Obrigações em Geral, p.166) ensina que os direitos reais seriam direitos mais fortes; e os direitos pessoais (obrigacionais), mais fracos, visto que a relação existente, nesse último caso, é apenas entre credor e as pessoas adstritas à prestação. Segundo o professor Luciano Figueiredo: “Nessa ótica, direito real seria a relação jurídica que impõe a todos um dever geral de abstenção, respeito à propriedade alheia. A teoria em comento é de Marcel Planiol, mas foi amplamente divulgada por Michas, demogue, Ripert, Ferrara, Ortolan e Windsheid” p. 24 Crítica: Orlando Gomes – tal teoria levaria a extinção dos direitos reais, pois todos os direitos seriam pessoais. Esquematizando a Teoria Personalista: Relação TEORIA PERSONALISTA Os direitos reais implicam no regramento da relação entre o titular do direito, a coletividade e a coisa. 2ª Corrente - Teoria Realista, Clássica ou Impersonalista: Os direitos reais regulamentam a relação jurídica entre pessoa e coisa, de forma direta e imediata. É desnecessária a presença do sujeito passivo. Admite apenas a vinculação da coisa com o sujeito, sem intermédio de outrem. SUJEITO COISA COLETIVIDADE Apostila Esquematizada Direitos Reais Direito Civil IV - 2020.1 Amanda Guedes Ferreira – OAB/RJ163.260 / amandaguedesferreira@gmail.com www.amandagferreira.com.br Instagram: @civilizandoficial 4 Tal corrente é defendida por Gaudemet, Saleilles, Teixeira de Freitas e Orlando Gomes. Visto que a legislação adota tratamento diverso entre os direitos reais e os direitos pessoais, a doutrina contemporânea tende a caminhar com a tese clássica (REALISTA), adequando-a à realidade. Crítica: os críticos desta corrente afirmam que todo o direito se constitui entre humanos. Se foi criado o ordenamento jurídico, é porque existem os seres humanos, os quais precisam manter relações. Logo, não posso ver os direitos reais somente como o vínculo entre pessoas e coisas. ! Meu direito só se legitima com olhar da sociedade! Inclusive hoje temos a função social que reforça ainda mais essa ideia da Teoria Personalista, limitando o exercício da propriedade em prol da coletividade. Esquematizando a Teoria Realista: Relação TEORIA REALISTA Características 1. Absolutismo Há verdadeira situação de dominação do titular dos direitos reais sobre seu objeto (coisa). Poder de Agir oponível erga omnes (universalidade). As normas relativas aos direitos reais limitam o poder de agir de terceiros, proibindo uma interferência na atuação do titular sobre o seu objeto. Assim, é possível se afirmar que os direitos reais são excludentes, pois TODOS se encontram vinculados a não perturbar o seu exercício. Este é um forte ponto de distinção entre os direitos reais e os direitos pessoais. Quando estamos diante de um direito pessoal em decorrência de um contrato, por exemplo, há uma relação entre contratante e contratado. Há a limitação da obrigação entre as partes. Aqui, em direitos reais, a vinculação é erga omnes: todos devem respeitar! Apostila Esquematizada Direitos Reais Direito Civil IV - 2020.1 Amanda Guedes Ferreira – OAB/RJ 163.260 / amandaguedesferreira@gmail.com www.amandagferreira.com.br Instagram: @civilizandoficial 5 Como consequência de tal característica, há a incidência do princípio da publicidade, especialmente aos bens imóveis, eis que os direitos reais só podem ser alegados contra todos os que possuem o conhecimento de sua existência (ao menos em tese). Citamos como exemplo a situação existente entorno das transações imobiliárias, conforme disposto no artigo 1.227 do Código Civil / 2002: Art. 1.227 CC/02. Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos (arts. 1.245 a 1.247), salvo os casos expressos neste Código. PUBLICIDADE* REGISTRO *Imóveis EFICÁCIA ERGA OMNES (boa-fé de terceiros) Entretanto, faz-se importante observar, desde já, a necessidade de se funcionalizar os direitos reais em prol da pessoa humana. Em outras palavras, há de se respeitar a FUNÇÃO SOCIAL da ‘coisa’, havendo, inclusive, situações viáveis de ‘perda’ da propriedade quando o sujeito (proprietário) deixa de utilizá-la conforme critérios sociais. Nesse sentido, transcrevemos ensinamento de Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald: “(...) o absolutismo dos direitos reais não decorre do poder ilimitado de seus titulares sobre os bens que se submetem a sua autoridade. Há muito, a ciência do direito relativizou a sacralidade da propriedade. Como qualquer outro direito fundamental, o ordenamento jurídico a submete a uma ponderação de valores (...)”(p. 33) Reforçamos, assim, que o absolutismo não quer dizer que a utilização do bem é ilimitada, absoluta. O que se afirma, aqui, é a necessidade de absoluto respeito ao direito real por todo o mundo. O sujeito passivo (titular do dever de respeitar / de não fazer), aqui, é indeterminado. Ou seja: todos devemos respeitar o direito real do coleguinha ao lado. O sujeito passivo só se torna identificado quando este deixa de respeitar tal dever, o que o torna inadimplente com suas obrigações de não fazer. 2. Sequela Tendo em vista que os direitos reais ADEREM (‘COLAM’) na coisa, ao titular é dada a possibilidade de ‘perseguir’ (no sentido de buscar / obter) a mesma em poder de terceiros, onde quer que se encontre. Art. 1.228 CC/02. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha. Exemplificaremos para facilitar a compreensão: Fase 1: Waldicreuza é proprietária de alguns bens imóveis (ou seja, ela possui uma relação jurídica com os bens, e essa relação jurídica é um direito real – propriedade). Com o intuito de obter um empréstimo bancário no valor de R$ 400.000,00, deixa como garantia real um de seus imóveis (veremos adiante), localizado na Praia do Sono, em Trindade. Estamos diante de uma hipoteca -> direito real de garantia. Por outro lado, o Banco Nunkabank, ao proceder o empréstimo do mencionado valor, torna-se CREDOR de Waldicreuza, possuindo o aludido imóvel como garantia do cumprimento da obrigação. Apostila Esquematizada Direitos Reais Direito Civil IV - 2020.1 Amanda Guedes Ferreira – OAB/RJ 163.260 / amandaguedesferreira@gmail.com www.amandagferreira.com.br Instagram: @civilizandoficial 6 Insta reforçar que houve o devido registro de tal garantia real no ofício imobiliário – princípio da publicidade. Nesse momento, criou-se uma relação jurídica entre Nunkabank e a casa, e essa relação jurídica é o direito real de garantia, denominado de hipoteca. Fase 2: Em que pese a aludida hipoteca, e observando que Waldicreuza ainda não cumpriu com sua obrigação junto ao Banco Nunkabank, houve a venda da casa para Pablito. Fase 3: Tendo em vista o atual cenário, e em decorrência da sequela advinda dos direitos reais, pode o Banco Nunkabank retirar o imóvel do poder de Pablito, caso Wal deixe de pagar o empréstimo, mediante declaração de ineficácia da compra e venda, tendo em vista a afetação da coisa (o Banco é titular de um direito real sobre coisa alheia / direito real de garantia – houve a aderência da hipoteca à coisa). Veja que não se está afirmando que a venda não poderia ser realizada, até mesmo porque eventual cláusula proibitiva neste sentido é nula! Pode sim Wal vender o imóvel. O que não pode é deixar de pagar a dívida. Se isso acontecer, como o imóvel possui um ônus real, ou seja, está hipotecado, Pablito perderá em relação ao banco. É o famoso: ‘comprou porque quis, pois sabia da hipoteca! Agora chora…’ Mais ou menos pois há possibilidade de pedir indenização à Wal, mas, em tese é isso mesmo. ATENÇÃO: NÃO é necessária a propositura de ação pauliana ou revocatória para recuperar a coisa em poder de terceiro, visto que há a INEFICÁCIA de qualquer transação posterior em razão do seu direito de sequela, se existir o inadimplemento. CUIDADO: como grande parte dos temas jurídicos, a regra da sequela em relação à hipoteca também tem exceção. Vejamos o disposto no Enunciado 308, da Súmula do STJ: “A HIPOTECA FIRMADA ENTRE A CONSTRUTORA E O AGENTE FINANCEIRO, ANTERIOR OU POSTERIOR À CELEBRAÇÃO DA PROMESSA DE COMPRA E VENDA, NÃO TEM EFICÁCIA PERANTE OS ADQUIRENTES DO IMÓVEL.” Tal se dá em razão dos novos paradigmas que envolvem a propriedade, preservando, especialmente, a boa-fé de terceiro que está envolvido no pagamento do imóvel hipotecado. Iremos aprofundar no tema em momento oportuno (propriedade fiduciária e direito real de aquisição - compromisso de compra e venda). Além disso, é importante reforçar, a título de conhecimento, que a característica da sequela não é exclusiva dos direitos reais. Existem alguns direitos obrigacionais que, ao serem registrados no Registro Geral de Imóveis (RGI), adquirem eficácia real, mas NÃO SÃO CONSIDERADOS DIREITOSREAIS em razão da característica ‘taxatividade’ dos direitos reais. 3. Preferência Ocorre predominantemente nos direitos reais de garantia. Consiste no privilégio do titular do direito real “em obter o pagamento de um débito com o valor do bem aplicado exclusivamente à sua satisfação”. (Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, p. 39) Apostila Esquematizada Direitos Reais Direito Civil IV - 2020.1 Amanda Guedes Ferreira – OAB/RJ 163.260 / amandaguedesferreira@gmail.com www.amandagferreira.com.br Instagram: @civilizandoficial 7 Exemplificando: Waldicreuza, devedora contumaz, possui inúmeras dívidas no comércio; entretanto, apenas um bem imóvel encontra-se hipotecado. Nesse caso, esse imóvel servirá, preferencialmente, a garantia do credor hipotecário. Simples assim. Se Wal também for fiadora, o seu único imóvel poderá ser penhorado para o pagamento da dívida; entretanto, se o credor ajuizar ação requerendo a aludida penhora, deverá obrigatoriamente intimar o credor hipotecário para se manifestar nos autos. Havendo a venda do imóvel, o credor hipotecário, ou seja, o credor com garantia real, terá direito de receber primeiro o valor integral para satisfazer seu crédito! O que sobrar irá para os demais credores! Atenção: A preferência nos demonstra, conforme artigo 1.419 do CC/02, que na eventual hipótese de concorrência entre direitos reais e créditos quirografários (créditos comuns, como é o caso da fiança supramencionada), prevalecerá aqueles, salvo legislação especial que disponha em sentido contrário. Art. 1.419 CC/02. Nas dívidas garantidas por penhor, anticrese ou hipoteca, o bem dado em garantia fica sujeito, por vínculo real, ao cumprimento da obrigação. Entretanto, faz-se importante consignar que atualmente, em prol da dignidade da pessoa humana e do interesse público, há legislações que estabelecem privilégios específicos para determinadas classes, afastando, consequentemente, a prioridade ora analisada. Assim, podemos citar como exemplo de privilégio a satisfação de créditos acidentários e trabalhistas. Nesse sentido, artigo 1.422, parágrafo único do CC/02: Art. 1.422 CC/02. O credor hipotecário e o pignoratício têm o direito de excutir a coisa hipotecada ou empenhada, e preferir, no pagamento, a outros credores, observada, quanto à hipoteca, a prioridade no registro. Parágrafo único. Excetuam-se da regra estabelecida neste artigo as dívidas que, em virtude de outras leis, devam ser pagas precipuamente a quaisquer outros créditos. Esclarece-se, ainda, que a preferência recai sobre um bem específico. Ou seja, não há preferência na universalidade de bens do devedor, mas sim sobre um bem previamente afetado pelo direito real de garantia. Por fim, devemos observar o disposto no artigo 1.476 do CC/02: Art. 1.476 CC/02. O dono do imóvel hipotecado pode constituir outra hipoteca sobre ele, mediante novo título, em favor do mesmo ou de outro credor. Diante da possibilidade da coexistência de várias hipotecas sobre o mesmo imóvel, o direito de preferência deverá observar a ordem de registro das garantias, do mais antigo ao mais recente. Primeiro no tempo, melhor no direito... Apostila Esquematizada Direitos Reais Direito Civil IV - 2020.1 Amanda Guedes Ferreira – OAB/RJ 163.260 / amandaguedesferreira@gmail.com www.amandagferreira.com.br Instagram: @civilizandoficial 8 4. Taxatividade Tendo em vista o absolutismo já estudado, não pode qualquer direito real ser reconhecido juridicamente sem que haja prévia previsão legal. Assim, a doutrina clássica (e até o presente momento predominante) leciona que os direitos reais são taxativos, numerus clausus, localizados no rol do artigo 1.225 CC/02, o qual encontra-se supratranscrito, e em leis especiais. A taxatividade nos demonstra que fora do catálogo legal encontra-se excluída a possibilidade de se ter uma autonomia privada e, consequentemente, de se cogitar a existência de direitos reais. Entretanto, isso não significa a impossibilidade de criação de novos direitos reais, já que os legisladores podem tanto inovar incluindo quanto excluindo certos institutos de tal rol. Podemos citar como exemplo a supressão, pelo Código Civil de 2002, da possibilidade de constituição de novas enfiteuses a partir de 11 de janeiro de 2003, mantendo as já constituídas até a sua extinção. Como exemplos de direitos reais não expressos no artigo 1.225 do Código Civil citamos a propriedade fiduciária (artigo 1.361 CC/02). Na verdade a propriedade fiduciária constitui um desdobramento da propriedade, o qual será estudado em tópico a parte. Vejamos: Art. 1.361 CC/02. Considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor. § 1º Constitui-se a propriedade fiduciária com o registro do contrato, celebrado por instrumento público ou particular, que lhe serve de título, no Registro de Títulos e Documentos do domicílio do devedor, ou, em se tratando de veículos, na repartição competente para o licenciamento, fazendo-se a anotação no certificado de registro. § 2º Com a constituição da propriedade fiduciária, dá-se o desdobramento da posse, tornando- se o devedor possuidor direto da coisa. § 3º A propriedade superveniente, adquirida pelo devedor, torna eficaz, desde o arquivamento, a transferência da propriedade fiduciária. Elementos 1. Sujeitos: de um lado, aquele que detém a titularidade formal do direito (por exemplo, usufrutuário, credor hipotecário, proprietário etc) – sujeito ativo; e, de outro, a comunidade – sujeito passivo. - Sujeito ativo: pode exercer o direito de sequela e será sempre possuidor (ainda que, dependendo do desdobramento da relação, seja possuidor indireto). Direitos Reais Sujeitos Objetos Relação Jurídica Apostila Esquematizada Direitos Reais Direito Civil IV - 2020.1 Amanda Guedes Ferreira – OAB/RJ 163.260 / amandaguedesferreira@gmail.com www.amandagferreira.com.br Instagram: @civilizandoficial 9 - Sujeito passivo: sobre quem recai o dever de respeito ao exercício do direito pelo sujeito ativo. Conforme já visto anteriormente, diz-se que na relação de direito real há sujeição passiva universal. O sujeito passivo é indeterminado, já que todos devem respeitar os direitos reais do sujeito ativo. 2. Objeto: o ‘bem’ (coisa) sobre o qual o titular exerce a intervenção. O objeto pode ser corpóreo, móveis ou imóveis, ou incorpóreos. Essa última característica não é unânime (incorpóreos). Mas verifiquem: uma obra intelectual, um crédito, um software de computador etc, também podem ser objetos de direitos reais. Esses bens incorpóreos são passíveis de negociação. Todavia, o Superior Tribunal de Justiça editou o Enunciado n.º 228 de sua Súmula, o qual versa que: “É inadmissível o interdito proibitório para a proteção do direito autoral”. Esse enunciado cai em provas com uma deplorável frequência! Você verificará o que é esse estranho interdito proibitório quando estivermos estudando posse! ���� Diferença entre Direitos Reais e Direitos Obrigacionais Outra discussão acadêmica é relativa a diferença entre os Direitos Reais e os Direitos Obrigacionais/Pessoais. DIREITOS REAIS -> Verbo TER DIREITOS OBRIGACIONAIS -> Verbo AGIR Analisaremos o quadro comparativo a seguir, o qual contém as maiores e mais importantes diferenças entre os direitos reais e os direitos obrigacionais. DIFERENÇAS Direitos Reais Direitos Obrigacionais Apropriação de bens Cooperação entre pessoas Quanto a eficácia: Erga omnes (absoluta) Inter partes (relativa) Quanto ao objeto: A coisa A prestação Quanto ao exercício: Açãodireta e imediata sobre o bem. Não existe intervenção de terceiros. Necessita da colaboração do devedor para a satisfação da obrigação. Mediatividade. Rol taxativo, ‘mas sem rigidez absoluta’ (tipicidade legal) – art. 1.225 CC/02 Rol exemplificativo – art. 425 CC/02 Prerrogativ a da sequela Mera execução patrimonial Ocasionam preferência (bem específico) Ocasionam, quando muito, privilégios Princípio da publicidade Princípio da autonomia privada (liberdade) Perpétuo (direitos reais perpetuados no seio da mesma família) Transitórios (obrigação nasce para ser cumprida) Apostila Esquematizada Direitos Reais Direito Civil IV - 2020.1 Amanda Guedes Ferreira – OAB/RJ 163.260 / amandaguedesferreira@gmail.com www.amandagferreira.com.br Instagram: @civilizandoficial 10 Em que pese tais diferenciações, os manuais costumam aproximar tais ramos, visto que ambos possuem um viés patrimonial; ademais, os direitos obrigacionais não podem ser vistos única e exclusivamente mediante a relação entre sujeito ativo (credor) e sujeito passivo (devedor), podendo muitas das vezes o crédito alcançar terceiros, observando sempre as funções sociais e econômicas dos direitos. Entretanto, é importante reforçar que o Código Civil atual adotou a teoria dualista ou binária, diferenciando expressamente direitos reais e obrigacionais. Além da diferenciação entre Direitos Reais e Direitos Obrigacionais, há conceitos híbridos (ou intermediários), que estão localizados em um ponto intermediário ou no ‘limbo jurídico’: I. Posse – trata-se de direito de natureza especial, não se enquadrando nem como direito real, nem como direito obrigacional / pessoal, em que pese doutrina minoritária (ao menos até o presente momento), encabeçada por Maria Helena Diniz, afirmar que posse seria sim um direito real, visto que figura como desdobramento da propriedade. Aprofundaremos em tópico próprio. II. Obrigações propter rem (ou próprias da coisa; ou obrigações ambulatórias) – encontram-se em uma zona entre os direitos reais e os direitos obrigacionais, pois perseguem a coisa onde quer que ela esteja. Por ex.: IPTU, Condomínio, ITR, art. 1.345 CC/02. Insta esclarecer, desde já, que o STJ vem entendendo que dívidas relacionadas à água, luz e esgoto não se enquadram na presente categoria, sendo, em verdade, dívidas pessoais do usuário do serviço – vide STJ, AgRg no AREsp 265.966/SP. -> Atenção, Ementa sobre o tema enviada pelo SIA para Leitura Complementar <- Importante, ou melhor, IMPORTANTÍSSIMO: O STJ publicou, no ano de 2018, a ‘Jurisprudência em Teses’ n.º 30, a qual possui como tese 9 a seguinte: “A obrigação de recuperar a degradação ambiental é do titular da propriedade do imóvel, mesmo que não tenha contribuído para a deflagração do dano, tendo em conta sua natureza propter rem”. III. Abuso de direito no exercício de propriedade ou ato emulativo – Arts. 187 e 1.228, parágrafo 2º, do CC/02, “trata-se de um instituto híbrido uma vez que o exercício de um direito real repercute no direito das obrigações, gerando o dever de indenizar” (Tartuce, p. 605) Em que pese essa breve conceituação, os temas serão estudados de forma aprofundada no decorrer da apostila. Apostila Esquematizada Direitos Reais Direito Civil IV - 2020.1 Amanda Guedes Ferreira – OAB/RJ 163.260 / amandaguedesferreira@gmail.com www.amandagferreira.com.br Instagram: @civilizandoficial 11 CLASSIFICAÇÃO Antes de iniciarmos o estudo das classificações dos direitos reais é imprescindível termos em mente ao menos uma breve compreensão da propriedade para que possamos estudar os demais tipos de direitos reais. Assim, é possível afirmarmos que a propriedade é o único direito real originário. Para que possamos evoluir no estudo das características dos direitos reais, devemos fazer um parêntese para diferenciarmos PROPRIEDADE de DOMÍNIO, os quais possuem conceitos autônomos e complementares. PROPRIEDADE DOMÍNIO Relação do titular da coisa ‘com a coletividade’. Situação de poder do titular sobre a coisa (faculdade de uso, gozo e disposição). Poder de soberania exercitado sobre a coisa. Há o desmembramento dos direitos do titular, e é justamente tal desdobramento que origina um novo direito real. Em que pese essa diferenciação didática, atualmente a maioria da doutrina utiliza os termos propriedade e domínio como sinônimos. Quando temos o desdobramento temporário do domínio há a origem da propriedade LIMITADA, a qual obrigatoriamente concorre com os direitos reais em coisa alheia. Assim, a propriedade poderá ser plena ou limitada dependendo do domínio que se tem sobre a coisa. Titular -> privado de alguns poderes dominiais, mas continua sendo proprietário (propriedade limitada). GRAVAME = transferência temporária de uma das faculdades do domínio. Entretanto, interessante é o ensinamento de Tartuce sobre a diferenciação ora mencionada: Para muitos doutrinadores, a expressão propriedade é sinônima de domínio, entendimento este que é o majoritário a ser adotado na prática. (…) Os conceitos diferenciadores, de ontem e de hoje, não convencem este autor. Como se pode notar, existem discrepâncias entre os critérios de distinção, o que torna a matéria confusa. Por certo é que os conceitos de propriedade e de domínio são muito próximos, não se justificando, metodologicamente, as diferenciações expostas. E, como o Código Civil de 2002 adota o princípio da operabilidade, em um primeiro sentido de facilitação do Direito Privado, não há razões para a distinção. Quanto aos princípios, acredito que aqueles que regem o domínio são os mesmos da propriedade, caso da função social. Assim, o domínio também é relativo. Por fim, quanto aos exemplos expostos por Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald, parecem envolver por igual a propriedade, particularmente a propriedade aparente, que ainda será estudada. (TARTUCE – P. 145). Apostila Esquematizada Direitos Reais Direito Civil IV - 2020.1 Amanda Guedes Ferreira – OAB/RJ 163.260 / amandaguedesferreira@gmail.com www.amandagferreira.com.br Instagram: @civilizandoficial 12 Os direitos reais limitados, ou seja, os que incidem em coisa alheia, são divididos em três grupos: a) Direitos reais de gozo e fruição: usufruto, servidão, uso e habitação Dicas: USUH USO -> USUFRUTO SERVIDÃO -> HABITAÇÃO b) Direitos reais de garantia: penhor, hipoteca, anticrese Dica: PAH c) Direitos reais à aquisição: promessa de compra e venda Dica: Meio de se adquirir: comprar e vender... Entretanto, temos também os direitos reais em coisa própria (propriedade superficiária e propriedade fiduciária), os quais se diferenciam da propriedade por não serem perpétuos, o que permite falarmos em propriedade resolúvel, ou seja, que poderá ser resolvida se ocorrer um evento futuro e incerto (condição). Em momento posterior aprofundaremos esse tema. OBRIGAÇÃO PROPTER REM Como brevemente exposto, as obrigações propter rem estão inseridas entre os direitos reais e os direitos obrigacionais, já que são figuras híbridas (pegam um pouco do direito real e um pouco do direito obrigacional). A obrigação propter rem é aquela imposta ao titular de um direito real pelo simples fato de assumir tal condição, ou seja, em razão de ser proprietário de um bem. Assim, quando uma pessoa adquire a propriedade de determinado bem imóvel, torna-se obrigado a arcar com eventuais dívidas relativas ao IPTU e condomínio, por exemplo, querendo ou não assumir tal encargo. Por isso é tão importante ter cautela quando da aquisição. Devemos observar o ensinamento de Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves: “Suaparticularidade consiste na inerência ao objeto da posição do titular ativo ou passivo da relação. O obrigado é o titular do direito real, havendo a possibilidade de sucessão no débito fora das hipóteses normais de transmissão das obrigações”. (p. 56) Obrigações com natureza propter rem vinculam os atuais e os futuros titulares da coisa. Não interessa quem deixou de pagar, mas sim quem possui a propriedade da ‘coisa’ / bem. Fugindo um pouco da relação existente entre titular e bem imóvel, podemos citar como exemplo as obrigações que incidem sobre a titularidade de veículos (bem móvel): multas de trânsito e IPVA. Ressalva-se, entretanto, em relação às multas de trânsito, o disposto no CTB (alteração trazida pela Lei 13.495/17), o qual permite a indicação do real autor do ilícito e responsável legal pelo adimplemento da obrigação. Apostila Esquematizada Direitos Reais Direito Civil IV - 2020.1 Amanda Guedes Ferreira – OAB/RJ 163.260 / amandaguedesferreira@gmail.com www.amandagferreira.com.br Instagram: @civilizandoficial 13 AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 1.305.403 - SP (2010/0079230- 4) RELATOR : MINISTRO LUIZ FUX AGRAVANTE : MUNICÍPIO DE JUNDIAÍ PROCURADOR : SIMONE DE ANDRADE PLIGHER E OUTRO (S) AGRAVADO : ANTÔNIO CARLOS SOARES ADVOGADO : ANDRÉA EVELI SOARES MAGNANI DECISÃO PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. ART. 544 DO CPC. TRANSFERÊNCIA DE PROPRIEDADE DE VEÍCULO. PROVA. ART. 134 DO CTB. SÚMULA 7/STJ. 1. O Recurso Especial não é servil ao exame de questões que demandam o revolvimento do contexto fático- probatório dos autos, em face doóbice contido na Súmula 07/STJ. 2. In casu, a conclusão do Tribunal de origem acerca da suficiência da prova produzida pelo recorrido, bem como a certeza da propriedade do veículo transferido, resultou do exame de todo o conjunto probatório carreado nos presentes autos. Consectariamente, infirmar referida conclusão implicaria sindicar matéria fática, interditada ao E. STJ em face do enunciado sumular n.º 07 desta Corte. Vejamos o aresto recorrido (fls. 83/85):"Consta dos autos que o condutor foi autuado em 13 de maio de 1999 quando realizava transporte remunerado irregular de passageiros. Nos termos da Lei municipal 5.035/1997, a infração acarreta a pronta apreensão do veículo e o pagamento de multa no valor de R$ _TTREP_37(mil e quinhentos reais). O autor, em razão de constar nos registros do DETRAN como proprietário do veículo, foi autuado e notificado para o pagamento da multa. Todavia, trouxe aos autos cópia do contrato particular de compra e venda de veículo datado de 20 de março de 1998, bem como a cópia da autorização para transferência do veículo, com firma reconhecida em 17 de maio de 1999." (fl. e-STJ 49) 3. Ainda que não realizada a transferência de propriedade do automóvel autuado junto ao DETRAN, não obsta que a prova da alienação se faça por outros meios. Precedentes: REsp 804.458/ES(DJe de 31.08.2009), REsp 961.969/RS (DJe de 01.09.2008) e REsp 599.620/RS (DJ de 17.05.2004). 4. Agravo de instrumento desprovido. Trata- se de agravo de instrumento interposto pelo MUNICÍPIO DE JUNDIAÍ, com fulcro no art. 544 do Código de Processo Civil, no intuito de ver reformada a decisão que inadmitiu seu recurso especial, sob os seguintes fundamentos: (a) "os argumentos expendidos não são suficientes para infirmar a conclusão do v. aresto combatido que contém fundamentação adequada para lhe dar respaldo"; (b) "tampouco restou evidenciado qualquer maltrato a normas legais ou divergência jurisprudencial, não sendo atendida qualquer das hipóteses das alíneas 'a', 'b' e 'c' do permissivo constitucional" (fl. e-STJ 82). Noticiam os autos que ANTONIO CARLOS SOARES ajuizou ação declaratória de inexistência de débito contra o ente municipal, porquanto foi autuado por infração administrativa cometida por terceiro, que realizava transporte clandestino de passageiros. O juízo de primeiro grau julgou procedente o pedido. O recurso voluntário e a remessa necessária foram desprovidas à unanimidade dos componentes da Sétima Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em acórdão assim ementado: Apostila Esquematizada Direitos Reais Direito Civil IV - 2020.1 Amanda Guedes Ferreira – OAB/RJ 163.260 / amandaguedesferreira@gmail.com www.amandagferreira.com.br Instagram: @civilizandoficial 14 "TRÂNSITO. MULTAS. ALIENAÇÃO DO VEÍCULO. RESPONSABILIDADE. 1. Ação ordinária ajuizada em face da Prefeitura Municipal de Jundiaí, na qual se questiona a cobrança de multa de trânsito Alegação de que a infração foi cometida por terceiro, em data posterior à alienação do veiculo 2. As obrigações decorrentes da imposição de multa de trânsito têm natureza 'propter rem', vale dizer, o devedor é assim caracterizado por ser titular do direito real. Na forma como estatui o art. 257,§ 3º, do Código de Trânsito Brasileiro: 'Ao condutor caberá a responsabilidade pelas infrações decorrentes de atos praticados na direção do veículo'. Inadmissibilidade de cobrança de multas em face do antigo proprietário. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça Recurso e remessa necessárias desprovidos." Os embargos de declaração opostos foram rejeitados. Nas razões do apelo excepcional, fundado nas alíneas a e c do permissivo constitucional, o recorrente apontou, além de divergência jurisprudencial, violação dos arts. 134 e 231, VIII, do Código de Trânsito Brasileiro. Defendeu, em síntese, que: "no presente caso, diante da prova colhida, pairam dúvidas sobre a data de transferência do veículo ao terceiro, fato corroborado pela não comunicação da alienação aos órgãos de trânsito, cabendo, desta forma, a responsabilização do proprietário que poderá ingressar com ação própria para reaver o montante em relação ao suposto comprador"(fl. e-STJ 70). Foram apresentadas contrarrazões ao recurso especial e contraminuta ao presente agravo de instrumento, respectivamente, às fls. e-STJ 72/81 e 87/97. Na minuta de agravo, o agravante impugna os fundamentos da decisão agravada. Relatados, decido. Preenchidos os requisitos de admissibilidade do agravo de instrumento, passa-se à análise do recurso especial. A controvérsia posta sob análise refere-se à possibilidade de se responsabilizar o original proprietário de veículo que gerou multas de trânsito com base nos arts. 134 e 231, VIII, do CTB, uma vez não comprovada ao órgão competente a transferência da propriedade a terceiro adquirente. Os dispositivo legais apontados como violados são os arts. 134 e 231, VIII, do Código de Trânsito Brasileiro, in verbis:"Art. 134. No caso de transferência de propriedade, o proprietário antigo deverá encaminhar ao órgão executivo de trânsito do Estado dentro de um prazo de trinta dias, cópia autenticada do comprovante de transferência de propriedade, devidamente assinado e datado, sob pena de ter que se responsabilizar solidariamente pelas penalidades impostas e suas reincidências até a data da comunicação." "Art. 231. Transitar com o veículo:(...) VIII - efetuando transporte remunerado de pessoas ou bens, quando não for licenciado para esse fim, salvo casos de força maior ou com permissão da autoridade competente: Infração - média; Penalidade - multa; Medida administrativa - retenção do veículo;(...)"Ocorre que, quanto à quaestio iuris, o Tribunal de origem concluiu acerca da suficiência da prova produzida pelo recorrido, bem como a certeza da propriedade do veículo transferido, com base no exame de todo o conjunto probatório carreado nos presentes autos. Apostila Esquematizada Direitos Reais Direito Civil IV - 2020.1 Amanda Guedes Ferreira – OAB/RJ 163.260 / amandaguedesferreira@gmail.com www.amandagferreira.com.br Instagram: @civilizandoficial 15 Consectariamente, infirmar referidaconclusão implicaria sindicar matéria fática, interditada ao Superior Tribunal de Justiça em face do óbice contido no enunciado da Súmula 7 desta Corte Superior, in verbis:"A pretensão de simples reexame de provas não enseja recurso especial."Por oportuno, confira-se o seguinte excerto do voto condutor do acórdão recorrido (fls. e-STJ 49/52):"Consta dos autos que o condutor foi autuado em 13 de maio de 1999 quando realizava transporte remunerado irregular de passageiros. Nos termos da Lei municipal 5.035/1997, a infração acarreta a pronta apreensão do veículo e o pagamento de multa no valor de R$ _TTREP_174(mil e quinhentos reais). O autor, em razão de constar nos registros do DETRAN como proprietário do veículo, foi autuado e notificado para o pagamento da multa. Todavia, trouxe aos autos cópia do contrato particular de compra e venda de veículo datado de 20 de março de 1998, bem como a cópia da autorização para transferência do veículo, com firma reconhecida em 17 de maio de 1999. 3. A questão desenhada nos autos é saber se o contrato de compra e venda é instrumento hábil para transferência da responsabilidade pelo pagamento de muitas ou se depende da apresentação da referida autorização para transferência, com firma reconhecida. As multas de trânsito tem natureza de obrigação 'propter rem', vale dizer, é 'aquela em que o devedor, por ser titular de um direito sobre uma coisa, fica sujeito a uma determinada prestação que, por conseguinte, não derivou da manifestação expressa ou tácita de sua vontade. O que o faz devedor é a circunstância de ser titular do direito real, e tanto isso é verdade, que ele se libera da obrigação se renunciar a esse direito' (Sílvio Rodrigues, in Direito Civil, vol 2/105, 12a. ed. Saraiva). Tendo em mente esta espécie de obrigação, necessário ponderar que a partir da tradição, meio pelo qual se transfere o domínio da coisa móvel (art. 520, inciso II e 620 do Código Civil), passa o novo proprietário à ostentar a responsabilidade pelo pagamento de infrações à legislação de trânsito. Em atenção a esta espécie de vínculo obrigacional; vale dizer, obrigação 'propter rem', o Superior Tribunal de Justiça tem afirmado em iterativa jurisprudência que 'aplicada a penalidade por infração de trânsito, caso ocorra posteriormente à venda do automóvel, o novo proprietário deverá responder por todas as obrigações que se vinculam à coisa, dentre elas encontram-se as multas de trânsito, categoria de obrigação denominada de 'propter rem', pois acompanha o bem ainda que venha a ser transferida a sua titularidade' REsp 687021/RS, Rei Ministro Francisco Falcão, primeira turma, julgado cm 19 05 2005, DJ 0107 2005 p 414 e REsp 920 276/RS, Rei Ministro Castro Mcira, segunda turma, julgado em 14 08 2007, DJ 27 08 2007 p 213 e REsp 856086/RS, Rei Ministro Humberto Martins, segunda turma, julgado em 05 10 2006, DJ 18 10 2006 p 234 Neste mesmo diapasão, oportuno ressaltar que o condutor é o responsável pelo pagamento de quantias oriundas de infração à legislação de trânsito, na forma como estatui o art. 257, § 3º do Código de Trânsito Brasileiro: 'Ao condutor caberá a Apostila Esquematizada Direitos Reais Direito Civil IV - 2020.1 Amanda Guedes Ferreira – OAB/RJ 163.260 / amandaguedesferreira@gmail.com www.amandagferreira.com.br Instagram: @civilizandoficial 16 responsabilidade pelas infrações decorrentes de atos praticados na direção do veículo'. 4. Logo, sob qualquer aspecto que se analise a demanda, seja sob a ótica do Direito Civil ou Código de Trânsito Brasileiro, necessário considerar a correição da r. sentença. "No mesmo sentido, o juízo monocrático consignou às fls. e-STJ 29/30, que: "Não se discute o mérito da autuação, mas sim quem é o responsável pelo pagamento da multa. Sabe- se que o condutor do veículo foi surpreendido, em 13 de maio de 1999, quando realizava transporte irregular, à margem da Lei Municipal 5.035/97, que veda o transporte coletivo de passageiros não autorizado ou permitido pelo Poder Público, estabelecendo a pronta apreensão do veículo e condicionando sua liberação ao pagamento de multa no valor de R$ 1.500,00. O art. 2º do aludido diploma considera infrator a pessoa física ou jurídica proprietária do veículo (fls. 35). A partir de então, por constar dos registros do Detran ser o autor o proprietário do veículo, ele foi autuado e notificado a pagar a multa (fls. 10). Veio aos autos cópia do contrato particular de compra e venda do veículo datado de 20 de março de 1999 (fls. 08). Já a cópia da autorização para transferência recebeu a firma reconhecida da assinatura do vendedor em 17 de maio de 1999 (fls. 09), fato, contudo, que não exclui a tradição como forma de aquisição do domínio. Conclui-se que a propriedade do veículo foi transferida antes da autuação, pela tradição quando da assinatura do contrato, mesmo com o posterior reconhecimento da firma, pois, repise-se, é com a tradição que se transfere o domínio da coisa móvel (artigos 520, II, e 620 do Código Civil). Frise-se que o registro perante o órgão de trânsito é necessário para fins de controle e fiscalização, mas não pode ser considerado ato que atribui a propriedade, prevalecendo, apenas, a presunção juris tantum, ou seja, o registro no Detran vale até prova em contrário. Oportuno consignar, ainda, que a forma e o conteúdo do contrato de fls. 08 não foram impugnados pelo réu. No caso vertente, há prova inequívoca de ter ocorrido a alienação do veículo antes de sua apreensão e da lavratura da autuação, conforme sobredito. Assim, o autor não pode ser responsabilizado por débito do veículo quando já não era seu proprietário, sendo cediço que compete ao comprador providenciar a expedição do novo certificado do veículo (art. 123, § 1º, da Lei 9.503/97).(...) Assim, restando inequívoco que a propriedade foi transferida antes da autuação, deve a autoridade cancelar a multa imposta ao proprietário antigo." Ad argumentandum tantum, ainda que não realizada a transferência de propriedade do automóvel autuado junto ao DETRAN, nada obsta que a prova da alienação se faça por outros meios, como se deu no caso dos autos. É nesse sentido os seguintes precedentes desta Corte de Justiça, senão vejamos: "ADMINISTRATIVO. INFRAÇÃO DE TRÂNSITO. ALIENAÇÃO DE VEÍCULO. TRADIÇÃO. AUSÊNCIA DE REGISTRO DE TRANSFERÊNCIA JUNTO AO DETRAN. 1. Ainda que inexistente a comunicação de venda do veículo por parte do alienante, restando - de modo incontroverso - comprovada a impossibilidade de imputar ao antigo proprietário as infrações cometidas, a responsabilização solidária prevista no art. 134 do Apostila Esquematizada Direitos Reais Direito Civil IV - 2020.1 Amanda Guedes Ferreira – OAB/RJ 163.260 / amandaguedesferreira@gmail.com www.amandagferreira.com.br Instagram: @civilizandoficial 17 CTB deve ser mitigada. Precedentes. 2. Recurso especial a que se nega provimento."(REsp 804.458/ES, Primeira Turma, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJe de 31.08.2009)"ADMINISTRATIVO INFRAÇÃO DE TRÂNSITO. ALIENAÇÃO DE VEÍCULO. TRADIÇÃO. AUSÊNCIA DE REGISTRO DE TRANSFERÊNCIA JUNTO AO DETRAN. 1. 'O fato de não ter sido realizada a transferência de propriedade do automóvel autuado junto ao DETRAN não obsta que a prova da alienação se faça por outros meios' (REsp 599620/RS, 1ª T., Min. Luiz Fux, DJ de 17.05.2004). 2. Recurso especial a que se nega provimento."(REsp 961.969/RS, Primeira Turma, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJe de 01.09.2008)"PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. OFENSA AOS ARTS. 480 e 481 DO CPC. INFRAÇÃO DE TRÂNSITO. PENALIDADE. PRÉVIA NOTIFICAÇÃO. AMPLA DEFESA E CONTRADITÓRIO. APLICAÇÃO ANALÓGICA DA SÚMULA 127/STJ. O CÓDIGO DE TRÂNSITO IMPÔS MAIS DE UMA NOTIFICAÇÃO PARA CONSOLIDAR A MULTA. AFIRMAÇÃO DAS GARANTIAS PÉTREAS CONSTITUCIONAIS NO PROCEDIMENTOADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. INOCORRÊNCIA. 1. Inexiste ofensa ao art. 535 do CPC, quando o Tribunal de origem, embora sucintamente, pronuncia-se de forma clara e suficiente sobre a questão posta nos autos. Ademais, o magistrado não está obrigado a rebater, um a um, os argumentos trazidos pela parte, desde que os fundamentos utilizados tenham sido suficientes para embasar a decisão. 2. O fato de não ter sido realizada a transferência de propriedade do automóvel autuado junto ao DETRAN não obsta que a prova da alienação se faça por outros meios. Precedentes do STJ.(...) 14. Recurso especial provido." (REsp 599.620/RS, Primeira Turma, Rel. Min. Luiz Fux, DJ de 17.05.2004) Ex positis, NEGO PROVIMENTO ao agravo de instrumento. Publique-se. Intimações necessárias. Brasília (DF), 06 de setembro de 2010. MINISTRO LUIZ FUX Relator (STJ - Ag: 1305403, Relator: Ministro LUIZ FUX, Data de Publicação: DJ 17/09/2010) Além disso, é importante observar que em razão da função social da propriedade, bem como da boa-fé objetiva, quando estivermos diante de uma relação oriunda de promessa de compra e venda de bem imóvel, com efetivo exercício da moradia pelo promitente comprador (houve a imissão na posse), restará afastada a regra da obrigação propter rem, devendo este ser responsável pelas dívidas condominiais mesmo sem o devido registro da escritura de compra e venda (e, consequentemente, sem a transmissão da propriedade). Art. 1.227 CC/02: os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos, salvo os casos expressos neste Código. Art. 1.245, parágrafo primeiro, CC/02: enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel. Apostila Esquematizada Direitos Reais Direito Civil IV - 2020.1 Amanda Guedes Ferreira – OAB/RJ 163.260 / amandaguedesferreira@gmail.com www.amandagferreira.com.br Instagram: @civilizandoficial 18 Nesse sentido vem decidindo o STJ, o qual admite a legitimidade passiva do promitente comprador nas ações de cobrança de cotas condominiais: "Se a ocupação a esse título da unidade imobiliária é conhecida pelo condomínio, mesmo que a promessa de compra e venda não tenha sido registrada no ofício imobiliário" (REsp. 657.506/SP, j. 7.12.2006). Por fim, especificamente em relação a renúncia ao direito real, é importante termos em mente que a mesma não extingue a obrigação em si, podendo simplesmente liberar o renunciante. Entretanto, a renúncia liberatória terá, assim, efeitos apenas para o futuro, mantendo os débitos passados que foram incorporados ao patrimônio do até então proprietário. Futuramente vocês entenderão melhor esse ponto… Por favor, sem desespero!… OBRIGAÇÃO DE ÔNUS REAIS As obrigações de ônus reais muitas das vezes são tidas como sinônimos de obrigações propter rem; entretanto, em que pese semelhantes, são institutos diversos. Obrigação de ônus real acaba por limitar o uso e o gozo (fruição) da propriedade, constituindo verdadeiro gravame. Como exemplo citamos a renda constituída sobre imóvel, havendo um direito temporário que grava determinado bem, obrigando o proprietário a realizar o adimplemento de prestações periódicas. Ex.2: Waldicreuza doa para Joeberson um pedaço de terra, o qual fica obrigado, em razão da doação, a destinar, anualmente, 15% do total da safra produzida no terreno, para Maytê. Além do aludido exemplo, também há ônus reais quando observamos a hipoteca, o penhor e a anticrese, os quais, como já visto, enquadram-se na categoria de direitos reais de garantia, onerando o bem. A maior diferença entre a obrigação propter rem e a obrigação de ônus real é o fato de que esta está limitada ao valor da coisa. Fácil de observar: enquanto o valor da obrigação propter rem pode acabar ultrapassando o valor da coisa, como ocorre, por exemplo, se houver o acúmulo de anos de IPTU não pagos, ou até mesmo na incidência de IPTU progressivo, na obrigação de ônus reais observamos a impossibilidade de oneração de um bem acima do seu principal. Recomendamos a leitura do artigo “Contribuição ao estudo das obrigações propter rem e institutos correlatos”, de autoria de Tom Alexandre Brandão, o qual fora enviado pelo SIA. Obrigada e sejam muito bem- vindos ao mundo dos DIREITOS REAIS! Bom divertimento! � Apostila Esquematizada Direitos Reais Direito Civil IV - 2020.1 Amanda Guedes Ferreira – OAB/RJ 163.260 / amandaguedesferreira@gmail.com www.amandagferreira.com.br Instagram: @civilizandoficial 19 "Toda a sensação de perda vem da falsa sensação de posse." Luiz Gasparetto POSSE Poder físico (poder de fato) sobre a coisa. “(...) a posse constitui um direito, com natureza jurídica especial.” (TARTUCE, 32) Para que possamos definir posse é imprescindível a compreensão das duas maiores e mais importantes teorias que tratam do assunto. Com vocês, de um lado, a Teoria Subjetiva (clássica) de Savigny; e de outro, a Teoria Objetiva, de Ihering. Divirtam-se! TEORIA SUBJETIVA – SAVIGNY Em 1803, Savigny, com um brilhantismo peculiar de um jovem de 24 anos, elaborou sua monografia denominada “Das Recht des Besitzes” – O Tratado da Posse, afirmando que a posse seria o poder que alguém tem de dispor materialmente da coisa, demonstrando verdadeira intenção de tê-la para si, além de defendê-la contra a intervenção de quem quer que fosse. Verificamos, então, a presença de dois elementos constitutivos: a) corpus: traduz o controle material da pessoa sobre a coisa, podendo dela se servir, dispor e apoderar. Não basta apenas o contato corporal, mas deve haver, também, a disponibilidade física no sentido do indivíduo poder agir imediatamente sobre a coisa “e dela afastar toda a ação de estranhos” (Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves, p. 63) b) animus: constitui a intenção do possuidor de exercer o direito como se proprietário fosse – sentir-se o dono da coisa, mesmo não sendo. Ou seja, somente se cogita em posse se houver o animus possidendi. P = C + A Por outro lado, caso alguém atue materialmente sobre a coisa, havendo o corpus, mas sem a existência do animus, teremos a DETENÇÃO, e não a posse: D = C – A Segundo esta teoria, são exemplos de detentores: locatário, comodatária, usufrutuário etc, os quais não possuem qualquer intenção de se tornarem proprietários dos respectivos bens, por questões óbvias! Conclusão: os sujeitos mencionados não gozam de proteção direta, inviabilizando a utilização de ações possessórias -> NÃO PODEM SER AUTORES DE DETERMINADAS AÇÕES, AS QUAIS VEREMOS EM BREVE. A crítica em relação a tal doutrina repousa no fato do excesso de autonomia privada relativa à vontade, bem como a dificuldade em demonstrar sua existência. Entretanto, foi justamente a partir de tal teoria que a posse começou a receber tutela jurídica, observando a necessidade de proteção à pessoa, manutenção da paz social e estabilização das relações jurídicas. Posse = Fato na origem; direito nas consequências – natureza jurídica eclética. Apostila Esquematizada Direitos Reais Direito Civil IV - 2020.1 Amanda Guedes Ferreira – OAB/RJ 163.260 / amandaguedesferreira@gmail.com www.amandagferreira.com.br Instagram: @civilizandoficial 20 Com o início da proteção da posse houve a possibilidade do possuidor invocar os interditos possessórios1 toda vez que o estado de fato for violado, estando totalmente desconectado e sem qualquer dependência da comprovação da existência de propriedade. Na prática tal observação se revela importantíssima, pois muitas das vezes ‘operadores’ do direito se valem de ações possessóriascom o nítido fito de proteger a propriedade, conduta totalmente atécnica e desprovida de embasamento jurídico, o que pode inclusive levar um indeferimento de plano da petição inicial. EM AÇÃO POSSESSÓRIA SE DISCUTE A POSSE, E NÃO A PROPRIEDADE2! Deixaremos desde já consignado que esta teoria NÃO foi adotada pelo Código Civil de 2002, tendo espaço somente para fins da usucapião, como demonstraremos em tópico específico. ISSO É IMPORTANTÍSSIMO! TEORIA OBJETIVA (ou SIMPLIFICADA) – IHERING Segundo Ihering, a posse constitui mero exercício da propriedade. A título de conhecimento é interessante transcrevermos as palavras de Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald sobre as conclusões de Ihering: “O célebre romanista admite a anterioridade histórica da posse em relação a propriedade, para justificar a inferioridade daquela em relação a esta. Na prática, traz para o direito o determinismo darwiniano que expressa a evolução biológica pela necessária precedência na natureza dos seres inferiores aos superiores.” (p. 64) 1 Manutenção da posse; reintegração da posse; interdito proibitório (ou legítima defesa da posse) 2 Em que pese o assunto ser trabalhado em Processo Civil, deixamos claro que a ação Posse = poder de fato. Propriedade = poder de direito. Sendo a posse situação fática de poder sobre a coisa, não nos importa a condição jurídica de quem a exerce (proprietário ou não proprietário), já que a posse recai sobre o bem, e não sobre o direito. Propriedade sem posse equivale a um baú de tesouros sem a chave, pois a propriedade sem posse restará paralisada. Em outras palavras, segundo a Teoria Objetiva de Ihering, o respeito à posse se deve em razão da mesma corresponder à exteriorização e complemento necessário à proteção da propriedade. Consequentemente, seguindo tal entendimento, os interditos possessórios servem como proteção da propriedade, e não da posse em si mesma, mesmo que em uma primeira análise culminem em socorrer a posse (e, indesejavelmente, a figura do não proprietário). Quanto aos elementos constitutivos, a Teoria Objetiva estabelece a necessidade da presença apenas do corpus. P = C Ou seja, há possibilidade de se reconhecer a posse por sua destinação econômica, independentemente de qualquer critério petitória possui como fundamento a propriedade, enquanto as ações possessórias – ação de reintegração de posse, ação de manutenção de posse e interdito proibitório – tratam única e exclusivamente da posse. Apostila Esquematizada Direitos Reais Direito Civil IV - 2020.1 Amanda Guedes Ferreira – OAB/RJ 163.260 / amandaguedesferreira@gmail.com www.amandagferreira.com.br Instagram: @civilizandoficial 21 subjetivo (manifestação volitiva do possuidor de ser dono), sendo suficiente apenas que ele se comporte, perante a coisa, como se comportaria se proprietário fosse – não estamos diante de uma relação subjetiva, mas sim de uma circunstância objetiva em razão da conduta visível diante da coisa. Não temos um QUERER, mas sim um AGIR. Além disso, ao contrário do entendimento de Savigny, o corpus não corresponderia a possibilidade física de dispor da coisa, mas apenas a visibilidade da propriedade em seus elementos caracterizadores. “(...) nem a presença física, nem o contato material, nem a presença, nem a custódia, são elementos decisivos, portanto em cada caso teremos que indagar como se comportaria o proprietário perante a coisa. A determinação do corpus é uma questão de pura experiência e de senso comum.” (C. Chaves e N. Rosenvald, p. 65) Exemplo: Waldicreuza mora em um bem imóvel residencial. Há, assim, o exercício de um ato de apreensão, visto que a mesma confere à coisa o destino econômico determinado. Por outro lado, em um loteamento específico, Waldicreuza se beneficia de um determinado lote, o qual encontra-se sem qualquer ato de apreensão, ou seja, Waldicreuza não realiza o aproveitamento direto no mesmo. Entretanto, visto que o aludido terreno também cumpre seu destino econômico, qual seja, reserva imobiliária à que se destina, podemos cogitar na existência de posse, a qual deve ser respeitada por terceiros. Verifica-se que em momento algum eu mencionei que Wal é dona dos imóveis… Apenas que ela age como se dona fosse. Ao contrário do que ocorre na Teoria Subjetiva (clássica), quando a Teoria Objetiva dispensa a presença do animus domini acaba por estender a condição de possuidor àqueles que seriam, naquela, meros detentores, como é o caso de locatários, arrendatários etc. Como consequência, há proteção possessória direta e imediata para tais sujeitos (art. 554 e seguintes do Código de Processo Civil). Suponhamos que Pedrosa alugue para Waldicreuza uma fazenda na região norte, apesar desta morar na região sul. Meses após o início do aluguel Waldicreuza é cientificada de que a fazenda fora invadida (violação que juridicamente é denominada de esbulho). Imediatamente Waldicreuza procura Pedrosa, o qual está viajando pelo mundo, impossibilitando qualquer contato. Questiona-se: há alguma medida que pode ser adotada por Waldicreuza?! Resposta: se adotarmos a Teoria Subjetiva, Waldicreuza, por não ser proprietária, não pode ajuizar ação reivindicatória (petitória); e, por outro lado, também não é possuidora, o que impossibilita o ajuizamento de ação possessória (por ser esbulho caberia reintegração de posse). Waldicreuza seria apenas detentora e não possuidora: não se pode pedir de volta o que não se tem! Por outro lado, adotando-se a Teoria Objetiva, a qual foi adotada por nosso ordenamento jurídico, Waldicreuza seria possuidora, podendo manejar a ação de reintegração de posse (ação possessória). Como não é proprietária, não pode se valer de ação reivindicatória. Importante também registrarmos, desde já, que a teoria objetiva consagra a coexistência de posses direta e indireta (posses paralelas). Apostila Esquematizada Direitos Reais Direito Civil IV - 2020.1 Amanda Guedes Ferreira – OAB/RJ 163.260 / amandaguedesferreira@gmail.com www.amandagferreira.com.br Instagram: @civilizandoficial 22 A maior crítica existente em relação a tal teoria é o fato de que Ihering subordina a posse à propriedade, afastando sua autonomia e reduzindo a posse a um direito ínfimo. Resumindo, segundo a Teoria Objetiva, para se falar em posse basta que a pessoa disponha fisicamente da coisa, ou que ao menos possa exercer esse contato, e que se comporte como o dono comportaria. O Código Civil de 2002 adotou parcialmente a Teoria Objetiva, conforme se afere em seu artigo1.196: Art. 1.196 CC/02. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade. Nem todo possuidor é proprietário. Finalizando os estudos das teorias da posse, insta ressaltar que atualmente há uma tímida mas forte corrente doutrinária que defende a necessidade de se criar uma teoria mais moderna, a qual visa, acima de tudo, analisar a função social da posse – Teoria Social da Posse. Fortalecendo tal doutrina, a qual possui como integrantes, por exemplo, Flávio Tartuce e Marco Aurélio Bezerra de Melo, há o projeto 699/2011 em trâmite no Congresso Nacional com o fito de alterar o teor do artigo 1.196 do Código Civil, o qual poderá conter a seguinte redação: “Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem poder fático de ingerência socioeconômica, absoluto ou relativo, direto ou indireto, sobre determinado bem da vida, que se manifesta através do exercício ou possibilidade de exercício inerente à propriedade ou outro direito real suscetível de posse”. Para facilitar a diferença de tais teorias, transcreveremos o ensinamento de Tartuce: “Destaque-se o estudo que o doutrinador faz da doutrina de Perozzi, utilizando a felizsimbologia do sujeito que anda com um chapéu por uma rua. Vejamos, na leitura feita por este autor, com adaptações. De acordo com a teoria de Savigny, é ele possuidor, pois tem a intenção de ser dono do chapéu e se apresenta com o bem. A par da teoria de Ihering, há posse porque a pessoa se apresenta com o chapéu, tendo o domínio fático da coisa. Por fim, pela visão de Perozzi e Gil há posse diante do reconhecimento e da aceitação da coletividade de que essa pessoa é possuidora, além da destinação que é dada ao chapéu. (TARTUCE 34) Com a teoria social da posse não se está afirmando que a propriedade não possui valor, mas só faz sentido falar em proteção da propriedade se o proprietário der destinação social para a mesma. Os adeptos desta corrente afirmam que o Direito serve à coletividade, e se o indivíduo não possuir como parâmetro a coletividade para agir, não merece proteção. Quem tem a melhor posse, tem o melhor direito. Finalizando tal estudo é importante mencionarmos o disposto no enunciado elaborado na V Jornada de Direito Civil, de 2011, com a seguinte redação: “A posse constitui direito autônomo em relação à propriedade e deve expressar o aproveitamento dos bens para o alcance de interesses existenciais, econômicos e sociais merecedores de tutela” (Enunciado n. 492). Apostila Esquematizada Direitos Reais Direito Civil IV - 2020.1 Amanda Guedes Ferreira – OAB/RJ 163.260 / amandaguedesferreira@gmail.com www.amandagferreira.com.br Instagram: @civilizandoficial 23 Independentemente da alteração ou não do artigo supramencionado, certo é que a função social da posse encontra-se implícita em nossa legislação, especialmente ao observarmos a valorização da posse-trabalho disposta nos artigos 1.238, parágrafo único; 1.242, parágrafo único, e 1.228, §§ 4.º e 5.º (desapropriação judicial privada por posse trabalho), todos do atual Código Civil. Art. 1.238 CC/02. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis. Parágrafo único. O prazo estabelecido neste artigo reduzir- se-á a dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo. Art. 1.242 CC/02. Adquire também a propriedade do imóvel aquele que, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir por dez anos. Parágrafo único. Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico. Art. 1.228, § 4º CC/02 - O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante. § 5º - No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores. ----------------------------- Facilitando... Teoria Subjetiva Teoria Objetiva Posse: poder físico imediato sobre a coisa por quem tem a vontade de ser dono e se defende contra agressões. Posse: O corpus configura-se sempre que alguém age como se fosse dono da coisa, ou seja, quando exterioriza o domínio, ainda que sabidamente não seja dono. Corpus + Animus Apenas o corpus Corpus – controle físico imediato. Existe o corpus: segurar uma caneta, sentar em uma poltrona, pegar um celular, ter ao seu alcance imediato inúmeros livros localizados no cômodo onde se encontra naquele momento. Não existe o corpus: quem está em um shopping passeando e tem uma caneta, uma poltrona, um celular e Destinação econômica da coisa. Apostila Esquematizada Direitos Reais Direito Civil IV - 2020.1 Amanda Guedes Ferreira – OAB/RJ 163.260 / amandaguedesferreira@gmail.com www.amandagferreira.com.br Instagram: @civilizandoficial 24 livros em seu escritório, não teria o corpus. Posse versus Detenção Ao operador do Direito é VEDADO tratar posse e detenção como termos sinônimos. Observemos o disposto nos artigos 1.198, e 1.208, ambos do Código Civil de 2002: Art. 1.198 CC/02. Considera-se detentor aquele que, achando-se em relação de dependência para com outro, conserva a posse em nome deste e em cumprimento de ordens ou instruções suas. Parágrafo único. Aquele que começou a comportar-se do modo como prescreve este artigo, em relação ao bem e à outra pessoa, presume-se detentor, até que prove o contrário. Art. 1.208 CC/02. Não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância / assim como não autorizam a sua aquisição os atos violentos, ou clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a clandestinidade. Vamos por partes, já que a legislação trata de três tipos diferentes de detentores. Também denominado fâmulo de posse, gestor da posse, detentor dependente ou servidor da posse, esse tipo de detentor tem o bem exclusivamente em decorrência de uma situação de dependência econômica ou um vínculo de subordinação. Também é detentor aquele que está utilizando o bem por mera tolerância ou permissão do proprietário ou do possuidor. Face ao ato de mera custódia não se pode cogitar a existência de posse nessas situações. Nessa três hipóteses temos o exercício de um poder de fato, mas em nome alheio. Detentor: exercício, em nome alheio, de um dos poderes inerentes à propriedade. A forma primordial para se averiguar se alguém é detentor ou possuidor de determinada coisa é a análise se a posse é exercida de forma direta (em nome próprio) ou em nome de outrem. Exemplos mais tradicionais de detenção: Waldicreuza é caseira em uma mansão localizada no interior de Fernando de Noronha, sendo responsável, juntamente com seu marido, por cuidar da horta, dos animais e da residência principal, onde dormem diariamente. Ambos são detentores e não possuidores dos bens mencionados. (Relação de trabalho ou de emprego, em que o empregador entrega bem de sua propriedade ao trabalhador, diante de uma relação de confiança decorrente do contrato). Waldicreuza e Eleoberto resolvem comemorar o aniversário de casamento em um luxuoso hotel. Ao chegar no local, entregam o veículo para o manobrista (contrato de depósito). Neste caso, o hotel é possuidor do carro, face o contrato atípico com elementos do depósito. Por outro lado, o manobrista é detentor, já que o veículo fora entregue em nome do hotel, com quem possui relação de subordinação. Eleoberto resolve vender seu veículo. Face a dificuldade em encontrar compradores, decide entregá-lo em uma revendedora. Nesse caso, segundo julgamentos do TJSP (TJSP, Apelação 0957508-2/00), há mera detenção da loja de revendas, com simples custódia do bem móvel. Waldicreuza convida uns parentes para passar algumas semanas em sua casa em frente à praia de Ipanema – RJ. Wal, a qualquer momento, poderá colocar ordem na casa, determinando horário de Apostila Esquematizada Direitos Reais Direito Civil IV - 2020.1 Amanda Guedes Ferreira – OAB/RJ 163.260 / amandaguedesferreira@gmail.com www.amandagferreira.com.br Instagram: @civilizandoficial 25 entrada e saída, por exemplo, já que seus parentes não são possuidores, mas meros detentores e lhe devem obediência -> permissão.Como consequência da ausência de posse, ao detentor é vedada a utilização de quaisquer das ações possessórias, bem como usucapir. Entretanto, lhe é possível a defesa da posse alheia por meio da autotutela disposta no artigo 1.210, parágrafo 1º, do Código Civil de 2002: Art. 1.210, § 1º CC/02 - O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força, contanto que o faça logo; os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção, ou restituição da posse. Nesse sentido, segue enunciado da V Jornada de Direito Civil: “O detentor (art. 1.198 do Código Civil) pode, no interesse do possuidor, exercer a autodefesa do bem sob seu poder” (Enunciado n. 493). Também vale transcrever o ensinamento de Tartuce quanto a limitação de atuação do detentor: Voltando-se a ilustração concreta do Superior Tribunal de Justiça, entendeu a Corte, em aresto de 2017, que a concessionária de veículos incumbida de fazer o reparo de um automóvel é mera detentora e não possuidora do bem. Sendo assim, não é o caso de se reconhecer o direito de retenção da coisa, diante da falta do pagamento de serviços que foram por ela prestados, nos termos do que consta do art. 1.219 do Código Civil. Conforme trecho da ementa do acórdão, “na hipótese, o veículo foi deixado na concessionária pela proprietária somente para a realização de reparos, sem que isso conferisse à recorrente sua posse. A concessionária teve somente a detenção do bem, que ficou sob sua custódia por determinação e liberalidade da proprietária, em uma espécie de vínculo de subordinação. O direito de retenção, sob a justificativa de realização de benfeitoria no bem, não pode ser invocado por aquele que possui tão somente a detenção do bem” (STJ, REsp 1.628.385/ES, 3.ª Turma, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 22.08.2017, DJe 29.08.2017). (TARTUCE 41) FACILITANDO... Com o intuito de facilitar a identificação da detenção, faremos uso do disposto no artigo 1.253 do Código Civil de Portugal: São havidos como detentores ou possuidores precários: a) os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito; b) os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito; c) os representantes ou mandatários do possuidor e, de um modo geral, todos os que possuem. Ainda sobre a detenção, na IV Jornada de Direito Civil de 2006, foi aprovado o Enunciado n. 301 do CJF/STJ, determinando a inversão do caráter da posse (ou transmutação da posse) ao prescrever que “É possível a conversão da detenção em posse, desde que rompida a subordinação, na hipótese de exercício em nome próprio dos atos possessórios”. Apostila Esquematizada Direitos Reais Direito Civil IV - 2020.1 Amanda Guedes Ferreira – OAB/RJ 163.260 / amandaguedesferreira@gmail.com www.amandagferreira.com.br Instagram: @civilizandoficial 26 Assim, desaparecendo o vínculo de dependência e de subordinação previamente existente, como é o caso do contrato de trabalho, por exemplo, não haverá mais mera detenção, mas sim posse, podendo o novo possuidor desfrutar de todos os efeitos materiais e processuais decorrentes do novo título, inclusive os instrumentos de defesa. O fundamento legal para tal conversão (chamada de TRASMUTAÇÃO) é o parágrafo único do artigo 1.198 CC/02, supratranscrito, cumulado com o artigo 1.204 CC/02: Art. 1.204 CC/02. Adquire-se a posse desde o momento em que se torna possível o exercício, em nome próprio, de qualquer dos poderes inerentes à propriedade. Nesse sentido: “Ação possessória. Indeferimento da petição inicial sob o fundamento de existência de mera detenção. Possibilidade de conversão da detenção em posse, com o rompimento da subordinação relativa àquela possibilidade da modificação do caráter originário da posse. Fatos afirmados com a inicial que merecem ser melhor examinados sob o crivo do contraditório. Impossibilidade, entretanto, de concessão de liminar. Recurso provido para ser anulada a decisão, a fim de se propiciar o processamento, sem liminar, da ação” (TJSP, Apelação 7170778- 3, Acórdão 3468220, Piratininga, 17.ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Paulo Pastore Filho, j. 28.01.2009, DJESP 09.03.2009). Atenção: o servidor (ou servo) da posse tem o dever de conservar a coisa, mas poderá (deverá) requerer a restituição de todas as despesas necessárias à tal ato. Também se faz oportuno frisar que aquele que ostentava a condição de possuidor direto poderá se tornar detentor, na condição de servidor da posse. É o exemplo do comodatário que começa a receber pagamentos periódicos do proprietário com o intuito de conservação do imóvel, havendo nítidas instruções quanto às devidas manutenções. Nesse caso, o possuidor indireto (mesmo que sem tal intenção), rompe o vínculo negocial originário (comodato), transformando a posse em detenção. Atenção: sei que ainda não explicamos posse indireta e posse direta (desdobramento da posse – posses paralelas), mas marque esta página para ler novamente no final deste capítulo que tudo fará mais sentido!) Também não há posse decorrente de atos de mera permissão ou tolerância, conforme disposto no artigo 1.208, primeira parte, do Código Civil de 2002, o qual já fora transcrito. As situações de permissão ou tolerância são facilmente verificadas quando estamos diante de relações de parentesco, vizinhança, hospedagem ou mera caridade, ocasião em que uma pessoa exerce ato de mera detenção sobre determinado bem. Quem nunca ouviu a frase: “Enquanto estiver sob o meu teto tem que me obedecer!”. Há, nesses casos, situação de dependência perante o real possuidor. E, observe: não é dependência econômica! Desta forma, quando Waldicreuza convida seu vizinho Leanderson para assistir um jogo em sua casa, este nunca será possuidor da poltrona que ocupa, sendo mero detentor da mesma. Da mesma forma, quando Waldicreuza convida seus pais para passarem uma temporada em sua casa, estes serão meros detentores, e não possuidores dos aposentos. Apostila Esquematizada Direitos Reais Direito Civil IV - 2020.1 Amanda Guedes Ferreira – OAB/RJ 163.260 / amandaguedesferreira@gmail.com www.amandagferreira.com.br Instagram: @civilizandoficial 27 Permissão Tolerância Comportamento positivo e prévio. Autorização. Conduta negativa; consentimento tácito do uso. Não oposição. Eis transcrição dos exemplos de Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald: “quando A permite verbalmente que seu vizinho B utilize a sua vaga de garagem, no prédio em que ambos residem, poderá a qualquer tempo revogar o consentimento, sem que o usuário B a tal possa opor-se.” (Exemplo de permissão – p. 135) “se B guarda o seu veículo na vaga de garagem de seu vizinho A sem qualquer permissão prévia, é possível caracterizar os atos materiais de utilização da coisa como de mera tolerância, tendo em vista que o usuário B tem a perfeita noção de que a passividade de A decorre de sua condescendência, sendo que essa atitude de benevolência é fundamental para que continue utilizando a vaga de garagem” (Exemplo de tolerância – p. 135) “Se A permanece no imóvel de propriedade de B por longos anos, em virtude do abandono do titular, não será possível a B alegar que tolerou a presença de A. Nessa hipótese, B foi desidioso e inerte, e A agiu como possuidor, sendo factível a usucapião sobre o imóvel” (p. 135) Interessante que muitas doutrinas como a de Flávio Tartuce não se preocupam com o aprofundamento das questões relativas à permissão e tolerância, havendo, inclusive, o tratamento do fâmulo da posse como sinônimo de detentor, conduta pela qual não concordamos, pois realmente são institutos diversos – ou seja, o fâmulo da posse é apenas um dos tipos de detenção (no