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Psicologia Transpessoal Livro Texto 2010 2 Capa e Diagramação: Cláudio Azevedo Arte-finalização da Capa: Revisão e Edição: Cláudio Azevedo e Marlos Alves R: Cláudio Azevedo Copyright © 2008 Impresso no Brasil / Printed in Brazil A994 Alves, Marlos ) ISBN: 85–60091–??–? 1. Vedānta. 2. Filosofia hindu. 3. Hinduísmo I. Título. CDU 294.527 Capa: Contato com os organizadores e pedidos por reembolso postal E-mail: croberto@orion.med.br ou marlosdoc@yahoo.com.br Visite: http://www.editoraorion.com.br 3 Psicologia Transpessoal Livro Texto Alves, Marlos; Azevedo, Cláudio; Tavares, Fátima Organizadores 2010 4 Conselho Editorial Alexandre Simão de Freitas – (Programa de Pós-Graduação em Educação UFPE-BRA) David Lukoff – USA Edgard Carvalho (PUC-SP) Esdras Vanconcelos Guerreiro (USP - PUC) Geórgia Sibele Nogueira da Silva (DEPSI-UFRN-BRA) Harbans Lal Arora (Índia) Jean Yves Leloup – UNIPAZ (FRA) Jean-Claude Regnier - Université de Lyon - Université Lumière Lyon2 (FRA) José Policarpo Júnior – (Programa de Pós-Graduação em Educação UFPE-BRA) José Ramos Coelho (DEPFIL-UFRN-BRA) Nadja Maria Acioly-Régnier - Institut Universitaire de Formation Des Maitres (FRA) Stanislav Grof – (USA) 5 AUTORES André Feitosa de Sousa Psicólogo (CRP-11/05064), com formação na Abordagem Centrada na Pessoa e no Método (Con)texto de Letramentos Múltiplos, desenvolvendo trabalhos nas áreas da Psicoterapia, da Psicoeducação (Salutogênese) e da Psicologia do Traba- lho. Professor no curso de Psicologia das Faculdades Nordeste (FANOR), pesquisador associado à “Rede Lusófona de Estudos da Felicidade (RELUS)”, colaborador na “Liga Maria Villas-Bôas de Estudos em Abordagem Centrada na Pessoa”. Sócio efetivo da “World Association for Person-Centered Approach and Experiential Psychotherapy” e da “Associação Pau- lista da Abordagem Centrada na Pessoa”; membro da “Nordic Pragmatism Network” e da “Red Iberoamericana de Centrada em las Personas”. Integrante da equipe gestora do Projeto Social “O Outro Brasil que Vêm Aí: Comunidades em Transição para uma Sociedade Pós-Carbono”, formador e supervisor vinculado à “Confraria de Estudos Avançados em Carl Rogers e na Abordagem Centrada na Pessoa (CearACP)”. Co-organizador do livro “Humanismo de Funcionamento Pleno” (2008, Editora Alinea), dentre outras publicações científicas. Contato: andre_feitosa@msn.com Francisco Di Biase, Grand PhD Neurocirurgião e pesquisador da consciência; Grand PhD, PhD and Full Professor, Académie Européenne D‟Informatisation e World Information Distributed University - Bélgica; Professor Honorário da Albert Schweitzer International University - Suiça. Francisco Silva Cavalcante Junior, Ph.D. Psicólogo (CRP-11/0746), Professor adjunto no setor de Psicologia da Educação na Faculdade de Educação da Universi- dade Federal do Ceará (UFC). Formador da Abordagem Centrada na Pessoa, M.Ed. e Ph.D. pela University of New Hamp- shire (EUA), coordenador da Rede Lusófona de Estudos da Felicidade (RELUS), idealizador da CearACP e do Projeto Florescer (Projeto Integrado de Ensino-Pesquisa-Extensão nas áreas da Clínica-Educacional-Organizacional, no SPA/NAMI/UNIFOR). De 1998 a 2009 foi professor titular do Mestrado em Psicologia da UNIFOR. Contato: fscavalcanteju- nior@gmail.com Julio Francisco Dantas de Rezende, MS É presidente do Instituto de Inovação e Sustentabilidade, Vice-diretor de ensino da FACEN e INAES, professor da UERN e FACEX, assessor da Secretaria de Estado da Administração e dos Recursos Humanos (SEARH), administrador, psicólogo, mestre e doutorando em administração pela UFRN. É autor dos livros "Matrix e a Administração Transpessoal", "Crônicas da Virtualidade" e "Transpersonal Management: Lessons from The Matrix trilogy". Atualmente prepara novos livros e realiza palestras sobre inovação, sustentabilidade e psicologia. O contato com o professor Julio Rezende pode ser feito diretamen- te através do e-mail: jrezende@digi.com.br ou pelo telefone: 84 9981-8160. Blog: www.juliorezende.blogspot.com. Paulo Coelho Castelo Branco Psicólogo (CRP-11/05321), Mestrando em Psicologia – UFC com bolsa pela CAPES, Psicoterapeuta sob o referencial da Abordagem Centrada na Pessoa, membro do Círculo de Pesquisas em Lógica e Epistemologias das Psicologias da Univer- sidade Federal do Ceará (CPLEP/UFC). Colaborador na “Liga Maria Villas-Bôas de Estudos em Abordagem Centrada na Pessoa”. Sócio efetivo da “World Association for Person-Centered Approach and Experiential Psychotherapy” e da “Associ- ação Paulista da Abordagem Centrada na Pessoa”. Contato: pauloccb@terra.com.br Ricardo Lincoln Laranjeira Barrocas, Dr. Graduado em Ciências Sociais e em Psicologia, Professor da Graduação e da Pós-Graduação em Psicologia da Universi- dade Federal do Ceará (UFC), Mestre em Psicanálise pela Université de Paris VIII e Doutor em Psicologia pela Université de Paris XIII. Coordenador do Círculo de Pesquisas sobre Lógica e Epistemologia das Psicologias (CPLEP/UFC). Contato: rbarrocas@uol.com.br Yuri de Nóbrega Sales Psicólogo (CRP-11/05070), Mestrando em Psicologia – UNIFOR, com formação em Abordagem Centrada na Pessoa, Psi- coterapeuta sob o referencial desta mesma abordagem. Visiting Scholar, Centre for Urban Health Initiatives/University of Toronto – Programme des Futurs Leaders dans les Amériques 2009 (PFLA Canadá). Colaborador na “Liga Maria Villas- Bôas de Estudos em Abordagem Centrada na Pessoa”, Integrante da equipe gestora do Projeto Social “O Outro Brasil que Vêm Aí: Comunidades em Transição para uma Sociedade Pós-Carbono”. Contato: yurisnobrega@yahoo.com.br 6 7 Sumário PREFÁCIO ........................................................................................................................... 11 INTRODUÇÃO...................................................................................................................... 13 APRESENTAÇÃO ................................................................................................................ 15 PARTE I ................................................................................................................................ 17 FUNDAMENTOS EM PSICOLOGIA TRANSPESSOAL ...................................................... 17 Matrizes Conceituais ............................................................................................................ 19 1. Transcendência ............................................................................................................ 19 2. Espiritualidade: um olhar psicológico ........................................................................... 23 3. Espiritualidade e os pioneiros do desenvolvimento humano ....................................... 36 4. Tradições de Sabedoria do Oriente ............................................................................. 46 Histórico ................................................................................................................................ 62 REDIMENSIONANDO OS CONCEITOS E OS TERRITÓRIOS CONTEMPORÂNEOS ENTRE DUAS FORÇAS DA PSICOLOGIA ...................................................................................... 63 NO CENTRO E NAS FRONTEIRAS DO HUMANO E SUAS PSICOLOGIAS ................ 63 TRANS-FORMAÇÕES HUMANISTAS: HÁ TERRAS PARA ALÉM DOS HORIZONTES HUMANOS? ..................................................................................................................................70 SOBRE UMA MESMA SEMENTE GERMINADA EM SOLOS DIVERSOS: A EXPERIÊNCIA DO “HUMANO” E DO “TRANSHUMANO”? ......................................................... 75 Método .................................................................................................................................. 91 Pesquisas em Consciência .................................................................................................. 92 PARTE II ............................................................................................................................... 93 CONCEITOS EM PSICOLOGIA TRANSPESSOAL ............................................................ 93 Transdisciplinaridade ............................................................................................................ 94 Espiritualidade ...................................................................................................................... 95 Unidade ................................................................................................................................ 96 I ......................................................................................................................................... 96 II ...................................................................................................................................... 103 8 III ..................................................................................................................................... 108 IV .................................................................................................................................... 109 V ..................................................................................................................................... 112 VI .................................................................................................................................... 114 VII ................................................................................................................................... 117 VIII .................................................................................................................................. 120 IX .................................................................................................................................... 122 Referências:.................................................................................................................... 122 O Ser Quântico ................................................................................................................... 124 Consciência ........................................................................................................................ 125 Consciência Transpessoal ................................................................................................. 126 O Código Cósmico ......................................................................................................... 127 O Reencontro da Ciência com a Consciência ................................................................ 128 O Modelo Holoinformacional da Consciência ................................................................ 129 O universo holográfico .................................................................................................... 133 A Dinâmica Quântica Cerebral ...................................................................................... 134 Biofótons, Microtúbulos e Superradiância ...................................................................... 135 Os correlatos neurais da consciência ............................................................................ 138 Vida e Morte ....................................................................................................................... 146 PARTE III ............................................................................................................................ 147 PRÁTICAS CLÍNICAS EM PSICOLOGIA TRANSPESSOAL ............................................ 147 Terapia de Memória Profunda ............................................................................................ 148 Respiração Holotrópica ...................................................................................................... 149 Morte e Renascimento Psicológico .................................................................................... 150 A Dinâmica Energética do Psiquismo ................................................................................ 151 PARTE IV ........................................................................................................................... 152 EXTENSÕES EM PSICOLOGIA TRANSPESSOAL .......................................................... 152 Um Abraço Integral ............................................................................................................. 153 9 Modelo de desenvolvimento da consciência .................................................................. 153 Saúde nos quatro quadrantes do Kosmos ..................................................................... 159 Educação para a Paz ......................................................................................................... 166 Psiquiatria Transpessoal .................................................................................................... 167 Teorias Sistêmicas em Família (Constelações familiares) ................................................ 168 Psicologia Social Transpessoal .......................................................................................... 169 Abordagem Organizacional Transpessoal ......................................................................... 170 Introdução ....................................................................................................................... 170 A psicologia transpessoal: uma base para um novo modelo gerencial ......................... 170 Consciência: um primeiro objeto da psicologia transpessoal e uma possível aplicabilidade à administração .................................................................................................... 172 Transcendência: um segundo objeto da psicologia transpessoal .................................. 174 Desafios da gestão transpessoal ................................................................................... 175 Aspectos metodológicos ................................................................................................. 177 A prática da gestão transpessoal ................................................................................... 178 A busca por uma suprema satisfação dos clientes ........................................................ 180 A consciência dos arquétipos no contexto organizacional ............................................. 180 Motivação: a alma da organização ................................................................................. 181 A espiritualidade no trabalho .......................................................................................... 181 Criando um espaço psicológico saudável ...................................................................... 183 Integração com a totalidade e o desenvolvimento da responsabilidade universal e a sustentabilidade........................................................................................................................... 186 Considerações finais ...................................................................................................... 189 A Temporalidade no Existir Subjetivo ................................................................................ 192 Trabalho Transpessoalcom Crianças ................................................................................ 193 Trabalho com a Morte ........................................................................................................ 194 Cosmoeducação ................................................................................................................. 195 APÊNDICE ......................................................................................................................... 196 10 CARTA AOS TERAPEUTAS .......................................................................................... 196 11 PREFÁCIO Roberto Crema 12 13 INTRODUÇÃO Marlos Alves e Cláudio Azevedo 14 15 APRESENTAÇÃO Márcia Tabone 16 17 PARTE I FUNDAMENTOS EM PSICOLOGIA TRANSPESSOAL 18 19 Capítulo 1 Matrizes Conceituais Transcendência, Espiritualidade e Tradições de Sabedoria no Oriente 1. Transcendência Em seu sentido original o “trans” foi agregado ao pessoal na palavra “transpessoal” para s i- tuar uma ampla gama de pesquisas que indicavam a dimensão de transcendência humana ou o “principio da transcendência” 1 . Contudo, assim como a palavra transcendência está carregada de múltiplos sentidos, o prefixo “trans” tem incorporado esta diversidade, requerendo uma explicitação que nos ajude a melhor definir em que sentido está sendo utilizado, pois de acordo com o seu uso poderá conduzir-nos a sentidos diversos, com implicações diretas para a Psicologia Transpessoal. A interpretação mais antiga dada ao conceito transcendência deriva da relação dos ho- mens com a idéia de divindade, em um sentido teológico. Assim, se considera o divino como ina- cessível às coisas terrenas, pois seriam esferas totalmente distintas, manifestando uma relação dialética permanente. As definições do transpessoal que usam este referencial de transcendência, geralmente são as visões de senso comum ou tentativas de desqualificar a abordagem com não cientifica, pois colocam o “trans” como um “além de” trancendental, incapaz de incluir os aspectos imanentes do ser. Tal visão se opõe claramente as idéias dos principais fundadores da psicologia transpessoal, como podemos perceber na colocação de Sutich (apud WEIL, 1978, p. 29): Entretanto, as diferenças eram tão significativas que levaram inevita- velmente à conclusão de que uma área nova e de características próprias da pesquisa psicológica estava se manifestando. Era uma área de pesquisa “pes- soal”, mas que ia além dos limites usuais da investigação científica. Além disso, a nova área diferia de maneira significativa do trans-humanismo (Huxley, 1957) pelo fato de enfatizar principalmente o indivíduo experienciador mais do que a raça humana como um todo. Por isso foi bastante natural que [...] a nova área recebesse o título de „Psicologia Transpessoal‟. 1 O principio da transcendência “indicaria um impulso em direção ao despertar espiritual que perpassa a humanidade do ser, a própria pulsão de vida, morte e para além delas. O „principio da transcendência‟ envolve a natureza psicológica, descrita por Freud, ampliada por Maslow e por Weil.” (SALDANHA, 2006, p. 109) 20 Outro sentido de transcendência se refere aos conceitos aristotélicos, difundidos na idade média por São Tomás de Aquino, que definiam como transcendente tudo que se enquadra nas categorias de unidade, verdade e bondade. O trans, neste sentido, põe-se como uma essência permanentemente fixa e imutável quer seja ela platônica, kantiana, hegeliana ou husserliana, ex- cluindo assim, a possibilidade para emergência de novas dimensões do ser. O conceito de transpessoal que emerge desta definição permanece preso na armadilha da idéia da essência imutável da metafísica, perdendo o trans a sua historicidade como um dos mo- dos de interpretar a realidade. Assim se quisermos alcançar um status pós-metafísico será neces- sário percebermos que o trans não pode ser concebido como uma categoria que é dada eterna- mente – ele não é um arquétipo, nem idéias eternas na mente de Deus, nem formas coletivas fora da história, nem imagens eidéticas atemporais. O trans deve ser concebido como uma forma que se desenvolveu com o tempo, com a evolução e com a história. Para Hume e Kant, transcendental é tudo aquilo que nossa mente constitui a priori, antes mesmo de qualquer experimentação, havendo assim uma complexa interconexão entre a capaci- dade de estar consciente de certo conceito e a habilidade de experimentar-se o universo das coi- sas. O transcendente estaria fora de nós, mas acessível pela capacidade intelectual em captar sua essência. Hegel combateu, em parte, este conceito kantiano, pois argumentava que é preciso ultrapassar a fronteira entre o conceitual e o experimental para sabermos ao certo onde este limite se encontra, e assim, logicamente, já se constitui uma transcendência o fato de deter o conheci- mento, independentemente de qualquer ação posterior. O conceito de transcendência na transpessoal se aproxima mais do pensamento hegelia- no, contudo permanece irremediavelmente ligado ao ser par irmão, a imanência. Assim, temos transcendência e imanência como fenômenos que se dão a perceber ao ser, num jogo dialógico que avança em complexidade até alcançar uma dimensão translógica. O aspecto integrativo do transcendente/imanente do prefixo “trans” é apontado por Wilber (1996, p. xviii) para marcar uma compreensão total do ser humano, de forma que este termo não se refere apenas ao “ir além”, mas, também, ao tornar-se MAIS PESSOA, assumindo-se radical- mente toda a abertura e amplitude do Ser Humano. O hiato entre transcendência e imanência, assim como, as diversas divisões tomadas pelo senso comum como auto-existentes, são profundamente questionadas pela psicologia transpesso- al. Nesta concebe-se a possibilidade de um “entre-deux” nestes aspectos, bem como nas múltiplas 21 interfaces humana 2 , sem, no entanto, bipartir a concepção de existência. Para o filósofo francês Merleau-Ponty, a identificação desse círculo abriu um espaço entre o homem e o mundo, entre o interno e o externo. Esse espaço não era um abismo ou divisor: ele englobava a distinção entre homem e mundo e, ainda, provia a continuidade entre eles. Sua abertura revela-se como um cami- nho do meio, um entre-deux. Assim, no prefácio de sua Fenomenologia da Percepção, ele escreve: Comecei a refletir, minha reflexão é sobre um irrefletido; ela não pode ignorar-se a si mesma como acontecimento, logo ela se manifesta como uma verdadeira criação, como uma mudança de estrutura da consciência, e cabe-lhe reconhecer aquém de suas próprias operações, o mundo que é dado ao sujeito, porque o sujeito é dado a si mesmo... A percepção não é uma ciência do mundo, não é nem mesmo um ato, uma tomada de posição deliberada; ela é o fundo so- bre o qual todos os atos se destacam e ela é pressuposta por eles. O mundo não é um objeto do qual possuo comigo a lei de constituição; ele é o meio natural e o campo de todos os meus pensamentos e de todas as minhas percepções explí- citas. (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 5-6). Mais adiante, no final dessa mesma obra, ele acrescenta: O mundo é inseparável do sujeito, mas de um sujeito que não é senão projeto do mundo, e o sujeito é inseparável do mundo, mas de um mundo que ele mesmo projeta. 3 Esta visão de um sujeito “inseparável do mundo”, que, neste trabalho denominamos de trancendente/imanente, foi desenvolvida e integrada pelas tradições não-duais do oriente,como também é marco do referencial teórico da fenomenologia e da abordagem transpessoal, e defen- dem a tese de que a dualidade mente/corpo surgiu da ignorância sobre a natureza das relações do organismo humano com o ambiente; não havendo sustentação para a tese cartesiana que postula um corpo que é pura matéria extensa e nem se cogita uma mente que é mera substância pensan- te. Para psicologia transpessoal essa forma de refletir marca radicalmente a virada do pensa- mento fenomenológico como uma busca de retorno ao mundo existencial, sendo um golpe nas idéias do “trans” como um simples “além de” abstrato e teológico, pois o mundo é preexistente à reflexão mas não separado de nós, conforme destacado por Varela, Thompson e Rosch (2003, p. 21): 2 Wilber (2000, p. 27) destaca cinco dimensões básicas: “matéria, corpo (no sentido de corpos vivos e vitais, o nível emo- cional-sexual), mente (incluindo imaginação, concepções e lógica), alma (a fonte da identidade supra-individual) e espírito (tanto o fundamento sem forma como a união não-dual de todos os outros níveis)”. 3 Merleau-Ponty (1999, p. 576). 22 [...] as mentes despertam em um mundo. Não projetamos nosso mundo. Nós simplesmente nos descobrimos com ele; nós despertamos tanto para nós mesmos quanto para o mundo que habitamos. Vimos a refletir sobre esse mun- do à medida que crescemos e vivemos. Nós refletimos sobre um mundo que não é feito, mas encontrado, e é também nossa estrutura que nos possibilita refletir sobre esse mundo. Então, ao refletirmos, nós nos encontramos em um círculo: estamos em um mundo que parece que já existia antes da reflexão ter-se inicia- do, mas esse mundo não é separado de nós. A transcendência é posta como um convite permanente para olharmos de maneira interde- pendente o aqui-e-agora do mundo vivido, desafiando-nos a percebermos este mundo vivido como solo primeiro dos meus sentidos, incluindo nossa abertura para o mundo e desafiando a idéia de que a verdade “habita apenas o „homem interior‟, ou antes não há homem interior, o homem está no mundo e é no mundo que ele se conhece” 4 . O trans “mais pessoal” trata a transcendência co- mo a possibilidade de Ser expressa no mundo, mas que conserva sua abertura, sua impossibilida- de de fechar-se, seu “ir além”. A psicologia transpessoal como um estilo de pensamento que revela o “mistério” do inaca- bamento do humano, assume a sua própria incapacidade de dizer tudo o que há para ser dito, aproximando-se do pensamento de Merleau-Ponty (1999, p.20) quando afirma: Será preciso que a fenomenologia dirija a si mesma a interrogação que dirige a todos os conhecimentos; ela se desdobrará então indefinidamente, ela será, como diz Husserl, um diálogo ou uma meditação infinita, e, na medida em que permanecer fiel à sua intenção, não saberá onde vai. O inacabamento da fenomenologia e o seu andar incoativo não são signo de um fracasso, eles eram inevitáveis porque a fenomenologia tem como tarefa revelar o mistério do mundo e o mistério da razão. Assim, é como um pensamento aberto à interrogação permanente e que trabalha para não se fechar nos dogmatismos e absolutismos, que se caracteriza a psicologia transpessoal; sendo a transcendência reveladora de um projeto de formação humana que não cessa de ampliar, pois revela o inacabamento do humano. Referências bibliográficas MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999. SALDANHA, V. P. Didática transpessoal: perspectivas inovadoras para uma educação integral. Campinas, SP: [s/n]. Tese (Doutorado em Educação), Pós-graduação em Educação, 2006. 4 Ibid., loc. cit. 23 WEIL, P. A medida da consciência cósmica. Petrópolis: Ed. Vozes. 1978 VARELA, J. F.; THOMPSON, E.; ROSCH, E. Mente incorporada. São Paulo: Artes Médicas, 2003. WILBER, K. Foreword. In: SCOTTON, B.W.; CHINEN, A. B.; BATTISTA, J. R. (Eds). Textbook of transpersonal psychiatry and psychology. New York: BasicBooks, 1996. ______. Integral psychology: consciousness, spirit, psychology, therapy. Boston: Shambhala Publications, 2000. 2. Espiritualidade: um olhar psicológico A resistência a introdução da dimensão espiritual no campo acadêmico da psicologia deve- se, em parte, ao ranço adquirido, em nossa cultura, contra a religião desde o iluminismo. A “era das trevas” medieval acionou um intenso mecanismo de resistência a tudo que pudesse relacionar- se com o religioso, místico ou mítico, sendo a “espiritualidade” humana incluída nesta categoria, e portando descartada. Todavia, desde os trabalhos pioneiros de James (1890, 1902), Kohlberg (1992) e Fowler (1992) as diferenciações entre religião e espiritualidade, no campo psicológico, tem sido melhor estabelecidas, contribuindo para a superação deste complexo de exclusão. Fawler, por exemplo, em seu trabalho sobre “Os estágios da fé", coloca a religião como uma “tradição cumulativa”, marcada por textos, escrituras, leis, narrativas, mitos, profecias, relatos de revelações, símbolos visuais, tradições orais, música, dança, ensinamentos éticos, teologias, credos, ritos, liturgias, arquitetura. Enquanto a fé (espiritualidade) é mais profunda e pessoal, sen- do a forma como a pessoa ou o grupo responde ao valor transcendente. Seguindo esta linha de raciocínio, Koenig et al.(2001) definem religião como um sistema organizado de crenças, práticas, rituais e símbolos delineados para facilitar a proximidade com o sagrado e o transcendente e espiritualidade como a busca pessoal por respostas compreensíveis para questões existenciais sobre a vida, seu significado e a relação com o sagrado ou transcen- dente, podendo ou não estar atrelada a rituais religiosos ou a uma comunidade. As pesquisas na área da espiritualidade e psicologia ampliaram-se nos últimos anos, Koe- nig (2007, p. 5-6) destaca que: De fato, uma pesquisa on-line na PsycINFO (uma base de dados que contém 2,3 milhões de pesquisas e artigos acadêmicos de 49 países em 27 idi- omas), usando as palavras-chave “religion”, “religiosity”, “religious beliefs” e “spi- rituality”, revela algumas tendências interessantes. Quando restringi os anos da busca de 1971 a 1975, foram identificados 1.113 artigos, mas ao repetir a pes- quisa restringindo-a aos anos entre 2001 e 2005, obtive 6.437 artigos, havendo um aumento de mais de 600% em 30 anos. Assim, parece ocorrer um rápido in- cremento na pesquisa e discussão acadêmicas relacionadas à relação entre reli- 24 gião, spiritualidade e saúde mental. Dado que religião é importante para a maio- ria dos brasileiros e outros sul-americanos, não causa surpresa que haja interes- se na ligação entre envolvimento religioso e saúde mental. Dos 6.437 artigos so- bre religião/espiritualidade publicados entre 2001 e 2005, 20 envolveram artigos sobre religião, espiritualidade e saúde de brasileiros. Seis desses 20 artigos rela- tavam resultados de estudos quantitativos e quatro dessas pesquisas eram fo- cadas em saúde mental. A idéia da dimensão espiritual como um dos aspectos constitutivos do humano está presente na forma da “Grande Cadeia do Ser” 5 desde as culturas xamânicas (TRUNGPA, 1992) até o seu ápice com a cultura Grega (Plotino), mas foi praticamente excluída com o advento do cientificismo da modernidade. Refletindo sobre as idéias centrais da “Grande Cadeia do Ser”, Röhr (2006, p. 15-16) destaca cinco dimensões básicas do humano, sintetizando e atualizando os conhecimentos produzidos nesta área. Estas dimensões são a dimensão físi- ca, emocional, mental e espiritual, esta última alvo da nossa reflexão,e definida como, [...] a dimensão espiritual. Não se confunde essa dimensão com a re- ligiosa, que em parte pode incluir a espiritual, mas que contém algumas caracte- rísticas como as da revelação como intervenção direta de Deus e de um tipo de organização social que dessa forma são estranhas ou não necessárias à dimen- são espiritual. Podemos nos aproximar à dimensão espiritual identificando uma insuficiência das outras dimensões em relação ao homem nas suas possibilida- des humanas. Posso viver nas demais dimensões sem ser comprometido com nenhum aspecto delas. Entro na dimensão espiritual no momento em que me i- dentifico com algo, em que eu sinto que esse se torna apelo incondicional para mim. Identificamos, por exemplo, fenômenos humanos, freqüentemente pouco refletidos, mas onipresentes na nossa vida como a liberdade e a crença no sen- tido da vida como elementos da dimensão espiritual, e de fato eles só existem na medida em que me comprometo com eles. Podemos incluir na dimensão espiri- tual todos os princípios éticos e filosóficos que precisam, para se tornarem ver- dadeiros, da minha identificação com eles. Não se trata na dimensão espiritual de uma identificação somente ao nível do pensamento e do discurso. Trata-se de uma identificação na totalidade, incluindo necessariamente um agir corres- pondente. Um saber que não se expressa na minha vida prática, seja ela pública ou particular, não alcançou ainda a dimensão espiritual. Uma convicção com que 5 Wilber (2000, p. 27), destaca que a “Grande Cadeia do Ser” reflete a espinha dorsal da filosofia perene e apresenta uma síntese de concordância quase unânime e intercultural quanto às dimensões gerais básicas do ser, assim expressas: “maté- ria, corpo (no sentido de corpos vivos e vitais, o nível emocional-sexual), mente (incluindo imaginação, concepções e lógi- ca), alma (a fonte da identidade supra-individual) e espírito (tanto o fundamento sem forma como a união não-dual de todos os outros níveis)”. 25 não me identifico por inteiro serve para camuflar lados de mim que não consigo ou não quero enxergar, e leva fatalmente a desequilíbrios internos e externos. As certezas sobre a própria identidade não são de natureza racional, mas intuitiva. Por isso chamo essa dimensão também de intuitivo-espiritual. Em uma visão fenomenológica essas cinco dimensões apresentadas por Röhr, não consti- tuem realidades ontológicas distintas e separadas, mas sim planos de significação ou formas de unidade, nas quais “matéria, vida, espírito não poderiam ser definidos como três ordens de realida- des ou três espécies de ser, mas como três planos de significações ou três formas de unidades” (MERLEAU-PONTY, 1942, p. 14). Essas dimensões ou estruturas básicas são percebidas como hólons potenciais e não co- mo essências permanentemente fixas e imutáveis quer sejam elas platônicas, kantianas, hegelia- nas ou husserlianas. Assim, abre-se a possibilidade para emergência de novas dimensões no futu- ro. Wilber (2006) destaca que essa visão da “Grande Cadeia do Ser” é um dos modos de interpre- tar a realidade, contudo para que alcance um status pós-metafísico é necessário realizar algumas revisões e acréscimos, tais como: compreensão de que essas dimensões não são estruturas preexistentes, mas em parte estruturas de consciência humana; “os métodos de verificação de existência dessas estruturas de consciência não mais envolvem a mera afirmação de sua existência apenas porque a tradição as- sim o quer, nem baseiam sua existência apenas na introspecção ou na meditação (ou outras asserções e alegações que, supostamente, transcendem a cultura). No mínimo, eles envolverão alguma versão tanto da exigência da modernidade por in- dícios objetivos quanto da exigência da pós-modernidade por embasamento inter- subjetivo” (WILBER, 2006, p. 292); Essas estruturas de consciência “não podem ser concebidas como as que são dadas eter- namente – elas não são arquétipos, nem idéias eternas na mente de Deus, nem formas coletivas fora da história, nem imagens eidéticas atemporais. [...] teriam de ser concebidos como formas que se desenvolveram com o tempo, com a evolução e com a história” (WILBER, 2006, p. 293). A espiritualidade nos domínios do saber psicológico Se retornarmos brevemente a história do movimento das abordagens terapêuticas em psi- cologia, perceberemos como a dimensão espiritual foi foco da atenção dos pesquisadores das quatro principais forças do movimento “psi”, nem que fosse operando por contra-ponto. Utilizare- mos a idéia de “forças” (MASLOW, 1962) para situar as abordagens terapêuticas e suas reflexões sobre espiritualidade. 26 Primeira Força – Behaviorismo A primeira grande força do movimento psicológico foi o Behaviorismo que se organizou nos EUA a partir do início do século XX e conjugou várias tradições filosóficas e científicas que se opu- nham a qualquer idéia de subjetividade ou interioridade. Nesta força merece destaque o “Behaviorismo Metodológico” de Watson, que se apoiando no positivismo e no pragmatismo, atacou a introspecção e tudo no humano que sugerisse uma “vida interior”, pondo o comportamento do organismo como um todo como objeto de estudo (FI- GUEIREDO, 1991, p. 82). Outra grande influencia neste movimento foi “bahaviorismo radical” de Skinner que dom i- nou durante muitos anos o cenário do mundo psicológico, por atender ao ideal de ciência positivis- ta e mecanicista da época. O trabalho de Skinner foi considerado um avanço em relação ao beha- viorismo de Watson, por não negar a existência dos estados internos, contudo permanece fiel ao ideal de que o comportamento observável deve ser o objeto de estudo da psicologia, não sendo dado nenhum interesse a significados ou simbolos, mas as variáveis que afetam o comportamento. Poderíamos dividir o behaviorismo em três grandes movimentos: O primeiro foi a Psicologia Comportamental clássica, representada pela Análise Experimental do Comportamento de B. F. Skinner, que focava-se exclusivamente no condicionamento e alteração de comportamentos indesejáveis; O segundo movimento foi encampado pela Psicologia Cognitivo-Comportamental, sendo destaque a Psicologia Cognitiva de Aaron Beck, considerado o pai desta abordagem, que mantêm o foco em alterar comportamentos indesejáveis, mas dá maior enfoque para mudar pensamentos prejudiciais, ao contrário do movimento anterior, que considerava que pensamentos e emoções não afetavam os compor- tamentos externos; O terceiro movimento, representada pela Terapia de Compromisso pela Aceitação (ACT) de Steven Hayes, um psicólogo da Universidade de Nevada em Reno, que ampliou o leque de técnicas já desenvolvidas nos movimentos anteriores, sendo destaque o uso da meditação da plena atenção do Budismo (Mindfulness) como prática terapêutica. No trabalho de Steven Haynes temos uma aproximação da primeira força com a espiritua- lidade através do uso da meditação. Na década de setenta, Pierre Weil em seu livro “Mística e ciência” já antevia esta aproximação, quando sugere que estudos na área do “behaviorismo” pode- riam trazer grandes contribuições para o desenvolvimento da psicologia transpessoal, pois a partir do estudo do controle de funções orgânicas involuntárias, tais como circulação sangüínea e ondas 27 eletroencefalográficas, realizado em iogues ou meditantes treinados poderíamos ter acesso a uma melhor compreensão de fenômenos estudados na transpessoal. O trabalho pioneiro de Fracine Shapiro (2007, p.43) com EMDR6 faz uso regular da medi- tação e segundo sua autora “é, com certeza, coerente com as conjeturasde Maslow [...]”. David Grand, um dos principais representantes do EMDR, em palestra em 2008 sobre “A essência do EMDR” destaca o seu aspecto espiritual. No meio transpessoal, os trabalhos pioneiros de C. A. Tart (1972, 2000) foram uma das primeiras tentativas bem sucedidas de estudo dos estados alterados de consciência usando o ar- senal metodológico comportamental, sendo seu trabalho referência nos estudos nesta área. Segunda Força – Psicanálise e derivadas O mundo da Salpêtrière, na França, rendia-se ao rei das histéricas, Jean-Martin Charcot, que com suas impressionantes demonstrações hipnóticas (meio clínicas, meio circenses) liberava, por sugestão, os pacientes de seus sintomas. Este “rei” atraiu para a corte parisiense outro grande pesquisador, Freud, que juntamente com Breuer, desenvolveu o “método catártico”, a partir de exaustivo estudo sobre histeria. Freud veio a aperfeiçoá-lo, nascendo daí “a livre associação”. O método da “livre associação” permitiu a Freud a construção de sua metapsicologia, com suas tópicas (1 a . Tópica: consciente, pré-consciente, inconsciente; 2 a . Tópica: id, ego e superego), oferecendo assim uma teoria acerca do inconsciente e sua dinâmica, bem como do papel da sexu- alidade na etiologia das neuroses. Apesar de ter o dualismo como marca fundante (spaltung) e não ter dado a atenção devida ao fenômeno de consciência cósmica, denominado na época de “sentimento oceânico” 7 , a psicaná- lise resguardou para si um estatuto metapsicológico. Rodrigué (1995) destaca a relação entre Freud, “o animal humano” e seu “amigo oceân i- co”, Romain Rolland - ideólogo, pacifista, ganhador do Prêmio Nobel da Paz e autor de “Ghandi”- como uma das possíveis causas para “o sentimento oceânico” ter ganho um espaço na teoria freu- diana. Depois de ler “O futuro de uma ilusão”, Romain Rolland censura Freud por não ter colocado na base do sentimento religioso aquilo que ele denomina “sentimento oceânico”, termo tomado de empréstimo dos místicos hindus. Esse sentimento é , para ele, “completamente independente de todo dogma, de todo credo, de toda igreja constituída, de todo livro santo, de toda esperança de so- brevida pessoal etc. Trata-se da sensação simples e direta do Eterno (...)”. Freud não se sente à vontade nessa frente. Ele escreverá em “O mal-estar na cultura”: 6 Dessensibilização e Reprocessamento Através de Movimentos Oculares 7 Consciência cósmica ou mais modernamente consciência transpessoal. 28 “As opiniões expressas por um amigo muito admirado (...) causaram-me muita dificuldades. Não consigo descobrir em mim esse sentimento „oceânico‟. Não é fácil lidar cientificamente com sentimentos” (...) Podemos considerar o primeiro capítulo de “o mal-estar” uma carta aberta a seu amigo francês. Se ele não expe- rimentou o sentimento oceânico, “pode, pelo menos, outorgar-lhe, um estatuto metapsicológico”. Trata-se do retorno ao estado de fusão do ego primitivo do be- bê a uma simbiose primordial com a mãe.” (RODRIGUÉ, 1995, vol.03, p. 162) Destacaremos a seguir alguns dos pioneiros do estudo do psiquismo e seus interesses por alguns tópicos que estão na meta de pesquisa da Psicologia Transpessoal. Daremos um destaque especial a Carl Jung por ser considerado um de seus precursores. Sigmund Freud Quando buscamos, no Professor de Bergasse, referências acerca de fenômenos que se aproximem da espiritualidade, deparamo-nos com dois momentos: o primeiro é do “Jovem Freud”, com seus pensamentos voltados para a ciência e a medicina e o segundo o do “Velho Freud”, mais maduro, interessado em problemas culturais e humanos amplamente concebidos, e em assuntos relativos à alma. Bettelheim (1982, p.86), escreveu que Freud por várias vezes falou sobre a alma, mas es- tas referências foram retiradas da tradução inglesa que se centralizou no “jovem Freud”. Para Freud a alma se referia à psique como um todo, apesar de em muitos momentos ter usado estes termos indistintamente, como se vê a seguir: Psique é uma palavra grega, e a tradução para ela é “alma”. O trata- mento psíquico significa, pois, “o tratamento da alma”. Uma pessoa poderia, as- sim, pensar que o sentido disso é: tratamento dos fenômenos mórbidos da vida da alma. Mas tal não é o sentido desse termo. O tratamento psicológico pretende ter um significado muito maior; a saber, o tratamento que tem origem na alma, o tratamento dos distúrbios psíquicos ou corporais - em graus que influenciam so- bretudo e , de modo imediato, a alma do homem. Além de seu interesse por temas como “alma”, pode-se ressaltar estudos de Freud (1963) sobre telepatia e parapsicologia, bem como seu vínculo com a Sociedade de Estudos Psíquicos, instituição de pesquisa de temas parapsicológicos e “ocultos”. Sendo relevante pontuar o conflito com Romain Rolland acerca do “sentimento oceânico”. Epstein, M., apud Scotton, B.W.; Chinen, A.B. e Battista, J.R. (1996), identifica três grandes contribuições do pensamento freudiano para a Psicologia Transpessoal: a descrição do sentimento oceânico como a apoteose da experiência religiosa. A- pesar da interpretação limitada deste fenômeno como uma regressão à união fusi- onal com a mãe ter influenciado uma imensa gama de pesquisas reducionistas, 29 Freud oferece-lhe um estatuto metapsicológico, o que segundo Rodrigué (1995, vol.03, p.162), não é pouco para alguém que não havia experimentado este fenô- meno; suas experiências com manejo da atenção, primeiramente com a hipnose, depois com a associação livre e por fim, com a atenção flutuante. A atenção flutuante se aproxima a estados descritos a partir dos treinamentos em meditação propostos pela transpessoal; a noção de além do princípio do prazer e a tentativa de rompimento do sofrimento neurótico a partir da sublimação. O desencontro de Freud com fenômenos que fugiam ao paradigma dominante à sua época foi expresso no seu lapso de memória, assim apontado por Rodrigué (1995 vol 02, p.162, grifo nosso): Numa manhã de dezembro de 1910, Freud partiu, vamos supor, sigilo- samente, para se encontrar com Jung e Bleuler em Munique. Motivo da expedi- ção? Visitar Frau Arnold, uma renomada astróloga. Mas a visita não teve lugar porque Freud - conta-nos Jones - não conseguiu lembrar o nome da astróloga”. O lapso freudiano marca um tempo, uma forma de pensar, expressando a ambivalência vi- vida no meio científico em relação a fenômenos que ainda não podiam ser explicados. Ao mesmo tempo traz a marca antecipadora de todo visionário, ou grande gênio, pois antecipa os interesses de pesquisadores futuros, indicando uma imensa gama de possibilidades de investigação. Sandor Ferenczi A psicanálise durante um longo período ocupou um lugar de destaque nas pesquisas vol- tadas ao psiquismo humano, por isso buscamos entre antigos “mestres” referências a uma dimen- são além do pessoal. Nesta busca deparamo-nos com Ferenczi, “o vizir da psicanálise, o Heráclito da psiquiatria húngura, o interlocutor de Freud em Siracusa”, nas palavras de Rodrigué (1995, vol 02, p. XXXI). Nascido em Budapeste, em 1873, o oitavo de uma família de onze filhos, sua genialidade não passou despercebida para Freud, de quem se tornou discípulo fiel, talvez um dos poucos das primeiras gerações de grandes analistas a não romper com o professor. Suas contribuições à teoria psicanalítica são inúmeras; aqui registramos o Ferenczi “Astró- logo da Corte dos Psicanalistas”. (Ibid., p.162, vol.2) Segundo Rodrigué (1995), Ferenczi publicou em 1898, na revista Gyógiászat, editada por Miksa Schacter, grande figura paterna de sua vida, o ensaio intitulado “Espiritismo”,no qual o autor 30 narra um episódio que merece destaque, haja vista envolver um dos focos de pesquisa da Psicolo- gia Transpessoal que são os estados alterados de consciência. Vejamo-lo: Certo dia, ele participou de uma reunião mediúnica organizada por um velho amigo espírita. Na sessão, Ferenczi perguntou: “Em quem estou pensando neste momento?”. A médium respondeu: “A pessoa na qual você está pensando, acaba de levantar-se da cama para logo pedir um copo de água e cair morta”. Ferenczi, na hora, lembrou que tinha marcado uma consulta médica. Foi às pressas à casa do paciente onde pôde constatar a veracidade do que a médium dissera. (, Ibid, Vol 02, p.160) No que diz respeito à telepatia, transferência de pensamento na linguagem freudiana, Fe- renczi procurou em Berlim a médium e clarividente famosa, Sra. Seidler. De posse de uma carta de Freud, “entusiasma-se com revelações da médium sobre a pessoa do professor”. Ferenczi em carta revela ao professor: Admitindo que ela possui capacidades realmente fora do comum, talvez elas se devam a uma espécie de “leitura de pensamento”, isto é, leitura de meus pensamentos. A auto-análise profunda que realizei depois da sessão, levou-me à dita hipótese. A maioria das declarações a respeito do senhor correspondem a processos mentais que eu realmente tive, mas também a processos mentais que posso ter recalcado... Além da teoria da “indução psíquica”, podemos contemplar a possibilidade de uma hiperestesia extática‟ . O discípulo, contudo, mostra-se cauteloso: Quero assegurar-lhe que não há perigo de que eu sucumba ao ocultis- mo, devido a esta experiência, ainda obscura.” (Ibid, vol.2, p.162) Embora seja pouco provável que conforme pontua Rodrigué “o tema do oculto e das ciên- cias parapsicológicas, em geral, ocupasse pouco espaço nos encontros das quartas-feiras do gru- po freudiano, o assunto operava como contra-ponto. Nessa procura pelo “espiritual”, Ferenczi es- tava à frente de Jung”, embora se mostrasse mais reticente. Otto Rank Ainda no meio psicanalítico, temos o “O Trauma de Nascimento” de Otto Rank, surgido no ano de 1923, entre as marcas do câncer de Freud. O escrito rankiano despertou no meio analítico, inicialmente, uma reação de franca e quase total aceitação. Afirma-se que Freud teria comentado com Ferenczi: Não sei se 66% ou 33% do livro é verdadeiro mas, em qualquer caso, é o mais importante progresso desde a descoberta da psicanálise”. O que não é pouco na boca de Freud” (RODRIGUÉ,1995, p.88. vol.3) 31 Além de considerar o nascimento como um dos eventos importantes na vida do indivíduo em "A Interpretação dos Sonhos" 8 (segunda edição), Freud assinalou que “o ato de nascimento é a primeira experiência de ansiedade e, assim, passa a ser a fonte e o protótipo do entendimento da ansiedade” - o trauma de nascimento despertou uma verdadeira guerra no meio psicanalitico, bem como abriu margens para que pesquisadores desenvolvessem uma teoria mais ampla a partir des- te fato, como é o caso das matrizes perinatais de Grof (1988, 2000). Freud enviou uma circular aos membros do Comitê com o objetivo de aplacar os ânimos acirrados. A citação de trechos desta circular depõe acerca da maturidade do “velho Freud”, atingi- do pelo câncer. Como se pode conferir em citação de Rodrigué (1995, vol.3, p. 89-91) a seguir transcrita: [...] incomparavelmente mais interessante. O trauma do nascimento de Rank. Não hesito em dizer que considero essa obra altamente significativa, que ela me deu muito o que pensar e que ainda não cheguei a ter um juízo significa- tivo sobre ela. Há muito estamos familiarizados com fantasias relativas ao útero e reconhecemos sua importância, mas devido ao realce que Rank lhes deu, elas alcançaram uma significação muito maior e revelam de imediato o fundo biológi- co do Complexo de Édipo. Repito em minha própria linguagem: o trauma de nascimento deve estar associado a alguma pulsão que visa a felicidade, com- preendendo-se aí que o conceito de felicidade é usado, sobretudo, em sentido erótico. Rank, então, vai além da psciopatologia e mostra como os homens alte- ram o mundo externo a serviço desse instinto, ao passo que os neuróticos pou- pam-se desse problemas ao tomar o caminho mais curto de fantasiar o retorno ao útero. Se à concepção de Rank acrescentarmos a de Ferenczi - a de que o homem pode ser representado por seus genitais - então pela primeira vez temos uma derivação do instinto sexual normal em que se encaixa nossa concepção do mundo. Naturalmente, bem mais poderia ser dito sobre isso e espero que os pensamentos despertados por Rank tornem-se objeto de muitas discussões frutí- feras. Deparamo-nos aqui não com uma revolta, uma revolução, uma contradi- ção de nosso conhecimento assegurado, mas com um interessante acréscimo que nós e outros analistas temos de reconhecer.” As reações a esta circular foram exacerbadas, Ernest Jones afirma que Freud foi “por de- mais tolerante”. O clima estava alterado e Freud nesta altura da vida reflete: “Meus discípulos são mais ortodoxos do que eu” (ibid, p. 91). Poder-se-ia arriscar a hipótese de que ele estivesse preste a continuar seu relacionamento com Rank, mas o movimento psicanalítico talvez pela inércia ine- rente às instituições não lhe permitiu outra escolha senão o caminho da separação. 8 Nota de rodapé da 2 a Edição 32 Assim “O Trauma do Nascimento”, que distanciou discípulo e mestre, levou Freud a revisar sua teoria referindo-se a posição de Rank “que originariamente era a minha - de que o afeto da angustia é conseqüência do ato do nascimento e uma repetição da experiência original, forçou-me, uma vez mais, a revisar o problema da angústia”. (Ibid., vol.3, p.102) Ora, isso significa que Freud admite o mérito de Rank quanto a travessia traumática do feto pelo canal estreito da bacia, referindo-se ao evento como protótipo de angústia primeva para o indivíduo à medida que se constitui em inevitável situação de ameaça à vida e ao mesmo tempo um caminho único a ser percorrido. Para além dessa situação inicial de perigo, frente a outras fon- tes geradoras de traumas, somando um total de quatro situações de perda a serem iniciadas pela chamada “perda do nirvana intra-uterino”, temos na seqüência (ameaça de): perda da simbiose materna, perda do pênis e perda do amor do superego. Desse modo, as contribuições de Rank acerca do trauma de nascimento o colocam entre os precursores da Psicologia Transpessoal, talvez um dos primeiros a indicar uma amplitude da consciência para além dos limites impostos pela teoria psicanalítica dominante. Sua teoria indica- nos a possibilidade de mergulharmos em níveis mais profundos da psique. Grof (1988) destaca o intenso trabalho de Rank, construindo a partir do mesmo um arca- bouço teórico para dar conta das experiências que envolvem a gravidez e o nascimento. Este autor elabora a teoria das matrizes perinatais e, em homenagem a Rank, denomina de nível rankiano do processo terapêutico a fase da terapia na qual emergem conteúdos perinatais de forma mais con- densada. Carl Jung Carl Gustav Jung, descendente do mítico Sigmund Jung, alquimista de Mainz 9 , nasceu em 26 de julho de 1875 em Kesswil, pequeno povoado à beira do lago Constanza, no cantão de Thur- govia. O interesse por fenômenos que estavam fora do âmbito de estudo da psiquiatria de sua época, bem como suas ricas contribuições ao desenvolvimento de uma psicologia do sagrado, põem este autor como um dos precursores da Psicologia Transpessoal. A família de Jung parece ter estimulado amplamente seu mundo imaginário. Durante a suainfância experiências transpessoais podem ser assinaladas, como por exemplo: sendo solicitado a produzir um ensaio, Jung ficou bastante sobrecitado (estado alterado de consciência). Neste esta- do produziu um excelente ensaio e foi acusado de plágio pelo professor. Sem conseguir convencê- lo, e sofrendo por alguns dias, Jung escreveu acerca do contato com um „ser invisível‟ que o teria ajudado a fazer o texto. 9 “Ancestral de Carl Gustav, ativo na primeira metade do século XVII, conhecedor de Paracelso.” 33 Na escola Médica de Zurich, Jung escreveu sua tese sobre transe e estados dissociativos, a partir das experiências com sua prima e médium Helene Preiswerk. Depois de sua graduação trabalhou com Eugen Bleuler, um dos maiores mestres da psiquiatria, no Hospital de Burgholzh em Zurique, o que lhe deu uma vasta experiência com psicóticos e colocou-o em contato com o campo do simbolismo tendo-se, por exemplo um dos seus casos em que um paciente falou de um sol fálico, figura posteriormente encontrada por Jung na cultura egípcia. O encontro de Freud e Jung propiciou ao primeiro um suporte acerca da visão psicanalítica do inconsciente. No entanto as divergências entre ambos não tardariam em aparecer. Em Viena, Freud e Jung discutiram sobre fenômenos parapsicológicos, quando ocorreu um barulho na estan- te de livros do escritório de Freud. Jung disse que tal fenômeno refletia um dos tópicos que esta- vam discutindo e predisse um novo barulho. Freud discordou desta possibilidade, mas um segundo barulho ocorreu. Freud depois escreveu para Jung dizendo que após sua partida os barulhos con- tinuaram, porém os considerava sem importância. (Memórias, Sonhos e Reflexões). Uma das possíveis causas para o rompimento entre Freud e Jung deveu-se ao fato de este último insistir em destacar temas espirituais em seu foco de pesquisa. Pode-se considerar as contribuições de Jung para Psicologia Transpessoal em quatro pon- tos: a noção que desenvolvimento psicológico poderia incluir o crescimento de altos ní- veis de consciência e continuar ao longo da vida; o conceito de transcendência é útil para cada indivíduo; a prontidão para explorar visões de outras culturas multicentenárias bem como de levantar insights dentro da cultura ocidental mostraram-se relevantes para o traba- lho clínico atual; o reconhecimento de que cura e crescimento freqüentemente resulta de experiên- cias simbólicas ou de estados alterados de consciência, os quais não podem ser reduzidos à racionalização. Estas contribuições se expressam nos estudos junguianos acerca dos arquétipos e mitos, inconsciente coletivo, sonhos, tipos psicológicos, da abordagem simbólica, da sincronicidade, e das dimensões espirituais da psique, que serviram de base para a fundamentação da Psicologia Transpessoal no Ocidente. Jung também pode ser visto como um dos primeiros teóricos a estudar, numa perspectiva psicológica, fenômenos como transes mediúnicos ou não, yoga, espiritualidade dos nativos ameri- canos, xamanismo africano, o I Ching, alquimia e gnosticismo. 34 As publicações que mais destacam o aspecto transpessoal na obra de Jung são: Sete Sermões para um Morto; Uma Resposta a Jó; Memórias, Sonhos e Reflexões (JUNG, 2002). É possível perceber a ousadia de Jung frente ao meio acadêmico a partir de sua declaração a BBC, quando questionado acerca da existência de Deus: “Eu não penso que ele existe, eu sei que ele existe”. Terceira Força – Humanismo/Existencialismo Weil (1978b, p. 14-15) chama a atenção para o fato de que a terapia e a psicologia exis- tencial têm focalizado já há muito tempo a importância da dimensão fenomenológica do “aqui e agora” para emergência do “encontro existencial” e das suas relações com os valores superiores da humanidade, tais como a beleza, a verdade e o amor. Para autores como Laing e Maslow, a consciência cósmica constitui o meio e o objetivo final da terapia. Neste terreno também há pro- blemas a levantar e a solucionar. Existe uma necessidade pulsional de se chegar à consciência cósmica? Os valores ligados a ela são „instintóides”? Como chegar à consciência cósmica sem riscos de descompensação? Por que a experiência cósmica tem o valor terapêutico que se lhe tem atribuído? Quais as relações entre a realidade da experiência cósmica e a realida- de da vida quotidiana?” Os trabalhos pioneiros de Maslow (apud Walsh e Vaughan, 1995) marcaram o início pro- missor das pesquisas nesta área. Sendo possível encontrar nas obras finais de Carl Rogers (1983) indícios de sua abertura para os estudos transpessoais. Em “Tornar-se Transpessoal” Boainain Jr. (1998), destaca que Carl Rogers, na década final de sua vida, teria passado por um processo de transformação transpessoal e, ultrapassando os modelos tradicionais da psicologia humanista, teria oferecido fundamentos para criação de uma “Abordagem Transpessoal Rogeriana”. Este livro resgata o momento de passagem do humanismo para o transpessoal. Carl Rogers Considerado um dos principais representantes da Terceira Força em Psicologia, Rogers foi um dos primeiros autores que forneceu informações acerca das possibilidades de ampliação do campo de pesquisa na área psicológica. Tornando relevante a possibilidade de abertura para novas idéias Rogers (1983, p. 26) va- loriza àquelas que dizem respeito ao espaço interno – o chamado reino dos poderes psicológicos e das habilidades psíquicas da pessoa humana. Nesse sentido assim se expressa: 35 Estou aberto a fenômenos ainda mais misteriosos - à premonição, à te- lepatia, à clarividência, às auras humanas, às fotografias kirlianas, e até mesmo às experiências que se dão fora do corpo. Estes fenômenos podem não corres- ponder às leis científicas conhecidas, mas talvez estejamos no caminho da des- coberta de uma nova ordem, regida por outros tipos de leis. Sinto que estou a- prendendo muito com uma nova área de conhecimentos, e considero esta expe- riência agradável e empolgante. Esta abertura de Rogers marca uma passagem importante dentro do movimento psicológi- co, pois mostra o interesse dos psicólogos humanistas por uma nova dimensão em psicologia, que mais tarde passou a denominar-se Psicologia Transpessoal, e apontava novos rumos para a pes- quisa. Importante ressaltar que em “Reflexões sobre a Morte”, Rogers (1983, p. 29) nos ensina um dos pontos considerados centrais da Psicologia Transpessoal: a morte. A minha crença de que a morte é o fim foi modificada, no entanto, por coisas que aprendi na década passada. Fiquei impressionado com os relatos de Raymond Moody (1975) sobre as experiências com pessoas que estiveram pró- ximas da morte a ponto de serem declaradas mortas, mas que voltaram à vida. Impressionam-me alguns relatos sobre reencarnação, embora eu considere uma bênção muito duvidosa. Interesso-me pelos trabalhos de Elisabeth Kübler-Ross e por suas conclusões sobre a vida após a morte. Em atualização a estas afirmações o autor escreve: “Vivendo o Processo de Morrrer”. Nele busca reorganizar suas considerações sobre o processo da morte, afirmando a nova visão quando destaca: “contrastam frontalmente com algumas passagens deste capítulo, escrito há apenas dois anos atrás” (ibid. p.31). A experiência de falecimento de sua esposa traça um bonito percurso na reorganização do conceito de morte, e marca a transformação operada em sua mente flexível e disponível ao novo. Modificaram completamente minha concepção do processo da morte. Agora considero possível que cada um de nós seja uma essência espiritual con- tínua, que se mantém através dos tempos e que ocasionalmentese encarna num corpo humano.” (Ibid, p. 31) Em “Estados Alterados de Consciência” Rogers (1983) destaca os trabalhos de Grof e Grof (1977) e Lilly, que apontam a capacidade das pessoas ultrapassarem o nível comum de consciên- cia, conforme transcrito a seguir: Seus estudos parecem revelar que em estados alterados de consciên- cia, as pessoas entram em contato com o fluxo da evolução e apreendem seu significado. Este contato é vivenciado como um movimento que os aproxima de uma experiência transcendente de unidade. É como se o eu se dissolvesse nu- 36 ma região de valores superiores, especialmente de beleza, harmonia e amor. A pessoa sente-se como se ela e o cosmos fossem um só. A realização obstinada de pesquisas parece que vem confirmando as experiências de união dos místi- cos com o universo.” (ROGERS, 1983, p.47) Diante desse cenário, percebe-se que Rogers revela o contato com as produções científi- cas da então nascente área de Psicologia Transpessoal, citando os trabalhos Grof, um de seus expoentes, responsável por valorosa construção cartográfica da consciência nesta área. Com o desenvolvimento de pesquisas que incluíam a dimensão espiritual da vida humana, vários psicólogos humanistas passaram a se interessar por uma série de estudos até então negli- genciados pela Psicologia Humanista. 3. Espiritualidade e os pioneiros do desenvolvimento humano Apesar de a modernidade ter transformado a sua grande contribuição, “diferenciações das esferas de valores culturais” 10 (WILBER, 2002, p. 76), em dissociação, fragmentação e alienação, ela também apresentou sua contribuição ao modelo de desenvolvimento que inclui a dimensão espiritual. No campo da psicologia, os estudos sobre o desenvolvimento emergiram no final do século XIX, tendo sofrido diversas as influências. Como destaca Charlesworth (1992, p.5): Como é habitualmente reconhecido, a psicologia do desenvolvimento tem uma rica história. Seus precursores incluem eminentes filósofos, pedagogos, e médicos cujas idéias e observações indubitavelmente têm tido um impacto a- cumulativo sobre esta ciência do comportamento infantil e do desenvolvimento no século dezenove. Mas um conjunto tão vasto de perspectivas ao longo dos séculos tornou difícil identificar ancestrais diretos da psicologia do desenvolvi- mento. Cairns (1992) aponta que as primeiras tentativas de compreensão científica do desenvol- vimento surgiram com as contribuições de James Mark Baldwin, considerado por Wilber (2002), como um dos primeiros a esboçar modelos integrais de desenvolvimento. Baldwin, contemporâneo de William James e de Peirce, é um nome central na psicologia moderna, sendo o primeiro a definir de forma precisa o que é um estágio de desenvolvimento, além de apresentar a primeira versão de estágios do desenvolvimento religioso. Seu esquema de desenvolvimento cognitivo foi adotado por Piaget e por Kohlberg, contudo foi relegado ao esquecimento, graças ao predomínio do behavio- rismo americano. A importância de Baldwin pode ser vista nas palavras Kohlberg (apud WILBER, 2002, p. 98) a seguir: 10 Diferenciação sobretudo da arte, da ética e da ciência que passam a seguir seus próprios caminhos, livres das pressões e imposições das outras esferas. 37 “Quando eu li Baldwin mais profundamente, compreendi que Piaget de- rivou de Baldwin todas as idéias básicas com as quais começou na década de 20: assimilação, acomodação, esquema e adualismo, „egocentrismo‟ ou o cará- ter indiferenciado da mente da criança. Também reconheci que a obra global de Piaget, a criação de uma epistemologia genética de uma ética que utilizariam a epistemologia para apresentar problemas para a psicologia do desenvolvimento e que utilizariam a observação desenvolvimentalista para ajudar a questões epis- temológicas, também tiveram origem em Baldwin” Kohlberg (apud WILBER, 2002, p. 98) reconhece que seu modelo dos seis estágios de de- senvolvimento moral é fruto das contribuições de Baldwin, e aponta que os níveis básicos de de- senvolvimento (pré-convencional, convencional e pós-convencional) 11 também derivam das idéias deste autor, como podemos ver na citação a seguir: “... Nossos dados sugeriram que as distinções em três níveis de Bald- win [adualista, dualista e ética] definiam „estágios‟ (ou subníveis) na série básica, pré-convencional, convencional e pós-convencional (autônoma-ética)” Baldwin também é reconhecido como um dos primeiros a oferecer explicações sobre os estágios do desenvolvimento espirituais, destacando que estes não poderiam ser reduzidos a inte- resses econômicos, científicos ou morais. Neste campo suas idéias são extremamente atuais, co- mo destaca Wilber (2002, p. 99): “... Baldwin reconhecia que o desenvolvimento da consciência levava a, e culminava em, uma experiência estética num grau supremo, que unia simulta- neamente tanto a moral como a ciência mais elevadas. Essa é, naturalmente, uma versão do idealismo estético (derivado de Kant, de Schelling e de Schiller), mas que Baldwin retrabalhou em seu próprio sistema, denominando pancalismo, palavra que significa que a consciência cósmica é „totalmente abrangente, sem referência alguma fora de si mesma‟. Essa experiência da unidade é prefigurada na contemplação de uma bela obra de arte. A própria obra de arte existe no mundo objetivo, exterior, e, enquanto objeto, pode ser estudada pela investiga- ção científica. Porém, a beleza e o valor da obra de arte é um estado interior, um estado subjetivo, trazido à arte por aquele que a contempla (embora esteja fun- damentado nas características objetivamente reais da obra). ... „é da natureza de tal experiência sintética ir além de objetos estéticos específicos de contemplação até a própria realidade como um todo. Essa experiência sintética inclui a idéia de 11 Biaggio (2002, p.24) destaca que no nível pré-convencional, “os indivíduos ainda não chegaram a entender e respeitar normas morais e expectativas compartilhadas”, predominando atitudes pragmática e he- donista. No nível convencional há uma concentração nos sentimentos coletivos dos demais, sendo que “o self identifica-se com, u internaliza, as regras e expectativas dos outros, especialmetne das autoridades; e no pós- convencional há uma construção pessoal do sujeito que define moral em termos universais de justiça, direitos naturais e respeito à pessoas, independentemente de sexo, raça, crença e ou religião, ou seja, “diferencia o self das regras e expectativas dos outros e define os valores morais em termos de princípios próprios”. 38 Deus, mas agora se vê que ela se refere a essa totalidade orgânica ou espiritual em cujo âmbito o eu e o mundo podem finalmente ser conhecidos‟. Essa corren- te estética também passa por um desenvolvimento em etapas, que culmina na experiência consumada da consciência cósmica.” Biaggio (2002, p. 29), indica que apenas “3% a 5% das pessoas” apresentam o raciocínio do estágio pós-convencional seis, o que levou muitos teóricos a questionar sua validade, contudo Kohlberg, além de defender o estágio 6, como realidade empírica e teórica, postula nos últimos anos de sua vida 12 a existência de um sétimo estágio, “no sentido lato, relacionado com orienta- ções éticas e religiosas, que vão além de sua concepção de justiça. O sétimo estágio envolve a construção de um senso de identidade ou unidade com o ser, com a vida, ou com Deus” (Ibid, p. 38). Kohlberg aponta a necessidade do estágio sete como um caminho para resolver o impasse presente no “relativismo colocado pela distinção entre princípioséticos e preocupações egoístas ou hedonistas que existem no estágio 6” (Ibid, p. 40) e destaca o estóico Marco Aurélio como e- xemplo deste último estágio. “O conteúdo da fé de Marco Aurélio, como o de todos os estóicos, é simples e quase duro. começa com a crença de que o universo é ordenado, cognoscível e em evolução. Ao referir-se ao princípio último, ordenador, racional e evolutivo do universo, Marco Aurélio não tenta separar Deus da natureza. Às vezes ele chama esse princípio de Deus, às vezes de natureza. Desta crença ele deriva uma visão de lei natural que lhe dá força de agir em termos de princípios universais de justiça em um mundo injusto. isso também lhe dá a paz que vem de sentir-se a si mesmo como parte finita de um universo infinito”. O sétimo estágio, “Espiritual universal”, raramente aparece nas citações quando da apre- sentação da teoria dos estágios do desenvolvimento moral, contudo o trabalho de James Fawler (1992), sobre os “Estágios da Fé”, seguiu as pistas deixadas por Kohlberg e se destacou como uma linha de estudos no campo da espiritualidade, apresentando seis estágios, que vão do primei- ro, fé mágico-projetiva, até o sexto a “fé universalizante”. Estes pesquisadores deixaram enormes contribuições para o estudo do desenvolvimento humano e iniciaram pesquisas que contribuíram para o estabelecimento de uma linha de desenvol- vimento “espiritual” que englobam trabalhos na área de solicitude, sinceridade, preocupação, fé religiosa e estágios meditativos. Assim como, gradativamente se desdobraram e revelaram, nas últimas décadas, uma gama de estudos sobre o imenso arco-íris de linhas de desenvolvimento que incluem a moral, os afetos, a auto-identidade, a psicossexualidade, a cognição, as idéias a respeito 12 Kohlberg morreu em 19 de janeiro de 1987, tendo convivido os últimos 16 anos de sua vida com extrema dor, decorrente de uma infecção intestinal contraída quando realizava pesquisas em Belize, na Amé- rica central. 39 do bem, a adoção de papéis, a capacidade sócio-emocional, a criatividade, o altruísmo, alegria, competência para se comunicar, os modos de espaço e tempo, a tomada pela morte, as necessi- dades, a visão de mundo, a competência lógico-matemática, as habilidades cinestésicas, a identi- dade sexual e a empatia, entre outras que contam com suporte de pesquisas empíricas. Wilber (2002, p. 43-44) destaca que essas linhas são “relativamente independentes”: “... significando que, em sua maior parte, elas podem se desenvolver independente umas das outras, em diferentes proporções, com dinâmicas dife- rentes e sob cronogramas diferentes. Uma pessoa pode ser muito avançada em algumas linhas, razoável em outras, inferior em algumas outras – e tudo ao mesmo tempo. Desse modo, o desenvolvimento global – a soma total de todas essas diferentes linhas – não mostra nenhum tipo de desenvolvimento linear ou seqüencial. ... No entanto, a maior parte das pesquisas continuou a constatar que cada linha de desenvolvimento tende a se desdobrar de uma maneira se- qüencial, holárquica: os estágios superiores de cada linha tendem a se desen- volver sobre estágios anteriores ou incorporá-los, não se pode pular nenhum es- tágio, e estes aparecem numa orem que não pode ser alterada por condiciona- mento ambiental nem por reforço social.” Assim, além de independentes, elas se desdobram de forma hololárquica através de um conjunto de ondas que incluem “um estágio físico/sensório-motor/pré-convencional, um estágio de ações concretas/regras convencionais, um estágio mais abstrato, formal, pós-convencional” (WIL- BER, 2002, p. 44) e os estágios “pós-pós-convencionais” ou transpessoais. Eis o retorno de uma versão resumida do Grande Ninho do Ser, como espaço de desenvolvimento geral ou potencial, que se desdobra do corpo (sensório-motor) para a mente (convencional e pós-convencional) e dai para o espírito (pós-pós-convencional). A pós-modernidade trouxe imensos desafios para os estudos na área da espiritualidade, pois enquanto a modernidade diferenciou os Três Grandes (Arte, Moral e Ciência), a pós- modernidade prometeu integrá-los numa abrangência inclusiva, integral e não-exclusivista, mas com freqüência abraçou a loucura aperspectiva, na qual, nenhuma postura é melhor que a outra e as hierarquias são vistas como marginalizantes, negando-se, assim, as distinções qualitativas de qualquer tipo, inclusive as pesquisas na área de desenvolvimento por incluírem hierarquias. Mas se devemos ter todas as posturas como igualitárias, por que então rejeitar o nazismo ou o racis- mo? Eis uma questão de difícil resposta para o aperspectivismo pós-moderno. As contribuições da pós-modernidade devem ser incluídas numa agenda integral de estudo da espiritualidade, pois a compreensão de que o mundo é, em parte, uma construção e uma inter- pretação, e que todo significado depende do contexto e estes são interminavelmente holônicos são fundamentais para ampliarmos a visão da integralidade e superarmos o reducionismo de leituras 40 precipitadas da “Grande Cadeia do Ser”, e assim, termos uma perspectiva mais abrangente do fenômeno humano. Percebe-se claramente o avanço dos estudos na área da espiritualidade e psicologia, con- tudo precisamos definir com mais clareza em que sentido este termo esta sendo utilizado. Com este objetivo, buscamos destacar a seguir algumas definições de espiritualidade formuladas a par- tir do referencial da psicologia do desenvolvimento e que englobam as contribuições da pré- modernidade, modernidade e pós-modernidade. Espiritualidade: algumas definições De forma geral, Wilber (2002, p. 147) destaca cinco definições de espiritualidade que apre- sentam interesse a um olhar psicológico transpessoal: A espiritualidade envolve os níveis mais elevados de qualquer uma das linhas de de- senvolvimento. A espiritualidade é a soma total dos níveis mais elevados das linhas de desenvolvi- mento. A espiritualidade é, ela mesma, uma linha de desenvolvimento separada. A espiritualidade é uma atitude (tal como a sinceridade ou o amor) que você pode ter em qualquer estágio em que esteja. A espiritualidade, basicamente, envolve experiências de pico, e não estágios. Estas cinco definições congregam aspectos importantes do fenômeno “espiritualidade” que nos parece importantes para sua compreensão, dentro de um modelo integral, neste sentido ire- mos abordá-las a seguir: 1. A espiritualidade envolve os níveis mais elevados de qualquer uma das linhas de desenvolvi- mento. Nessa perspectiva, a “espiritualidade” significa basicamente os níveis transpessoal, trans- racional, pós-pós-convencional de qualquer uma das linhas de desenvolvimento, como podemos perceber no exemplo abaixo: 41 Neste exemplo, as linhas de desenvolvimento interpessoal e afetivo seriam consideradas espirituais, pois apresentam os níveis mais elevados de desenvolvimento, tendo evoluído do nível pré-convencional ao convencional e deste ao pós-convencional até alcançar a sua dimensão mais ampla no pós-pós-convencional. Esta visão, conforme destaca Wilber (2002, p. 148) é muito co- mum e: “... reflete os aspetos da espiritualidade que incorporam as capacidades mais elevadas, os motivos mais nobres, as melhores aspirações; os “alcances maiores” da natureza humana; os mais altamente evoluídos, a extremidade crescente, a ponta de lança – todo o que aponta para os níveis mais elevados de cada uma das linhas.” Assim, a espiritualidade ou um dos seus aspectos particulares seguiria definitivamente um curso seqüencial ou em estágios, pois ela compreende, por definição, os estágios
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