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See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.net/publication/324824196 Morfologia do Português Book · January 2008 CITATIONS 5 READS 1,457 1 author: Some of the authors of this publication are also working on these related projects: Word reading - the interplay of morphological complexity and lexical access View project Collaboration on the study of the Aquisition and Development of Lexical Knowledge (European Portuguese) View project Alina Villalva University of Lisbon 62 PUBLICATIONS 55 CITATIONS SEE PROFILE All content following this page was uploaded by Alina Villalva on 02 May 2018. The user has requested enhancement of the downloaded file. https://www.researchgate.net/publication/324824196_Morfologia_do_Portugues?enrichId=rgreq-1a22e6549b8f122bcb39206fc298ec94-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzMyNDgyNDE5NjtBUzo2MjE4OTYzMDMzOTQ4MTdAMTUyNTI4MzA0MTgxMQ%3D%3D&el=1_x_2&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/publication/324824196_Morfologia_do_Portugues?enrichId=rgreq-1a22e6549b8f122bcb39206fc298ec94-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzMyNDgyNDE5NjtBUzo2MjE4OTYzMDMzOTQ4MTdAMTUyNTI4MzA0MTgxMQ%3D%3D&el=1_x_3&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/project/Word-reading-the-interplay-of-morphological-complexity-and-lexical-access?enrichId=rgreq-1a22e6549b8f122bcb39206fc298ec94-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzMyNDgyNDE5NjtBUzo2MjE4OTYzMDMzOTQ4MTdAMTUyNTI4MzA0MTgxMQ%3D%3D&el=1_x_9&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/project/Collaboration-on-the-study-of-the-Aquisition-and-Development-of-Lexical-Knowledge-European-Portuguese?enrichId=rgreq-1a22e6549b8f122bcb39206fc298ec94-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzMyNDgyNDE5NjtBUzo2MjE4OTYzMDMzOTQ4MTdAMTUyNTI4MzA0MTgxMQ%3D%3D&el=1_x_9&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/?enrichId=rgreq-1a22e6549b8f122bcb39206fc298ec94-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzMyNDgyNDE5NjtBUzo2MjE4OTYzMDMzOTQ4MTdAMTUyNTI4MzA0MTgxMQ%3D%3D&el=1_x_1&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/profile/Alina_Villalva?enrichId=rgreq-1a22e6549b8f122bcb39206fc298ec94-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzMyNDgyNDE5NjtBUzo2MjE4OTYzMDMzOTQ4MTdAMTUyNTI4MzA0MTgxMQ%3D%3D&el=1_x_4&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/profile/Alina_Villalva?enrichId=rgreq-1a22e6549b8f122bcb39206fc298ec94-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzMyNDgyNDE5NjtBUzo2MjE4OTYzMDMzOTQ4MTdAMTUyNTI4MzA0MTgxMQ%3D%3D&el=1_x_5&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/institution/University_of_Lisbon?enrichId=rgreq-1a22e6549b8f122bcb39206fc298ec94-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzMyNDgyNDE5NjtBUzo2MjE4OTYzMDMzOTQ4MTdAMTUyNTI4MzA0MTgxMQ%3D%3D&el=1_x_6&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/profile/Alina_Villalva?enrichId=rgreq-1a22e6549b8f122bcb39206fc298ec94-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzMyNDgyNDE5NjtBUzo2MjE4OTYzMDMzOTQ4MTdAMTUyNTI4MzA0MTgxMQ%3D%3D&el=1_x_7&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/profile/Alina_Villalva?enrichId=rgreq-1a22e6549b8f122bcb39206fc298ec94-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzMyNDgyNDE5NjtBUzo2MjE4OTYzMDMzOTQ4MTdAMTUyNTI4MzA0MTgxMQ%3D%3D&el=1_x_10&_esc=publicationCoverPdf Alina Villalva Morfologia do Português Universidade Aberta 2007 CAPÍTULO 1. SOBRE MORFOLOGIA 7 Objectivos 9 1.1 Definições de Palavra 10 1.2 Análise Morfológica e Formação de Palavras 1 1.2.1 Composicionalidade e lexicalização 22 1.2.2 Palavras possíveis, existentes e atestadas 26 1.2.3 Produtividade e bloqueio 27 1.3 A Morfologia na Gramática 29 1.4 Os Estudos de Morfologia 30 Tópicos de Recapitulação Geral 32 Exercícios 35 Leituras Complementares 36 CAPÍTULO 2. O LÉXICO DO PORTUGUÊS 37 Objectivos 38 2.1 Herança Latina, Substratos e Superstratos 40 2.2 A Neologia 1 2.3 Recursos Não-morfológicos na Formação de Palavras 44 2.4 Os Empréstimos 56 2.5 Sobre Arcaísmos e Dialectalismos 64 Tópicos de Recapitulação Geral 64 Exercícios 66 Leituras Complementares 68 Para Consulta 68 CAPÍTULO 3. UNIDADES LEXICAIS E CONSTITUINTES MORFOLÓGICOS 70 Objectivos 72 3.1 Unidades lexicais: tipos e propriedades 74 3.1.1 Propriedades inerentes 75 3.1.2 Propriedades de selecção 81 3.2 Radicais 84 3.2.1 Propriedades dos radicais nominais 87 3.2.1.1 Propriedades morfo-semânticas 87 3.2.1.2 Género 89 3.2.1.3 Classes temáticas 93 3.2.2 Propriedades dos radicais adjectivais 98 3.2.3 Propriedades dos radicais verbais 99 3.2.4 Propriedades dos radicais adverbiais 102 3.3 Afixos 102 3.3.1 Sufixos especificadores 103 3.3.1.1 Sufixos temáticos 103 3.3.1.2 Vogal de ligação 107 3.3.1.3 Sufixos de flexão 108 3.3.2 Sufixos derivacionais 111 3.3.3 Afixos modificadores 121 3.3.3.1 Afixação avaliativa 122 3.3.3.2 Prefixação 124 3.4 Assinatura Categorial 128 3.5 Relações lexicais 129 3.5.1 Famílias de palavras 130 3.5.2 Paradigmas lexicais 133 Tópicos de Recapitulação Geral 134 Exercícios 136 Leituras Complementares 138 Para Consulta 138 CAPÍTULO 4. A ESTRUTURA MORFOLÓGICA 140 Objectivos 142 4.1 Vazios morfológicos 148 4.2 Flexão 152 4.2.1 Sobre a variação em género 153 4.2.2 Sobre a variação em grau 156 4.2.3 Flexão em número 157 4.2.4 Flexão verbal 164 4.2.4.1 A flexão em tempo-modo-aspecto 164 4.2.4.2 A flexão em pessoa-número 170 4.3 Análise fonológica de processos morfológicos 174 4.3.1 Formação do plural dos nomes e adjectivos 174 4.3.2 Análise fonológica da flexão verbal 176 4.3.2.1 Supressão da vogal temática 177 4.3.2.2 Harmonização vocálica 179 4.3.2.3 Abaixamento da vogal do radical 181 4.3.2.4 Alterações da vogal temática 182 4.3.2.5 Verbos irregulares 184 ANEXO – Lista de Verbos Irregulares 186 Tópicos de Recapitulação Geral 187 Exercícios 190 Leituras Complementares 192 SUGESTÕES DE RESOLUÇÃO PARA AS ACTIVIDADES PROPOSTAS194 Capítulo 1 196 Capítulo 2 198 Capítulo 3 202 Capítulo 4 207 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 214 Nota Prévia Este manual trata de aspectos básicos da análise das palavras, quer no que diz respeito à descrição da sua estrutura morfológica, quer quanto à caracterização lexical dos seus constituintes. As questões fundamentais aqui tratadas são, pois: a distinção entre palavras simples e palavras complexas a distinção entre palavras complexas com uma estrutura composicional e palavras complexas lexicalizadas a identificação das principais propriedades dos constituintes morfológicos, ou seja, dos radicais (adjectivais, nominais e verbais) e dos afixos (temáticos, derivacionais e modificadores). a descrição da flexão Complementarmente, apresenta-se uma breve síntese da história do léxico do Português e faz-se uma ligação à fonologia, olhando para os casos em que a flexão desencadeia a intervenção de processos dessa natureza. Esta matéria, apresentada na secção 4.3, é da autoria de Maria Helena Mateus. Siglas e Abreviaturas ADJ adjectivo ADV advérbio CT constituinte temático F frase FLEX flexão IT índice temático N nome P palavra PN pessoa-número PP particípio passado RAD radical RADJ radical adjectival RADV radical adverbial RN radical nominal RV radical verbal SN sintagma nominal SP sintagma preposicional SUF sufixo SUFADJ sufixo de adjectivalização SUFADV sufixo de adverbialização SUFN sufixo de nominalização SUFV sufixo de verbalização T tema TADJ tema adjectival TMA tempo-modo-aspecto TN tema nominal TV tema verbal V verbo VT vogal temática [± ac] acentuável / inacentuável [± animado] animado / inanimado [± anterior] anterior / não-anterior [± comum] comum / próprio [± contável] contável /massivo [± fem] feminino / não-feminino [± graduável] graduável / não-graduável [± grego] helenismo / não-helenismo [± humano] humano / não-humano [± I] primeira[± II] segunda [± inacabado] inacabado / acabado [± latino] latinismo / não-latinismo [± N] nominal / não-nominal [± necessário] necessário / não-necessário [± passado] passado / não-passado [± plu] plural / singular [± possível] possível / não-possível [± presente] presente / não-presente [± V] verbal / não-verbal [1ª conj] 1ª conjugação [2ª conj] 2ª conjugação [3ª conj] 3ª conjugação 7 Capítulo 1. Sobre Morfologia 8 9 Objectivos Neste capítulo inicial pretende-se mostrar o que fundamenta a consideração da morfologia como um domínio da linguística, identificando: o seu objecto de conhecimento o modo como se articula com os demais domínios da linguística o caminho percorrido pela análise morfológica No final desta unidade, o aluno deverá: conhecer diversas definições de palavra e a especificidade deste conceito em morfologia compreender o que distingue a análise morfológica da descrição dos processos de formação de palavras saber identificar: o palavras simples e complexas o palavras variáveis e invariáveis o palavras complexas composicionais e lexicalizadas o palavras possíveis, existentes e atestadas entender o conceito de produtividade saber caracterizar alguns fenómenos de bloqueio compreender o lugar da morfologia na gramática conhecer as principais características de alguns modelos de análise morfológica 10 Morfologia não é um termo exclusivo dos estudos linguísticos: a botânica, a zoologia ou a geografia são algumas outras ciências que compreendem estudos desta natureza. Em sentido lato, morfologia remete para o conhecimento das formas, cabendo a cada domínio científico a explicitação de quais são as formas que constituem o seu objecto de estudo: a botânica poderá, então, reclamar para si, por exemplo, o estudo da „morfologia das fanerógamas‟, a zoologia tratará, entre outras, da „morfologia das aranhas‟ e a geografia ocupar-se-á, por exemplo, da „morfologia urbana‟. No âmbito dos estudos linguísticos, a morfologia dedica-se apenas ao conhecimento de um tipo específico de formas, que são as palavras. Mas dizer que a morfologia se ocupa do conhecimento da forma das palavras é, simultaneamente, dizer pouco e dizer demais: há aspectos da forma das palavras, como a sua realização fonética, que competem, não à morfologia, mas sim à fonologia ou à prosódia. E, inversamente, também não se pode afirmar que a morfologia se ocupa apenas da forma das palavras, dado que a morfologia também trata das relações que se estabelecem entre a forma, a função e o significado das palavras. O que constitui então o objecto de estudo da morfologia? Dois domínios distintos, embora fortemente inter-relacionados: o primeiro é o da análise da estrutura interna das palavras existentes e o segundo é o da descrição dos processos morfológicos de formação de novas palavras. Comecemos, então, por reflectir sobre o conceito de palavra, dado que a definição técnica exigida pela análise linguística se distingue do entendimento próprio do senso-comum e, ainda, porque uma definição técnica não é independente do subsistema da gramática que a propõe. 1.1 Definições de Palavra As palavras não ocorrem isoladamente, ocorrem integradas em frases, ou seja, em contínuos sonoros que podem (embora não tenham de) ser interrompidos por pausas. É o que sucede numa sequência como: (1) Inesperadamente, o ministro-sombra convocou uma conferência de imprensa e no final demitiu-se. Para um falante do Português, a identificação das palavras da sua língua só é problemática num número relativamente pequeno de casos, como ministro-sombra, conferência de imprensa ou demitiu-se, que a contagem do número de palavras presentes em cada uma destas sequências 11 A etimologia de palavra relaciona-a com a forma grega PARABOLE, que também está na origem do cognato parábola. Do significado original (i.e. „comparação‟) só a segunda será herdeira, pela comparação verbal que estabelece com uma dada sequência de factos, mas há outros cognatos, como parola, parolar, parlar ou palrar que mostram uma maior proximidade do actual valor semântico de palavra. Curiosamente, a correlata forma masculina (i.e. parolo) adquiriu um valor depreciativo que terá estado relacionado com um modo de falar menos prestigiado, mas a actual interpretação já perdeu essa memória. poderá suscitar dúvidas. Esta margem de dúvida é suficiente para concluir que a intuição dos falantes não oferece um grau de fiabilidade razoável, devendo a análise linguística enunciar critérios rigorosos que permitam identificar qualquer palavra de qualquer língua, ou seja, que permitam explicitar o conhecimento intuitivo dos falantes nativos e esclarecer as suas dúvidas neste domínio. Mas a definição de palavra é, ainda assim, uma questão complexa e tem dado origem a variados debates, dado que os diversos níveis de análise linguística usam critérios e procuram respostas não necessariamente coincidentes. Antes de mais, deve compreender-se que o contínuo sonoro pode ser segmentado de várias formas, de acordo com o conhecimento que os falantes possuem do sistema linguístico a que esse enunciado pertence. A canção Joana Francesa 1 , cuja letra inclui versos em Francês e em Português, mostra que uma mesma sequência fonética pode receber diversas interpretações, consoante ela é identificada como uma sequência de uma ou da outra língua. (2) Tu ris, tu mens trop Tu pleures, tu meurs trop Tu as le tropique Dans le sang et sur la peau Geme de loucura e de torpor Já é madrugada Accord’accord’accorda Mata-me de rir Fala-me de amor Songes et mensonges Sei de longe e sei de cor Geme de prazer e de pavor Já é madrugada Vem molhar meu colo Vou te consolar Vem mulato mole Dançar dans mes bras Vem moleque me dizer Onde é que está Ton soleil, ta braise Quem me enfeitiçou O mar, marée, bateaux Tu as le parfum De la cachaça e de suor Geme de preguiça e de calor Já é madrugada Accord’accord’accord’accord’accord’accord’accord’acorda 12 Esta transcrição respeita a grafia usada pelo autor, mas a grafia não condiciona a interpretação do oral: na sequência do verso dans le sang et sur la peau, geme pode ser compreendido como j’aime; tal como a sequência d’accord que sucede a já é madrugada não pode deixar de poder ser ouvida como acorda; e marée, bâteaux permite o reconhecimento como m(e) arrebatou. A segmentação do contínuo sonoro exige, pois, a identificação da língua em que é gerado, ou seja, é preciso reconhecer o sistema linguístico a que um dado contínuo sonoro pertence para conseguir identificar as palavras que o constituem. É claro que a ambiguidade fonética também pode afectar sequências pertencentes a um único sistema linguístico 2 . Rodrigues Lapa (1945, 1977: 61, 64) apresenta dois exemplos de equívocos de segmentação, sendo que o primeiro se apresenta como um caso de manipulação política e o segundo como uma pequena anedota: (3) No tempo das guerras liberais, por ocasião do cerco do Porto, os pregadores miguelistas diziam ao povo ignorante das aldeias que o liberal D. Pedro comia crianças assadas. E para prova desse crime abominável liam do alto do púlpito um número da Crónica Constitucional, onde se referia que Sua Majestade comia a cada jantar um pequeno assado. Faziam por sua conta e com fins de propaganda política o trocadilho, alterando a natureza gramatical e o sentido dos dois elementos: pequeno, de adjectivo passava a substantivo, com a significação de criança; assado, de substantivo passava a adjectivo- particípio. - Minha senhora, eu queria a mala. - Que diz?! – exclama a senhora cheia de indignação. O senhor é muito atrevido. - Não sei porquê: desejo a mala, de queme ía esquecendo. - Ah! A mala... Está bem: tem-na ali ao canto. Leve-a. Estes exemplos servem ainda para mostrar que a segmentação não é uma mera operação mecânica, exigindo a intervenção de instrumentos de análise provenientes dos diversos subsistemas da gramática. Para que uma única sequência fonética possa ser ambígua é necessário mais do que uma simpes homofonia – é preciso que as propriedades gramaticais das diversas interpretações em jogo sejam compatíveis com o seu contexto de ocorrência, como se verifica nos exemplos de (4): (4) jantar um pequenoAdj assado N jantar um pequeno N assado Adj queria [a mala]SN queria [amá-la]F 13 Vejamos, então, que saberes requer a operação de segmentação de um enunciado. Para a fonologia, um tipo de unidades resultantes da segmentação do contínuo sonoro é definido como um domínio para a atribuição do acento principal de palavra. Os processos fonológicos que afectam os segmentos que se encontram no início ou no final desse domínio são, por vezes, distintos dos que afectam os segmentos no interior desse domínio, o que justifica a existência deste tipo de segmentação 3 . Retomando a sequência apresentada em (1), constata-se que os segmentos que os falantes geralmente reconhecem como palavras não coincidem sempre com os segmentos que constituem palavras fonológicas ou palavras prosódicas: (5) inesperada mente o ministro sombra convocou uma conferência de imprensa e no final demitiu-se Do ponto de vista da sintaxe, as palavras são as unidades que ocupam posições terminais na estrutura sintáctica, que são posições de núcleo de uma categoria sintagmática 4 . À semelhança de Di Sciullo e Williams (1987: 47-48), pode afirmar-se que as palavras são, pois, átomos sintácticos, ou seja, são unidades sintacticamente inanalisáveis: a sintaxe não tem acesso a qualquer informação sobre a sua estrutura interna e não pode operar sobre os seus constituintes. Considerando, de novo, a frase apresentada em (1) constata-se que, a esta luz, as sequências registadas em (6a) constituem inquestionavelmente palavras, que a sequência de (6b) integra mais do que uma palavra e que as sequências em (6c) ocupam uma única posição sintáctica terminal mas são formadas por várias palavras: (6) a. inesperadamente o convocou uma e final demitiu se 14 b. no = em o c. ministro-sombra conferência de imprensa A sequência de (6b) é uma contracção 5 desencadeada por razões de natureza fonética, que ocupa mais do que uma posição terminal na estrutura sintáctica. Note-se que, em alguns casos, as contracções fonéticas não são consagradas pela ortografia. Por exemplo, para a maioria dos falantes do Português, em de imprensa, a preposição está amalgamada com a palavra seguinte, mas a ortografia não dá conta desse fenómeno. Noutros casos, a grafia suscita dúvidas: (7) o facto de o / do apresentador não ter identificado todos os convidados deixou-me preocupada 6 gostei deste ensaio e também gostei daquele artigo. Não sei se gostei mais dum / de um se doutro / de outro / do outro Quanto à existência de grupos de palavras que ocupam uma única posição sintáctica terminal, ela deve-se à intervenção de dois tipos de fenómenos que os casos de (6c) exemplificam: ministro-sombra é um composto morfo-sintáctico, ou seja, é uma palavra gerada a partir de uma expressão sintáctica; conferência de imprensa é uma estrutura sintacticamente analisável, mas a sua interpretação semântica exige que ela ocupe uma única posição terminal, constituindo-se como uma expressão sintáctica lexicalizada 7 . A definição semântica de palavra é ainda mais complexa do que as anteriores, dado que, por um lado, a semântica identifica o valor referencial das unidades linguísticas e, por outro, trata de operações sobre esse valor, como a determinação ou a quantificação. Esta distinção não coincide necessariamente com aquela que é dada pela delimitação das palavras fonológicas, nem com a identificação produzida pela análise sintáctica, mas permite estabelecer um contraste entre lexemas e operadores gramaticais: copo, por exemplo, é um segmento do contínuo sonoro a que está associado um lexema que garante a sua interpretação como „recipiente geralmente utilizado para beber‟ e um operador que o quantifica como „singular‟. A identificação dos lexemas recorre frequentemente à chamada forma de citação das palavras (que é a forma utilizada nos verbetes dos dicionários para identificar todo um paradigma flexional), grafando-a frequentemente em maiúsculas, de modo a evidenciar a distinção entre lexemas e palavras. Assim, voltando à sequência (1), pode considerar-se que os segmentos em (8a) identificam os lexemas presentes e que (8b) 15 regista os operadores: (8) a. INESPERADAMENTE MINISTRO-SOMBRA CONVOCAR CONFERÊNCIA DE IMPRENSA FINAL DEMITIR-SE b. O UMA E EM SINGULAR PRETÉRITO PERFEITO 3ª PESSOA-SINGULAR A definição de palavra em morfologia não coincide com nenhuma das anteriores. Para a morfologia, as palavras são estruturas, ou seja, são formas analisáveis em unidades menores a que se dá o nome de constituintes morfológicos 8 . No Português, por exemplo, para que uma dada estrutura seja reconhecida como uma PALAVRA é necessário que ela contenha um RADICAL (simples ou complexo, como veremos em seguida), um especificador morfológico, chamado CONSTITUINTE TEMÁTICO 9 , e um (ou dois) especificador(es) morfo-sintáctico(s), que realiza(m) a FLEXÃO MORFOLÓGICA 10 . Por outro lado, estes constituintes morfológicos são unidades lexicais, às quais estão associadas propriedades que condicionam A não coincidência do conceito de palavra nos domínios da análise fonológica e sintáctica pode ser observada numa palavra como ameixa, cuja forma é o resultado da intervenção de um processo de metanálise. Na definição de Mattoso Câmara (1956: 166), a metanálise é “um fenômeno que consiste em decompor mentalmente um vocábulo ou uma locução de maneira diversa do que determina a sua origem”. Com efeito, ameixa é uma palavra proveniente do adjectivo latino DAMASCEA (que ocorria na expressão PRUNA DAMASCEA), uma forma que pode ser traduzida pelo adjectivo damascena ou pela expressão de Damasco. Na evolução para o Português, a forma DAMASCEA foi provavelmente analisada como D’AMASCEA, ou seja, como uma sequência de duas palavras – preposição e nome. Só a segunda foi considerada na apropriação ao Português, pelo que a forma resultante é ameixa. A situação inversa também está atestada: a palavra alarme é o resultado de uma metanálise da expressão italiana all(e) arme „às armas‟, ocorrida no Francês, mas transmitida a muitas outras línguas, nomeadamente ao próprio Italiano em formas derivadas como allarmare e allarmista. 16 as suas possibilidades de ocorrência nas configurações aceites pelas condições sobre hierarquização dos constituintes, segundo as quais o constituinte temático deve associar-se ao radical para formar um tema e os sufixos de flexão devem associar-se ao tema para formar uma palavra. No Português, a estrutura morfológica básica 11 pode, então, ser representada da seguinte forma 12 : (9) bel o s maravilh]os livr o s livr]eir lig a va mos des]lig Note-se que, para a análise morfológica, as palavras são, obrigatoriamente, formas flexionadas e cada forma flexionada é uma palavra diferente. As formas não flexionadas não são palavras – são temas ou radicais, ou seja, são constituintes da palavra. Retomando a sequência (1), pode, então, afirmar-se que, para a morfologia, as palavras aí presentes são as seguintes: PALAVRA FLEXÃO MORFOLÓGICA TEMARADICAL CONSTITUINTE TEMÁTICO PALAVRA FLEXÃO MORFOLÓGICA TEMA RADICAL CONSTITUINTE TEMÁTICO PALAVRA FLEXÃO MORFOLÓGICA TEMA RADICAL CONSTITUINTE TEMÁTICO 17 (10) inesperadamente o ministro-sombra convocou uma conferência de imprensa e no final demitiu se A comparação do que pode ser considerado palavra em cada nível de análise linguística mostra que não existe coincidência absoluta de critérios em nenhum caso, justificando a necessidade de clarificar o conceito de palavra no que diz respeito à morfologia: E S T R U T U R A S M O R F O L Ó G IC A S in es p er a d a m en te o m in is tr o -s o m b ra co n vo co u u m a co n fe rê n ci a d e im p re n sa e n o fi n a l d em it iu -s e L E X E M A S IN E S P E R A D A M E N T E M IN IS T R O -S O M B R A C O N V O C A R C O N F E R Ê N C IA D E IM P R E N S A F IN A L D E M IT IR -S E Á T O M O S S IN T Á C T IC O S in es p er a d a m en te o m in is tr o -s o m b ra co n vo co u u m a co n fe rê n ci a d e im p re n sa e em o fi n a l d em it iu se P A L A V R A S F O N O L Ó G IC A S in es p er a d a m en te o m in is tr o so m b ra co n vo co u u m a c o n fe rê n ci a d e im p re n sa e n o f in a l d em it iu -s e 18 Do ponto de vista da ortografia, as palavras são sequências semanticamente interpretáveis e delimitadas por espaços em branco ou sinais de pontuação. Estas unidades podem coincidir com algumas das unidades que os diversos níveis de análise linguística identificam como palavras, mas também existem muitos casos de discordância. No que diz respeito à relação com a fonologia, pode observar-se a ortografia das sequências verbo-clítico. Note-se que a convenção ortográfica é distinta nos casos de próclise e de ênclise, reconhecendo graficamente duas unidades onde a fonologia identifica apenas uma: (i) lhe disse [‟] disse-lhe [‟] Mas a inversa também é verdadeira no que diz respeito a algumas palavras complexas onde a ortografia reconhece uma única palavra e a fonologia encontra duas: (ii) claramente [„] [„] geofísica [„] [„] Quanto às discordâncias entre a sintaxe e a ortografia, por um lado, dizem respeito a todos os já referidos casos de contracção: (iii) de+outro doutro em+uma numa Por outro, há casos em que a sintaxe encontra uma única palavra e a ortografia distingue várias, recorrendo ou não ao uso de um sinal gráfico específico (i.e. o hífen) para dar conta da atomicidade sintáctica: (iv) copo de água (no sentido de festa de casamento) livre-trânsito Quanto à variação na ortografia de sequências que a morfologia reconhece como palavras, ela diz particularmente respeito ao uso do hífen em palavras complexas, frequentemente motivada pela lexicalização de algumas destas palavras: (v) previsão pré-campanha sociologia sócio-cultural 1.2 Análise Morfológica e Formação de Palavras Na secção anterior ficou estabelecido que a morfologia se dedica ao estudo das estruturas morfológicas, e que todas as palavras do Português são instâncias da configuração (9), seguidamente retomada: 19 (11) A existência de uma posição chamada FLEXÃO MORFOLÓGICA não deve ser entendida como uma exigência de realização morfológica de flexão, mas sim como uma restrição quanto ao lugar que a flexão pode ocupar na estrutura morfológica: a haver flexão, ela ocorre na sua posição canónica, que é a posição final. Com efeito, só há flexão morfologicamente realizada nos casos em que ela é solicitada pela categoria sintáctica do radical: os nomes e os adjectivos exigem flexão em número, os verbos flexionam em tempo-modo-aspecto e pessoa-número. Por outro lado, a existência de flexão não pode ser confundida com a existência de variação. Também nem todas as palavras admitem variação - há palavras variáveis e palavras invariáveis - mas a variação pode ser realizada pelo constituinte temático, como se verifica em alguns contrastes de género (cf. 12a), ou por flexão, como sucede com o contraste nominal de número (cf. 12b) e os contrastes verbais de tempo-modo-aspecto pessoa-número (cf. 12c): (12) a. bel]RADJ o bel]RADJ a mestr]RN e mestr]RN a doutor]RN Ø doutor]RN a b. belo]TADJ belo]TADJ s mestre]TN mestre]TN s c. canta]TV va s canta]TV va mos canta]TV sse s canta]TV sse mos A variação realizada por flexão é inerente a cada categoria sintáctica, e a variação temática é idiossincrática, ou seja, é lexicalmente determinada por cada radical. PALAVRA FLEXÃO MORFOLÓGICA TEMA RADICAL CONSTITUINTE TEMÁTICO 20 A configuração (11) descreve plenamente a estrutura das palavras simples (e.g. claro, sistema ou ligar), palavras em que a relação entre a forma, o significado e as propriedades gramaticais que lhes estão associadas é uma relação arbitrária e imprevisível. Estas palavras possuem um único radical, que é uma unidade lexical inanalisável, e sufixos que o especificam morfológica e morfo-sintacticamente, variando nas suas categorias de flexão: (13) clar o cf. claro sistem a s cf. sistemas lig a r cf. ligar No caso das palavras complexas, a posição do radical domina uma nova estrutura morfológica, que pode integrar um radical e um afixo (cf. clar-ificar, des-ligar) ou dois radicais (cf. ec-o-sistem-as), sendo que cada um dos radicais encaixados pode, por sua vez, ser uma nova estrutura morfológica (cf. clar-ifica-dor, re-des-ligar, micro-ec-o-sistema). Nestes casos, a configuração é expandida por ramificação do RADICAL: (14) As palavras que possuem um RADICAL complexo são estruturas de afixação e de composição: as primeiras, predominantes no Português, resultam da concatenação de um afixo (prefixo ou sufixo) a um radical, um tema ou uma palavra; as segundas são geradas por concatenação de dois ou mais radicais: (15) clar ific a r clar ific a dor Ø RADICAIS SIMPLES ESPECIFICADORES MORFOLÓGICOS ESPECIFICADORES MORFO-SINTÁCTICOS PALAVRA FLEXÃO MORFOLÓGICA TEMA RADICAL COMPLEXO CONSTITUINTE TEMÁTICO BASE SUFIXO PALAVRA FLEXÃO MORFOLÓGICA TEMA RADICAL DERIVADO CONSTITUINTE TEMÁTICO 21 ESPECIFICAÇÃO DE RADICAIS des lig a r re des-lig a r ec o sistem a micr o ec-o-sistem a As palavras complexas são (ou foram) geradas pela intervenção de processos de formação de palavras, cujo conhecimento constitui um segundo objecto de estudo da morfologia. Assim, de uma forma esquemática, pode dizer-se que a morfologia se ocupa, por um lado, da especificação (morfológica e morfo-sintáctica) do radical e, por outro, dos processos de formação de radicais complexos: (16) MORFOLOGIA ESPECIFICAÇÃO MORFOLÓGICA (FORMAÇÃO DO TEMA) ESPECIFICAÇÃO MORFO-SINTÁCTICA = FLEXÃO (FORMAÇÃO DA PALAVRA) FORMAÇÃO DE RADICAIS COMPLEXOS AFIXAÇÃO DERIVAÇÃO MODIFICAÇÃO COMPOSIÇÃO MORFOLÓGICA MORFO-SINTÁCTICA PALAVRA FLEXÃO MORFOLÓGICA TEMA RADICAL MODIFICADO CONSTITUINTE TEMÁTICO PREFIXO BASE PALAVRA FLEXÃO MORFOLÓGICA TEMA RADICAL COMPOSTO CONSTITUINTE TEMÁTICO RADICAL RADICAL 22 Nas palavras complexas, a relação entre a forma, o significado e as propriedades gramaticais que lhe estão associadas é uma relação motivada e previsível. Pelo menos no momento em que são geradas, já que a permanência no léxico pode afectar qualquerum destes aspectos, alterando apenas um deles ou uma combinação de vários. Consequentemente, é importante referir que os processos de formação de palavras disponíveis numa dada língua se baseiam no modelo das estruturas morfológicas existentes nessa língua, mas não em todas. A distinção crucial faz uso do conceito de composicionalidade: apenas as estruturas composicionais podem ser consideradas como base dos algoritmos de formação de palavras que possuem um índice de produtividade significativo.Vejamos, então, no que consiste esta propriedade de composicionalidade e como se caracterizam as estruturas que a não possuem, passando, seguidamente à distinção entre palavras possíveis, existentes e atestadas, ao cálculo da produtividade e à intervenção de factores de bloqueio na formação de palavras. 1.2.1 Composicionalidade e lexicalização A distinção entre palavras simples e complexas estabelece uma divisão fundamental no domínio das estruturas morfológicas, a que se deve associar uma segunda, que traça um contraste entre palavras complexas com uma estrutura composicional e palavras complexas lexicalizadas. Composicionalidade é um princípio estabelecido para a semântica, segundo o qual o significado de um todo é uma função do significado das partes. Em morfologia, composicionalidade é um princípio de análise das palavras complexas, que identifica aquelas cujas propriedades são integralmente determinadas pela sua estrutura e pelas propriedades dos seus constituintes. Por outras palavras, a composicionalidade é uma propriedade das palavras cujas forma e interpretação são funções directas da forma e da interpretação dos seus constituintes. Vejamos os seguintes exemplos: (17) [ [ [ [gord] [ur] ] [os] ] [o] ] [ [ [janel] [inh] ] [a] ] [ [ [ [in] [ [ [evit] [a] ] [vel] ] ] [ment] ] [e] ] Estas palavras são estruturas composicionais: gorduroso, por exemplo, é um adjectivo masculino, derivado do radical do nome gordura, por intermédio do sufixo de adjectivalização denominal –os(o/a), que forma adjectivos parafraseáveis pela expressão „que contém X‟, em que X identifica a forma derivante; gordur- é o radical nominal de gordura, que, 23 por sua vez, deriva do radical do adjectivo gord(o/a), por intervenção do sufixo –ur(a), que gera nomes de qualidade parafraseáveis pela expressão „nome da propriedade do que é X‟, e X, uma vez mais, remete para a forma derivante. São as palavras composicionais que permitem identificar as propriedades dos constituintes morfológicos e estabelecer configurações gramaticais para a formação de novas palavras. Quanto à lexicalização, trata-se de um processo de perda da composicionalidade, que actua de forma aleatória e imprevisível, sempre que pelo menos um dos constituintes morfológicos sofreu alterações semânticas ou formais ou é desconhecido para os falantes. A lexicalização pode, pois, afectar a interpretação da palavra, a sua forma, as suas propriedades gramaticais ou uma conjugação destes factores. A lexicalização semântica, que pode ser exemplificada por formas como sombrinha ou obrigação, consiste na intervenção de operações de extensão ou substituição do significado original da palavra: sombrinha, que corresponde a um diminutivo de sombra, é lexicalizado quando passa também a referir um „objecto cuja utilização produz uma pequena sombra‟ e que acaba por referir um instrumento de protecção da chuva; obrigação, para além de referir „o acto ou efeito de obrigar‟, designa um „título de dívida‟ – neste sentido, é uma palavra lexicalizada. A lexicalização formal pode afectar qualquer uma das propriedades dos constituintes da palavra. A situação mais frequente diz respeito a palavras complexas, reconhecíveis como tal, mas cujos constituintes (ou algum deles) não correspondem a formas atestadas no Português. É o que se verifica com um grande número de palavras formadas noutras línguas e introduzidas no Português por empréstimo 13 . Os exemplos seguintes mostram as formas atestadas, a base disponível e a potencial forma composicional, que é agramatical 14 : (18) agressão agredi(r) > *agredição cf. fundir > fundição construção construi(r) > *construição cf. destruir > destruição governamental govern(o) > *governal cf. teatro > teatral inimigo amig(o) > *inamigo cf. verdade > inverdade surrealismo realismo > *sobre-realismo cf. casaca > sobrecasaca 24 Uma palavra como portuguesmente exemplifica um outro tipo de lexicalização. Neste caso, tanto a base (i.e. português) quanto o sufixo (i.e. –mente) são formas atestadas no Português. O que aqui se verifica é a violação de uma restrição de selecção do sufixo: -mente selecciona adjectivos invariáveis e a forma feminina dos adjectivos variáveis. Sendo português um adjectivo variável (cf. português / portuguesa), a forma composicional deveria ser *portuguesamente. Esta, que é uma forma possível, não existe porque é bloqueada pela existência de portuguesmente, um advérbio formado muito provavelmente num momento em que os adjectivos em –ês eram invariáveis (o que ainda se verifica em alguns casos, como cortês). A lexicalização morfológica pode ainda afectar a totalidade de um paradigma flexional 15 . É o que se verifica, por exemplo, com os chamados verbos irregulares. Por outro lado, a lexicalização pode afectar uma dada forma flexionada, conduzindo à perda do vínculo com o seu paradigma flexional, o que se verifica com palavras como costas ou óculos, que permitem duas interpretações: ou se trata do plural composicional de costa e óculo; ou se trata de formas que não dispõem de uma contrapartida singular e às quais se associa um valor semântico completamente distinto: costas designa o „lado posterior do tronco‟ e óculos refere uma „prótese ocular‟. A lexicalização formal pode ainda afectar a realização fonética das palavras. É o que se verifica em casos como: (19) a. bondoso cf. bondad(e) > *bondadoso caridoso cf. caridad(e) > *caridadoso maldoso cf. maldad(e) > *madadoso b. previsão [] cf. [] ecologia [] cf. [] corrimão [] cf. [] matacão [] cf. [] Em (19a) verifica-se a intervenção de um processo de haplologia que consiste na supressão de uma das sílabas de um afixo que é foneticamente idêntica ou muito próxima da sílaba seguinte ou da anterior. (cf. femini(ni)smo, gratui(ti)dade, her(da)deiro, inven(ta)tivo ou tragi(co)comédia). A forma de base destas palavras truncadas (i.e. bondad-, caridad- e maldad-) é mais difícil de reconhecer do que nos casos em que a sua forma não sofre modificações (cf. cuidadoso). Em (19b), a lexicalização é desencadeada pelo desaparecimento de um domínio de acentuação: é o que se verifica nos casos de previsão, 25 O processo de lexicalização não afecta apenas estruturas morfológicas, como as palavras complexas que acabam de ser referidas. Pode também afectar unidades sintácticas como aquelas que estão na base de expressões como brincos de princesa, pés de galinha ou velho mundo. A lexicalização é, nestes casos, estritamente semântica, mas se se considerarem palavras como demão, fidalgo, aguardente ou clarabóia, conclui-se que que a lexicalização de expressões sintácticas pode também afectar a sua realização (cf. de mão, filho de algo, água ardente, clara bóia, mal me quer). Estes são casos tradicionalmente tratados como compostos, mas estas formas não são geradas por formação de palavras, resultam da intervenção de um processo de registo no léxico de uma convenção particular entre uma forma, um significado e uma função gramatical. A lexicalização de expressões sintácticas também está presente em casos como maria vai com as outras, esticar o pernil, levar a água ao seu moinho, para lá do sol posto ou lugar ao sol, que são,por vezes, designadas como expressões idiomáticas. ecologia, corrimão ou matacão mas não em casos equivalentes como pré-campanha, ecossistema, corre- corre ou mata-ratos. Algumas palavras são objecto cumulativo de lexicalização formal e semântica. Veja-se, por exemplo, o caso de idoso, onde, para além da supressão de uma sílaba (cf. idad+oso), se verifica que o significado não é paralelo ao de bondoso ou cuidadoso: idoso não é uma „propriedade de quem tem idade‟, mas sim de quem tem „muita idade‟. As palavras são, pois, lexicalizadas quando a relação entre uma sequência de sons e o seu significado se torna uma relação arbitrária, o que é também uma característica das palavras simples. Pode, assim, concluir-se que a lexicalização é um processo de transformação de estruturas complexas em simples, por intervenção de operações de mudança fonológica, morfológica ou semântica, que obscurecem ou impedem mesmo o reconhecimento da palavra complexa a partir do conhecimento dos seus constituintes morfológicos. Em suma, trata-se de um fenómeno de mudança linguística. A análise morfológica permite tornar explícito o grau de composicionalidade, ou, inversamente, a lexicalização das palavras complexas. Como o nome indica, o processo de lexicalização sugere o registo das palavras no léxico. Assim, as palavras composicionais são estruturas transparentes que podem mas não precisam de estar registadas 26 O léxico de uma língua é uma entidade distinta da que constitui o léxico de um falante. O léxico de uma língua é uma entidade abstracta, que regista a totalidade das palavras possíveis nessa língua, sem fronteiras de tempo, espaço ou registo. O léxico de um falante, que é frequentemente designado como léxico mental, corresponde à apropriação que esse falante faz do léxico da sua língua e é constituído pelas palavras existentes para esse falante. no léxico. As palavras lexicalizadas, tal como as palavras simples, são estruturas opacas, obrigatoriamente registadas no léxico. 1.2.2 Palavras possíveis, existentes e atestadas Para se saber se uma dada palavra existe, é necessário verificar se se trata de uma estrutura bem-formada e se está devidamente associada a um valor semântico preciso. Sequências como suna, gratificagem ou preduzir, por exemplo, são interpretadas, por um falante do Português, como inexistentes nesta língua. As operações desencadeadas para produzir este tipo de juízo são operações diversas. No caso de suna, é a impossibilidade de interpretação semântica que origina o juízo de agramaticalidade; quanto a gratificagem, a identificação das sequências gratific– e –agem e o conhecimento da incompatibilidade da sua coocorrência, por um lado, e da compatibilidade da associação entre gratifica– e –ção (cf. gratificação), por outro, permitem a sua exclusão; à forma preduzir, e apesar de ser possível identificar as sequências pre– e – duzir que ocorrem em formas como preferir e produzir, não está associada qualquer interpretação semântica, o que, de novo, leva à sua exclusão. Mas não basta verificar se estão cumpridas as condições de boa- formação. Os algoritmos de formação de palavras, construídos exclusivamente sobre estruturas morfológicas composicionais, têm uma capacidade de geração de novas palavras muito maior do que o que a realidade requisita. Estes algoritmos geram palavras potenciais, que, na sua totalidade, dificilmente são reconhecidas pelos falantes de uma língua como palavras existentes. Todas as palavras que correspondem a formações legítimas de um qualquer processo de formação de palavras recebem o nome de palavras possíveis. Palavras existentes são aquelas que formam um subconjunto das palavras possíveis porque são usadas ou reconhecidas pelos falantes. O juízo dos falantes é, pois, uma condição fundamental para a existência das palavras. Todas as palavras possíveis são 27 estruturas morfológicas complexas bem-formadas. Quanto às palavras existentes, trata-se de palavras simples e complexas bem-formadas, mas também de estruturas complexas tornadas agramaticais pela intervenção de fenómenos de lexicalização. Note-se que muitas das palavras que os falantes reconhecem como palavras existentes não estão registadas na generalidade dos dicionários. Veja-se, por exemplo, o caso dos diminutivos: formas como bolinha, dedinho ou florinha são certamente palavras existentes, mas não estão dicionarizadas. Pode então recorrer-se ao conceito de atestação para traçar uma distinção mais clara entre palavras possíveis e palavras existentes: palavras possíveis são palavras não atestadas e palavras existentes são palavras atestadas, podendo a atestação de uma palavra pode vir de fontes escritas ou de registos orais: por outras palavras, a atestação decorre do uso e a dicionariazação decorre do uso do lexicógrafo, ou dos usos que o lexicógrafo acolhe. 1.2.3 Produtividade e bloqueio A produtividade é uma propriedade dos processos de formação de palavras que diz respeito à medida da frequência do seu uso. Se um dado processo de formação de palavras é muito frequentemente usado, então esse é um processo muito produtivo, se, pelo contrário, um processo de formação de palavras for raramente usado, então será um processo muito pouco produtivo. A identificação do grau de produtividade de um processo de formação de palavras não é uma operação fácil de definir, menos ainda de realizar e, no que diz respeito à morfologia do Português, está absolutamente por fazer. Com efeito, há diversos parâmetros de medida e a escolha de um ou de outro pode produzir resultados muito diferentes. O primeiro parâmetro é o da intuição dos falantes: para qualquer falante do Português, a formação de advérbios em –mente é sentida como muito produtiva; o mesmo se verifica com a formação de avaliativos em –inho ou –inha. No entanto, tanto um quanto o outro conhecem restrições (cf. *gordamente, *peruinho). Este é um parâmetro de avaliação subjectivo e inquantificável. Se a avaliação for feita em função do número de palavras possíveis, o resultado é virtual – nada obriga a que as palavras possíveis venham a tornar-se palavras existentes. A produtividade também pode ser medida por contagem das palavras formadas por um dado processo de 28 formação de palavras e reconhecidas como palavras existentes. Este é um parâmetro de avaliação quantificável, mas não mede a produtividade potencial. Se, no entanto, a contagem for feita com intervalos temporais regulares, a curva dos resultados obtidos é a que melhor se aproxima da avaliação da produtividade do uso. A produtividade dos processos de formação de palavras pode ser afectada por diversos factores. O primeiro diz respeito ao tipo e ao número de restrições que o processo impõe sobre a sua base e à existência de afixos concorrentes. A formação de nomes de qualidade, por exemplo, dispõe, no Português, de diversos recursos: (20) escass-ez rebeld-ia podr-idão debil-idade doç-ura A existência de tantos sufixos concorrentes, já que todos têm idênticas propriedades de selecção, associando-se a formas adjectivais, enfraquece a produtividade de cada um, havendo razões que levam ao favorecimento de alguns e razões que levam ao enfraquecimento de outros. O sufixo –idade, por exemplo, beneficia do facto de ser potenciado por um outro sufixo que é –vel 16 : (21) aceitabil-idade aplicabil-idade culpabil-idade infalibil-idade navegabil-idade Em contrapartida, a produtividade de um sufixo como –ez não pode deixar de ser afectada pelo facto de este sufixo dispor de um alomorfe (-eza) e da distribuição das duas formas ser sensível a uma propriedade prosódica da base, relacionada com a sua extensão 17 : (22) altiv-ez clar-eza avid-ez dur-eza limpid-ez fri-eza pequen-ez riqu-eza Umsegundo factor que pode perturbar a produtividade é o da utilidade ou necessidade de formação da nova palavra. Este tipo de restrição, que tem sido referido na literatura por bloqueio (cf. Aronoff 1976: 43-45), é definido como um fenómeno que impede a ocorrência de uma palavra devido à existência de uma outra. É de admitir que seja por 29 bloqueio que a forma *portuguesamente não faz parte do léxico do Português. No entanto, este fenómeno de bloqueio tem uma intervenção frequentemente aleatória. Note-se que, num caso paralelo ao de portuguesmente, como o da formação de nomes em –ção a partir de verbos como construir ou destruir, o bloqueio intervém para impedir a ocorrência do nome *construição, mas não interfere na formação do nome destruição. Assim, e à semelhança de Di Sciullo e Williams (1987), deve concluir-se que o bloqueio não é um princípio geral, mas sim a expressão de uma tendência para a economia no léxico, que consiste em evitar situações de sinonímia. Evitar situações de sinonímia não significa, porém, impedi-las. Assim, e ainda que a tendência seja para a especialização de significados, é possível encontrar casos de sinonímia absoluta: (23) congelação / congelamento chavinha / chavezinha livrinho / livrito Um último factor de perturbação da produtividade dos processos de formação de palavras está relacionado com um fenómeno de moda ou popularidade do uso. Veja-se o caso de super- que tende a bloquear a formação do superlativo ou, mais notoriamente, a do aumentativo em –ão (cf. super-caro vs. caríssimo; super-carro vs. carrão). 1.3 A Morfologia na Gramática A descrição das estruturas morfológicas e dos processos de formação de palavras são tarefas que cabem à morfologia num dado quadro teórico de análise gramatical. Tomemos como referência um modelo de gramática constituído por módulos com funções próprias e distintas, inspirado nas propostas da teoria generativa, cujos pressupostos e programa são assim formulados em Chomsky (1986: 3-4): The generative grammar of a language (where ‘generative’ means nothing more than ‘explicit’) is a theory that is concerned with (...) those aspects of form and meaning that are determined by the ‘language faculty’, which is understood to be a particular component of the human mind. [...] The nature of this faculty is the subject matter of a general theory of linguistic structure that aims to discover the framework of principles and elements common to attainable human languages; this theory is now often called ‘universal grammar’ (UG). Este quadro permite conceber a morfologia como o subsistema da 30 gramática que contém o conjunto de princípios responsável por uma boa parte dos processos de formação de palavras. Este subsistema da gramática que é a morfologia relaciona-se com outros subsistemas e, em particular, com o léxico, a fonologia e a sintaxe. O léxico, porque se trata de um repositório de unidades linguísticas aonde as estruturas morfológicas vão buscar as suas unidades terminais e porque é no léxico que a morfologia deposita o resultado das suas capacidades neológicas. Dado que a relação entre a morfologia e o léxico é uma relação multifacetada e de grande proximidade, dela se ocupará o capítulo 2. Por outro lado, a morfologia e a sintaxe são módulos de construção de expressões linguísticas: a morfologia gera palavras; a sintaxe gera frases. A relação entre a morfologia e a sintaxe assenta no facto de as unidades produzidas pela morfologia, ou seja, as palavras, serem as unidades terminais das estruturas sintácticas. (24) Quanto à fonologia, trata-se de um módulo que determina a realização fonética das unidades que constituem os enunciados linguísticos, em função das suas propriedades fonológicas inerentes e da sua integração em sequências. Consequentemente, a fonologia opera sobre as unidades geradas pela morfologia e pela sintaxe, mas também fornece informação necessária ao processamento morfológico, como, por exemplo, a que se relaciona com os fenómenos de alomorfia 18 . 1.4 Os Estudos de Morfologia Durante séculos, os estudos de morfologia ocuparam um largo espaço na descrição gramatical, mas o grande número de páginas que lhes era dedicado era também quase exclusivamente utilizado para a … Radical = Núcleo morfológico Palavra= Núcleo sintáctico Tema … … Estrutura sintáctica 31 apresentação dos paradigmas regulares de variação das palavras (os verbos regulares da primeira conjugação, a flexão dos substantivos ou o grau dos adjectivos) e a exaustiva enumeração das chamadas „excepções‟ (os verbos irregulares da terceira conjugação ou o plural dos compostos). Pelo contrário, o conhecimento da formação de palavras, por afixação ou por composição, recebia, quase sempre, uma sumária atenção. A situação é assim referida por Carolina Michaëlis de Vasconcelos (1913, 1946: 45, 47-49), na introdução a uma das suas Lições: A história da sufixação, prefixação e composição portuguesa está por escrever. Há, isso sim, em cada gramática portuguesa destinada ao ensino secundário oficial, um capítulo sobre derivações e composição, com listas dos sufixos e prefixos que servem actualmente para a formação de substantivos, adjectivos e verbos, ordenados ora alfabeticamente, ora segundo as funções que eles exercem. Mas os fins práticos e restritos dessas obras não admitem que a matéria seja tratada exaustivamente, nem mesmo com certa extensão e intensidade. Na Gramática de Jules Cornu (...) os sufixos figuram apenas como material comprovativo das regras fonéticas. Nas obras de glotólogos portugueses (…) há bastantes informações acerca de processos de derivação e de composição. Mas só pormenores soltos. Nenhum estudo sistemático, como o exige a colheita abundante que se pode extrair dos textos arcaicos, dos dialectos, do idioma galego e dos seus congéneres em Leão e Astúrias; e em especial da linguagem portuguesa familiar, com os seus modos variadíssimos de acumular sufixos, ora segundo normas tradicionais, ora sem se importar com padrões preexistentes. (...) Esta terá sido uma lição propedêutica, já que termina com um apelo. Quase um século mais tarde, a situação não é muito diferente e que o convite pode ser reiterado: Não dizemos que alguém possa desde já fazer um trabalho completo, definitivo. Há muito que coleccionar e apurar ainda. (...) Os estudantes desta cadeira muito embora não queiram ser filólogos romanistas, aprenderiam praticamente algo de metodologia, se na sua carteira assentassem, não direi dia a dia, mas oportunamente, as formações familiares espontâneas, bem ou mal inventadas, que lêem, ouvem ou enunciam, e que lhes pareçam ser neologismos ou vulgarismos. (...) Coleccionações e análises morfológicas são relativamente fáceis, interessantes e compensadoras. E eu teria prazer e orgulho em ter discípulos que nos ajudassem a resolver problemas ainda pendentes. No século XX, o modelo de descrição da gramática tradicional, a que Hockett (1958) viria a dar o nome de Palavra e Paradigma, por privilegiar o conhecimento extensional dos paradigmas de flexão, vai encontrar alternativas. Talvez por reacção à posição central que a flexão ocupou nas gramáticas de modelo latino, a atenção dada à morfologia pelos estudos linguísticos foi quase nula até aos anos 80, diluindo-se nos 32 estudos de fonologia e sintaxe. No domínio da fonologia, surge o chamado modelo Item e Arranjo, que procede à segmentação das palavras em morfemas e descreve o modo como estes morfemas se organizam linearmente, ou seja, quais são as suas relações de precedência. O terceiro modelo de análise surge para tentar resolver os problemas da chamada morfologia não-concatenativa, ou seja, dos casos em que se pretende estabelecer uma relação morfológica entre palavras, mas essa relação nãopode ser descrita por adição, subtracção ou substituição de material morfológico. Este modelo, que opera por substituição de uma forma abstracta (como os lexemas, por exemplo) por uma palavra flexionada, é chamado Item e Processo. O contributo da teoria generativa, particularmente com Aronoff (1976), Selkirk (1982), Williams (1981) e Lieber (1992) consistiu em adoptar os métodos da análise sintáctica à análise morfológica. É neste quadro que surgem as propostas de análise X-barra em morfologia e a discussão acerca do conceito de núcleo morfológico, e é neste quadro de referência que se inscreve a presente descrição da morfologia do Português. Tópicos de Recapitulação Geral A morfologia trata de palavras e, neste domínio da análise linguística, as palavras são definidas como estruturas que nascem da especificação morfológica e morfo-sintáctica de um radical, respectivamente pelo constituinte temático e pelos sufixos de flexão, como veremos nos capítulos seguintes. Esta é a estrutura morfológica que descreve plenamente as palavras simples do Português, ou seja, as palavras cujo constituinte temático é formado por um único constituinte morfológico. A gramática das línguas naturais dispõe, no entanto, de diversos processos de formação de palavras, responsáveis pelo aparecimento de novas palavras. Alguns desses processos têm uma natureza morfológica, gerando palavras complexas. Neste caso, o radical é formado por mais de um PALAVRA FLEXÃO MORFOLÓGICA TEMA RADICAL CONSTITUINTE TEMÁTICO 33 MORFOLOGIA especificação de radicais formação de radicais complexos formação do tema por especificação morfológica formação da palavra por especificação morfo-sintáctica = flexão afixação composição derivação modificação morfo-sintáctica morfológica constituinte morfológico, que pode ser uma base (radical, tema ou palavra) e um afixo (prefixo ou sufixo), se se tratar de uma estrutura de afixação (derivação ou modificação), ou dois (ou mais) radicais, se for uma estrutura de composição (morfológica ou morfo-sintáctica). Os processos morfológicos de formação de palavras geram palavras composicionais, ou seja, palavras cuja estrutura e interpretação respeitam todas as propriedades dos constituintes presentes e do processo em questão. Todas as palavras que um processo morfológico pode gerar, independentemente do seu grau de produtividade, são palavras possíveis, ou seja, são palavras resultantes da intervenção de um processo morfológico disponível, mas nem todas são palavras existentes, ou seja, nem todas chegam de facto a ser usadas pelos falantes. A existência de uma palavra depende, pois, da sua boa-formação, da inexistência de qualquer factor de bloqueio ao seu aparecimento e da sua atestação. A existência de uma palavra complexa é frequentemente afectada por fenómenos de natureza formal ou semântica, como as assimilações fonéticas, o desrespeito pelas propriedades gramaticais dos constituintes ou as alterações do significado. A intervenção de um ou mais destes fenómenos provoca um efeito de erosão na palavra complexa, conduzindo à sua lexicalização, ou seja, à perda da informação sobre a sua estrutura interna, e, em última análise, à sua progressiva transformação em palavra simples. As palavras lexicalizadas podem ser analisadas morfologicamente, mas não podem determinar padrões de formação de 34 palavras. A análise morfológica, quer no que diz respeito à descrição das estruturas existentes quer no que toca à caracterização dos processos de formação de palavras, não pode ser feita fora de um modelo de análise linguística global, nomeadamente no que diz respeito ao léxico, à sintaxe e à fonologia. Ao léxico, a morfologia vai buscar as unidades lexicais que são os seus constituintes morfológicos terminais e que são portadores de um conjunto de informações determinantes para a sua ocorrência numa estrutura morfológica. À sintaxe, a morfologia entrega as palavras e a especificação que é sintacticamente relevante. E, por último, à fonologia a morfologia entrega uma estrutura abstracta que precisa de ser fonologicamente processada, de modo a poder vir a ser foneticamente realizada. 35 Exercícios 1. O que é uma palavra? 2. Como se define palavra em morfologia? 3. As estruturas morfológicas podem ser simples ou complexas. Dê cinco exemplos de palavras simples (com três ou mais sílabas) e cinco exemplos de palavras complexas. 4. Como classifica as seguintes palavras do Português no que diz respeito à complexidade da sua estrutura morfológica: abre-latas cantássemos clareza esclarecer livralhada mini-prato mordomia olhos reavaliação sintoma 5. Como se distingue uma palavra composicional de uma palavra lexicalizada? 6. Impressão, solúvel e persecutório são palavras lexicalizadas. Que forma precisariam de ter para ser composicionais? 7. Indique cinco palavras complexas composicionais e cinco palavras complexas lexicalizadas. 8. Considerando que –ção é um sufixo que forma nomes a partir de temas verbais (e.g. continua-ção), indique cinco casos que correspondam a palavras bem-formadas por este sufixo, mas não- atestadas no Português Europeu contemporâneo. 9. As palavras imprimição, solvível e perseguitório são estruturas morfológicas bem-formadas, mas não são palavras existentes. O que impede o seu aparecimento? 10. Tanto o sufixo –ção quanto o sufixo –mento se associam a temas verbais para formar nomes de acção (cf. continuação, fortalecimento). Procure avaliar a produtividade de cada um deles, tendo em conta os valores potenciais. 36 Leituras Complementares ARONOFF, M. E ANSHEN, F. 1998 Morphology and the lexicon: lexicalization and productivity Spencer e Zwicky (1998: 237-247) BASÍLIO, M. 2004 Formação e Classes de Palavras no Português do Brasil São Paulo: Contexto ROSA, M. C. 2000 Introdução à Morfologia São Paulo: Contexto SPENCER, A. E ZWICKY, A. 1998 The Handbook of Morphology Oxford: Blackwell VILLALVA, A. 1994 Estruturas Morfológicas. Unidades e Hierarquias nas Palavras do Português 2000 Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian 37 Capítulo 2. O Léxico do Português 38 Objectivos Neste segundo capítulo pretende-se apresentar os aspectos do conhecimento do léxico do Português. Aqui se inclui: uma breve descrição da história do léxico do Português uma explicitação dos conceitos de neologismo, arcaísmo, dialectalismo a identificação de recursos não-morfológicos para a formação de palavras No final desta unidade, o aluno deverá conhecer: as principais características históricas do léxico do Português o base latina o substratos o superstratos o conceito de neologismo alguns recursos não-morfológicos para a formação de palavras, como: o invenção de palavras o onomatopeia o redobro o amálgama o eponímia o extensão semântica o truncamento o acronímia o formação de siglas o abreviação o empréstimo 39 Existem muitas espécies de dicionários, que variam em função da cobertura que oferecem e do tipo de informação que disponibilizam. Quando se fala em dicionários, pensa-se quase sempre em dicionários monolingues, que registam o léxico geral de uma língua e veiculam uma informação gramatical sumária e paráfrases das diversas significações. De fora ficam, em geral, arcaísmos, dialectalismos e neologismos, ou seja, palavras consideradas como desvios à norma. Usos particulares podem, no entanto, recorrer a dicionários de outros tipos, como os dicionários plurilingues, os dicionários inversos ou dicionários especializados, como os etimológicos ou os dicionários técnicos dedicados a uma dada língua de especialidade. A vulgarização dos chamados dicionários electrónicos tem vindo a tornarpossível a concentração de informação num único objecto, o que constituía um obstáculo inultrapassável para os dicionários apresentados em suporte-papel. A identificação do conjunto de palavras que constitui o léxico de uma língua é uma tarefa difícil de cumprir. Num livro intitulado Catalogue des Idées Reçues sur la Langue, Marina Yaguello (1988: 87) afirma o seguinte 1 : Les mots de la langue constituent (...) un ensemble aux contours incertains. On ne peut pas dénombrer les mots d'une langue. Tout au plus peut-on donner un ordre d'idée. La diversité des registres, l'abondance des argots et jargons spécialisés, le fait que certains mots tombent en désuétude tandis que de nouveaux mots sont crées tous les jours rendent tout décompte arbitraire. É certo que para a maioria das línguas conhecidas existem dicionários, vocabulários e outros inventários de palavras, que recobrem partes mais ou menos extensas do léxico 2 , mas também é sabido que nenhum destes objectos é exaustivo e que a informação que facultam é seleccionada pelos seus autores e é frequentemente assistemática, variando de entrada a entrada. É, pois, difícil alcançar uma caracterização global do léxico de uma língua a partir da consulta deste tipo de objectos, devendo o conhecimento do léxico em extensão dar lugar a um conhecimento qualitativo. Mais do que a enumeração das palavras que o compõem, a caracterização do léxico exige o reconhecimento das suas principais propriedades históricas e sincrónicas, o que constitui o objecto de estudo da lexicologia. Vejamos, então, como se apresenta o léxico do Português. No presente capítulo começaremos por fazer uma breve descrição da evolução do léxico do Português, para, em seguida, identificar alguns dos fenómenos de perdas e ganhos no léxico desta língua, apresentando 40 conceitos como neologismo e arcaísmo. Dado que os capítulos seguintes se dedicam exclusivamente às questões morfológicas, veremos aqui que também existem recursos não-morfológicos de formação de palavras, sendo o empréstimo um dos mais relevantes. 2.1 Herança Latina, Substratos e Superstratos Tal como a própria língua, o léxico do Português está ancorado no léxico latino e, em particular, no léxico do Latim falado no noroeste da Península Ibérica durante a vigência do Império Romano 3 , que, segundo Piel (1976), se começa a diferenciar do Latim falado noutras regiões por volta do século V d.C. Nem as línguas faladas nesta região antes da ocupação romana conseguiram subsistir à colonização linguística latina, nem as línguas dos posteriores ocupantes foram capazes de suplantá-la. Palavras como as de (1) exemplificam a monumental herança lexical latina e permitem observar algumas das alterações fonéticas que acompanharam a passagem do Latim ao Português: (1) CAPILLUM > cabelo CLAMARE > chamar DOLORE > dor FILIUM > filho LACTE > leite LUNA > lua PLACERE > prazer REGINA > rainha Há, no entanto, alguns vestígios das línguas pré-romanas existentes na Península Ibérica até ao século II a.C., habitualmente designadas por substratos: Castro (1991) refere as palavras camurça, esquerdo e chaparro, como exemplos dos substratos mediterrânico, proto-basco e ibero, respectivamente. Os superstratos, ou seja, as línguas faladas pelos ocupantes da Península Ibérica findo o domínio romano, também deixaram vestígios no Português 4 . Segundo Castro (1991: 151), as palavras registadas em (2) constituem verdadeiras formas de superstrato germânico na Península Ibérica, dado que não ocorrem fora deste território: (2) GASALJA companheiro > agasalhar SPITUS espeto > espeto GANS ganso > ganso LOFA palma da mão > luva RAUBA despojos tomados ao inimigo > roupa 41 Os vestígios lexicais do superstrato árabe são mais abundantes. Os exemplos seguintes mostram que estes empréstimos incorporam frequentemente um determinante com a forma al- (cf. 3a) ou esta mesma forma modificada por assimilações fonéticas desencadeadas pela palavra que precede, ocorridas na língua de origem (cf. 3b, 3c e 3d), ou outros tipos de alteração fonética (cf. 3f e 3g): (3) a. AL-QATIFA > alcatifa AL-QUFFA > alcofa b. AR-RUZZ > arroz AR-RABAD > arrabalde c. AS-SUTEYHA > açoteia AS-SUKKAR > açúcar d. AT-TUNN > atum e. AL-MAHAZÉN > armazém AL-GULLA > argola f. AD-DAYHA > aldeia AD-DAHÁ'IM > andaime Os arabismos que não são precedidos pelo determinante são menos numerosos e podem ter sido integrados no Português de um modo diferente dos anteriores, nomeadamente em fase posterior ou por intermédio de uma terceira língua 5 . (4) a. HANBAR 1256 > âmbar 6 WA XÁ,LLÁH e queira Deus, 1495 > oxalá XARÁB bebida, poção, séc. xiii > xarope b. MISKIN pobre, infeliz, do Castelhano > mesquinho HAXXÍXÍN consumidor de haxixe, do Italiano > assassino SUFFA esteira; coxim, do Francês > sofá Cronologicamente, segue-se a constituição do Português como língua, facto localizável entre o século IX e o século XIII 7 . Mas a caracterização histórica do seu léxico não termina aqui. Dos contactos com outras línguas, ao sabor de alianças políticas, lutas pela preservação das fronteiras e da nacionalidade, ou desejos de conquista do mundo, surgem novas palavras a que se dá o nome geral de empréstimos e nomes particulares determinados pela designação na língua de origem 8 . 42 A etimologia é uma disciplina que procura informação acerca da história das palavras, até encontrar o seu étimo, que é a forma mais antiga da palavra, de que há conhecimento. O confronto da palavra com o seu étimo mostra, por vezes, alterações que não são meramente linguísticas. O nome de alguns meses do ano, por exemplo, preserva a memória de calendários já abandonados: é o caso de Setembro, o sétimo mês do ano romano, Outubro, o oitavo, Novembro, o nono e Dezembro, o décimo.Noutros casos, a distância fonética entre o étimo e a forma contemporânea só se compreende à luz de uma qualquer reinterpretação. Esse pode ser o caso de alfinete, proveniente do Árabe AL-HILÂL, mas talvez contaminado pela forma de fino, que é uma das suas propriedades (note-se que em Castelhano a forma cognata é alfiler). Etimologia popular é o nome dado a hipóteses etimológicas fantasiosas, geralmente associadas a uma história curiosa e plausível, mas que não encontra confirmação na observação dos dados conhecidos. É o que se verifica, por exemplo, com a filiação do adjectivo sincero na expressão SINE CERA („sem cera‟), que aludiria a um episódio sobre a qualidade de vasos em cera. Esta hipótese não é confirmada por etimologistas respeitados como Ernout e Meillet, autores de um dicionário etimológico do Latim. 2.2 A Neologia As palavras que não fazem parte do léxico de uma língua desde a sua fundação como língua são ou foram neologismos. Neologismos são, pois, palavras que, num dado momento da existência de uma língua são consideradas palavras novas, como telemóvel, cujo aparecimento no final do século xx motivou a integração da palavra no léxico do Português. É fácil constatar que muitas das palavras que integram o léxico de uma língua foram, no passado, neologismos – basta olhar para a data da sua primeira atestação. Veja-se, por exemplo, a definição de Cunha (1996) para a palavra penicilina: (5) penicilina Substância formada no crescimento de certos fungos, com acentuada acção antibiótica, descoberta pelo inglês A. Fleming, em 1928, e obtida em 1941, pelo australiano Howard Florey e pelo alemão Ernst Chain. XX. Do lat. cient. penicillina, do nome científico do fungo Penicillium notatum. O aparecimento da palavra não pode ser anterior ao aparecimento da substância que ela refere. Com efeito, o Dicionário Houaiss data a palavra de 1929, filiando-a na palavra inglesa penicillin, por sua vez 43 formada a pertirdo radical latino PENICILL(IUM) e –in, um sufixo semelhante ao sufixo português –ina, responsável pela formação de nomes como propriedade de substância (cf. acromatina, dextrina), ou como efeito da substância (cf. morfina, ocitonina, narcotina, pepsina). Alguns dicionários registam justamente a data da primeira atestação de palavras que, nesse momento, eram neologismos. É o que se verifica no Oxford English Dictionary, que indica a primeira ocorrência das palavras, como se exmplifica em (6). O Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa, de Cunha (1996), atribui às palavras portuguesas equivalentes datações bastante diferentes. Isto não significa que estas palavras tenham entrado no léxico do Português muito mais tarde do que os seus equivalentes ingleses no léxico do Inglês, mas indicia a fragilidade da lexicografia portuguesa 9 . Com efeito, as datas que ocorrem não referem necessariamente o documento que encerra a primeira atestação da palavra, embora tal possa suceder, mas, mais frequentemente, a data do primeiro registo lexicográfico da palavra 10 . (6) OED Cunha (1996) Houaiss (2001) temperature 1531 temperatura 1813 temperatura 1813 logarithm 1615 logaritmo 1813 logaritmo 1676 neurosis 1776 neurose 1899 neurose 1899 oxygen 1790 oxigénio XIX oxigénio 1836 metabolism 1878 metabolismo 1899 metabolismo 1877 genetics 1901 genética XX genética 1939 Independentemente do momento em que surgem, os neologismos devem ser analisados quanto à sua génese. Não existe uma só maneira de gerar neologismos, existem diversas: alguns neologismos são palavras inventadas ou criadas, de forma mais ou menos aleatória, a partir de palavras já existentes, outros são palavras introduzidas na língua por empréstimo a outras línguas e outros ainda são palavras formadas a partir dos recursos morfológicos disponíveis na língua. A criação de neologismos encontra na morfologia uma potente ferramenta, que tem como fortes aliados a sistematicidade e previsibilidade, mas não se esgota aí. 44 2.3 Recursos Não-morfológicos na Formação de Palavras Nesta secção, o propósito é mostrar alguns fenómenos de criação de palavras que por vezes são apresentados também como domínio da morfologia, mas que, em rigor, não o são. Formas como bezidróglio, que teve uma vida efémera num concurso de televisão dos anos 70 do século XX, ou como escanifobético, podem ser inventadas, sendo o produto da criatividade dos falantes, basta que a sequência fonética resultante seja reconhecível como uma palavra dessa língua e que a sua categorização sintáctica seja plausível. Este tipo de invenção de palavras, totalmente imotivado, é um processo por vezes utilizado na criação literária. É o que se verifica nos seguintes textos: Ditirambo, de Mário Cesariny meu maresperantotòtémico minha màlanimatógrafurriel minha noivadiagem serpente meu èliòtròpolipo polar meu fiambre de sol de roseira minha musa amiantulipálida meu lustrefrenado céu grande minha afiàurora manhã minha fôgoécia de estátuas minha labrioquimia cerrada minha ponta na terra meu arsgrima meu diamantermita acordado! Urânia, de Jorge de Sena Purília amancivalva emergidanto, imarculado e rósea, alviridente, na azúrea juventil conquinomente transcurva de aste o fido corpo tanto... Tenras nadáguas que oculvivam quanto palidiscuro, retradito e olente é mínimo desfincta, repente, rasga e sedente ao duro latipranto. Adónica se esvolve na ambolia de terso antena avante palpinado. Fímbril, filível, viridorna, gia em túlida mancia, vaivinado. Transcorre uníflo e suspentreme o dia noturno ao lia e luçardente ao cado. 45 Estórias Abensonhadas, de Mia Couto (…) Estava já eu predisposto a escrever mais uma crónica quando recebo a ordem: não se pode inventar palavra. (...) Siga-se o código e calendário das palavras, a gramatical e dicionárica língua. Mas ainda, a ordem era perguntosa: 'já não há respeito pela língua-materna?' Não é que eu tivesse a intenção de inventar palavras. (...) Mas a ordem me deixou desesfeliz. (...) sou um homem obeditoso aos mandos. Resumo-me: sou um obeditado. [...) Nunca ponho três pontos que é para não pecar de insinuência. (...) Agora acusar-me de inventeiro, isso é que não. Porque sei muito bem o perigo da imagináutica. Às duas por triz basta uma simples letra para alterar tudo. (...) Entijole-se o homem com tendência a imaginescências. Voltando à língua fria: não será que o português não está já feito, completo, made in e tudo? Porquê esta mania de usar os caminhos, levantando poeira sem a devida direcção? Estrada civilizada é a que tem polícia, sirenes serenando os trânsitos. Caso senão, intransitam-se as vias, cada um conduzindo mais por desejo que por obediência. (...) Por causa dessas contribuições dispérsicas que chegam à língua sem atestado nem guia de marcha. (...) E montavam-se postos de controlo, vigilanciosos.(...) Uma espécie de milícia da língua, com braçadeira, a mandar parar falantes e escreventes. (...) E mesmo antes da resposta, eu, arrogancioso: - Não pode passar. Deixa ficar tudo aqui no posto. (...) a vida é uma grande fábrica de imagineiros e há muita estrada para poucos vigilentos. Ainda que todos estes casos possam ser considerados como invenções, a verdade é que nem todas estas invenções correspondem a criação completamente original. O leque abre-se com a suposta motivação sonora da onomatopeia, e desvenda-se na utilização mais ou menos aleatória e assistemática de dados da própria língua, como se verifica nos casos de amálgama, eponímia ou de operações semânticas sobre as palavras. Vejamos, com um pouco mais de atenção, o que se passa em cada um destes domínios. As palavras onomatopaicas 11 são formadas por uma sequência de sons da fala que pretende reproduzir um dado estímulo sonoro não-verbal. No Português Europeu, a criação de palavras onomatopaicas é muito pouco frequente e as formas atestadas também não são muito numerosas: (7) atchim ou atxim nome masculino chio nome masculino trás interjeição zás interjeição Em geral, estas palavras são usadas em registos particulares, como o da banda desenhada ou a interacção verbal com crianças, por exemplo, na designação de alguns animais ou das suas „vozes‟: 46 O redobro (também chamado reduplicação) é um processo de criação de palavras que consiste na repetição de uma palavra já existente e que é frequentemente uma forma verbal, como cai-cai ou dói- dói. Aparece frequentemente associado a outros processos de criação de palavras, como a onomatopeia (cf. zunzum) e o truncamento (cf. vóvó), e particularmente na formação de hipocorísticos, que são a versão carinhosa de palavras existentes (cf. Nônô). (8) cocorócocó nome masculino = voz do galo cricri nome masculino = voz do grilo gluglu nome masculino = voz do perú piopio nome masculino = ave miau nome masculino = gato e voz do gato Excepcionalmente, a sequência fonética que reproduz o som é formada por uma expressão linguística: é o que se verifica com a designação informal do colibri como bem-te-vi, ou da galinha de angola como (es)tou-fraca (ambas atestadas no Português do Brasil). Note-se que estas palavras integram uma onomatopeia mas também. frequentemente, os constituintes morfológicos exigidos pela sua integração numa dada categoria (cf. miar, piar, zumbir, zurrar). As formas onomatopaicas podem também servir de base à formação de palavras, mas o formato é quase sempre aleatório, com inserção de sons que tornem a sequência fonética plausível, ou fazendo uso dos mecanismos de redobro: (9) clique → clicar popó tautau tlim → tilintar tique-taque toctoc Em muitos casos, as formas onomatopaicas são empréstimos de outras línguas, inclusivamente do Grego Antigo e do Latim:
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