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J 10 Escritos do Ignoto A Literatura Fantástica Aíla Sampaiol i t e r a t u r a CURSO c e a r e n s e Realização 1. VOCÊ! AINDA HÁ TEMPO PARA VOLTAR... Antigas como o medo, as ficções fantásticas são anteriores às letras. As assombrações povoam todas as literaturas: estão no Avesta, na Bíblia, em Homero, no Livro das mil e uma noites. Talvez os primeiros especialistas no gênero tenham sido os chineses. Adolfo Bioy Casares, em Antologia da Literatura Fantástica (2013). as se eu fosse você, fica- ria por aqui! Ítalo Calvino, na in- trodução de sua antolo- gia Contos fantásticos do século XIX, afirma em seu primeiro parágrafo: “O conto fantástico é uma das produções mais caracterís- ticas da narrativa do sécu- lo XIX e também uma das mais significativas para nós, já que nos diz muitas coisas sobre a interioridade do indivíduo e sobre a simbo- logia coletiva. [...] Sentimos que o fantástico diz coisas que se referem diretamente a nós, embora estejamos menos dispostos do que os leitores do século passado [XIX] a nos dei- xarmos surpreender por aparições e fantas- magorias, ou melhor, estamos prontos para apreciá-las de outro modo, como elementos da cor da época” (CALVINO, 2004, p. 9). Na obra, Calvino seleciona narrativas de diversos autores, alguns reconhecida- mente marcados pelo fantástico, como Hoffman, Poe, Hawthorne, Stevenson, en- tre outros que apenas experimentaram o fantástico, mas destacaram-se em outros gêneros, embora o organizador reconheça o relevo das narrativas elencadas, que ser- vem de base de sustentação ao fantástico mundial, como é o caso de Théophile Gau- tier que, conforme Calvino, tem “A morte amorosa” (1836) como “o mais famoso e o mais perfeito (talvez até perfeito demais, como frequentemente ocorre em Gautier), executado e burilado de acordo com todas as regras. O tema dos mortos-vivos e dos vampiros (no caso em questão, uma vampi- ra) apresenta-se aqui numa espécie de alta qualidade, que mereceu os elogios de Bau- delaire” (CALVINO, 2004, p. 213). Na sua seleção, Gogol, Mérimée, An- dersen, Dickens, Turguêniev, Balzac, Scott, Maupassant, James, Kipling, Wells, Poto- cki, entre outros. É notável como as lendas, os causos e as tradições locais, especialmente os interiora- nos, se transfiguram em fantástico literário, seja no Ceará ou no Mundo. São histórias de vingança – pós-túmulo ou não –, a presença de entes supra-humanos, inclusive empres- tados do folclore, assombrações – mortos em acidentes trágicos ou assassinados – e os castelos ou casarões amaldiçoados. Por outro lado, apenas estados psicológicos de horror, medo ou mesmo um pesadelo po- dem configurar uma boa narrativa fantástica. 146 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE Braulio Tavares, que é um dos maio- res estudiosos da Literatura Fantástica no país, autor/organizador de, pelo menos 7 livros em torno do tema, reconhece que as narrativas fantásticas, com o tempo, am- pliaram o seu campo além dos “veículos” clássicos, como a literatura propriamente dita (incluindo o cordel), o teatro e a ópe- ra, chegando aos dias atuais por meio do cinema, das graphic novels e do RPG. E diz: “Assim como o inconsciente prospectado pelos psicanalistas, o fantástico é tudo que não é, tudo que não está onde estamos, tudo que não existe assim, tudo que está fora de nosso campo de visão, tudo que não pode acontecer (ou, mas ameaçado- ramente, tudo que não poderia ter aconte- cido).” (TAVARES, 2003, p.7-8). O diabo apaixonado (1772), de Jacques Cazotte, é considerado por muitos teóricos como a estreia da Literatura Fantástica mundial. Na obra Páginas de sombra: contos fan- tásticos brasileiros (2003), podemos encon- trar em sua apresentação um rico ensaio sobre o tema tão controverso do gênero fan- tástico, incluindo os elementos clássicos que povoam a sua seleção, além de outras ques- tões do gênero como a sua fronteira com a ficção científica, diferenciando a suposta lite- ratura fantástica praticada por H.G, Wells da realista de Jules Verne, por exemplo. Adolfo Bioy Casares, coorganizador – ao lado de Jorge Luís Borges e Silvina Ocampo – da Antologia da Literatura Fantástica (2013), em seu “Prólogo”, sugere a classificação dos contos fantásticos pela sua explicação: “a) os que se explicam pela ação de um ser ou de um fato sobrenatural; b) os que têm explicação fantástica, mas não sobrenatural (“científica” não me parece o adjetivo conveniente para essas invenções rigorosas, verossímeis, à força de sintaxe); c) os que se explicam pela interven- ção de um ser ou de um fato sobrenatural, mas insinuam, também, a possibilidade de uma explicação natural; os que admitem uma alu- cinação explicativa”, depois, informando que “Essa possibilidade de explicações naturais pode ser um acerto, uma complexidade maior; geralmente é uma fraqueza, um subterfúgio do autor, que não soube propor o fantástico com verossimilhança.” (BIOY, 2013, p.17). Por ser tão atraente e polêmica, pela sua controversa teorização, pelos textos e antolo- gias diversas que pautam sobre essa exube- rante produção, não poderíamos nós, neste curso, deixar de fora o fantástico. Assim, nes- te módulo trazemos um breve panorama do texto fantástico escrito na Ceará, do século XIX aos nossos dias, optando por citar inú- meros autores que nos deixaram ao menos um rastro no gênero, sendo eles incluídos na antologia O cravo roxo do diabo, uma espécie de guia possível para nossa exposição. Seguindo os mesmos cânones da lite- ratura nacional, a literatura cearense tem representação expressiva nas narrativas do gênero, que seduzem escritores e leitores, por trazerem acontecimentos que desafiam a razão e se mantêm inexplicáveis. BOLACHINHAS CURSO literatura cearense 147 raízes nas histórias de deuses, fadas e feiticei- ras da Antiguidade Clássica. Como todo gê- nero, o fantástico teve estabelecidos os seus cânones, continuamente fundamentados e revisados por teóricos como Roger Callois, Tzvetan Todorov, Irene Bessière, Louis Vax, Victor Bravo, Filipe Furtado, e, mais adiante, pelo crítico Erdal Jordan e pela filóloga ar- gentina Ana María Barrenechea, entre outros. Mestres do horror, como H.P. Love- craft, E. T. A. Hoffmann, Edgar Allan Poe e Téophile Gautier, deixaram um le- gado para os amantes do sobrenatural e exerceram influências na ficção fantástica produzida em todo o mundo. No Brasil, as primeiras manifestações do fantástico podem ser encontradas nos con- tos de Álvares de Azevedo e, posteriormen- te, de Machado de Assis, rearfirmando-se depois em narrativas de outros escritores, entre os quais J. J. Veiga, Moacir Sclyar, Murilo Rubião e Lygia Fagundes Telles. A sistematização dos cânones do fantás- tico passou por muitas revisões. A mais tradi- cional, de Tzvetan Todorov, no livro Introdu- ção à Literatura Fantástica, assevera que ele se dá por meio da hesitação do leitor em “aceitar” ou não os fenômenos narrados, desde que tais fenômenos não predispo- nham uma leitura alegórica nem poética. O crítico estruturalista opõe, ainda, o que ele chama fantástico a outros dois conceitos fronteiriços: o estranho e o ma- ravilhoso. O fantástico ocupa o tempo da incerteza, da vacilação entre aceitar ou não o evento extranatural. Assim que se escolhe uma resposta ou outra, o fantásti- co é abandonado e entra-se no domínio de um dos gêneros “vizinhos”, o estranho ou o maravilhoso, dos quais falamos. Erdal Jordan, em seu livro La narrativa fantástica (1998), com uma visão mais atual do fenômeno, assegura que a hesitação é característica do fantástico tradicional – século XIX. O fantástico moderno não va- cila entre aceitar ou não o fato sobrenatural, não provoca espanto diante dele, ou seja, o evento insólito é naturalizado (ERDAL JORDAN, 1998, p. 110), embora seja patente uma inexplicável transgressão de ordem. Corroborando essa concepção atual, Ana María Barrenechea afirma a configuração dofenômeno “em forma de problemas feitos a- -normais, a-naturais ou irreales em contraste com factos reais, normais ou naturais”, con- siderando-se, assim, fantástico todo texto cujo enredo encene acontecimentos que transponham as leis naturais, ou seja, que coloquem em conflito o mundo empírico e o mundo fantasioso, sem necessariamente instalar o espanto ou o medo. 2. O GÊNERO FANTÁSTICO E SEUS “VIZINHOS” gênero fantástico se con- solidou como estética a partir do período do Ro- mantismo – mais espe- cialmente, do Romantis- mo alemão –, com suas narrativas góticas (essas, desde o século XVIII, ori- ginária da Inglaterra), embora já tivesse suas 148 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE das narrativas de Álvares de Azevedo em Noite na taverna (1855): enquanto traba- lham com a mandioca, em um serão na fa- rinhada, os sertanejos contam histórias de caiporas, aventuras de caçadas e encanta- mentos. São histórias dentro de uma histó- ria. Igual estrutura está no conto “Capitão Maciel, 3.ª companhia”, de Tomás Lopes, cujo enredo deixa claros seus desdobra- mentos: “Depois do jantar, na salinha do café, falava-se em casos estranhos, misté- rios do além-túmulo. Cada um contava a sua história, todos, porém, afetando des- crença, ceticismo, explicando tudo pela coincidência”, numa tentativa de racionali- zação que não impede o espanto, quando se constata a aparição de um morto, mo- tivo também presente em “A basílica”, de Cruz Filho, cujo enredo comprova a pre- sença da ex-escrava nas ruínas da igreja onde morreu. Florival Seraine, igualmen- te, em seu “Guajara”, coloca o insólito em contação de causos numa venda. O Realismo cearense foi prodigioso no espírito inventivo das narrativas fantás- ticas do século XIX. Duas representações significativas estão nas narrativas de Pápi Jr. (“A Cruz-das-Malvas”) e de Oliveira Paiva (“O ar do vento, Ave-Maria”). No en- redo do primeiro, há uma atmosfera pro- pícia para o sobrenatural, na descrição esmerada da escuridão da noite “impe- netrável e compacta, corria-nos pela fren- te como um largo pano sujo de fuligem”, em que aparece, na estrada, em frente à cruz-das-malvas, o fantasma da pessoa que lá foi enterrada. Na do segundo, tem- -se a aparição de um monstro, no meio da noite, carregando a cabeça de uma mulher (fazendo, ainda, “umas caretas horrorosas”) para enterrar. Oliveira Paiva ultrapassa o realismo-regionalista e, por meio da temática do imaginário popular da burra de padre (a amásia de vigário se transforma em burra-de-padre), fixa a at- mosfera sobrenatural na ficção. A dissertação de mestrado de Vicente Jr., Aspectos do Fantástico na Literatura Cearense (2003), disponível na Biblioteca Virtual do AVA, traz uma ótima análise dos elementos característicos do fantástico, além de uma síntese teórica sobre o gênero fantástico e a sua “vizinhança”, como o maravilhoso, o estranho, o absurdo, entre outras vertentes ainda mais complexas, como fantástico- maravilhoso, o fantástico-estranho etc. Na dissertação, aponta: “Quando assinalamos aqui que Oliveira Paiva conseguiu o efeito fantástico no conto por nós estudado [“O ar do vento, Ave-Maria”], não foi simplesmente por ter fundamentado seu texto em um elemento terrificante do folclore brasileiro, a mula-sem-cabeça, mas pela utilização também de outros recursos (não teorizados à época) como a construção de um espaço adequado à narrativa fantástica (Furtado: 1980) o entrelaçamento de dois mundos (Bravo: 1985), um discurso fundamentado na “alteridade” (Levi Strauss: 1967), causador da “inquietante estranheza” (Freud: 1933) e uma poética de “incertezas” (Bessière: 1974)”. 3. À RODA DE CAUSOS SOBRENATURAIS o Ceará, o primeiro con- to fantástico de que se tem registro foi escrito no século XIX, por Juve- nal Galeno – mais um pioneirismo na sua lista –, com o título “O senhor das caças” – integrante de Cenas populares (1871) –, e tem a mesma estrutura BOLACHINHAS CURSO literatura cearense 149 4. A POLÊMICA RAINHA DA ILHA DO NEVOEIRO romance A rainha do ig- noto, de Emília Freitas, editado originariamente em 1899 e que teve uma segunda edição apenas em 1980, por iniciativa de Otacílio Colares, é consi- derado por alguns como o primeiro romance fan- tástico brasileiro. Há também quem o apresente como primei- ra obra de fantasia da literatura brasi- leira, o que justifica o número de edições por editoras distintas que encontramos hoje no mercado, com apresentações de Constância Lima Duarte (2003) e de Ale- xander Meireles da Silva (2020). Existem, entretanto, aqueles que não veem na obra o componente fantástico, mas, sim, de maravilhoso, um de seus “vi- zinhos” fronteiriços aqui destacados. O enredo desse romance cujo subtítulo atribuído pela autora é “romance psicológi- co”, além de trazer questões relativas à situ- ação da mulher da época, mostra o espírito revolucionário da autora que cria, em sua narrativa, uma sociedade secreta de mulhe- res liderada por uma misteriosa rainha, por meio da qual se resgatam, principalmente, mulheres de diferentes partes do Brasil, li- bertando-as de suas vidas trágicas e dando- -lhes oportunidade de independência. A protagonista – conhecida com o epíte- to de “Rainha do Ignoto” ou ainda pelas al- cunhas de Funesta, Moça Encantada, Diana, Zuleica Neves, Zélia, de acordo com o disfarce que usava em suas empreitadas – era repu- blicana, abolicionista e espírita. Percorria várias cidades no Brasil no intuito de encon- trar mulheres que sofriam algum tipo de vio- lência física ou moral, ou que sofresse pela sua condição de subjugada, ou em estado de solidão, depressão ou situações afins, para levá-las à sociedade secreta que liderava, na qual poderiam desenvolver trabalhos de acor- do com suas habilidades: engenheiras, médi- cas, marinheiras, generais, cientistas. “Emília Freitas foi, sem dúvida, uma das principais escritoras de seu tempo, ao lado de Francisca Clotilde e Úrsula Garcia. A partir de 1873, aos dezoito anos, começou a participar ativamente da vida cultural da cidade, através da publicação de textos em prosa e de poemas, em jornais como Libertador, O Cearense, Lyrio e A Brisa. Anos mais tarde, ainda em Fortaleza, participou com outras mulheres da Sociedade das Cearenses Libertadoras, de caráter abolicionista, destacando-se na defesa dos escravos.” (DUARTE, 2003, P.5) SABATINA 150 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE O gênero fantástico se consolida na obra pelo poder que a Rainha tem de hipno- tizar as pessoas e nunca deixar que identifiquem seu rosto ou descubram sua identidade. Também, por meio da hipnose, ela mantém invisível a Ilha do Ne- voeiro, o lugar fictício – um “outro mundo” – fincado no litoral nordestino, que serve de espaço para a sede da sociedade, não sendo, desse modo, jamais avistado pelos navegantes que passam ao redor. Paralelamente à história da Rainha e de suas paladinas, descrevem-se personagens que habitam a cidade de Passagem das Pe- dras, antigo nome da cidade de Itaiçaba, no Ceará, e onde se desenvolvem entrechos que fazem jus a folhetins românticos, com mulheres conservadoras e presas ao modelo patriarcal, o que serve de contraste para as atitudes das mulheres que rompiam com o papel a elas reservado no período histórico. Também Nelly Novaes Coelho reconhe- ce a transgressão da autora aos cânones da época, quando funde: O trecho a seguir nos revela a primeira imagem que o personagem Edmundo tem de Funesta, a rainha, ainda no início do livro: A voz era de mulher e vinha se aproximan- do [entoando uma canção francesa]. Já se distinguia o som de uma harpa com que ela se acompanhava. [...] Quando a pequena embarcação passou por defronte da janela, Edmundo pôde con- templar à vontade a formosa bateleira. Ela vestia de branco, tinha os cabelos soltos e a cabeça cingida por uma grinalda de rosas. De pé no meio do bote, encostava a harpa aopeito [que tinha cordas de ouro], e toca- va com maestria divina! O luar dava-lhe em cheio nas faces esmaecidas pelo sereno da madrugada, e os olhos extremamente belos estavam amortecidos por uma expressão magoada de tristeza indefinível. Algumas go- tas de pranto umedeciam-lhe as pálpebras, e tremulavam ainda nas negras pestanas. Vinha, ali também assentado no banco da proa, sustentando o remo e movendo-o com perícia, uma figura negra e peluda, feia de meter medo [era King, um orangotango, que vestia-se como marujo]. E, para mais confirmar a sua parecença com o rei das trevas, o tal moleque tinha uma cauda que, achando pouca acomodação no banco, se tinha estendido pela borda do bote, e pa- recia brincar na superfície das águas. De espaço em espaço, a enorme cabeça de um cão cor de azeviche [cujo nome era Fiel] aparecia e tornava a ocultar-se aos pés da cantora. elementos do romance gótico (aventuras sucessivas, mirabolantes, fantásticas ou mergulhadas em mistérios); elementos do romance naturalista (exigência de verdade documental, objetividade no registro dos fe- nômenos observados, preocupação com os pormenores e com a causalidade dos fenô- menos); elementos do romance regionalista do entre-séculos (preocupação com as pecu- liaridades da região que serve de espaço aos acontecimentos, contrapondo seu primitivis- mo ou rusticidade aos requintes de beleza, luxo e riqueza do mundo encantado que nele se ocultaria: o mundo da Rainha do Ignoto); valores da concepção de mundo cristã que consolidou a dualidade ou ambiguidade inerente à natureza feminina: anjo/demônio, pura/impura, etc. E, finalmente, elementos do folclore nordestinos que, “filtrados” pela consciência da autora, revelam o grande potencial transfigurados da arte. (COELHO, 2002:100. In: DUARTE, C. (org.), 2002). CURSO literatura cearense 151 ão várias as temáticas que ins- piram o conto fantástico ce- arense. Selecionamos os ele- mentos motivadores do evento insólito de algumas narrativas da coletânea organizada por Pedro Salgueiro, O cravo roxo do diabo: o conto fantástico no Ceará (2011) e, por meio delas, traçaremos um panorama da prodigiosa imersão dos nossos escritores no universo extranatural. Encontramos, numa pers- pectiva mais tradicional, desde as peripé- cias do capeta (“O dia aziago”, de Lopes Fi- lho – da Padaria Espiritual), a aparição de almas penadas (“Alma penada”, de Améri- co Facó), espectros (“Espectro”, de Gusta- vo Barroso) e visagens (“Julho é um mês que não tem fim”, de Batista de Lima), até histórias de pescador com aparição de se- reias (“Sereias”, de Herman Lima) ou boti- jas (“Uma história fantástica”, de Martins d’Alvarez; “A botija”, de Genuíno Sales e “A botija”, de Lustosa da Costa). Algumas vezes, não se configura nenhum fenômeno, tão somente a at- mosfera de mistério estabelece a pre- sença do insólito ou seu prenúncio, como ocorre no conto “Casa mal-assombrada”, de Carlyle Martins: “Numa visão macabra e sinistra, atestando a transitoriedade de uma vida de opulência e conforto, a velha casa, como que indiferente ao perpassar dos anos, ensombrada pelas mongubeiras sempre monótonas e sussurrantes, tinha as paredes carcomidas e cobertas de fen- das. Por seu aspecto aterrador, atestava ela a glória do passado distante, obscure- cido pelas brumas dos tempos e demons- trando como a felicidade humana é incerta e passageira...”; e em “A Oiticica”, de Otá- vio Lobo: “Se alguém, rompendo o escu- ro, passa debaixo de alguma oiticica, sen- te arrepios de medo, pavor de visagens e assombrações de almas do outro mundo.” São bastante engenhosas as façanhas dos nossos contistas, seja a dar vida a uma bailarina de bronze, num delírio (“A baila- rina”, de Pimentel Gomes); a configurar um milagre de um padre que salva, com sua atitude, um jovem médico da fúria de fanáticos religiosos (“O milagre”, de Fran Martins); seja a atribuir a concretização de um fato extraordinário à fé em Nossa Senhora, como o faz João Clímaco Be- zerra (“História do mar”), ou, como Edi- gar de Alencar, a fazer sorrir um macabro boneco de Judas (“Judas”). 5. O FANTÁSTICO NO CONTO MODERNO E CONTEMPORÂNEO 152 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE “O cravo roxo do diabo” é um conto de Álvaro Martins, o “Alvarins”, cofundador da Padaria Espiritual e do Centro Literário. Também é de Álvaro Martins a obra Casa mal-assombrada (1903), que teve uma segunda edição quando o filho do poeta reuniu vários livros dele em Alma cearense (1928). almas do rio perdido”, de Lucineide Souto, pode-se perfeitamente conviver, conversar e dançar com pessoas mortas; em “Terror”, de Glória Martins, bonecas adquirem vida, riem pavorosamente e cometem crimes. No conto “O Homem de Neandertal”, de Rubens de Azevedo, não há fronteira en- tre o presente e o passado. O narrador ten- ta proteger um amigo arqueólogo de um atentado fatal, mas não consegue: “[...] não sonho. Parece que penetro numa fenda do tempo e participo realmente daquela vida primitiva”. O arqueólogo, mesmo trancado no quarto do amigo que o vigia pelo lado de fora, é assassinado, durante a noite, por um homem das cavernas que já foi seu objeto de estudo e já vinha, há muito, ameaçando tirar-lhe a vida. Já R. Batista Aragão ins- taura o sobrenatural na figura de uma alma penada que aparece na estrada para pedir ajuda aos incautos. Diz o narrador de “O as- sobiador do Folha Larga”: “[...] sexta-feira, 13 de agosto e noite de lua cheia. Como reforço às possibilidades de encontro com os mistérios do além, havia e bastante co- mentado, o ‘Assobiador do Folha Larga’ cuja figura era tida como infalível. /.../ Cor- cunda, rosto coberto, pernas alongadas e a imitar com perfeição as pernas de um alicate. Fez-me lembrar de relance a fealda- de do Corcunda de Notre-Dame. Conduzia no dorso certo fardo volumoso, talvez pe- sado e sobretudo incômodo, uma vez que o soprar constante demonstrava cansaço. Aproximou-se ainda mais, do local onde eu me encontrava e deu o ar da costumeira e civilizada educação”. Tratava-se, na verda- de, de um filho que há tempos assassinara o pai e ficara a vagar, carregando um peso nas costas, qual Sísifo castigado por Zeus. Entre muitos dos textos modernos, per- manecem os temas tradicionais, como a metamorfose e a morte. No conto “Pedra encantada”, de Rachel de Queiroz, “A his- tória é que toda véspera de Ano-Bom, ao bater da meia-noite, a pedra se desencanta. [...] molda-se a mulher toda na pedra mole como o barro no torno do oleiro. E por fim, exausto, dorme, e quando o dia amanhece ele acorda à beira da água, junto às moitas de muçambê, e vê a pedra escura ao seu lado, e tudo lhe diz que as suas lembranças foram um sonho.” Já na narrativa “O 10 nos limites do Bené Gavião”, de Barros Pinho, “O Bené pulou este batente e saiu daqui com uma cabeça de onça, o corpo de ho- mem e asas de gavião encantado.” A morte toma forma humana em “Dizem que os cães veem coisas”, de Moreira Cam- pos, que a personifica na figura de uma mu- lher, antiquíssima, atual e eterna, para levar a vida de uma criança que se afoga na piscina, enquanto os pais se divertem numa festa. Do mesmo modo, no romance A casa, de Natér- cia Campos, além da antropomorfização da casa, que é a narradora-testemunha de muitas histórias que se passaram sob o seu teto, a morte também assume a forma de uma pessoa que surge inusitadamente quan- do ocorre um suicídio por enforcamento em um dos quartos. No conto “O encontro recidi- vo”, de Giselda Medeiros, os mortos dançam e pensam; nos enredos criados em “A capa de chuva”, de Sânzio de Azevedo e em “As SABATINA CURSO literatura cearense 153 O conto “Quadros em movimento”, de Lourdinha Leite Barbosa, traz “os perso- nagens” dos quadros afixados na parede do apartamento da narradora libertando-se e saindo, como em rebelião, cada um con- tando a sua história de aprisionamento nas telas. Quando o leitor tende a racionalizaro acontecimento, atribuindo-o a um delírio da narradora que se confessa extremamente cansada, eis que ela desperta com a queda de um quadro e percebe que a tela está com- pletamente branca, sem vestígio de tinta. Já no conto “O homenzinho que en- trou numa tela”, de Rosemberg Cariry, ocorre uma situação inversa: um homem adentra uma tela e, logo que se integra à paisagem, numa sensação de bem-estar, descobre a presença de um leão feroz. No enredo de “Escadaria”, de Mônica Serra Silveira, a personagem entra no cenário de um desenho, depois retorna à realida- de, como se o insólito fosse natural. Aldir Brasil Jr., em “O leopardo da ga- leria Pedro Jorge”, apresenta-nos um narra- dor que inicia o conto declarando “Escapou do Bom Jardim depois do sumiço da mãe e instalou-se para sempre nas paredes da cidade, feito colagem barata.” Após inusi- tadas situações, o personagem desaparece sem que saibamos se era realmente homem ou bicho. Em “A última obra”, de Isa Maga- lhães, é a leitora que entra na obra que está lendo, fundindo realidade e ficção. A técnica da tentativa de racionalização do evento fantástico, de que falamos há pou- co, própria do escritor consciente dos câ- nones do gênero, está também presente na narrativa “Tugúrio”, de Carlos Vazconcelos. Quando o(a) leitor pensa que tudo o que o personagem viveu foi apenas um pesadelo, o narrador o arrebata com a informação: “O ambiente agora era úmido e fétido. Verificou as palmas das mãos com olhos abismados. Mal podia acreditar. Teve visões difusas do seu inferno. Mas ainda não era hora de pur- gar a alma. Só quando voltou a si definitiva- mente é que foi recordando... aos poucos... E compreendeu, com assombro, que o pesa- delo estava apenas começando.” No universo fantástico, tudo é perfeita- mente possível: unhas que surgem durante a noite (“Unhas”, de Ana Miranda); ondas que aparecem repentinamente e invadem a cida- de (“A onda”, de Adriano Espínola); a moça que tem gatos dentro de si (“A menina que tinha gatos dentro de si”, de Carmélia Ara- gão); uma cidade estranha, dominada pelos dragões, que remete a uma alegoria (que não se concretiza) da impossibilidade de se viver nas metrópoles atualmente (“Os quatro dra- gões azuis”, de Dimas Carvalho); o jogo de dama ativo mesmo após anos da morte de seu dono, que o movimenta durante a noite, seguindo o ritual de quando estava vivo (“O jogo de damas”, de Pedro Salgueiro). No tex- to de Jorge Pieiro, “O bicado Oreblas”, o que ocorre no sonho do personagem se torna rea- lidade quando ele acorda, como se o mundo onírico e o real tivessem feito um pacto. O insondável mistério da morte permite muitas experiências estéticas e inspira a cria- ção de universos que transcendem a razão. No irônico “Pequeno interlúdio para o desespero”, de Airton Monte, a personagem parece ter passado a vida a aprender a cozinhar para os seus familiares, pois, quando atinge o seu ob- jetivo e os procura para se sentarem à mesa, todos viraram peças de pedra ou de cera, mas a descontinuidade do tempo permite que ela não o perceba. Em “Folhas caídas”, de Nilze Costa e Silva, a vida da personagem depende da vida da planta; quando o vegetal murcha, a moça sabe que é hora de partir. No conto de Silas Falcão, “O celular”, o protagonista, após retornar de um enterro, recebe a ligação da pessoa morta. Já em “O sobrevivente”, de Tér- cia Montenegro, são “as nuvens ruins do céu” o elemento desencadeador de uma maldição. Acontecimentos inusitados se desdobram nos enredos, tornando possível o que parece absurdo. Nilto Maciel, em “As contas de Seti- don”, metamorfoseia um rosário na figura de um estranho homem: “[...] o rosário não para- va de se mover, arrastava-se pelo chão como um réptil, dando voltas ao redor da mesa e de nós. E só então compreendemos a verda- deira natureza das contas. Não, não se tratava de um rosário de contas, de um objeto, mas de um ser vivo”. Raymundo Netto, no conto “Anúncio”, cria um personagem que, no de- correr dos fatos, inquieta-se com os olhares e as atenções que atrai. Só ao final revela-se o mistério: “Foi ao banheiro, torceu para que a cunhada ali não estivesse, e encostou-se à pia. Então, ali teve a conclusiva revelação: ante o armário do banheiro, percebeu que, em vez de sua costumeira face, havia um espelho!”. Se os fantasmas “alvacentos e aterrori- zantes” eram os instauradores do insólito nos primeiros contos fantásticos, fazendo jus a uma era de crendices em visagens e espectros, no nosso tempo, o extranatural pode ser apenas a desagregação do real, e os motivos se atualizam para traduzir o medo de um novo tempo: uma planta, os pés inchados, um relógio, ou “humanóides planando sobre discos metálicos”. São mui- tos os contistas cearenses que enveredam pelo insólito. Alguns de modo mais tradi- cional, instaurando um clima desagregador e o medo; outros naturalizam o extrana- tural, trazem-no para a rotina do persona- gem sem a instauração do pavor, embora colocando o(a) leitor(a) diante de fatos que fogem da lógica referencial. 154 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE 6. O FANTÁSTICO NO ROMANCE MODERNO E CONTEMPORÂNEO ambém orientando-me pe- -la coletânea O cravo roxo do diabo: o conto fantástico no Ceará, apesar do título se referir ao gênero conto, registram-se 17 romances escritos por cearenses com, pelo menos, alguma inter- venção de fantástico. O primeiro, A casa as- sombrada, de Bezerra de Menezes. Como o próprio título prenuncia, traz a inserção do sobrenatural, a presença de barulhos estranhos e mesmo uma assombração corporificada, capaz de interagir com os vivos para horrorizá-los: “De repente, foi a atenção de um e de outro atraída para a aparição de um terceiro, embuçado em um capote escocês, que se acocorou ao pé de Manoel e pôs sobre as brasas a sua espetada. Esta, em vez de ser de carne, era um sapo enorme, cuja gordura derretia- -se e pingava nas brasas, que crepitavam sinistramente. Os dois olharam-se como quem dizia: temos obra. O intruso, mudo e impassível, virava o sapo, ora de barriga para cima, ora de costas, e, por fazer ob- séquio a quem lhe fornecera as brasas, levava-o acima da espetada vizinha para untá-la com a gordura que escorria do bi- cho.” O fantástico se realiza de forma tra- dicional, tanto pelo espaço, como pelo clima soturno que se estabelece, quanto pelo motivo que conduz o enredo. Carlos Emílio Corrêa Lima é um dos autores mais fiéis ao gênero, publicando quase que exclusivamente o fantástico, sen- do o único cearense a figurar na citada anto- logia Páginas de sombra: contos fantásticos brasileiros (2003), organizada por Bráulio Tavares. Na obra, o conto “Luvibórix”. Baseamo-nos, a princípio, na publicação O cravo roxo do diabo, que selecionou tex- tos com características do fantástico de um grande número de ficcionistas. Muitos, como podemos observar, passaram pelo fantásti- co, mas não é com ele que se destacam em sua obra. Outros autores contemporâneos o experimentaram, com maior ou menor frequência, como Ricardo Kelmer, Inez Fi- gueredo, Maria Thereza Leite, Regine Li- maverde, Valdemir Mourão, Jesus Irajacy Costa, Túlio Monteiro, Robson Ramos, Paula Izabela, Leo Mackellene, Natércia Pontes, Carlos Gildemar Pontes, Beatriz Alcântara, Durval Aires Filho, Claudio Portella, Vicente Jr. (também pesquisador do gênero entre nós), Sérgio Telles, entre tantos que utilizam ou utilizaram um dia o insólito como fonte de inspiração. CURSO literatura cearense 155 Em O reino de Kiato (1922), de autoria de Rodolfo Teófilo e publicado pela editora de Monteiro Lobato, não há a presença de as- sombrações, mas de elementos que a carac- terizam como ficção científica e de elemen- tos que subvertem a normalidade, como a flor esquisita e curiosa, que “Tinha corola de um sem-número de pétalas azul ferrete, quase negro, como que brunidas, com refle- xos metálicos, e no centro os órgãos de re- produção, alvoscomo arminho; engastava- -se num pedúnculo curto, envolvida num ambiente delicado e sutil perfume bem como a uma crisálida, uma joia que resplen- dia aos raios do sol”, vista pelo dr. John King Paterson, ao chegar em Kiato, cidade que causava estranheza pela soberania “de sua liberdade depois de mais de um século de reação contra os usos e costumes resultan- tes da intoxicação alcoólica e sifilítica”. A casa assombrada, ou o casarão, ou simplesmente a casa, são espaços e mo- tivos de várias narrativas presentes nesta coletânea. Na obra de Natércia Campos, a casa é a personagem protagonista e a narra- dora de fatos que atravessam gerações. Em O mundo de Flora, de Angela Gutiérrez, há um casarão onde se ouve a voz dos mortos. Em Leão de Ouro, de Natalício Barroso, há até a observação: “não há casa antiga que não tenha seu fantasma”, já que os mor- tos arrastam chinelos, desarrumam coisas e acendem velas. Em Coração de areia, da excelente poetisa Marly Vasconcelos, também são os mortos os autores dos fe- nômenos, pois se manifestam e exercem in- fluência na vida dos vivos através dos seus retratos. No enredo de Busca, romance de Teoberto Landim, igualmente há uma casa mal-assombrada, onde, durante a noite, estilhaçam-se garrafas no chão. Seja com um leitmotiv futurista, como disco-voador; inusitado, como cabeças de deuses que dão orientações para a vida; ou tradicional como a visão de almas, o ouvir de vozes, a petrifi- cação de uma moça durante a missa ou o re- voar de morcegos presos em gaiolas, apari- ção de serpentes ou abutres, transformando o clima de toda uma região, as narrativas se constroem por meio de fenômenos inexplicáveis pelas leis da razão. Em Os verdes abutres da colina, de José Alcides Pinto, um de nossos maiores re- presentantes do gênero fantástico, lou- cura e maldição se fundem, criando um uni- verso completamente surreal, absurdo. A lógica dos fatos é subvertida pela presença de uma maldição em todo o Alto dos Angi- cos, região fundada pelo coronel Antônio José Nunes, o garanhão luso que naufra- gou naquelas terras e a povoou unindo-se a uma índia. Ele multiplica a população ao relacionar-se com várias mulheres ao mes- mo tempo, inclusive com suas filhas. Assim, seus netos são também seus filhos. Os ver- des abutres anunciam o fim de tudo, trans- formam toda a atmosfera, mesmo com a crença do povo no poder do demônio preso numa garrafa. Não necessariamente o even- to instaurador do insólito percorrerá toda a obra romanesca, desde que encenado, em qualquer passagem, dará a ela a ca- racterização do gênero de que ora tra- tamos, o que não negará, se existente, a presença do estranho, do maravi- lhoso, do macabro ou do surreal. O historiador Francijési Firmino, em Pa- lavras da maldição (2008), nos descreve um pouco da ambientação fantástica do autor: Ceará, um vale místico, de lendas e as- sombrações, lugar do fantástico, dos seres mitológicos, de dragões, duendes, abutres verdes, demônios; da natureza, o rincão das histórias infantis, dos contos de fada, da imaginação que corria solta das amarras realistas, um universo de lógicas repartidas do Ocidente, espaço fabuloso; um território sertanejo, manicomial, extensão de Sodo- ma, Gomorra, das terras diluvianas; pedaço onde se vive entre promontórios, aluviões, apocalipses, desertos, secas, cataclismos, espaço de cegos, de homem bestializado pela preguiça e a inutilidade. Assim José Alcides Pinto imaginava a sua terra natal. Não era de se estranhar, entretanto, que sua leitura sobre a chegada da moderniza- ção no Ceará, as mudanças do catolicismo sucedâneas ao Concílio do Vaticano II e a sensação da crise das simbologias do ser- tão atemorizavam José Alcides ante a pos- sibilidade de o lugar perder a sua tendência ao fantástico. (FIRMINO, 2008, p. 97) 156 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE SABATINA 7. POEMAS FANTÁSTICOS? s teóricos do gênero não citaram, em nenhum de seus estudos, textos em versos para ilustrar carac- terísticas do fantástico, tão somente mostraram a sua configuração em compo- sições narrativas como o conto e o romance. A despeito dessa desconsideração pela presença do gênero em versos, um dos pri- meiros textos que incorporaram elementos como gigantes, deuses e intervenções so- brenaturais na literatura foi o “Poema de Gilgamesh”, composição suméria de 2000 a. C, a que se seguiram as epopeias Ilíada e Odisseia, de Homero, todos, como é natural do épico, versos narrativos com forte inser- ção no extranatural. Já na Idade Média, apa- receu, na Índia, o Mahabharata, poema que narra acontecimentos históricos que têm, nitidamente, a intervenção do mitológico. Especificamente no Ceará, tais manifes- tações se deram, inicialmente, na poesia do patriarca Juvenal Galeno, do poeta Bar- bosa de Freitas, dos romancistas Bezer- ra de Menezes, Rodolfo Teófilo e Emília Freitas, bem como em contos e poemas de Antônio Sales, percorrendo as correntes estéticas que se seguiram e se sobressaindo em gêneros textuais variados. Tomando o fantástico na acepção de fantasia ou encenação de evento trans- gressor da normalidade, em O cravo roxo do diabo, o organizador decidiu incluir po- emas em que transparecem imaginações delirantes ou evocam criaturas que subver- tem fatos naturais, como bruxas, duendes, gnomos, feiticeiras, morcegos, sereias, sata- nás. Compreendendo-o, em sua concepção A Machadada (1860), de Juvenal Galeno, a primeira obra literária impressa no Ceará, conforme afirma Raymundo Netto, traz o subtítulo “poema fantástico”. A história se passa na lua, durante uma marcha, uma aposta entre os deuses do Olimpo e do Parnaso, com direito à participação de Marte, Júpiter, Apolo, Cupido, Plutão, Vênus, Pégaso... e da Guarda Nacional. CURSO literatura cearense 157 MALACA CHETAS primeira, como instauradores do mal, os versos são abundantes em palavras como: treva, morte fúnebre, lúgubre, sombrio, tormento, fantasma, mistério, vulto, pânta- no, assombração, medo, maldição, alma, soturno, visagem, espectro, pavor, horror, presságio, entre outras pertencentes a um campo semântico muito semelhante. O ponto alto da compilação está nos po- emas narrativos, dos quais se podem desta- car “Excertos de Brosogó, Militão e o Diabo”, de Patativa do Assaré, em que Brosogó acende vela para o diabo e o encontra, na vida real, como seu defensor. Também em “O vestido que verteu sangue”, de Oswald Barroso, conta-se a história de Maria Sinhá, cujo vestido verteu sangue, como anuncia o título, em “Saiona, a mulher dos olhos de fogo”, de Rouxinol do Rinaré, cujo título já anuncia a desordem do real. 8. SOBRE A COLETÂNEA O CRAVO ROXO DO DIABO antologia O cravo roxo do diabo: o conto fantástico no Ceará é uma referência para as narrativas do gê- nero produzidas no estado por cearenses e por outros radicados no estado. Como vemos, nela não se levaram em consideração os crité- rios de ser ou não escri- tor cearense expostos em nosso primeiro módulo. Assim, por exemplo, Tomás Lopes, que nasceu em Fortaleza, mas teve a sua produção literária no Rio de Janeiro, teve seu lugar nesta antologia. Aqui nós falamos em poemas fantásticos. Mas será que podemos mesmo dizer que um poema pode ser fantástico? O pesquisador Vicente Jr nos alerta “[...] Para autores como Todorov e Vax, por exemplo, o fantástico não existe na poesia, pois seria construído e, ao mesmo tempo destruído, pelo poder subjetivo das metáforas, postura bastante coerente, pois quando um eu-lírico ( que é bem diferente de narrador) disser num poema ‘No dia em que te vi, meu coração parou de bater e hoje tudo o que faço é vagar ao teu encontro’, não podemos crer que esteja morto e que esta seja uma ‘história de fantasmas’, mas, apenas uma expressão hiperbólica de sua paixão”. Cabe a você, cursista, caso se interesse pelo tema, pesquisar, estudar e defender o seu argumento. A pesquisa e a organização, quedurou quase cinco anos, reúne textos fantásticos – ou que margeiam as suas características – escritos no Ceará, catalogados pelo es- critor Pedro Salgueiro, e que contou com alguns nomes da nossa literatura para a efetivação da pesquisa histórica e a execu- ção do audacioso projeto: Sânzio de Aze- vedo, Alves de Aquino (“O Poeta de Meia- -Tigela”), Carlos Vazconcelos e Raymundo Netto (também responsável pelo projeto gráfico, ilustrações e capa). 158 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE BOLACHINHAS Tomás Lopes é autor, ao lado de Alberto Nepomuceno, do Hino do Estado do Ceará. O volume apresenta mais de 170 contos selecionados, 17 capítulos de romances (fragmentos) e 60 poemas, compondo, as- sim, um panorama amplo do texto fantásti- co cearense produzido entre os séculos XIX e XXI. Embora focalizem o extranatural por procedimentos estéticos diferen- tes, todos os textos se inserem no que se denomina, hoje, literatura fantástica, numa acepção ampla do gênero, tomando-o, pois, como histórias de mistérios que con- frontam o racional e o irracional. CONSIDERAÇÕES FINAIS Seja no conto, no romance ou na poesia, os fenômenos sobrenaturais e o insólito são fontes de inspiração perenes para os escri- tores cearenses. A desagregação da lógica, a subversão do que chamamos de normalidade, se dá, sobretudo, pelo insondável mistério da morte, que predispõe a inquietação e a in- ventividade dos que sondam seu enigma. A metamorfose, a aparição dos mortos, a presença de seres sobrenaturais ou pro- vidos de poderes inusitados colocam o(a) leitor(a) diante de um universo em que ab- solutamente tudo é possível. Na contemporaneidade, o gênero fantás- tico permanece, embora com seus cânones revisados. Outro fato a se ressaltar é que a pro- dução da nossa literatura está em constante busca do universal. Ultrapassou, há muito, as fronteiras do regional e pode se afirmar, quali- tativamente, em qualquer contexto. REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS BARRENECHEA, Ana María. Ensayo de una tipología de la Literatura Fantástica (A propósito de la literatura hispano- americana). Revista Ibero americana, Buenos Aires, v. 38, n. 80, p.391-403, jul. 1972. Trimestral. CAVALCANTE, Alcilene. A representação feminina em A rainha do ignoto, de Emília Freitas. UFMG, s/d. CALVINO, Ítalo. Contos fantásticos do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. ERDAL JORDAN, Mery. La narrativa fantástica: evolución del género y su relación com las concepciones del lenguaje. Frankfurt am Main: Vervuert; Madrid: Iberoamericana, 1998 FREITAS, Emilia. A rainha do ignoto. São Paulo: 106 Editora, 2019 FIRMINO, FF. Palavras da maldição: José Alcides Pinto e a produção do Ceará entre símbolos e alegorias. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2008. PAULA JR. Francisco Vicente. Aspectos do fantástico na literatura Cearense. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Ceará. 2003 SALGUEIRO, Pedro (Org.). O cravo roxo do diabo: o conto fantástico no Ceará. Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 2011. SAMPAIO, Aíla M. Leite. Prefácio. In: SALGUEIRO, Pedro et all. O cravo roxo do diabo: o conto fantástico no Ceará. Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 2011. p. 9-17 SAMPAIO, Aíla. Os fantásticos mistérios de Lygia. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2009. TAVARES, Braulio. Páginas de sombra: contos fantásticos brasileiros. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003. TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1980. CURSO literatura cearense 159 AUTORA Aíla Sampaio É graduada em Letras com especialização em Língua Portuguesa pela Universidade Estadual do Ceará (Uece), com mestrado em Letras e doutorado em Literatura Comparada (Literatura e Cinema) pela Universidade Federal do Ceará (UFC). É professora da Universidade de Fortaleza (Unifor), onde também atuou como coordenadora do curso de Letras. É escritora, crítica literária e integra a Academia de Letras e Artes do Nordeste (Alane). Entre suas obras, os ensaios Os fantásticos mistérios de Lygia e Literatura no Ceará. Publica ensaios e artigos em revistas especializadas, blogs e jornais do país. ILUSTRADOR Carlus Campos Artista gráfico, pintor e gravador, começou a carreira em 1987 como ilustrador no jornal O POVO. Na construção do seu trabalho, aborda várias técnicas como: xilogravura, pintura, infogravura, aquarelas e desenho. Ilustrou revistas nacionais importantes como a Caros Amigos e a Bravo. Dentro da produção gráfica ganhou prêmios em salões de Recife, São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Realização Apoio Patrocínio FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA (FDR) João Dummar Neto Presidente André Avelino de Azevedo Diretor Administrativo-Financeiro Marcos Tardin Gerente Geral Raymundo Netto Gerente Editorial e de Projetos Aurelino Freitas, Emanuela Fernandes e Fabrícia Góis Analistas de Projetos UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE (UANE) Viviane Pereira Gerente Pedagógica Marisa Ferreira Coordenadora de Cursos Joel Bruno Designer Educacional CURSO LITERATURA CEARENSE Raymundo Netto Coordenador Geral, Editorial e Estabelecimento de Texto Lílian Martins Coordenadora de Conteúdo Emanuela Fernandes Assistente Editorial Amaurício Cortez Editor de Design e Projeto Gráfico Miqueias Mesquita Diagramador Carlus Campos Ilustrador Luísa Duavy Produtora ISBN: 978-65-86094-22-0 (Coleção) ISBN: 978-65-86094-20-6 (Fascículo 10) Este curso é parte integrante do programa Circuito de Artes e Juventudes 2019, Pronac nº 190198, processo nº 01400.000464/2019-94, em parceria com a Secretaria Especial da Cultura do Ministério da Cidadania. Todos os direitos desta edição reservados à: Fundação Demócrito Rocha Av. Aguanambi, 282/A - Joaquim Távora CEP: 60.055-402 - Fortaleza-Ceará Tel.: (85) 3255.6037 - 3255.6148 fdr.org.br fundacao@fdr.org.br
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