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Vida & grafias Vida e grafias - miolo.indd 1 3/9/15 7:37 PM Vida e grafias - miolo.indd 2 3/9/15 7:37 PM Vida & grafias Narrativas antropológicas, entre biografia e etnografia Suely Kofes Daniela Manica (organização) Vida e grafias - miolo.indd 3 3/9/15 7:37 PM Vida & grafias: narrativas antropológicas entre biografia e etnografia Suely Kofes & Daniela Manica (organização) © Lamparina editora Revisão Mariana Bard & Vinícius Melo Projeto gráfico Fernando Rodrigues Proibida a reprodução, total ou parcial, por qualquer meio ou processo, seja repro- gráfico, fotográfico, gráfico, microfilmagem etc. Estas proibições aplicam-se também às características gráficas e/ou editoriais. Catalogação na fonte do Sindicato Nacional dos Editores de Livros Lamparina editora Rua Joaquim Silva 98 sala 201 Lapa CEP 20241-110 Rio de Janeiro RJ Brasil Tel/fax 21 2252 0247 21 2232 1768 www.lamparina.com.br lamparina@lamparina.com.br Vida e grafias - miolo.indd 4 3/9/15 7:37 PM Sumário Vida e grafias - miolo.indd 5 3/9/15 7:37 PM Vida e grafias - miolo.indd 6 3/9/15 7:37 PM “Nunca se saberá como isto deve ser contado, se na primeira ou na segunda pessoa, usando a terceira do plural ou inventando constan- temente formas que não servirão para nada. Se fosse possível dizer: eu viram subir a lua, ou: em mim nos dói o fundo dos olhos, e prin- cipalmente assim: tu mulher louca eram as nuvens que continuam correndo diante de meus, teus seus nossos vossos seus rostos.” (Julio Cortázar, “As babas do diabo”, As armas secretas, Rio de Janeiro: José Olympio, 2009, p.60) Vida e grafias - miolo.indd 7 3/9/15 7:37 PM Vida e grafias - miolo.indd 8 3/9/15 7:37 PM 9 Prefácio Skatografias – o caso do “pico” Pedro Peixoto Ferreira “Como quase tudo na vida, eles vêm e vão. Muitas vezes a busca os afasta, e o momento menos esperado é o propício para seu surgi- mento. Em lugares improváveis, através de informação obtida com pessoas desconhecidas, graças a uma decisão errada de caminho. Enfim, o meio não importa aqui, e sim o fim, o objetivo, a desco- berta. Você precisa de um lugar pra andar de skate, que seja novo, que renove as energias, que te dê motivo para chamar seus amigos. Você precisa de um pico e, mesmo que ele exista há anos, ele passa a ser ca- rinhosamente chamado de ‘novo’ a partir da descoberta.” (Prieto, 2011, p.22) Em uma descrição sumária, um skate é uma prancha montada sobre dois eixos com duas rodas cada. Segundo uma das narrativas mais conhecidas da origem deste objeto, ele foi criado por surfistas na Califórnia, Estados Unidos, nos anos 1960, a partir de patins desmon- tados. Reforçando sua origem norte-americana, no Brasil boa parte do vocabulário ligado ao skate é composto por palavras em inglês, in- clusive os nomes dados à prancha do skate, chamada de “shape”, e aos eixos das rodas, chamados de “trucks”. A prática do skate consiste basi- camente em manter-se equilibrado em pé sobre o shape, de preferência realizando diferentes tipos de manobras, enquanto o skate estiver em movimento sobre o chão ou sobre obstáculos. O skatista pode ser en- tendido como um híbrido pessoa-skate, uma modificação do esquema corporal do skatista pela assimilação de um objeto que altera a sua relação com o ambiente. Pessoas se tornam skatistas ao alterarem sua relação com o ambiente por meio do skate. A ideia de uma alteração das relações entre um agente e seu meio pela introdução de uma nova Vida e grafias - miolo.indd 9 3/9/15 7:37 PM Vida & grafias10 mediação entre eles se inspira em proposições etnograficamente fun- damentadas em Bateson (1975) e Gell (1980) a respeito do transe. Diante da proposta de explorar diversas possibilidades gráficas incluídas nas relações entre etnografia e biografia, expressa no grupo de trabalho cujas discussões resultaram neste livro, nasceu o desejo de aproveitar a oportunidade para jogar luz sobre uma grafia ainda praticamente inexplorada nas ciências sociais, apesar de já bastante desenvolvida entre seus praticantes. Trata-se da “skatografia”, ou escrita do skate, que envolve tanto a dimensão indicial das marcas trocadas entre o skate, o corpo do skatista e os obstáculos, quanto a produção fotográfica, videográfica e textual de skatistas sobre skate. Atento à mídia impressa nacional de skate desde o final da década de 1980, pude acompanhar algumas transformações do campo, assim como o amadurecimento de algumas imagens e discursos com- partilhados. Entre essas imagens e discursos,¹ gostaria de explorar rapidamente aquilo que já chamei de “picologia”, a ciência dos picos (Ferreira, 2011), por considerá-la um valioso caso de conceito nativo complexo, elaborado e intrinsecamente ligado a práticas correspon- dentes. Uma skatografia em pleno direito. Picologia Para um skatista, um “pico” é um lugar propício para a prática do skate, ou um lugar “skatável”. Nem todo lugar é propício para a prática do skate. Skates convencionais² não andam na maior parte das superfícies naturais (grama, areia, lama, água etc)³ e, mesmo nas construídas, as opções são limitadas por irregularidades dos pró- prios materiais ou de sua montagem. Skateparks são picos artificiais, no sentido de terem sido construídos desde o início para a prática do skate. Assim sendo, no skatepark, quando uma rampa não tem a incli- nação ideal ou o piso é irregular, isso indica falhas no projeto ou em sua execução e o skatista tem motivos para reclamar. Fora dos skate- parks, no entanto, o skatista não encontra um ambiente construído 1 Um caso de skatografia imagética pode ser encontrado na entrevista que fiz com o skatógrafo Renato Custódio (Ferreira, 2009). 2 Aqui, refiro-me àquilo que revistas e sites de skate chamam de “skates modernos”, surgidos nos anos 1990 e caracterizados por shape simétrico, sem distinção entre a parte da frente e a parte de trás, com dimensões próximas a 22 por 76 centíme- tros e rodas de diâmetro próximas a 52 milímetros. Existem muitos outros tipos de skate menos utilizados do que os convencionais, voltados para terrenos específicos (skate para grama ou para terra) ou com dimensões muito diferentes (de miniskates a longboards). 3 Como bem expressou o skatógrafo Prieto: “Somos avessos a mato, grama, areia, água. Lidamos bem com o concreto, granito, mármore.” (2011, p.22) Vida e grafias - miolo.indd 10 3/9/15 7:37 PM Prefácio11 para a prática do skate, mas sim um ambiente que ele precisa tornar “skatável”, seja pela criatividade e habilidade nas manobras, seja por modificações na própria estrutura física do espaço (untando bordas e superfícies com cera de vela, por exemplo, ou mesmo suavizando des- níveis e transições com massas plásticas ou cimento). Fora dos skateparks, quando o skatista encontra um piso irregular ou uma rampa muito íngreme, ele não está diante de defeitos de projeto (pelo menos não no que se refere à prática do skate), mas, sim, de desafios a serem superados. Na rua, o skatista precisa subverter, desviar as funções dos objetos (Kasper, 2005), explorando a sua margem de indeterminação. Encontrei um bom exemplo de criati- vidade e habilidade nas manobras na adequação ao pico na legenda para um “360 flip to fakie numa capela abandonada em Suzano (SP)”: “O que define o lugar para andar de skate? Se o mundo real oferece o mínimo de condições, é no campo da sua imaginação que os cami- nhos se desenham, absorve-se o impacto das imperfeições, criam-se condições para fazer a manobra acontecer. Exercite sua mente. Se você acorda todo dia pensando em granilite, em breve o skate, pra você, será um pesadelo.” (Vianna, 2009, p.43) Um bom exemplo para a adequação do pico por modificações na própria estrutura física do espaço é a seguinte passagem do skatógrafo André Ferrer: “Claro que nem todos os picos são perfeitos, por isso saíamos com um verdadeiro arsenal de pedreiro (cimento, chapas de aço, pá, vas- soura, madeiras, velas, massa plásticae afins), para corrigir as diversas imperfeições que dificultavam – e até impossibilitavam – a vida dos skatistas.” (Ferrer, 2009, p.111) As soluções são tão engenhosas que a argumentação da seguinte legenda de fotos de um skatista descendo a pedra inclinada de uma cachoeira se torna plausível: “Algumas superfícies parecem ásperas demais. Outras, escorregadias demais. A inclinação pode apresentar- -se demasiadamente íngreme. Nada que signifique terreno impróprio para skate.” (Vianna, 2009, p.38) Além dessas restrições espaciais, devemos elencar também impor- tantes restrições de tipo temporal, ligadas a momentos mais ou menos propícios à prática do skate. Fábricas, centros comerciais, parques de Vida e grafias - miolo.indd 11 3/9/15 7:37 PM Vida & grafias12 diversão ou outros espaços amplos e de circulação podem se tornar picos privilegiados quando fechados e abandonados, apesar de serem proibidos ao skate quando em pleno funcionamento (e mesmo que não fossem proibidos, o volume de pessoas e atividades conflitantes com o skate dificultaria muito a sua prática). Um exemplo disso são as diversas fotos, publicadas em 2011, de manobras nos restos do Best Shopping em São Bernardo do Campo: “Quem nunca quis andar de skate dentro de um shopping center que atire a primeira pedra. Após a falência do Best Shopping, … os corredores foram palco de sessões memoráveis.” (Prieto, 2011, p.22) Espaços públicos (praças, calçadas, ruas, estaciona- mentos, monumentos etc) são geralmente mais “skatáveis” de noite ou de madrugada, ou nos feriados e fins de semana, quando o volume de pessoas circulando é menor e o tipo de circulação é diferente. Ferrer expressou isso muito bem quando escreveu: “Um feriado … é um prato cheio para nós skatistas: cidades vazias, comércio fechado, se- guranças de folga, pessoas à procura de descanso e nós à procura dos lugares!” (2009, p.111) Em países de inverno rigoroso, o frio pode ser uma restrição temporal ao skate noturno, e o inverso vale para países tropicais, onde o calor pode ser uma restrição para o skate durante o dia. Isso para não falar de como chuva, neve, vento e outros eventos es- peciais podem transformar picos privilegiados em locais muito difíceis ou até impossíveis para a prática do skate. Por fim e sobretudo, as predisposições e preferências do skatista são parte fundamental da transformação de um espaço-tempo em um pico. Existem picos exclusivos, que só são acessíveis a poucos skatistas capazes de manobrar neles. Existem picos ocultos, que passam des- percebidos pela maior parte dos skatistas. Existem picos concorridos, por motivos como localização e qualidade, e picos abandonados, por concorrência com atividades incompatíveis (comércio ambulante, criminalidade etc) ou por proibição pura e simples. Assim, diferente- mente dos skateparks, que são picos by design, propícios por princípio à prática do skate, em todo o seu espaço e em todo o seu horário de funcionamento, os picos urbanos têm geralmente restrições espaço- temporais ligadas à circulação de carros e a diversos outros tipos de veículos, transeuntes e moradores de rua, e à presença de objetos va- riados, como mercadorias e lixo. Sarjetas, escadas, muretas, paredes, bloqueios, rampas e tudo 7 Em carta publicada na revista Cemporcento Skate, um skatista solicita a compreensão dos arquitetos: “Os arquitetos que não briguem comigo, pois sei que os objetivos pelos quais eles criam tantos monumentos, prédios, corrimãos, escadarias, marquises, can- teiros, chafarizes e outras coisas fantásticas nas nossas ruas, casas, praças e empresas não é para que nós, skatistas, os pulemos, deslizemos ou façamos outras coisas com nossos skates. Mas é inevitável.” (Martins, 2011, p.108) Vida e grafias - miolo.indd 12 3/9/15 7:37 PM Prefácio13 mais que o skatista encontra em seu caminho não foram construídos para a prática do skate,⁷ mas são transformados, pragmaticamente e em acordo com um certo Umwelt-skatista (conforme Uexküll, 2001), em obstáculos. Para skatistas, obstáculos não são objetos que impedem a passagem, mas objetos que motivam e estimulam uma espécie de “ultra”passagem: “Life is fool [sic] of obstacles. Overpass.” (Black Sheep, 2011, p.5) Muito longe de buscar minimizar o dispêndio de energia, optando por caminhos que ofereçam menor resistência, o skatista busca o teste da resistência, busca uma espécie de mais- -valia energética a partir do seu dispêndio desejante. O skatista não evita obstáculos, ele os busca ativamente, chega a construí-los, não por querer superá-los, subjugá-los, derrotá-los, mas porque quer ma- nobrá-los, experimentar uma coreografia transumana na qual skatista e obstáculo trocam propriedades, inscrições e disposições, alternando atividade e passividade em um contraponto tão delicado quanto forte e necessário. Nada além das leis da física, mas transformadas enge- nhosamente nas regras de um jogo que se quer jogar. Isso fica particularmente claro no seguinte caso, contado pelo skatógrafo Ivan Cruz: “Em um dia como todos os outros, os skatistas … circulavam pela cidade à procura de picos. Neste dia comum, algo incomum chamou a atenção dos dois amigos … Eles avistaram um galpão, um imenso galpão.” Após relatar as sessões de skate que ocorreram no galpão, ele conclui com a expressão que deu título à reportagem: “Tinha um galpão na beira da estrada, na beira da estrada tinha um galpão.” (Cruz, 2011, p.61) Se a pedra “no meio do caminho” de Drummond era um obstáculo, o galpão também o é, mas no sentido propriamente skatista de estímulo ativamente buscado. “Esse é o desafio das pessoas. Usar os obstáculos para evoluir como indivíduos, para fortalecer o coletivo.” (Prieto, 2008, p.110) Um obstáculo pode ser entendido como um conjunto de bordas e superfícies. Um banco de praça, uma mureta ou uma fachada se tornam composições de bordas e superfícies que convidam à in- teração, que propõem desafios, que atraem skatistas. A bordas e superfícies correspondem atitudes corporais do skatista, sendo elas variáveis norteadoras de suas relações com o meio. Nas bordas, o skatista pode deslizar ou bater os eixos dos trucks (isto é, executar um grind) ou alguma parte do shape (tail, nose⁹ ou a parte entre os eixos). Ele também pode “dropar” (do inglês, “to drop”), isto é, despencar a partir 9 O nose [nariz] do shape é a sua extremidade dianteira e o tail [rabo] é sua parte tra- seira. Atualmente, nos skates convencionais, mesmo quando essa diferença não é mais objetivada em formas ou dimensões diferentes das partes dianteira e traseira do shape (como era mais comum nos anos 1980), a distinção ainda importa na classificação de manobras, em suas variações nose e tail (por exemplo, tailslide e noseslide). Vida e grafias - miolo.indd 13 3/9/15 7:37 PM Vida & grafias14 da borda, ou utilizar a borda como apoio em manobras de transição, como handplants e footplants, que envolvem apoiar o corpo sobre um pé ou as mãos durante uma fração de segundos. Nas superfícies, o ska- tista se desloca e manobra livremente, tendo de lidar com apenas duas variáveis: textura e inclinação. Quanto à textura, o ideal é que seja lisa o suficiente para eliminar a trepidação e o bloqueio das rodas ou do truck, mas áspera o bastante para garantir a aderência das rodas, necessária ao controle de direção e velocidade. Quanto à inclinação, o skatista naturalmente acelera quando desce um plano inclinado, sendo tal aceleração proporcional à inclinação. Assim, podemos dizer, em uma proposição causal de base comportamental, que o pico é um conjunto de obstáculos (bordas e superfícies) que atrai skatistas (pessoas com skates). Mas também podemos dizer, em uma proposição mais reticular e intuitiva, que o pico é a produção local e contingente de skatistas e obstáculos a partir de encontros felizes entre as capacidades, desejos e predisposições de seus elementos constituintes (rodas, trucks, shapes, pessoas, bordas, superfícies,relevos, mas também seguranças, transeuntes, policiais, proprietários de imóveis, crianças, mendigos, drogados, pedras por- tuguesas, pedrinhas pequenas, buracos, mármore, cimento, degraus, corrimãos, bancos, sarjetas, automóveis, terra, chuva, água, frio, calor, sol etc). Em um caso, o pico é o efeito do encontro de skatistas e obstáculos; no outro, skatistas e obstáculos são o resultado de um encontro de seus elementos constitutivos na forma de um pico. Em ambos os casos (e em tantos outros possíveis), o que se diz é que o pico é uma ocasião privilegiada para o skatista manobrar seu skate e, assim, tornar-se mais uma vez skatista: transformar obstáculos em motivos e motivações para sair de seu estado atual, transformar-se, devir. Em tempos de esvaziamento do espaço-tempo público, a picologia bem poderia inspirar estratégias de ocupação criativa e desejante, positi- vando obstáculos e liberando potências. Vida e grafias - miolo.indd 14 3/9/15 7:37 PM Prefácio15 Referências Gregory Bateson, “Some components of socialization for trance”, Ethos, v.3, n.2, p.143–55, 1975 Black Sheep, “Anúncio”, Tribo Skate, n.189, p.4–5, 2011 Ivan Cruz, “Tinha um galpão na beira da estrada… na beira da estrada tinha um galpão”, Cemporcento Skate, n.160, p.58–67, 2011 Pedro Peixoto Ferreira, “Conversa com o skatógrafo Renato Custódio”, 2009, disponível em http://pedropeixotoferreira.wordpress.com/2009/06/15/ conversa-com-o-skatografo-renato-custodio/ –, “Picologia: pensando a reticulação do meio urbano pelo skate”, palestra pro- ferida na mesa Corpo e Técnica na Teoria Social, 3 Reunião de Antropologia da Ciência e da Tecnologia, Brasília: DAN/UNB, 2011 André Ferrer, “Um pico nunca dantes visitado”, Cemporcento Skate, n.135, p.110–111, 2009 Alfred Gell, “The gods at play: vertigo and possession in Muria religion”, Man, v.15, n.2, p.219–248, 1980 Guto Jimenez, “Skateboarding militant: Um mundo sem skate?!”, Tribo Skate, n.190, p.108, 2011 Christian P Kasper, “Desviando funções”, Nada, n.5, p.72–77, 2005 Carlos S Martins, “Caixa de entrada: Goethe, arquitetura e skate”, Cemporcento Skate, n.162, p.108, 2011 Douglas Prieto, “O desafio das pessoas”, Cemporcento Skate, n.121, p.110, 2008 –, “Calçada: a busca”, Cemporcento Skate, n.162, p.22, 2011 Jakob V Uexküll, “An introduction to Umwelt”, Semiotica, n.134, p.107–110, 2001 Alexandre Vianna, Renato Custódio, Eduardo Braz, Atila Choppa & André Ferrer, “Ande de skate aqui”, Cemporcento Skate, n.135, p.36–47, 2009 Pedro Peixoto Ferreira é professor do Departamento de Sociologia do IFCh-UNI- CAMP, coordenador do Grupo de Pesquisa CTEME e do Laboratório de Sociologia dos Processos de Associação, desenvolvendo pesquisas na área da socioantropologia da ciência e da tecnologia. Vida e grafias - miolo.indd 15 3/9/15 7:37 PM 16 Apresentação Suely Kofes & Daniela Manica Durante alguns anos, enfrentamos o desafio de compreender o es- tatuto das narrativas biográficas na antropologia, insatisfeitas com algumas dicotomias (indivíduo/sociedade, subjetivo/objetivo, entre outras), com algumas resoluções (campo/trajetória, por exemplo) e com o uso apenas instrumental das histórias de vida nas etnografias antropológicas. Parecia-nos ainda que muitas das discussões sobre et- nografia eram análogas a muitas outras que fazíamos sobre biografia. Em publicações anteriores, uma de nós já havia proposto o uso de etnografia de uma experiência (Kofes, 2001) e de etnobiografia como pala- vras valises para sugerir que uma narrativa biográfica poderia ser, ela própria, uma narrativa etnográfica (Kofes, 2004; esse tema também é discutido em Gonçalves, Marques & Cardoso, 2012) – ambas noções parciais. A outra de nós, assim como muitos dos autores cujos artigos compõem este livro, experimentou em sua tese de doutorado uma abordagem etnográfica a partir de diversas narrativas de cunho bio- gráfico, isto é, das várias escritas que tomavam como foco a vida profissional de uma pessoa, esta anunciada como cientista: autobio- grafia, memorial, curriculum vitae, dossiê (Manica, 2009). Foi o interesse pela riqueza das relações entre experiências, grafias e a escrita antropológica que nos levou a organizar, durante a 28ª Reunião da Associação Brasileira de Antropologia, um grupo de trabalho sobre o tema “Etnografia e biografia na antropologia: expe- riências com as diversas ‘grafias’ sobre a vida social”. A chamada para resumos propunha as seguintes questões: “Sobre a não tão nova – aliás, recorrente – discussão sobre a relação entre antropologia e etnografia, Tim Ingold (2008) diz que antro- pologia deve ser uma indagação sobre as condições e possibilidades da vida humana no mundo (que, como antropólogos, também habi- tamos), não um estudo autocentrado sobre como se escreve etnografia ou sobre o problema reflexivo de como se passa da observação à des- crição. Essa ‘experiência de habitação’, tal como proposta pelo autor, Vida e grafias - miolo.indd 16 3/9/15 7:37 PM Apresentação17 não resolve, contudo, os desafios de como lidar com a questão da escrita no ofício antropológico. Propomos este grupo de trabalho para estimular a apresentação de reflexões sobre a experiência de pesquisa e os desafios da ‘grafia’ em antropologia. Menos do que uma questão de método, trata-se de submeter a imaginação antropológica à dis- cussão sobre as dificuldades conceituais e práticas envolvidas no uso de narrativas biográficas e/ou etnográficas. Serão acolhidas propostas que procurem refletir sobre esse uso e seus efeitos na antropologia contemporânea, seja pelos meios mais convencionais, como os textos (auto)biográficos, seja quando incorporamos em sua ‘grafia’ objetos como agentes sociais, passíveis de serem localizados a partir de nar- rativas que levem em conta sua existência social. Assim, pretendemos sobretudo promover discussões sobre a perspectiva antropológica acerca de imagens e sons (foto[bio]grafias, vídeos, músicas), artefatos e objetos sociotécnicos.” A proposta fundamentava-se na ideia de pensar coletivamente sobre os desafios relacionados à questão da escrita no ofício antropológico, sobretudo quando envolvendo as relações com “bio”grafias. Tratava- -se, então, de trazer para o debate algumas das principais questões que trabalhamos em experiências anteriores e diversas de pesquisa, esperando, contudo, explorar e amplificar desdobramentos possíveis da ideia de “grafia”. Pensamos ser importante contribuir para um enfrentamento das questões que surgem da tentativa de relacionar criticamente essas duas modalidades de grafia, “etno” e “bio”, e seus pressupostos. E, mais do que isso, abarcar a multiplicidade gráfica possibilitada por combinações diversas entre radicais que antecedem a grafia (“etno”/“bio”, “foto”/“bio”, “carto”, “antropo” etc). Ou seja, pensar também outros registros e formas de inscrição – como as imagens, os sons, as coisas, seus rastros e (re)composições, sobretudo (mas não apenas) quando articulados às questões de alteridade e individuação, e à escrita antropológica. Em certo sentido, nosso pres- suposto e horizonte era também de que as próprias noções de vida, “indivíduo”/“pessoa”, anthropos/ethnos, podem ser ampliadas e tensio- nadas ao se pensar vidas e grafias na antropologia. A qualidade e a heterogeneidade das pesquisas dos textos que selecionamos para o grupo de trabalho bem como as contribuições trazidas por seus debatedores alimentaram nosso desejo de dar visibi- lidade às questões ali colocadas. Assim, este livro reúne um conjunto bastante diverso de trabalhos em termos de temática e perspectiva, trabalhos que vão do enfoque biográfico sobre autores relevantes para as humanidades (como Nimuendaju, Roy Wagner, Michel Leiris e Vida e grafias - miolo.indd 17 3/9/15 7:37 PM Vida & grafias18 Boris Fausto) a temáticas talvez menos óbvias (trabalho doméstico, música, laudos jurídicos, carreiras artísticas e científicas, neona- zismo, cidades e lugares), explorandotambém a dimensão narrativa das grafias sobre a vida em suas diversas derivações (fotobiografias, autobiografias, cartografias). Com esse gesto, nossa intenção é compartilhar a experiência dos três dias de discussão intensa e estimulante tratando do tema sugerido. O primeiro texto, “Narrativas biográficas: que tipo de antropologia isso pode ser?”, pretende-se uma introdução, convida a uma mudança do valor usualmente atribuído às narrativas de vida na antropologia, em extensão e positividade. As contribuições que se seguem, com seus experimentos variados, contribuem para assinalar positivamente essa mudança de valor, conceitualmente e etnograficamente. Convidamos o leitor a testar esta nossa afirmação. Referências Marco Antonio Gonçalves, Roberto Marques & Vânia Z Cardoso (organização), Et- nobiografia: subjetivação e etnografia, Rio de Janeiro: 7Letras, 2012 Suely Kofes, Uma trajetória, em narrativas, Campinas: Mercado de Letras, 2001 –, “Apresentação”, Cadernos do ifCh, n.31, p.5–16, Campinas: IFCh/UNICAMP, 2004 Daniela Manica, “Contracepção, natureza e cultura: embates e sentidos na et- nografia de uma trajetória”, tese de doutorado em Antropologia Social, Campinas: IFCh/UNICAMP, 2009 Timothy Ingold, “Anthropology is not ethnography”, British Academy Review, n.11, p.21–23, julho de 2008, disponível em http://www.britac.ac.uk/events/2007/ Anthropology_is_-not_-Ethnography.cfm, acesso em 15 de janeiro de 2015 Vida e grafias - miolo.indd 18 3/9/15 7:37 PM Apresentação19 Suely Kofes é antropóloga, professora titular no Departamento de Antropologia do IFCh/UNICAMP, como professora e pesquisadora. Suas pesquisas antropológicas preocupam-se com a experimentação etnográfica, com pesquisas sobre temas distintos e em campos etnográficos distintos. Atua nas seguintes linhas de pesquisa: etnografia e a perspectiva biográfica; experiência e narrativa; antropologia, processos de diferen- ciação e reconhecimentos identitários (diferença e identidade); temas concernentes ao campo dos estudos sobre raça e gênero; ritual, cosmologia, associativismo e política. É uma das coordenadoras do LA’GRIMA (Laboratório Antropológico de Grafia e Imagem), recém-criado no Departamento de Antropologia do IFCh/UNICAMP. Daniela Tonelli Manica é professora no Departamento de Antropologia Cultural do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. Mestre e doutora em Antropologia Social pelo IFCh/UNICAMP, participa do Grupo de Estudos em Antropologia da Ciência e Tecnologia (GEACT) e cocoordena o Laboratório de Etnografias e Inter- faces do Conhecimento (LEIC), do IFCS/UFRJ. Vida e grafias - miolo.indd 19 3/9/15 7:37 PM 20 Narrativas biográficas: que tipo de antropologia isso pode ser? Suely Kofes É com alegria e certo temor que nos reunimos para discutir o lugar da biografia na antropologia, pois é também disso que trata o título deste livro e deste capítulo de abertura. Se história de vida é uma técnica de pesquisa antropológica já consagrada e que, inclusive, tem existência reconhecida como método, como “documentos de vida” (uma variação dos chamados “métodos qualitativos”), biografia e autobiografia parecem tensionar os supostos antropológicos. Isso se deve, em primeiro lugar, ao fato de que tais supostos estariam ancorados em conceitos como socie- dade, cultura, estrutura – totalidades, mais concretas ou abstratas – e no compromisso com o horizonte da comparação, da generalização ou do universalismo, embora esse horizonte seja mais um tema de con- trovérsia do que um objetivo compartilhado. A particularidade – em uma de suas formas, a etnografia – também é reconhecida ora como um fim em si mesma, ora apenas como parte do objetivo compara- tivo. Em segundo lugar, ligado ao primeiro, a resistência à biografia deve-se ainda a uma confusão semântica e conceitual. Biografia e autobiografia teriam como referência a vida – parte constitutiva da etimologia dessas palavras, ou seja, grafia da vida, grafia da minha vida –, mas um malabarismo semântico terminou por conotar o termo “vida” com o significado de indivíduo. Esse me parece um nó conceitual que precisaríamos analisar. Assim, embora muito breve e provisoriamente, pretendo formular algumas reflexões sobre isso. Essa discussão não pode ignorar que, no âmbito da antropologia estadunidense, biografia, autobiografia e história de vida foram (ainda o são?) mais reconhecidas. Isso apesar das restrições boasianas: “Um dos métodos utilizados para superar essas dificuldades é induzir Vida e grafias - miolo.indd 20 3/9/15 7:37 PM Narrativas biográficas21 os nativos a escreverem ou narrarem autobiografias. Os melhores re- sultados desse método nos dão valiosas informações a respeito das lutas de todos os dias, da vida e das alegrias e tristezas do povo, mas a sua confiabilidade, fora alguns pontos muito elementares, é duvi- dosa. Eles não são fatos, mas memórias, e memórias distorcidas pelos desejos e pensamentos do momento.” (Boas, 1943, p.334, tradução livre) Para Boas, quando o antropólogo quer compreender as reações indi- viduais às normas culturais, a observação do que fazem e dizem é o método adequado. A distinção entre observar e ouvir narrativas, no trecho acima citado, aparece como a distinção entre memória e fato. Ora, essa distinção problematiza a importância dada ao relato indí- gena quando é o próprio antropólogo que o torna fato. Isto é, parece dizer que o relato de alguém pode ser considerado como fato, uma vez que esse alguém seja categorizado como informante. Entretanto, esse mesmo relato desse alguém, se referenciado como uma narrativa sobre si mesmo, torna-se memória. Eu mesma, ao etnografar a relação entre patroa e empregada doméstica, usei falas cortadas de pessoas distintas para compor um discurso geral, mas tomei algumas delas em sua sequência narrativa singular como narrativa de vida. Assim, trechos de uma narrativa compunham um discurso geral (como fato, informação, portanto), mas, quando recolocados em sua integralidade narrativa, compu- nham uma evocação, reflexão – embora seja preciso ressaltar que eu as considerei como contendo “fato” e “memória”, tomando-as simul- taneamente enquanto discurso e narrativa, ou enquanto discurso e estória, evocação e informação. A biografia não é (ou ainda não é) uma prática antropológica do mesmo estatuto que a etnografia, por exemplo. Ocasional e experi- mental, encontramos a sua “defesa”, digamos assim, até onde menos poderíamos pensar encontrá-la. Pois (e, talvez, por isso) não é isso o que parece querer dizer Lévi-Strauss em seu prefácio à edição fran- cesa de Soleil hopi? “A narrativa que ele nos oferece contém em si mesma um valor psico- lógico e romântico. Ao etnólogo, ele traz uma riqueza de informações sobre uma sociedade ainda pouco conhecida. Mas, acima de tudo, a história de Talayesva realiza, com facilidade e graça, o que o et- nólogo sonha durante toda a sua vida obter sem nunca o conseguir plenamente: a restituição de uma cultura ‘de dentro’, tal como vivida quando criança e depois como adulto. Um pouco como se, arqueó- logos do presente, nós desenterrássemos as disjuntas pérolas de um Vida e grafias - miolo.indd 21 3/9/15 7:37 PM Vida & grafias22 colar para, de repente, percebermos as contas atadas em sua primitiva disposição, em torno do jovem pescoço ao qual foram um dia desti- nadas a adornar.” (Lévi-Strauss, 1982, tradução livre) Talvez eu não devesse dizer que seria onde menos se esperava encon- trar uma “defesa” do biográfico, afinal, o que diz Lévi-Strauss é mais um exemplo do seu pensamento analítico. Tomemos literalmente, embora o autor esteja falando metaforicamente: reconhecer a pessoa particular, concreta, literalmente a que usa o colar, não seria incompa- tível; pelo contrário, seria necessário ao conhecimento de um sistema de ornamentos, se fosse o caso de empreendê-lo. Mas, de outro ponto de vista, também não seria surpreendente encontrar Lévi-Strauss ressaltandocomo importante na narrativa de Talayesva a “cultura enunciada de dentro”. Dumont, que não abre mão da totalidade (considerada mais en- quanto conjunto, enquanto uma configuração passível de comparação com distinta configuração, e não enquanto uma sociedade como um todo), faz distinção entre o “indivíduo empírico” e o “indivíduo como valor”. Mas, na convenção que atribui consubstancialidade entre biografia e indivíduo, a perspectiva biográfica não iria ao encontro da noção de indivíduo como valor: considera-se que a biografia focaliza um indivíduo empírico, embora o próprio suposto da biografia como a escrita de um indivíduo seja ela própria efeito da ideologia do indi- víduo como valor. Contribuições antropológicas mais recentes têm contestado a efi- cácia conceitual da dicotomia indivíduo e sociedade, criticam a sociedade concebida como totalidade inter-relacionada, como todo ou como soma das partes, e, principalmente, o que essa concepção engendra: o indivíduo como entidade natural, anterior, moldável à imagem de um ideal coletivo. Strathern (1996 e 2014) sugere, inclusive, um vocabu- lário alternativo à dicotomia entre sociedade e indivíduo ou todo e partes: os conceitos de socialidade e dividual, um vocabulário que permitiria ex- pressar pessoas particulares que são constituídas de relacionamentos e ao mesmo tempo os engendram. Se levarmos em conta essas contribuições, em um exercício de justapor aparentes antinomias, talvez possamos abrir sem embaraço um lugar para biografia e autobiografia no campo antropológico. Mas quais seriam os efeitos de se atribuir à biografia um lugar e um status equivalente ao da etnografia na antropologia? Se na relação da etnografia com a antropologia ainda encon- tramos um campo de discussão que opera a clássica distinção entre o particular e o geral, nomotético e ideográfico, pesquisa e teoria, a Vida e grafias - miolo.indd 22 3/9/15 7:37 PM Narrativas biográficas23 controvérsia só é possível porque a etnografia já tem o seu lugar le- gitimado na antropologia. Lugar sujeito à discussão, como mostra a recente proposição de Tim Ingold, que, ao afirmar que a etnografia não é antropologia, parece estender à segunda algumas das quali- dades da primeira. No caso das narrativas biográficas, o terreno é mais arredio, pois, retomando uma afirmação do início, é como se houvesse uma antinomia insuperável entre a ordem do antropológico e a ordem do biográfico, na medida em que a escrita de uma experiência, de uma vida, é compreendida como o que ela não é ou não precisa ser: a escrita sobre um indivíduo. Ao resenhar algumas histórias de vida, Crapanzano já comentava o desconforto da antropologia acadêmica com narrativas biográficas, desconforto que, acrescentemos, expressaria a oscilação da antropo- logia com a dimensão da narrativa e a oscilação de si mesma como literatura ou ciência. Talvez porque essa dimensão narrativa seja ine- rente à historiografia, esta parece ter resolvido melhor a sua relação com a biografia. Ao discutir os conceitos de estrutura e função, vale lembrar o suposto de Radcliffe-Brown: “No estudo da estrutura social, a realidade concreta de que estamos tratando é uma série de relações realmente existentes, em dado espaço de tempo, que agrupa certos seres humanos. É nisto que podemos fazer observações diretas. Mas, não é isto que pretendo descrever em sua particularidade. A ciência diferentemente da história (ou da biografia) não se interessa pelo particular, peculiar, mas apenas pelo geral, pelas espécies, pelos fatos que se repetem. As relações concretas de Antonio, João e Pedro, ou a conduta de Manuel e José, podem ser lançadas em nossos apontamentos e servir de exemplificação para uma descrição geral. Mas o que precisamos para fins científicos é um balanço da forma da estrutura.” (Radcliffe-Brown, 1952, p.192, tradução livre) No argumento de Radcliffe-Brown, aparecem como equivalentes a noção de generalização e a de constante. Assim, as particularidades, en- quanto variantes que se deveriam levar em conta, mas das quais se deveria abstrair, seriam da ordem do geral e do que é constante – isto é, para Radcliffe-Brown, regulares. Nesse mesmo autor, relacionada a essa concepção de estrutura social, estaria a de personalidade social. Ao considerar que todo ser humano é indivíduo e pessoa, seria preciso distinguir indivíduo (organismo biológico) de pessoa (complexo de relacionamentos pes- Vida e grafias - miolo.indd 23 3/9/15 7:37 PM Vida & grafias24 soais). Para Radcliffe-Brown, o primeiro é assunto da psicologia, e o segundo, da antropologia, porque é no segundo que podemos abstrair o conjunto dos relacionamentos sociais. Mas é no seu exemplo que compreendemos melhor como se complica o argumento de que, se Deus são três pessoas, seria heresia considerá-lo como três indivíduos. Radcliffe-Brown não leva em conta um procedimento analítico ne- cessário para compreender a noção cristã de Deus, procedimento, aliás, operado pela própria concepção que lhe serve de exemplo. Pois a razão analítica não é aquela que não recorta o real em partes, mas a que o apreende como um conjunto de totalidades decomponíveis. Mesmo quando se faz a equivalência entre biografia e o indi- víduo, nota-se que o que as narrativas biográficas fazem é constituí-lo ou não. Mas não há uma correlação natural entre biografia e indi- víduo, e nem sequer há consenso sobre a natureza do segundo. Portanto, torna-se necessário distinguir pelo menos duas ma- neiras de incluir as narrativas biográficas e autobiográficas no campo antropológico: uma, tomando as biografias e autobiografias conven- cionais como objeto; outra, inventando um conceito que dê conta do que, em um trabalho anterior, considerei partir de uma intenção biográfica para fazer dela uma narrativa etnográfica (Kofes, 2001). Desse último ponto de vista, explorar as narrativas biográficas que tensamente ocupam o campo da antropologia é um trabalho con- ceitual necessário. É essa a intenção deste capítulo, em que focalizo narrativas biográficas escritas por dois antropólogos. Contraponto: duas experiências de dois antropólogos, material heteróclito para uma reflexão antropológica sobre biografias (ou “histórias de vida”) “Você é o primeiro Navaho que eu conheço. Muito do que eu aprendi com os Navaho foi com você. Agora sou professor. Meu trabalho é contar para as pessoas lá no leste sobre os índios daqui do Novo México e do Arizona, especialmente os Navaho. Eu quero contar para elas coisas verdadeiras, não mentiras. Eu preciso da sua ajuda. Quero contar a elas sobre como os Navaho vivem. Você viveu muito, viu muitas coisas. Aqui, você foi chefe por muitos anos e eu sei que os Navaho acreditam que o que você diz é o certo. Assim, eu gostaria que você me falasse sobre sua vida, desde o começo. Eu quero ouvir tudo de que você se lembra e do jeito que vier à sua cabeça. Eu sei que isso será um trabalho duro para você e que você tem outras coisas para fazer. Então, para cada dia em que você trabalhar me contando Vida e grafias - miolo.indd 24 3/9/15 7:37 PM Narrativas biográficas25 sobre sua vida, eu vou lhe pagar dois dólares. Você pode fazer isso para mim?” (Kluckhohn, 1945, tradução livre) Foi assim, conforme relata Clyde Kluckhohn, que ele pediu ao mr Moustache – por meio de um intérprete,¹ e em seu primeiro encontro como etnólogo entre os Navaho, embora já se conhecessem há alguns anos² – para lhe contar a sua vida.³ Na fala do antropólogo, vemos a ênfase posta na verdade dos fatos narrados e o suposto de que a his- tória de vida de mr Moustache – contada desde o começo, como foi pedido – diria sobre como os Navaho vivem. Ou seja, vemos aqui explicitada a concepção da narrativa da história de vida como um documento etnográfico. Ao pedir ao narrador que ele contasse a sua vida desde o começo e que ele a contasse conforme o fluxo de suas lembranças, Kluckhohn inaugura um uso da história devida na pes- quisa antropológica com um jogo de alteridade bastante sutil: a vida teria um começo (conforme a concepção cultural do antropólogo), mas esse começo variaria (conforme as concepções culturais distintas). O pressuposto que orienta Kluckhohn na análise da narrativa de mr Moustache indica uma importante disjunção entre uma tradição antropológica no uso de histórias de vida (a mesma crítica ao que ele designa como “ilusão biográfica”). Talvez eu possa ser criticada pela imprecisão ao referir-me a uma “tradição antropológica” de uso das narrativas biográficas e/ou das histórias de vida. Pois, que tradição seria esta se falta vigor e persistência deste uso mesmo na antropologia estadinudense? Além de que boa parte dos antropólogos, estadunidenses ou não, seja ambivalente sobre o seu uso, quando não diretamente crítica. Ainda que – um paradoxo? – a pesquisa antropológica dependa dos “documentos pessoais” – expressão con- vencionada pelos metodólogos estadunidenses e à qual Kluckhohn adere – para comporem etnografias e formularem generalizações. Distintas interpretações (ou mal-entendidos) são constituintes da pesquisa etnográfica. Nesse caso específico, Kluckhohn considerou 1 “Frank Pino, o intérprete. Ele tinha cerca de 40 anos de idade e era um sobrinho sororal de mr Moustache. Ele estudara até a oitava série na escola indígena em Albu- querque e era um dos três índios desta comunidade que tinha conhecimento suficiente de inglês para poder atuar como intérprete. Apesar de ter trabalhado durante vários anos na loja de comércio local, sua capacidade como tradutor era bastante limitada.” (Kluckhohn, 1945, p.266, tradução livre) 2 “Minha abordagem com o pedido de que ele me contasse sobre sua vida não foi apenas a primeira vez em que eu falei com ele como etnólogo, mas também o primeiro dia em que eu fiz trabalho de campo etnológico formal entre os Navaho.” (Kluckhohn, 1945, p.265, tradução livre) 3 “Mr Moustache é a tradução literal do nome pelo qual os Navaho dessa região fre- quentemente o chamam.” (Kluckhohn, 1945, p.263, tradução livre) Vida e grafias - miolo.indd 25 3/9/15 7:37 PM Vida & grafias26 a entrevista como trabalho a ser remunerado e, na resposta de mr Moustache, encontramos outra interpretação ou um mal-entendido: “Você está certo no que diz. Somos amigos desde que você era apenas um menino. Você sempre foi bom para Navajos e fez o que é certo. Eu quero ajudá-lo, mas eu tenho que ter certeza de que estará tudo bem para o povo se eu falar com você. Ultimamente, como nós temos esse novo comissário indígena, o governo tem enviado algumas pessoas brancas aqui para nos fazer perguntas. Em seguida, eles co- meçaram a tomar as nossas ovelhas e cabras. As pessoas não gostam disso. Você vai dizer a Washington tudo o que eu lhe disser?” (Kluckhohn, 1945, p.265, tradução livre) O que o antropólogo interpretava como trabalho a ser remunerado (tempo investido), mr Moustache considerava como política (a relação entre os Navaho, os “brancos” e Washington, isto é, o governo dos Estados Unidos). O diálogo continuou (Kluckhohn, 1945, p.266, tra- dução livre): Kluckhohn: “Eu lhe asseguro que eu não tenho qualquer ligação com ‘Washington’.” Mr Moustache: “Eu não sei exatamente por que você quer saber essas coisas. Algumas coisas são para os índios e algumas coisas são para os brancos.” Kluckhohn: “Nas escolas que construímos para os seus filhos, ten- tamos ensinar-lhes o que nós descobrimos sobre como conviver. Alguns de nós pensam que, talvez, vocês índios tenham aprendido coisas que também nos ajudariam. É por isso que eu vim.” Mr Moustache: “Tudo bem. O que você quer que eu lhe diga primeiro?” Kluckhohn: “As primeiras coisas que você lembra de sua vida, comece aí e continue até o presente momento. Eu não lhe farei mais per- guntas depois que você começar. O que eu quero é que, por conta própria, você vá contando exatamente como as coisas vêm à sua mente.” Talvez, mesmo perguntando ao antropólogo o que ele queria que ele falasse primeiro, mr Moustache tenha mantido a sua intenção original e o seu relato de vida seja uma narrativa política da tradição navaho. Mr Moustache não começa o seu relato pelo seu nascimento, mas as- sinalando que nunca viajara quando criança e que permanecera em sua terra, trabalhando, ao contrário do que aconteceria atualmente com as crianças, que hoje vão onde querem: Vida e grafias - miolo.indd 26 3/9/15 7:37 PM Narrativas biográficas27 “Eu nunca fui a lugar nenhum quando eu era menino. Meus pais não me deixavam sair por aí. Fizeram-me trabalhar, buscando madeira e coisas assim. Eu sempre ficava em casa. Agora as crianças vão aonde querem. Esses jovens Navajos daqui não sabem de nada. Eu sou o único velho Navajo que restou. Logo estarei morto.” (Kluckhohn, 1945, p.267, tradução livre) Na análise do relato, primeiramente, Kluckhohn chama a atenção para a dificuldade de considerá-lo como uma autobiografia⁴ (mas por que é preciso uma definição e a procura de sua correspondência em um real?) pelos poucos eventos e pessoas mencionados. Só o pai foi mencionado (aliás, o foi muitas vezes). O que mr Moustache falou estaria mais para “um tipo de homilia filosófica do que propriamente para uma história de vida” (Kluckhohn, 1945, p.273, tradução livre), comentaria o antropólogo, ressaltando que possivelmente essa carac- terística estaria no próprio contexto do entrevistado, que era um chefe e, portanto, estava acostumado a ser procurado para dar conselhos. Ora, isso teria se dado, principalmente, porque o antropólogo não interrompera a narrativa de mr Moustache nem lhe dera esquemas cronológicos. Assim, o que foi escolhido pelo narrador foi o que ele considerou significativo em sua vida para a resposta ao que o antro- pólogo havia lhe pedido. Estaria exatamente aí o valor do relato como documento significativo. É como Kluckhohn vai analisá-lo, como um relato singular e como um documento cultural, isto é, as relevâncias foram aquelas da perspectiva Navaho e não a que teria lhe dado o an- tropólogo. O que eu entendo como um documento etnográfico ou, como talvez dissesse Ingold (2007), um documento antropológico, do- cumento etnográfico/antropológico que, notemos, se caracteriza pela cronologia e sequência de eventos, e com referência a pessoas con- textualizadas, seja por relações mais imediatas, seja por linhas mais significativas. No caso do Navaho, tratou-se da referência ancestral ao seu pai. Um ponto de vista Navaho diante de um estrangeiro também explicaria algumas omissões de conteúdo. Comparando a narrativa de mr Moustache com a de outros Navaho, Kluckhohn sugere que as es- colhas de conteúdo e ênfase são mais compartilhadas culturalmente do que se pode prever. haveria uma espécie de repetição dos valores cul- turais nas narrativas de pessoas distintas. A meu ver, Kluckhohn nos diz que as lacunas informativas devem ser de fato compreendidas como valor cultural expressivo. Se é isso que 4 Neste texto, ao dizer “ato biográfico” ou “narrativa autobiográfica”, estarei me re- ferindo a narrativas de vida que possam ser consideradas para se traçar biografias, autobiografias, histórias de vida ou trajetórias. Vida e grafias - miolo.indd 27 3/9/15 7:37 PM Vida & grafias28 ele está dizendo, compartilho de sua afirmação. Entretanto, a análise de Kluckhohn naturaliza os valores culturais e o estrangeiro, torna absolutas essas categorias. Assim, o sentido do que fala mr Moustache – e o que ele contou de si – não foi compreendido na relação entre o antropólogo e o Navaho, nem foi considerado o que antropólogo sig- nificava para mr Moustache e para os Navaho. Kluckhohn considera um esquema cultural objetivado, exteriorizado, não se tratando exata- mente do que, mais tarde, se chamaria de “encontro etnográfico”. A postura de Kluckhohn é exatamente o inverso do que seria feito por Crapanzano (1980) anos depois. Nesse último caso, a alteridade (no encontro) explicariaa expressão narrativa, acionaria a presença do outro abstrato, imaginariamente recriando os personagens da inte- ração concreta e a narrativa como a ficção produzida no encontro. Tuhami, marroquino, oleiro, casado com A’isha Qandisha, um demônio feminino [she-demon], dedicava-se aos santuários, romarias e sonhos. Crapanzano fez a sua pesquisa no Marrocos, na década de 1960, interessado no estudo de A’isha Qandisha desde a sua pesquisa sobre uma irmandade especializada em rituais de cura dos possu- ídos, a irmandade hamadsha; à qual ela pertencia. Tuhami não era membro da hamadsha, a sua relação com A’isha Qandisha era de esposo, e não de possuído, o que lhe dava ou o que justificava um status de outsider. Crapanzano oferece um quadro da cultura e rela- ções sociais marroquinas, o significado da romaria, a relação entre humanos, santos e demônios e o uso que Tuhami faz de símbolos culturais e rituais. A história de vida de Tuhami remete a uma et- nografia de concepções e relações religiosas. Com uma introdução, uma conclusão e cinco capítulos, o livro contém os diálogos das en- trevistas feitas por Crapanzano e as respostas de Tuhami, permeadas pelos sonhos e narrativas em forma de recitações. Conforme diz Crapanzano: “Eu levo em conta a maneira com que Tuhami faz uso da linguagem particular disponível para articular sua própria experiência, incluindo a sua história pessoal em nossas negociações da realidade. Talvez com uma visão mais estreita e certamente com maior resistência, eu levo em conta o uso que eu faço do meu próprio idioma em nossas negociações.” (Crapanzano, 1980, p.xI–xII, tradução livre) Tuhami é um narrador, a história de vida escrita por Crapanzano baseou-se no que Tuhami lhe contou, e não no que outros lhe contam sobre ele. É assim quanto à própria noção de realidade, de realidade etno- gráfica e de invenção que Crapanzano discute. As histórias contadas por Vida e grafias - miolo.indd 28 3/9/15 7:37 PM Narrativas biográficas29 Tuhami e a narrativa de vida de Tuhami aproximam autobiografia, etnografia, narrativas míticas e contos de fada. Segundo Crapanzano, “… o real era uma metáfora para a verdade – e não idêntico a ela. Tuhami falava a verdade desde o início, … mas eu estava ouvindo apenas o real, que eu confundia com o verdadeiro.” (Crapanzano, 1980, p.130, tradução livre) O modo como Tuhami configura a sua narrativa é problematizado antropologicamente por Crapanzano, mas a narrativa não é consi- derada como ilusão, e sim como linguagem, expressando também o choque entre idiomas culturais distintos. Levando em conta que a narrativa de Tuhami precisaria ser compreendida tendo em vista o que a palavra significa na cultura marroquina, no jogo compe- titivo que ela contém, ganha quem detém a palavra. Conforme Crapanzano: “O conteúdo da narrativa de Tuhami é ontologicamente diferente daquele com que nós estamos familiarizados no Ocidente. Diferenças genéricas não são simplesmente diferenças formais. Elas são cons- truções culturais e refletem as premissas mais fundamentais sobre a natureza da realidade, incluindo a natureza da pessoa e a natureza da linguagem, consideradas, se forem inteiramente consideradas, auto- evidentes pelos membros de qualquer tradição cultural particular. O reconhecimento dessas diferenças, da possibilidade de um outro modo mais ou menos bem-sucedido de se constituir a realidade, é sempre ameaçador, pode produzir uma espécie de vertigem epistemológica e exigir uma posição de relativismo cultural extremo … No entanto, intencionalmente ou não, o antropólogo ou o leitor faz, muitas vezes, com que as diferenças desapareçam no ato da tradução. Essa tra- dução pode tornar bizarro, exótico ou simplesmente irracional o que pode ser comum em seu próprio contexto. Então, a etnografia passa a representar uma espécie de antimundo alegórico semelhante aos anti- mundos do louco e da criança.” (Crapanzano, 1980, p.8, tradução livre) Nessas duas experiências distintas temporalmente (a de Kluckhohn com mr Moustache e a de Crapanzano com Tuhami), o relato biográ- fico ancora-se na experiência etnográfica: uma criaria um documento etnográfico; outra, uma ficção etnográfica. O contraponto aqui esbo- çado delineia polos exagerados visando a constituir um contraponto e, em seguida, uma mediação que permita esboçar um campo de discussões. Vida e grafias - miolo.indd 29 3/9/15 7:37 PM Vida & grafias30 Entre os atos: “a California morality tale”? Ou, uma biografia “boa para pensar” inclusive a antropologia? “Uma pequena história explicará bem isso: a de um índio que escapou sozinho, milagrosamente, do extermínio das tribos cali[for]- nianas ainda selvagens, e que, durante anos, viveu ignorado por todos nos arredores das grandes cidades, talhando as pontas de pedra de suas flechas que lhe permitiam caçar. Entretanto, pouco a pouco a caça desapareceu; um dia descobriu-se esse índio nu e morrendo de fome às portas de um subúrbio. Terminou sua vida sossegadamente como porteiro da Universidade da Califórnia.” (Lévi-Strauss, 1996, p.57–58, tradução livre) há quem considere a história de Ishi um dos capítulos mais assom- brosos da história americana (Rockafellar & Starn, 1999). Se a vida de Ishi nos perturba e nos faz evocar a violência de muitos dos eufemis- ticamente chamados “encontros culturais”, a biografia de Ishi escrita por Theodora Kroeber (1961) nos incomoda também por outros motivos. Como um fragmento da história de seu povo e da pré-his- tória da Califórnia, a biografia de Ishi, “o último dos Yahi”, parece escrita para contar a história de seu povo como se fosse uma vida cujo sentido estaria na extinção de um povo. No prólogo do livro, Theodora (1961) conta que foi em 29 de agosto de 1911 que Ishi “entrou em nossa vida” – por “nossa vida”, não se deve entender o envolvimento pessoal de Theodora: ela não conheceu Ishi neste momento, aliás, nem ainda conhecera Kroeber, o antropólogo com quem viria a se casar bem depois. Ishi entrou na vida de Oroville, cidade onde ele foi encontrado em um matadouro, capturado pelo xerife e, sem entender ou falar inglês, levado à prisão. A captura do selvagem despertou intensa curiosidade. A notícia, os comentários sobre Ishi, inclusive a sua foto, chegaram aos jornais de São Francisco. Lendo os jornais, Kroeber e Waterman, professores da Universidade de Califórnia, se inteiraram do acontecido. Com a quase certeza de que se tratava de um Yahi, Waterman foi para Oro- ville e conseguiu com esforço que Ishi reconhecesse a fonética de uma palavra de sua língua. Mais palavras, frases e os dois se comunicaram. Após várias iniciativas envolvendo o xerife, Kroeber, Waterman, o Museu de Antropologia da Universidade da Califórnia e Wa- shington, Ishi foi levado para São Francisco, onde viveu quatro anos e sete meses, até morrer em 1916, vitimado por doenças pulmonares. O nome Ishi homem [Man], na linguagem Yahi, lhe foi atribuído pelos antropólogos. Quando começou a corrida pelo ouro, em 1849, havia aproximadamente 400 Yahi na Califórnia. O massacre do povo Vida e grafias - miolo.indd 30 3/9/15 7:37 PM Narrativas biográficas31 Yahi se iniciou em 1865 e se prolongou até 1870, no meio do qual, em 1860, se teria dado o nascimento de Ishi. Entre 1870 e 1911, um grupo de cinco a vinte Yahi em fuga perambulava por Mill Creek. Em 1908, o grupo de sobreviventes no qual estava Ishi, e que vivia se escon- dendo e fugindo, estava reduzido a quatro. Com as notícias de seus aparecimentos esparsos, Waterman foi com uma expedição a Mill Creek, em 1810, tentando encontrar o bando de indígenas em “estado selvagem”, mas não conseguiu nenhum contato. Contudo, em 1911, Ishi foi encontrado em Oroville e, em 4 de setembro, levado para São Francisco. Durante seis meses, o Museu de Antropologia recebeu 24 mil pessoas que visitaram o museu e viram Ishi demonstrar, entre outras habilidades manuais, como fazer setas (flechas?) e fogo. Em 25 demarço de 1916, Ishi morreu no hospital da Universidade da Califórnia. O seu cérebro foi removido, pesado, examinado e preservado. Em 27 de março, Waterman, Pope, Loud Warburton e Gilford acompanharam o corpo ao cemitério onde ocorreu a cremação. Em 31 de março, as cinzas de Ishi foram colo- cadas em um jarro Pueblo. Kroeber não foi à cerimônia, pois estava em Nova Iorque, em seu período sabático, do qual retornou em 27 de outubro de 1916. Theodora Kroeber estava com 60 anos quando escreveu a sua primeira biografia, sobre Ishi – ishi in two worlds –, publicada em 1961. Segundo Karl Kroeber, filho de Theodora e de Alfred Kroeber, relata na introdução à reedição de 2004, o título teve um forte impacto no contexto de sua edição original. Ainda conforme Karl, fora heizer – arqueólogo e antropólogo especialista em instrumentos de pedra, que atribuiu ingenuidade à consideração de que Ishi era um “puro” Yahi, pois ele seria também Yana – quem conseguira convencer Theodora a escrever a biografia, projeto recusado por Alfred Kroeber. Karl Kroeber conta como heizer convencera Theodora a escrever o livro e como trabalharam juntos no projeto. O livro teve uma enorme popularidade, transformando-se em filme, vídeos e peça – ishi: the last of the Yahi, drama teatral escrito por John Fisher (Theatre Rhino, UC Berkeley Production). Foi reeditado várias vezes, popularizando, segundo Karl Kroeber, também a defesa intelectual da antropologia boasiana contra o extermínio indígena e tendo sido um testemunho de defesas das populações indígenas da Califórnia em sua luta legal pelo reconhecimento de seu direito à terra. A biografia não apenas foi muito lida e criticada, como rendeu outras pesquisas sobre a vida de Ishi – uma delas, a pesquisa de M Steven Shackley (2003). Aliás, a reedição de 2004 é particularmente significativa, bem como a sua introdução, tendo em vista o desdobramento de uma Vida e grafias - miolo.indd 31 3/9/15 7:37 PM Vida & grafias32 dessas controvérsias, que desencadeou um evento – reinventando e estendendo a narrativa Ishi – envolvendo nativos americanos e antropólogos. Em 1997, o Butte Country Native American Cultural Committee iniciou uma campanha pelo retorno dos restos de Ishi à terra dos Yahi, ao norte da Califórnia. Embora fosse conhecido que as suas cinzas estavam em um nicho no Olivet Cemitery, ao sul de São Francisco, os nativos americanos se inteiraram que o seu cérebro tinha sido extraído na autópsia e que fora guardado em outro lugar. O trabalho de pesquisar onde estava o cérebro de Ishi foi contado por Nancy Rockafellar & Orin Starn (1999; ver também Starn, 2004). Em 1999, o Smithsonian acertou o envio do cérebro para o grupo nativo que o reivindicava, o que foi feito em 2000 em um lugar desconhecido, para evitar invasão de curiosos e turistas (Kroeber & Kroeber, 2003). Kroeber não estava em São Francisco quando Ishi faleceu e, contra a sua vontade – manifestada enfaticamente em cartas –, foi realizada a autopsia e a retirada do crânio de Ishi para análise, o que pode ser melhor conhecido na troca de correspondências entre Kroeber e Gifford em março de 1916, já no final da vida de Ishi, que no dia 18 de março fazia a sua última entrada no hospital da Universi- dade da Califórnia. Em torno desse evento, alguns membros do Departamento de Antropologia da Universidade da Califórnia, em Berkeley, iniciaram um movimento para que o Departamento de Antropologia – ao qual Kroeber estivera ligado de 1901, sendo um dos seus fundadores, a 1947, quando se aposentou – se desculpasse publicamente pelo in- defensável comportamento de Kroeber em relação a Ishi, sugerindo também que o prédio que aloja o departamento tivesse o seu nome, Kroeber’s hall, mudado. Embora lamentando que o cérebro de Ishi tivesse sido enviado ao Smithsonian e defendendo a sua entrega, junto às cinzas de Ishi, para os nativos que os reivindicavam, outros membros do Departamento consideravam injustificável a condenação de Kroeber (Kroeber & Kroeber, 2003). Esse evento provocou a publi- cação de um livro organizado por Karl Kroeber e Clifton B Kroeber (2003), cujos artigos revisitam a vida de Ishi e a sua biografia, bem como a controvérsia no Departamento de Antropologia de Berkeley em torno da condenação ou não de Kroeber. Esse livro e ishi’s brain: in search of America’s last “wild” indian, de Orin Starn (2004), foram resenhados conjuntamente por Geertz no The New York Review of Books. A resenha começa assim: “Um conto moral da Califórnia, a história de Ishi é, em si mesma, como parábolas em geral, muito simples. São os narradores, cada um com envolvimento e intenções distintos, que a complicam.” (Geertz, 2004, tradução livre) Vida e grafias - miolo.indd 32 3/9/15 7:37 PM Narrativas biográficas33 Onde começaria e terminaria a narrativa biográfica de Ishi? Nos quatro anos e sete meses em que Ishi foi encontrado e viveu na Uni- versidade da Califórnia? Em 1860, quando teria nascido, e em 2000, quando foi definitivamente enterrado? Entre 1860 e 1916? O que eu gostaria de sugerir para a presente discussão e para análises futuras é que, seja qual for a escolha, essa biografia conteria o mesmo con- texto de relações e teria o mesmo sentido – não o da vida ou o de uma história, mas o sentido do encadeamento de relações e desdo- bramentos narrativos. Eis o que torna essa biografia particularmente relevante para contestar algumas das dicotomias que cercam o debate sobre biografia e autobiografia na antropologia, por exemplo, como levantei no início, entre fato e memória (e, supostamente, entre obje- tivo e subjetivo), ciência e literatura, narrativa e estrutura, indivíduo, rede de relações ou indivíduo e sociedade. Esses temas são, aliás, caros à antropologia e o tema biografia e autobiografia contribuiu para que a discussão fosse menos marcada pelo fantasma do ideográfico e no- motético. Isso permitiria ainda estender a discussão sobre como os conjuntos normativos são interpretados e diferentemente acionados, tendo em vista as experiências de pessoas-indivíduos – ou, ainda, a teoria ator-rede de Bruno Latour (2005). De qualquer maneira, há ainda um trabalho a fazer e um grande desafio: o de incluir as narrativas biográficas no fazer antropológico com o mesmo estatuto das narrativas etnográficas. Um bom desafio, para o qual seria preciso considerar que, onde há um nome, há um conjunto de relações. Poderíamos, então, parafrasear Lévi-Strauss no prefácio do livro Le Soleil hopi: “… um pouco como se, arqueólogos do presente, nós desenterrás- semos as disjuntas pérolas de um colar para percebermos de repente as contas atadas em sua disposição primitiva, em torno do jovem pescoço ao qual foram um dia destinadas a adornar...” (Lévi-Strauss, 1982, tradução livre) Que antropologia fazemos quando focalizamos narrativas biográficas? “Alguns conceitos na teoria antropológica são fundacionais. Porque são conceitos que fornecem o terreno sobre o qual antropólogos podem construir seus edifícios teóricos, eles frequentemente são tomados como óbvios e tendem a permanecer não questionados. Um desses conceitos é o de experiência. Experiência é um conceito chave ao longo da história da disciplina, mas tem, até recentemente, per- manecido sem um exame crítico. Mesmo assim, a sua proliferação Vida e grafias - miolo.indd 33 3/9/15 7:37 PM Vida & grafias34 nos escritos antropológicos contemporâneos é verdadeiramente notável. Com efeito, experiência se tornou um construto central para um número de perspectivas divergentes na antropologia, incluindo a teoria feminista, antropologia fenomenológica, antropologia psi- cológica, antropologia médica e etnografia crítica. Em todas essas abordagens, enquanto a importância e a centralidade da experiência é evidente, a definição e propriedades operacionais do construto permanecem evasivas. Essa falta de clareza conceitual parece sur- preendente dado que essas perspectivas teóricasfrequentemente consideram a experiência não somente como uma área central de pes- quisa, mas também como uma base para que especulação, descrição e explicação posteriores sejam construídas.” (Throop, 2003, p.219, tradução livre) Muitas das críticas à noção de experiência referem-se a que o seu uso estaria ligado aos supostos de visibilidade, transparência, individu- alidade, autenticidade, a instâncias pré-discursivas, pré-narrativas, pré-conceituais, também existindo críticas ao vínculo da noção de ex- periência com a subjetividade e consciência individual. Muitas dessas críticas partem da importância que precisaria ser dada às estruturas e processos (socioeconômicos, históricos, linguísticos etc), onde estariam assentadas as condições para experiência, o que significa que a experi- ência seria resultante de estruturas e processos. A discussão é evidentemente marcada por distintos pressupostos teóricos e também, como bem sugere Troop, pelos escorregadios sentidos do termo e de seu uso. Não se trata aqui de adiantar uma exegese da noção de experiência nem de sugerir uma redução de seus sentidos, mas de procurar um sentido mais adequado ao argumento com o qual pretendo finalizar este texto. Lévi-Bruhl (1938, p.8–19), em seu último artigo, publicado postumamente, usa a noção de experiência para dar conta do afetivo enquanto uma diferença na ordem racional, diferença que uma con- ceituação estreita de realidade desprezaria como um não real, como um não racional. Posteriormente, Turner usaria também a noção de experiência sem confundi-la com o imediatamente observado e vivido. Em Turner, a experiência é intrinsecamente relacionada à narrativa, revelando-se como estrutura (conectando momentos distintos: per- cepções, evocações do passado, associações de eventos e sentimentos vividos, emergência de significações e valores) em sua expressão. Para ele, a expressão da experiência seria a unidade estrutural da expe- riência (Turner, 1982, p.15), o que não é o mesmo que a experiência como empiricamente observável ou pré-narrativa. A expressão da experiência (a experiência narrada) conectaria eventos e afecções, Vida e grafias - miolo.indd 34 3/9/15 7:37 PM Narrativas biográficas35 incorporando e germinando significações e valores. Tomando esse último sentido, se o biográfico constitui narrativamente uma experi- ência, como, aliás, pode fazer o etnográfico, as narrativas biográficas se prestam não a serem depoimentos orais ou apenas documentos para a antropologia. Assim, poder-se-ia dizer que Bourdieu (1986) tem razão sobre o que atribui à biografia, sendo necessário ressaltar que, como narrativa, a sua illusio é parte importante da sua significação: ela é o dito no ato de contar, compõe a expressão da experiência e, como a etnografia, amplia as possibilidades de inflexão do social. Sugiro que a relação entre experiência narrada biograficamente e estrutura da experiência permite retirar a narrativa biográfica da oposição entre indivíduo e sociedade, subjetivo e objetivo. A expressão da experiência conteria relações, conexões, movimentos da vida, ex- periência social e reflexão dos próprios sujeitos, conteria a expressão da experiência que não prescinde da sua expressão narrativa. A estru- tura da experiência conectaria experiência vivida e os sentidos dados e criados pelos sujeitos. De certa maneira, com Turner, escapamos tanto da crítica de Joan Scott (1999) ao conceito de experiência de Thompson (1978) como da crítica do próprio Thompson (1978), sem descartar a noção de experiência. É enquanto experimentação de não opor a estrutura e o vivido, o observável e o concebido, de abrir-se a expressões diferenciadas (por- tanto, não opondo individual ao social ou coletivo), que experiência está sendo considerada. Pois, considerada como estrutura de experi- ência, ela supõe a agency e um movimento com melhores rendimentos conceituais e metodológicos que os conceitos de campo e trajetória (Bourdieu, 1998 e 1986) ou a teoria ator-rede (Latour, 2005), porque leva em conta nas experiências narradas a ação e o agente, e cria uma relação entre quem narra e quem é afetado pela narrativa. Encontro no argumento de Turner um ponto médio entre a experiência e a narrativa, pois a expressão de experiências supõe uma dimensão narrativa, e não uma redução à linguagem: ela dra- matiza um vivido. Como meio de expressão, a narrativa daria forma e temporalidade à experiência, sem a dicotomia entre a percepção e a conceituação do mundo, sem partir de uma totalidade pré-fixada – como na dicotomia indivíduo e sociedade, por exemplo. Assim, não me parece que a discussão sobre narrativas biográficas deva continuar nos termos da oposição entre indivíduo e sociedade,⁵ 5 Lembremos de uma das mais conhecidas. Sartre insiste sobre a situação particular na qual uma pessoa se forma: na pertinência ao meio como um acontecimento sin- gular. Pode-se resumir a sua argumentação com a seguinte frase, onde dialoga com o marxismo: “Valéry é um intelectual pequeno burguês; quanto a isso não há dúvida. Mas nem todo intelectual burguês é Valery.” (Sartre, 1967, p.80) Vida e grafias - miolo.indd 35 3/9/15 7:37 PM Vida & grafias36 subjetividade e objetividade, ou da oposição entre estrutura, con- cepção e ação social, apesar de as biografias serem fontes preciosas para tais discussões. As biografias podem ser dispositivos para criar pessoas, personalidades, santos, heróis e fracassados ou, ainda, incor- porar ideias e valores – ideologias e moralidades – em vidas concretas, considerando-as como passíveis de serem expandidas, supondo a vida como modelo passível de imitação. Lucien Febvre (2012) nos dá um exemplo instigante – porque problematiza também a possibilidade de expansão do ato narrativo à imagem – do que poderia ser a estrutura da experiência, embora o autor não use esse conceito. Ele não inicia a biografia de Lutero – ou, como ele prefere designar o seu trabalho, “um juízo sobre Lutero”, juízo ao qual também se presta o ato biográfico – com o nascimento ou a sua vida em família: começa nos contando que, em julho de 1505, aos 22 anos, o jovem Martin inicia uma vida monástica, contra- riando as expectativas de uma carreira mais lucrativa. Nessa biografia – vou chamá-la assim, apesar do que diz o seu o autor –, a vida como narrativa contraria o naturalismo, contraria também algumas das convenções da narrativa biográfica, começa com Lutero cruzando o portão do convento agostiniano de Erfurt, iniciando uma vida mo- nástica que duraria 15 anos, desviando-se das expectativas de uma carreira mais lucrativa. O esforço solitário, que dá nome ao primeiro capítulo do livro, estaria ocultado no retrato de Lutero, de 1532, retrato que Febvre problematiza em seu livro. Esse conhecido retrato congela um momento da vida e oculta outros momentos, congelando também a temporalidade e os seus efeitos, muitas vezes imprevisíveis, muitas vezes irônicos, de rumos tomados pelos sujeitos. O Martinho Lutero quinquagenário, no retrato pintado (ou gravado) por volta de 1532, expressaria a sua liderança política e a doutrina que fundou. Mas, se considerarmos o retrato como também narrativo, poderíamos dizer, contra Febvre, que ele narra e, assim, conforma uma experiência, a de sua liderança política. O desafio é o das conexões dessas expressões – a estrutura da experiência, para referir-me ao conceito de Turner. Mas, a pergunta de Febvre é outra. Sua pergunta é se aquele retrato revelaria as escolhas que Lutero fez antes, entre as que lhe estavam disponíveis. Então, Febvre começa a sua narrativa biográfica com o jovem Lutero cruzando o portão do convento agostiniano em Erfurt e iniciando a vida monástica. Segundo o autor, esse ato – não revelado pelo retrato mencionado – conteria o germe da Reforma Luterana. Ora, pode-se narrar a vida de alguém de muitas maneiras, embora, conforme Denzin (1989, p.17), dentro de certas convenções Vida e grafias - miolo.indd36 3/9/15 7:37 PM Narrativas biográficas37 que estruturariam como as vidas são contadas. Cheterston (1978, p.5–14), ao escrever sobre São Francisco de Assis, elenca algumas das convenções: celebrizar as virtudes sociais incorporadas no biografado, dizer que ele antecipou épocas, tornando-o um herói; falar do mundo do personagem como se fosse parte dele, escrevendo, por exemplo, piedosamente sobre a vida de um santo, como se fosse você mesmo um santo; como um observador simpatizante, equilibrar as qualidades e virtudes do personagem, salientando a distância e a proximidade entre mundos distintos, o mundo descrito, o mundo de quem escreve e o mundo de seus leitores – como simpatizante e como cético, o biógrafo criaria um conjunto coerente e compreensivo. Cheterston, por fim, escolhe uma variante dessa última convenção, sem o suposto de que só uma totalidade tornaria compreensível a santidade de São Francisco aos que prescindem de santidade, evocando admiração. Muitas biografias são escritas com o objetivo de criar essa admi- ração ou uma aversão, ou mesmo com o objetivo de fazer da distância a escrita objetiva de uma vida. O que é fascinante notar nas narrações biográficas é como iniciam-se de maneira distinta, como configuram temas distintos: memória, migração, família, trabalho rural e urbano, produções de gênero, de falas, de maneiras particulares do uso da lin- guagem e formas narrativas, de crenças, religiosidade e personagens míticas, de atribuição de nomes e constituição de pessoas, de arte e de ciência. Essa relação entre biografia e narração, o nexo entre oralidade, escrita e visualidade, as interconexões do ato biográfico, retendo evocações e informações entre real (pessoa) e ficção (perso- nagem), remetem ao estatuto ambíguo do fazer biográfico nas ciências humanas. Se a narrativa biográfica encontra-se com a etnografia ao mar- carem para a antropologia a experiência da alteridade, permito-me terminar este capítulo reafirmando o nexo entre certa concepção de etnografia e uma possível perspectiva biográfica, ambas orientadas em sua atenção aos contextos de relações, às concepções, por uma atitude que não procura encaixar o objeto em categorias externas, mas extrair as construções com as quais operam os agentes em seus campos semânticos próprios. Eis porque muitas das discussões sobre o ato de biografar são também a do ato de etnografar. Essa formu- lação lembra alguns dos impasses da etnografia, pela homologia da relação (singular-geral), pelos impasses sobre a representação, porque expõe os limites de um modo de ser e as limitações de um modo de pensar. Ou seja, são registros de alteridade. Biografia e etnografia são respostas às (mesmas) aflições: o problema de ambas e também o seu mérito é que são muitas e diversas as aflições às quais são chamadas a responder. Vida e grafias - miolo.indd 37 3/9/15 7:37 PM Vida & grafias38 Referências Franz Boas, “Recent anthropology”, Science, n.2.546, v.98, p.334–335, 8 de outubro de 1943 Pierre Bourdieu, “L’illusion biographique”, Actes de la Recherche en Sciences Sociales, n.62– 63, p.69–72, junho de 1986 –, Les règles de l’art, Paris: Points, 1998 Gilbert K Cheterston, San francisco de Asís, Barcelona: Editorial Juventud, 1978 V Crapanzano, Tuhami: portrait of a morocann, Chicago: The University of Chicago Press, 1980 Norman K Denzin, interpretive biography, Newbury Park: Sage Publications, 1989 Lucien Febvre, Martinho Lutero, um destino, São Paulo: Editora Três Estrelas, 2012 Clifford Geertz, “Morality tale”, The New York Review of Books, v.51, n.15, 7 de outubro de 2004 Suely Kofes, Uma trajetória, em narrativas, Campinas: Mercado de Letras, 2001 Clyde Kluckhohn, “A Navaho personal document with a brief paretian analysis”, Sou- thwestern Journal of Anthropology, v.1, n.2, p.260–283, 1945, disponível em http:// www.jstor.org/stable/3628762 Theodora Kroeber, ishi in two worlds: a biography of the last wild indian in North America, Berkeley: University of California Press, 1961 Tim Ingold, “Anthropology is not ethnography”, Proceedings of the British Academy, n.154, p.69–92, 2008 Bruno Latour, Reassembling the social: an introduction to actor-network-theory, Nova Iorque: Oxford University Press, 2005 Claude Lévi-Strauss, “Préface”, in: Don C Talayvesa, Soleil hopi, Paris: Plon, 1982 –, Tristes trópicos, São Paulo: Companhia das Letras, 1996 L Lévy-Bhrul, “L’expérience mystique et les symboles chez les primitifs”, 1938, dispo- nível em http://classiques.uqac.ca/classiques/levy_bruhl/experience_mystique/ experience_mystique.html A R Radcliffe-Brown, Structure and function in primitive society, Illinois: The Free Press, 1952 P Ricoeur, Tempo e narrativa, Campinas: Papirus Editora, 1994 Nancy Rockafellar & Orin Starn, “Ishi’s brain”, Current Anthropology, v.40, n.4, p.413– 416, agosto–outubro de 1999 Jean-Paul Sartre, Questions de méthode, Paris: Gallimard, 1967 Steven Shackley, “The stone tool technology of Ishi and the Yana”, in: K Kroeber & B Clifton Kroeber (edição), ishi in three centuries, Lincoln: University of Nebraska Press, 2003 Joan Scott, “Experiência”, in: Alcione Leite da Silva, Mara Coelho de Souza Lago & Tânia Regina Oliveira Ramos, falas de gênero, Florianópolis: Editora Mulheres, 1999, p.21–55 Orin Starn, ishi’s brain: search of America’s last “wild” indian, Londres / Nova Iorque: W W Norton & Company, 2004 M Strathern, “The concept of society is theoretically obsolete”, in: Tim Ingold (orga- nização), Key debates in anthropology, Londres / Nova Iorque: Routledge, 1996 –, “O conceito de sociedade está teoricamente obsoleto?”, O efeito etnográfico, São Paulo: Cosac Naify, 2014 Edward P Thompson, The poverty of theory, Londres: The Merli Press, 1978 Jason Throop, “Articulating experience”, Anthropological Theory, v.3, p.219–241, 2003 Vida e grafias - miolo.indd 38 3/9/15 7:37 PM Narrativas biográficas39 Suely Kofes é antropóloga, professora titular no Departamento de Antropologia do IFCh/UNICAMP, como professora e pesquisadora. Suas pesquisas antropológicas preocupam-se com a experimentação etnográfica, com pesquisas sobre temas distintos e em campos etnográficos distintos. Atua nas seguintes linhas de pesquisa: etnografia e a perspectiva biográfica; experiência e narrativa; antropologia, processos de diferen- ciação e reconhecimentos identitários (diferença e identidade); temas concernentes ao campo dos estudos sobre raça e gênero; ritual, cosmologia, associativismo e política. É uma das coordenadoras do LA’GRIMA (Laboratório Antropológico de Grafia e Imagem), recém-criado no Departamento de Antropologia do IFCh/UNICAMP. Vida e grafias - miolo.indd 39 3/9/15 7:37 PM 40 Autobiografias, memoriais e a narrativa biográfica de um cientista Daniela Manica “Elsimar Metzker Coutinho é um dos maiores expoentes na endocri- nologia da reprodução humana e no planejamento familiar. Médico formado pela Universidade Federal da Bahia, realizou cursos de especialização na Sorbonne, Universidade de Paris e fundação Ro- ckefeller, em Nova Iorque. Foi um dos fundadores do International Committee for Contraceptive Research – ICCR, do The Population Council, órgão especializado no desenvolvimento de métodos contra- ceptivos modernos, e atuou como membro do Steering Committee of the Expanded Program in human Reproduction, da Organi- zação Mundial da Saúde. Professor e chefe do Departamento de Saúde Materna e Infantil da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia, é diretor-presidente de uma clínica-modelo em pla- nejamento familiar e saúde reprodutiva em Salvador, o CEPARh (Centro de Pesquisas e Assistência em Reprodução humana). Também preside a Organização Internacional de Pesquisa em Saúde Reprodutiva, o South-to-South Cooperation in Reproductive health. O pro- fessor Elsimar é fundador e membro participante de várias sociedades médico-científicas e vem realizando conferências e eventos em todo o
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