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Vida & grafias
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Vida & grafias
Narrativas antropológicas, 
entre biografia e etnografia
Suely Kofes 
Daniela Manica 
(organização)
 
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Vida & grafias: narrativas antropológicas entre biografia e etnografia
Suely Kofes & Daniela Manica (organização)
© Lamparina editora
Revisão
Mariana Bard & Vinícius Melo
Projeto gráfico
Fernando Rodrigues
Proibida a reprodução, total ou parcial, por qualquer meio ou processo, seja repro-
gráfico, fotográfico, gráfico, microfilmagem etc. Estas proibições aplicam-se também 
às características gráficas e/ou editoriais.
Catalogação na fonte do Sindicato Nacional dos Editores de Livros
Lamparina editora
Rua Joaquim Silva 98 sala 201 Lapa
CEP 20241-110 Rio de Janeiro RJ Brasil
Tel/fax 21 2252 0247 21 2232 1768
www.lamparina.com.br lamparina@lamparina.com.br
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Sumário
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“Nunca se saberá como isto deve ser contado, se na primeira ou na 
segunda pessoa, usando a terceira do plural ou inventando constan-
temente formas que não servirão para nada. Se fosse possível dizer: 
eu viram subir a lua, ou: em mim nos dói o fundo dos olhos, e prin-
cipalmente assim: tu mulher louca eram as nuvens que continuam 
correndo diante de meus, teus seus nossos vossos seus rostos.”
(Julio Cortázar, “As babas do diabo”, As armas secretas, Rio de Janeiro: 
José Olympio, 2009, p.60)
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9
Prefácio
Skatografias – o caso do “pico”
Pedro Peixoto Ferreira
“Como quase tudo na vida, eles vêm e vão. Muitas vezes a busca os 
afasta, e o momento menos esperado é o propício para seu surgi-
mento. Em lugares improváveis, através de informação obtida com 
pessoas desconhecidas, graças a uma decisão errada de caminho. 
Enfim, o meio não importa aqui, e sim o fim, o objetivo, a desco-
berta. Você precisa de um lugar pra andar de skate, que seja novo, que 
renove as energias, que te dê motivo para chamar seus amigos. Você 
precisa de um pico e, mesmo que ele exista há anos, ele passa a ser ca-
rinhosamente chamado de ‘novo’ a partir da descoberta.” 
(Prieto, 2011, p.22) 
Em uma descrição sumária, um skate é uma prancha montada sobre 
dois eixos com duas rodas cada. Segundo uma das narrativas mais 
conhecidas da origem deste objeto, ele foi criado por surfistas na 
Califórnia, Estados Unidos, nos anos 1960, a partir de patins desmon-
tados. Reforçando sua origem norte-americana, no Brasil boa parte 
do vocabulário ligado ao skate é composto por palavras em inglês, in-
clusive os nomes dados à prancha do skate, chamada de “shape”, e aos 
eixos das rodas, chamados de “trucks”. A prática do skate consiste basi-
camente em manter-se equilibrado em pé sobre o shape, de preferência 
realizando diferentes tipos de manobras, enquanto o skate estiver em 
movimento sobre o chão ou sobre obstáculos. O skatista pode ser en-
tendido como um híbrido pessoa-skate, uma modificação do esquema 
corporal do skatista pela assimilação de um objeto que altera a sua 
relação com o ambiente. Pessoas se tornam skatistas ao alterarem sua 
relação com o ambiente por meio do skate. A ideia de uma alteração 
das relações entre um agente e seu meio pela introdução de uma nova 
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Vida & grafias10
mediação entre eles se inspira em proposições etnograficamente fun-
damentadas em Bateson (1975) e Gell (1980) a respeito do transe.
Diante da proposta de explorar diversas possibilidades gráficas 
incluídas nas relações entre etnografia e biografia, expressa no grupo 
de trabalho cujas discussões resultaram neste livro, nasceu o desejo 
de aproveitar a oportunidade para jogar luz sobre uma grafia ainda 
praticamente inexplorada nas ciências sociais, apesar de já bastante 
desenvolvida entre seus praticantes. Trata-se da “skatografia”, ou 
escrita do skate, que envolve tanto a dimensão indicial das marcas 
trocadas entre o skate, o corpo do skatista e os obstáculos, quanto a 
produção fotográfica, videográfica e textual de skatistas sobre skate. 
Atento à mídia impressa nacional de skate desde o final da década de 
1980, pude acompanhar algumas transformações do campo, assim 
como o amadurecimento de algumas imagens e discursos com-
partilhados. Entre essas imagens e discursos,¹ gostaria de explorar 
rapidamente aquilo que já chamei de “picologia”, a ciência dos picos 
(Ferreira, 2011), por considerá-la um valioso caso de conceito nativo 
complexo, elaborado e intrinsecamente ligado a práticas correspon-
dentes. Uma skatografia em pleno direito.
Picologia
Para um skatista, um “pico” é um lugar propício para a prática do 
skate, ou um lugar “skatável”. Nem todo lugar é propício para a 
prática do skate. Skates convencionais² não andam na maior parte 
das superfícies naturais (grama, areia, lama, água etc)³ e, mesmo nas 
construídas, as opções são limitadas por irregularidades dos pró-
prios materiais ou de sua montagem. Skateparks são picos artificiais, 
no sentido de terem sido construídos desde o início para a prática do 
skate. Assim sendo, no skatepark, quando uma rampa não tem a incli-
nação ideal ou o piso é irregular, isso indica falhas no projeto ou em 
sua execução e o skatista tem motivos para reclamar. Fora dos skate-
parks, no entanto, o skatista não encontra um ambiente construído 
1 Um caso de skatografia imagética pode ser encontrado na entrevista que fiz com o 
skatógrafo Renato Custódio (Ferreira, 2009).
2 Aqui, refiro-me àquilo que revistas e sites de skate chamam de “skates modernos”, 
surgidos nos anos 1990 e caracterizados por shape simétrico, sem distinção entre 
a parte da frente e a parte de trás, com dimensões próximas a 22 por 76 centíme-
tros e rodas de diâmetro próximas a 52 milímetros. Existem muitos outros tipos de 
skate menos utilizados do que os convencionais, voltados para terrenos específicos 
(skate para grama ou para terra) ou com dimensões muito diferentes (de miniskates a 
longboards).
3 Como bem expressou o skatógrafo Prieto: “Somos avessos a mato, grama, areia, 
água. Lidamos bem com o concreto, granito, mármore.” (2011, p.22)
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Prefácio11
para a prática do skate, mas sim um ambiente que ele precisa tornar 
“skatável”, seja pela criatividade e habilidade nas manobras, seja por 
modificações na própria estrutura física do espaço (untando bordas e 
superfícies com cera de vela, por exemplo, ou mesmo suavizando des-
níveis e transições com massas plásticas ou cimento). 
Fora dos skateparks, quando o skatista encontra um piso irregular 
ou uma rampa muito íngreme, ele não está diante de defeitos de 
projeto (pelo menos não no que se refere à prática do skate), mas, sim, 
de desafios a serem superados. Na rua, o skatista precisa subverter, 
desviar as funções dos objetos (Kasper, 2005), explorando a sua 
margem de indeterminação. Encontrei um bom exemplo de criati-
vidade e habilidade nas manobras na adequação ao pico na legenda 
para um “360 flip to fakie numa capela abandonada em Suzano 
(SP)”: 
“O que define o lugar para andar de skate? Se o mundo real oferece 
o mínimo de condições, é no campo da sua imaginação que os cami-
nhos se desenham, absorve-se o impacto das imperfeições, criam-se 
condições para fazer a manobra acontecer. Exercite sua mente. Se 
você acorda todo dia pensando em granilite, em breve o skate, pra 
você, será um pesadelo.” 
(Vianna, 2009, p.43) 
Um bom exemplo para a adequação do pico por modificações na 
própria estrutura física do espaço é a seguinte passagem do skatógrafo 
André Ferrer: 
“Claro que nem todos os picos são perfeitos, por isso saíamos com 
um verdadeiro arsenal de pedreiro (cimento, chapas de aço, pá, vas-
soura, madeiras, velas, massa plásticae afins), para corrigir as diversas 
imperfeições que dificultavam – e até impossibilitavam – a vida dos 
skatistas.” 
(Ferrer, 2009, p.111)
As soluções são tão engenhosas que a argumentação da seguinte 
legenda de fotos de um skatista descendo a pedra inclinada de uma 
cachoeira se torna plausível: “Algumas superfícies parecem ásperas 
demais. Outras, escorregadias demais. A inclinação pode apresentar-
-se demasiadamente íngreme. Nada que signifique terreno impróprio 
para skate.” (Vianna, 2009, p.38) 
Além dessas restrições espaciais, devemos elencar também impor-
tantes restrições de tipo temporal, ligadas a momentos mais ou menos 
propícios à prática do skate. Fábricas, centros comerciais, parques de 
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Vida & grafias12
diversão ou outros espaços amplos e de circulação podem se tornar 
picos privilegiados quando fechados e abandonados, apesar de serem 
proibidos ao skate quando em pleno funcionamento (e mesmo que não 
fossem proibidos, o volume de pessoas e atividades conflitantes com o 
skate dificultaria muito a sua prática). Um exemplo disso são as diversas 
fotos, publicadas em 2011, de manobras nos restos do Best Shopping 
em São Bernardo do Campo: “Quem nunca quis andar de skate dentro 
de um shopping center que atire a primeira pedra. Após a falência do 
Best Shopping, … os corredores foram palco de sessões memoráveis.” 
(Prieto, 2011, p.22) Espaços públicos (praças, calçadas, ruas, estaciona-
mentos, monumentos etc) são geralmente mais “skatáveis” de noite ou 
de madrugada, ou nos feriados e fins de semana, quando o volume de 
pessoas circulando é menor e o tipo de circulação é diferente. Ferrer 
expressou isso muito bem quando escreveu: “Um feriado … é um 
prato cheio para nós skatistas: cidades vazias, comércio fechado, se-
guranças de folga, pessoas à procura de descanso e nós à procura dos 
lugares!” (2009, p.111) Em países de inverno rigoroso, o frio pode ser 
uma restrição temporal ao skate noturno, e o inverso vale para países 
tropicais, onde o calor pode ser uma restrição para o skate durante o 
dia. Isso para não falar de como chuva, neve, vento e outros eventos es-
peciais podem transformar picos privilegiados em locais muito difíceis 
ou até impossíveis para a prática do skate. 
Por fim e sobretudo, as predisposições e preferências do skatista 
são parte fundamental da transformação de um espaço-tempo em um 
pico. Existem picos exclusivos, que só são acessíveis a poucos skatistas 
capazes de manobrar neles. Existem picos ocultos, que passam des-
percebidos pela maior parte dos skatistas. Existem picos concorridos, 
por motivos como localização e qualidade, e picos abandonados, por 
concorrência com atividades incompatíveis (comércio ambulante, 
criminalidade etc) ou por proibição pura e simples. Assim, diferente-
mente dos skateparks, que são picos by design, propícios por princípio 
à prática do skate, em todo o seu espaço e em todo o seu horário de 
funcionamento, os picos urbanos têm geralmente restrições espaço-
temporais ligadas à circulação de carros e a diversos outros tipos de 
veículos, transeuntes e moradores de rua, e à presença de objetos va-
riados, como mercadorias e lixo. 
Sarjetas, escadas, muretas, paredes, bloqueios, rampas e tudo 
7 Em carta publicada na revista Cemporcento Skate, um skatista solicita a compreensão 
dos arquitetos: “Os arquitetos que não briguem comigo, pois sei que os objetivos pelos 
quais eles criam tantos monumentos, prédios, corrimãos, escadarias, marquises, can-
teiros, chafarizes e outras coisas fantásticas nas nossas ruas, casas, praças e empresas 
não é para que nós, skatistas, os pulemos, deslizemos ou façamos outras coisas com 
nossos skates. Mas é inevitável.” (Martins, 2011, p.108)
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Prefácio13
mais que o skatista encontra em seu caminho não foram construídos 
para a prática do skate,⁷ mas são transformados, pragmaticamente 
e em acordo com um certo Umwelt-skatista (conforme Uexküll, 
2001), em obstáculos. Para skatistas, obstáculos não são objetos que 
impedem a passagem, mas objetos que motivam e estimulam uma 
espécie de “ultra”passagem: “Life is fool [sic] of obstacles. Overpass.” 
(Black Sheep, 2011, p.5) Muito longe de buscar minimizar o dispêndio 
de energia, optando por caminhos que ofereçam menor resistência, 
o skatista busca o teste da resistência, busca uma espécie de mais-
-valia energética a partir do seu dispêndio desejante. O skatista não 
evita obstáculos, ele os busca ativamente, chega a construí-los, não 
por querer superá-los, subjugá-los, derrotá-los, mas porque quer ma-
nobrá-los, experimentar uma coreografia transumana na qual skatista 
e obstáculo trocam propriedades, inscrições e disposições, alternando 
atividade e passividade em um contraponto tão delicado quanto forte 
e necessário. Nada além das leis da física, mas transformadas enge-
nhosamente nas regras de um jogo que se quer jogar.
Isso fica particularmente claro no seguinte caso, contado pelo 
skatógrafo Ivan Cruz: “Em um dia como todos os outros, os skatistas 
… circulavam pela cidade à procura de picos. Neste dia comum, 
algo incomum chamou a atenção dos dois amigos … Eles avistaram 
um galpão, um imenso galpão.” Após relatar as sessões de skate que 
ocorreram no galpão, ele conclui com a expressão que deu título 
à reportagem: “Tinha um galpão na beira da estrada, na beira da 
estrada tinha um galpão.” (Cruz, 2011, p.61) Se a pedra “no meio do 
caminho” de Drummond era um obstáculo, o galpão também o é, 
mas no sentido propriamente skatista de estímulo ativamente buscado. 
“Esse é o desafio das pessoas. Usar os obstáculos para evoluir como 
indivíduos, para fortalecer o coletivo.” (Prieto, 2008, p.110)
Um obstáculo pode ser entendido como um conjunto de bordas 
e superfícies. Um banco de praça, uma mureta ou uma fachada se 
tornam composições de bordas e superfícies que convidam à in-
teração, que propõem desafios, que atraem skatistas. A bordas e 
superfícies correspondem atitudes corporais do skatista, sendo elas 
variáveis norteadoras de suas relações com o meio. Nas bordas, o 
skatista pode deslizar ou bater os eixos dos trucks (isto é, executar um 
grind) ou alguma parte do shape (tail, nose⁹ ou a parte entre os eixos). Ele 
também pode “dropar” (do inglês, “to drop”), isto é, despencar a partir 
9 O nose [nariz] do shape é a sua extremidade dianteira e o tail [rabo] é sua parte tra-
seira. Atualmente, nos skates convencionais, mesmo quando essa diferença não é mais 
objetivada em formas ou dimensões diferentes das partes dianteira e traseira do shape 
(como era mais comum nos anos 1980), a distinção ainda importa na classificação de 
manobras, em suas variações nose e tail (por exemplo, tailslide e noseslide).
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Vida & grafias14
da borda, ou utilizar a borda como apoio em manobras de transição, 
como handplants e footplants, que envolvem apoiar o corpo sobre um pé 
ou as mãos durante uma fração de segundos. Nas superfícies, o ska-
tista se desloca e manobra livremente, tendo de lidar com apenas duas 
variáveis: textura e inclinação. Quanto à textura, o ideal é que seja 
lisa o suficiente para eliminar a trepidação e o bloqueio das rodas ou 
do truck, mas áspera o bastante para garantir a aderência das rodas, 
necessária ao controle de direção e velocidade. Quanto à inclinação, 
o skatista naturalmente acelera quando desce um plano inclinado, 
sendo tal aceleração proporcional à inclinação.
Assim, podemos dizer, em uma proposição causal de base 
comportamental, que o pico é um conjunto de obstáculos (bordas 
e superfícies) que atrai skatistas (pessoas com skates). Mas também 
podemos dizer, em uma proposição mais reticular e intuitiva, que o 
pico é a produção local e contingente de skatistas e obstáculos a partir 
de encontros felizes entre as capacidades, desejos e predisposições 
de seus elementos constituintes (rodas, trucks, shapes, pessoas, bordas, 
superfícies,relevos, mas também seguranças, transeuntes, policiais, 
proprietários de imóveis, crianças, mendigos, drogados, pedras por-
tuguesas, pedrinhas pequenas, buracos, mármore, cimento, degraus, 
corrimãos, bancos, sarjetas, automóveis, terra, chuva, água, frio, 
calor, sol etc). Em um caso, o pico é o efeito do encontro de skatistas 
e obstáculos; no outro, skatistas e obstáculos são o resultado de um 
encontro de seus elementos constitutivos na forma de um pico. Em 
ambos os casos (e em tantos outros possíveis), o que se diz é que o pico 
é uma ocasião privilegiada para o skatista manobrar seu skate e, assim, 
tornar-se mais uma vez skatista: transformar obstáculos em motivos 
e motivações para sair de seu estado atual, transformar-se, devir. Em 
tempos de esvaziamento do espaço-tempo público, a picologia bem 
poderia inspirar estratégias de ocupação criativa e desejante, positi-
vando obstáculos e liberando potências.
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Prefácio15
Referências
Gregory Bateson, “Some components of socialization for trance”, Ethos, v.3, n.2, 
p.143–55, 1975 
Black Sheep, “Anúncio”, Tribo Skate, n.189, p.4–5, 2011
Ivan Cruz, “Tinha um galpão na beira da estrada… na beira da estrada tinha um 
galpão”, Cemporcento Skate, n.160, p.58–67, 2011
Pedro Peixoto Ferreira, “Conversa com o skatógrafo Renato Custódio”, 2009, 
disponível em http://pedropeixotoferreira.wordpress.com/2009/06/15/
conversa-com-o-skatografo-renato-custodio/
–, “Picologia: pensando a reticulação do meio urbano pelo skate”, palestra pro-
ferida na mesa Corpo e Técnica na Teoria Social, 3 Reunião de Antropologia da 
Ciência e da Tecnologia, Brasília: DAN/UNB, 2011
André Ferrer, “Um pico nunca dantes visitado”, Cemporcento Skate, n.135, p.110–111, 
2009
Alfred Gell, “The gods at play: vertigo and possession in Muria religion”, Man, v.15, 
n.2, p.219–248, 1980
Guto Jimenez, “Skateboarding militant: Um mundo sem skate?!”, Tribo Skate, n.190, 
p.108, 2011
Christian P Kasper, “Desviando funções”, Nada, n.5, p.72–77, 2005
Carlos S Martins, “Caixa de entrada: Goethe, arquitetura e skate”, Cemporcento Skate, 
n.162, p.108, 2011
Douglas Prieto, “O desafio das pessoas”, Cemporcento Skate, n.121, p.110, 2008
–, “Calçada: a busca”, Cemporcento Skate, n.162, p.22, 2011
Jakob V Uexküll, “An introduction to Umwelt”, Semiotica, n.134, p.107–110, 2001
Alexandre Vianna, Renato Custódio, Eduardo Braz, Atila Choppa & André Ferrer, 
“Ande de skate aqui”, Cemporcento Skate, n.135, p.36–47, 2009
Pedro Peixoto Ferreira é professor do Departamento de Sociologia do IFCh-UNI-
CAMP, coordenador do Grupo de Pesquisa CTEME e do Laboratório de Sociologia 
dos Processos de Associação, desenvolvendo pesquisas na área da socioantropologia da 
ciência e da tecnologia.
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16
Apresentação
Suely Kofes & Daniela Manica
Durante alguns anos, enfrentamos o desafio de compreender o es-
tatuto das narrativas biográficas na antropologia, insatisfeitas com 
algumas dicotomias (indivíduo/sociedade, subjetivo/objetivo, entre 
outras), com algumas resoluções (campo/trajetória, por exemplo) e 
com o uso apenas instrumental das histórias de vida nas etnografias 
antropológicas. Parecia-nos ainda que muitas das discussões sobre et-
nografia eram análogas a muitas outras que fazíamos sobre biografia. 
Em publicações anteriores, uma de nós já havia proposto o uso de 
etnografia de uma experiência (Kofes, 2001) e de etnobiografia como pala-
vras valises para sugerir que uma narrativa biográfica poderia ser, ela 
própria, uma narrativa etnográfica (Kofes, 2004; esse tema também é 
discutido em Gonçalves, Marques & Cardoso, 2012) – ambas noções 
parciais. A outra de nós, assim como muitos dos autores cujos artigos 
compõem este livro, experimentou em sua tese de doutorado uma 
abordagem etnográfica a partir de diversas narrativas de cunho bio-
gráfico, isto é, das várias escritas que tomavam como foco a vida 
profissional de uma pessoa, esta anunciada como cientista: autobio-
grafia, memorial, curriculum vitae, dossiê (Manica, 2009).
Foi o interesse pela riqueza das relações entre experiências, 
grafias e a escrita antropológica que nos levou a organizar, durante a 
28ª Reunião da Associação Brasileira de Antropologia, um grupo de 
trabalho sobre o tema “Etnografia e biografia na antropologia: expe-
riências com as diversas ‘grafias’ sobre a vida social”. A chamada para 
resumos propunha as seguintes questões:
“Sobre a não tão nova – aliás, recorrente – discussão sobre a relação 
entre antropologia e etnografia, Tim Ingold (2008) diz que antro-
pologia deve ser uma indagação sobre as condições e possibilidades 
da vida humana no mundo (que, como antropólogos, também habi-
tamos), não um estudo autocentrado sobre como se escreve etnografia 
ou sobre o problema reflexivo de como se passa da observação à des-
crição. Essa ‘experiência de habitação’, tal como proposta pelo autor, 
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Apresentação17
não resolve, contudo, os desafios de como lidar com a questão da 
escrita no ofício antropológico. Propomos este grupo de trabalho para 
estimular a apresentação de reflexões sobre a experiência de pesquisa 
e os desafios da ‘grafia’ em antropologia. Menos do que uma questão 
de método, trata-se de submeter a imaginação antropológica à dis-
cussão sobre as dificuldades conceituais e práticas envolvidas no uso 
de narrativas biográficas e/ou etnográficas. Serão acolhidas propostas 
que procurem refletir sobre esse uso e seus efeitos na antropologia 
contemporânea, seja pelos meios mais convencionais, como os textos 
(auto)biográficos, seja quando incorporamos em sua ‘grafia’ objetos 
como agentes sociais, passíveis de serem localizados a partir de nar-
rativas que levem em conta sua existência social. Assim, pretendemos 
sobretudo promover discussões sobre a perspectiva antropológica 
acerca de imagens e sons (foto[bio]grafias, vídeos, músicas), artefatos e 
objetos sociotécnicos.”
A proposta fundamentava-se na ideia de pensar coletivamente sobre 
os desafios relacionados à questão da escrita no ofício antropológico, 
sobretudo quando envolvendo as relações com “bio”grafias. Tratava-
-se, então, de trazer para o debate algumas das principais questões 
que trabalhamos em experiências anteriores e diversas de pesquisa, 
esperando, contudo, explorar e amplificar desdobramentos possíveis 
da ideia de “grafia”.
Pensamos ser importante contribuir para um enfrentamento das 
questões que surgem da tentativa de relacionar criticamente essas 
duas modalidades de grafia, “etno” e “bio”, e seus pressupostos. 
E, mais do que isso, abarcar a multiplicidade gráfica possibilitada 
por combinações diversas entre radicais que antecedem a grafia 
(“etno”/“bio”, “foto”/“bio”, “carto”, “antropo” etc). Ou seja, 
pensar também outros registros e formas de inscrição – como as 
imagens, os sons, as coisas, seus rastros e (re)composições, sobretudo 
(mas não apenas) quando articulados às questões de alteridade e 
individuação, e à escrita antropológica. Em certo sentido, nosso pres-
suposto e horizonte era também de que as próprias noções de vida, 
“indivíduo”/“pessoa”, anthropos/ethnos, podem ser ampliadas e tensio-
nadas ao se pensar vidas e grafias na antropologia.
A qualidade e a heterogeneidade das pesquisas dos textos que 
selecionamos para o grupo de trabalho bem como as contribuições 
trazidas por seus debatedores alimentaram nosso desejo de dar visibi-
lidade às questões ali colocadas. Assim, este livro reúne um conjunto 
bastante diverso de trabalhos em termos de temática e perspectiva, 
trabalhos que vão do enfoque biográfico sobre autores relevantes para 
as humanidades (como Nimuendaju, Roy Wagner, Michel Leiris e 
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Vida & grafias18
Boris Fausto) a temáticas talvez menos óbvias (trabalho doméstico, 
música, laudos jurídicos, carreiras artísticas e científicas, neona-
zismo, cidades e lugares), explorandotambém a dimensão narrativa 
das grafias sobre a vida em suas diversas derivações (fotobiografias, 
autobiografias, cartografias).
Com esse gesto, nossa intenção é compartilhar a experiência 
dos três dias de discussão intensa e estimulante tratando do tema 
sugerido. O primeiro texto, “Narrativas biográficas: que tipo de 
antropologia isso pode ser?”, pretende-se uma introdução, convida 
a uma mudança do valor usualmente atribuído às narrativas de 
vida na antropologia, em extensão e positividade. As contribuições 
que se seguem, com seus experimentos variados, contribuem para 
assinalar positivamente essa mudança de valor, conceitualmente e 
etnograficamente.
Convidamos o leitor a testar esta nossa afirmação.
Referências
Marco Antonio Gonçalves, Roberto Marques & Vânia Z Cardoso (organização), Et-
nobiografia: subjetivação e etnografia, Rio de Janeiro: 7Letras, 2012
Suely Kofes, Uma trajetória, em narrativas, Campinas: Mercado de Letras, 2001
–, “Apresentação”, Cadernos do ifCh, n.31, p.5–16, Campinas: IFCh/UNICAMP, 
2004 
Daniela Manica, “Contracepção, natureza e cultura: embates e sentidos na et-
nografia de uma trajetória”, tese de doutorado em Antropologia Social, 
Campinas: IFCh/UNICAMP, 2009
Timothy Ingold, “Anthropology is not ethnography”, British Academy Review, n.11, 
p.21–23, julho de 2008, disponível em http://www.britac.ac.uk/events/2007/
Anthropology_is_-not_-Ethnography.cfm, acesso em 15 de janeiro de 2015
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Apresentação19
Suely Kofes é antropóloga, professora titular no Departamento de Antropologia do 
IFCh/UNICAMP, como professora e pesquisadora. Suas pesquisas antropológicas 
preocupam-se com a experimentação etnográfica, com pesquisas sobre temas distintos 
e em campos etnográficos distintos. Atua nas seguintes linhas de pesquisa: etnografia 
e a perspectiva biográfica; experiência e narrativa; antropologia, processos de diferen-
ciação e reconhecimentos identitários (diferença e identidade); temas concernentes ao 
campo dos estudos sobre raça e gênero; ritual, cosmologia, associativismo e política. 
É uma das coordenadoras do LA’GRIMA (Laboratório Antropológico de Grafia e 
Imagem), recém-criado no Departamento de Antropologia do IFCh/UNICAMP.
Daniela Tonelli Manica é professora no Departamento de Antropologia Cultural do 
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. Mestre e doutora em Antropologia 
Social pelo IFCh/UNICAMP, participa do Grupo de Estudos em Antropologia da 
Ciência e Tecnologia (GEACT) e cocoordena o Laboratório de Etnografias e Inter-
faces do Conhecimento (LEIC), do IFCS/UFRJ.
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20
Narrativas biográficas: 
que tipo de antropologia 
isso pode ser?
Suely Kofes
É com alegria e certo temor que nos reunimos para discutir o lugar da 
biografia na antropologia, pois é também disso que trata o título deste 
livro e deste capítulo de abertura.
Se história de vida é uma técnica de pesquisa antropológica 
já consagrada e que, inclusive, tem existência reconhecida como 
método, como “documentos de vida” (uma variação dos chamados 
“métodos qualitativos”), biografia e autobiografia parecem tensionar 
os supostos antropológicos. Isso se deve, em primeiro lugar, ao fato 
de que tais supostos estariam ancorados em conceitos como socie-
dade, cultura, estrutura – totalidades, mais concretas ou abstratas – e no 
compromisso com o horizonte da comparação, da generalização ou 
do universalismo, embora esse horizonte seja mais um tema de con-
trovérsia do que um objetivo compartilhado. A particularidade – em 
uma de suas formas, a etnografia – também é reconhecida ora como 
um fim em si mesma, ora apenas como parte do objetivo compara-
tivo. Em segundo lugar, ligado ao primeiro, a resistência à biografia 
deve-se ainda a uma confusão semântica e conceitual. Biografia e 
autobiografia teriam como referência a vida – parte constitutiva da 
etimologia dessas palavras, ou seja, grafia da vida, grafia da minha 
vida –, mas um malabarismo semântico terminou por conotar o 
termo “vida” com o significado de indivíduo. Esse me parece um nó 
conceitual que precisaríamos analisar. Assim, embora muito breve e 
provisoriamente, pretendo formular algumas reflexões sobre isso.
Essa discussão não pode ignorar que, no âmbito da antropologia 
estadunidense, biografia, autobiografia e história de vida foram (ainda 
o são?) mais reconhecidas. Isso apesar das restrições boasianas: 
“Um dos métodos utilizados para superar essas dificuldades é induzir 
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Narrativas biográficas21
os nativos a escreverem ou narrarem autobiografias. Os melhores re-
sultados desse método nos dão valiosas informações a respeito das 
lutas de todos os dias, da vida e das alegrias e tristezas do povo, mas 
a sua confiabilidade, fora alguns pontos muito elementares, é duvi-
dosa. Eles não são fatos, mas memórias, e memórias distorcidas pelos 
desejos e pensamentos do momento.” 
(Boas, 1943, p.334, tradução livre) 
Para Boas, quando o antropólogo quer compreender as reações indi-
viduais às normas culturais, a observação do que fazem e dizem é o 
método adequado. A distinção entre observar e ouvir narrativas, no 
trecho acima citado, aparece como a distinção entre memória e fato. 
Ora, essa distinção problematiza a importância dada ao relato indí-
gena quando é o próprio antropólogo que o torna fato. Isto é, parece 
dizer que o relato de alguém pode ser considerado como fato, uma 
vez que esse alguém seja categorizado como informante. Entretanto, 
esse mesmo relato desse alguém, se referenciado como uma narrativa 
sobre si mesmo, torna-se memória. 
Eu mesma, ao etnografar a relação entre patroa e empregada 
doméstica, usei falas cortadas de pessoas distintas para compor um 
discurso geral, mas tomei algumas delas em sua sequência narrativa 
singular como narrativa de vida. Assim, trechos de uma narrativa 
compunham um discurso geral (como fato, informação, portanto), 
mas, quando recolocados em sua integralidade narrativa, compu-
nham uma evocação, reflexão – embora seja preciso ressaltar que eu 
as considerei como contendo “fato” e “memória”, tomando-as simul-
taneamente enquanto discurso e narrativa, ou enquanto discurso e 
estória, evocação e informação.
A biografia não é (ou ainda não é) uma prática antropológica do 
mesmo estatuto que a etnografia, por exemplo. Ocasional e experi-
mental, encontramos a sua “defesa”, digamos assim, até onde menos 
poderíamos pensar encontrá-la. Pois (e, talvez, por isso) não é isso o 
que parece querer dizer Lévi-Strauss em seu prefácio à edição fran-
cesa de Soleil hopi? 
“A narrativa que ele nos oferece contém em si mesma um valor psico-
lógico e romântico. Ao etnólogo, ele traz uma riqueza de informações 
sobre uma sociedade ainda pouco conhecida. Mas, acima de tudo, 
a história de Talayesva realiza, com facilidade e graça, o que o et-
nólogo sonha durante toda a sua vida obter sem nunca o conseguir 
plenamente: a restituição de uma cultura ‘de dentro’, tal como vivida 
quando criança e depois como adulto. Um pouco como se, arqueó-
logos do presente, nós desenterrássemos as disjuntas pérolas de um 
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Vida & grafias22
colar para, de repente, percebermos as contas atadas em sua primitiva 
disposição, em torno do jovem pescoço ao qual foram um dia desti-
nadas a adornar.”
(Lévi-Strauss, 1982, tradução livre)
Talvez eu não devesse dizer que seria onde menos se esperava encon-
trar uma “defesa” do biográfico, afinal, o que diz Lévi-Strauss é mais 
um exemplo do seu pensamento analítico. Tomemos literalmente, 
embora o autor esteja falando metaforicamente: reconhecer a pessoa 
particular, concreta, literalmente a que usa o colar, não seria incompa-
tível; pelo contrário, seria necessário ao conhecimento de um sistema 
de ornamentos, se fosse o caso de empreendê-lo. Mas, de outro ponto 
de vista, também não seria surpreendente encontrar Lévi-Strauss 
ressaltandocomo importante na narrativa de Talayesva a “cultura 
enunciada de dentro”. 
Dumont, que não abre mão da totalidade (considerada mais en-
quanto conjunto, enquanto uma configuração passível de comparação 
com distinta configuração, e não enquanto uma sociedade como um 
todo), faz distinção entre o “indivíduo empírico” e o “indivíduo como 
valor”. Mas, na convenção que atribui consubstancialidade entre 
biografia e indivíduo, a perspectiva biográfica não iria ao encontro da 
noção de indivíduo como valor: considera-se que a biografia focaliza 
um indivíduo empírico, embora o próprio suposto da biografia como 
a escrita de um indivíduo seja ela própria efeito da ideologia do indi-
víduo como valor. 
Contribuições antropológicas mais recentes têm contestado a efi-
cácia conceitual da dicotomia indivíduo e sociedade, criticam a sociedade 
concebida como totalidade inter-relacionada, como todo ou como 
soma das partes, e, principalmente, o que essa concepção engendra: o 
indivíduo como entidade natural, anterior, moldável à imagem de um 
ideal coletivo. Strathern (1996 e 2014) sugere, inclusive, um vocabu-
lário alternativo à dicotomia entre sociedade e indivíduo ou todo e partes: 
os conceitos de socialidade e dividual, um vocabulário que permitiria ex-
pressar pessoas particulares que são constituídas de relacionamentos e 
ao mesmo tempo os engendram. 
Se levarmos em conta essas contribuições, em um exercício de 
justapor aparentes antinomias, talvez possamos abrir sem embaraço 
um lugar para biografia e autobiografia no campo antropológico. Mas 
quais seriam os efeitos de se atribuir à biografia um lugar e um status 
equivalente ao da etnografia na antropologia? 
Se na relação da etnografia com a antropologia ainda encon-
tramos um campo de discussão que opera a clássica distinção entre 
o particular e o geral, nomotético e ideográfico, pesquisa e teoria, a 
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Narrativas biográficas23
controvérsia só é possível porque a etnografia já tem o seu lugar le-
gitimado na antropologia. Lugar sujeito à discussão, como mostra a 
recente proposição de Tim Ingold, que, ao afirmar que a etnografia 
não é antropologia, parece estender à segunda algumas das quali-
dades da primeira. 
No caso das narrativas biográficas, o terreno é mais arredio, 
pois, retomando uma afirmação do início, é como se houvesse uma 
antinomia insuperável entre a ordem do antropológico e a ordem do 
biográfico, na medida em que a escrita de uma experiência, de uma 
vida, é compreendida como o que ela não é ou não precisa ser: a 
escrita sobre um indivíduo. 
Ao resenhar algumas histórias de vida, Crapanzano já comentava 
o desconforto da antropologia acadêmica com narrativas biográficas, 
desconforto que, acrescentemos, expressaria a oscilação da antropo-
logia com a dimensão da narrativa e a oscilação de si mesma como 
literatura ou ciência. Talvez porque essa dimensão narrativa seja ine-
rente à historiografia, esta parece ter resolvido melhor a sua relação 
com a biografia.
Ao discutir os conceitos de estrutura e função, vale lembrar o 
suposto de Radcliffe-Brown: 
“No estudo da estrutura social, a realidade concreta de que estamos 
tratando é uma série de relações realmente existentes, em dado espaço 
de tempo, que agrupa certos seres humanos. É nisto que podemos 
fazer observações diretas. Mas, não é isto que pretendo descrever 
em sua particularidade. A ciência diferentemente da história (ou da 
biografia) não se interessa pelo particular, peculiar, mas apenas pelo 
geral, pelas espécies, pelos fatos que se repetem. As relações concretas 
de Antonio, João e Pedro, ou a conduta de Manuel e José, podem ser 
lançadas em nossos apontamentos e servir de exemplificação para 
uma descrição geral. Mas o que precisamos para fins científicos é um 
balanço da forma da estrutura.” 
(Radcliffe-Brown, 1952, p.192, tradução livre)
No argumento de Radcliffe-Brown, aparecem como equivalentes a 
noção de generalização e a de constante. Assim, as particularidades, en-
quanto variantes que se deveriam levar em conta, mas das quais se 
deveria abstrair, seriam da ordem do geral e do que é constante – isto 
é, para Radcliffe-Brown, regulares.
Nesse mesmo autor, relacionada a essa concepção de estrutura 
social, estaria a de personalidade social. Ao considerar que todo ser 
humano é indivíduo e pessoa, seria preciso distinguir indivíduo 
(organismo biológico) de pessoa (complexo de relacionamentos pes-
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Vida & grafias24
soais). Para Radcliffe-Brown, o primeiro é assunto da psicologia, e o 
segundo, da antropologia, porque é no segundo que podemos abstrair 
o conjunto dos relacionamentos sociais. Mas é no seu exemplo que 
compreendemos melhor como se complica o argumento de que, se 
Deus são três pessoas, seria heresia considerá-lo como três indivíduos. 
Radcliffe-Brown não leva em conta um procedimento analítico ne-
cessário para compreender a noção cristã de Deus, procedimento, 
aliás, operado pela própria concepção que lhe serve de exemplo. Pois 
a razão analítica não é aquela que não recorta o real em partes, mas a 
que o apreende como um conjunto de totalidades decomponíveis.
 Mesmo quando se faz a equivalência entre biografia e o indi-
víduo, nota-se que o que as narrativas biográficas fazem é constituí-lo 
ou não. Mas não há uma correlação natural entre biografia e indi-
víduo, e nem sequer há consenso sobre a natureza do segundo.
 Portanto, torna-se necessário distinguir pelo menos duas ma-
neiras de incluir as narrativas biográficas e autobiográficas no campo 
antropológico: uma, tomando as biografias e autobiografias conven-
cionais como objeto; outra, inventando um conceito que dê conta 
do que, em um trabalho anterior, considerei partir de uma intenção 
biográfica para fazer dela uma narrativa etnográfica (Kofes, 2001). 
Desse último ponto de vista, explorar as narrativas biográficas que 
tensamente ocupam o campo da antropologia é um trabalho con-
ceitual necessário. É essa a intenção deste capítulo, em que focalizo 
narrativas biográficas escritas por dois antropólogos. 
Contraponto: 
duas experiências de dois antropólogos, 
material heteróclito para uma 
reflexão antropológica sobre biografias 
(ou “histórias de vida”)
“Você é o primeiro Navaho que eu conheço. Muito do que eu aprendi 
com os Navaho foi com você. Agora sou professor. Meu trabalho 
é contar para as pessoas lá no leste sobre os índios daqui do Novo 
México e do Arizona, especialmente os Navaho. Eu quero contar 
para elas coisas verdadeiras, não mentiras. Eu preciso da sua ajuda. 
Quero contar a elas sobre como os Navaho vivem. Você viveu muito, 
viu muitas coisas. Aqui, você foi chefe por muitos anos e eu sei que 
os Navaho acreditam que o que você diz é o certo. Assim, eu gostaria 
que você me falasse sobre sua vida, desde o começo. Eu quero ouvir 
tudo de que você se lembra e do jeito que vier à sua cabeça. Eu sei 
que isso será um trabalho duro para você e que você tem outras coisas 
para fazer. Então, para cada dia em que você trabalhar me contando 
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Narrativas biográficas25
sobre sua vida, eu vou lhe pagar dois dólares. Você pode fazer isso 
para mim?” 
(Kluckhohn, 1945, tradução livre)
Foi assim, conforme relata Clyde Kluckhohn, que ele pediu ao mr 
Moustache – por meio de um intérprete,¹ e em seu primeiro encontro 
como etnólogo entre os Navaho, embora já se conhecessem há alguns 
anos² – para lhe contar a sua vida.³ Na fala do antropólogo, vemos a 
ênfase posta na verdade dos fatos narrados e o suposto de que a his-
tória de vida de mr Moustache – contada desde o começo, como foi 
pedido – diria sobre como os Navaho vivem. Ou seja, vemos aqui 
explicitada a concepção da narrativa da história de vida como um 
documento etnográfico. Ao pedir ao narrador que ele contasse a sua 
vida desde o começo e que ele a contasse conforme o fluxo de suas 
lembranças, Kluckhohn inaugura um uso da história devida na pes-
quisa antropológica com um jogo de alteridade bastante sutil: a vida 
teria um começo (conforme a concepção cultural do antropólogo), 
mas esse começo variaria (conforme as concepções culturais distintas). 
O pressuposto que orienta Kluckhohn na análise da narrativa de 
mr Moustache indica uma importante disjunção entre uma tradição 
antropológica no uso de histórias de vida (a mesma crítica ao que 
ele designa como “ilusão biográfica”). Talvez eu possa ser criticada 
pela imprecisão ao referir-me a uma “tradição antropológica” de 
uso das narrativas biográficas e/ou das histórias de vida. Pois, que 
tradição seria esta se falta vigor e persistência deste uso mesmo na 
antropologia estadinudense? Além de que boa parte dos antropólogos, 
estadunidenses ou não, seja ambivalente sobre o seu uso, quando 
não diretamente crítica. Ainda que – um paradoxo? – a pesquisa 
antropológica dependa dos “documentos pessoais” – expressão con-
vencionada pelos metodólogos estadunidenses e à qual Kluckhohn 
adere – para comporem etnografias e formularem generalizações. 
Distintas interpretações (ou mal-entendidos) são constituintes da 
pesquisa etnográfica. Nesse caso específico, Kluckhohn considerou 
1 “Frank Pino, o intérprete. Ele tinha cerca de 40 anos de idade e era um sobrinho 
sororal de mr Moustache. Ele estudara até a oitava série na escola indígena em Albu-
querque e era um dos três índios desta comunidade que tinha conhecimento suficiente 
de inglês para poder atuar como intérprete. Apesar de ter trabalhado durante vários 
anos na loja de comércio local, sua capacidade como tradutor era bastante limitada.” 
(Kluckhohn, 1945, p.266, tradução livre)
2 “Minha abordagem com o pedido de que ele me contasse sobre sua vida não foi 
apenas a primeira vez em que eu falei com ele como etnólogo, mas também o primeiro 
dia em que eu fiz trabalho de campo etnológico formal entre os Navaho.” (Kluckhohn, 
1945, p.265, tradução livre)
3 “Mr Moustache é a tradução literal do nome pelo qual os Navaho dessa região fre-
quentemente o chamam.” (Kluckhohn, 1945, p.263, tradução livre)
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Vida & grafias26
a entrevista como trabalho a ser remunerado e, na resposta de mr 
Moustache, encontramos outra interpretação ou um mal-entendido: 
“Você está certo no que diz. Somos amigos desde que você era apenas 
um menino. Você sempre foi bom para Navajos e fez o que é certo. 
Eu quero ajudá-lo, mas eu tenho que ter certeza de que estará tudo 
bem para o povo se eu falar com você. Ultimamente, como nós 
temos esse novo comissário indígena, o governo tem enviado algumas 
pessoas brancas aqui para nos fazer perguntas. Em seguida, eles co-
meçaram a tomar as nossas ovelhas e cabras. As pessoas não gostam 
disso. Você vai dizer a Washington tudo o que eu lhe disser?”
(Kluckhohn, 1945, p.265, tradução livre) 
O que o antropólogo interpretava como trabalho a ser remunerado 
(tempo investido), mr Moustache considerava como política (a relação 
entre os Navaho, os “brancos” e Washington, isto é, o governo dos 
Estados Unidos). O diálogo continuou (Kluckhohn, 1945, p.266, tra-
dução livre): 
Kluckhohn: “Eu lhe asseguro que eu não tenho qualquer ligação com 
‘Washington’.”
Mr Moustache: “Eu não sei exatamente por que você quer saber essas 
coisas. Algumas coisas são para os índios e algumas coisas são para os 
brancos.”
Kluckhohn: “Nas escolas que construímos para os seus filhos, ten-
tamos ensinar-lhes o que nós descobrimos sobre como conviver. 
Alguns de nós pensam que, talvez, vocês índios tenham aprendido 
coisas que também nos ajudariam. É por isso que eu vim.”
Mr Moustache: “Tudo bem. O que você quer que eu lhe diga 
primeiro?”
Kluckhohn: “As primeiras coisas que você lembra de sua vida, comece 
aí e continue até o presente momento. Eu não lhe farei mais per-
guntas depois que você começar. O que eu quero é que, por conta 
própria, você vá contando exatamente como as coisas vêm à sua 
mente.”
Talvez, mesmo perguntando ao antropólogo o que ele queria que ele 
falasse primeiro, mr Moustache tenha mantido a sua intenção original 
e o seu relato de vida seja uma narrativa política da tradição navaho. 
Mr Moustache não começa o seu relato pelo seu nascimento, mas as-
sinalando que nunca viajara quando criança e que permanecera em 
sua terra, trabalhando, ao contrário do que aconteceria atualmente 
com as crianças, que hoje vão onde querem: 
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Narrativas biográficas27
“Eu nunca fui a lugar nenhum quando eu era menino. Meus pais não 
me deixavam sair por aí. Fizeram-me trabalhar, buscando madeira e 
coisas assim. Eu sempre ficava em casa. Agora as crianças vão aonde 
querem. Esses jovens Navajos daqui não sabem de nada. Eu sou o 
único velho Navajo que restou. Logo estarei morto.”
(Kluckhohn, 1945, p.267, tradução livre)
Na análise do relato, primeiramente, Kluckhohn chama a atenção 
para a dificuldade de considerá-lo como uma autobiografia⁴ (mas 
por que é preciso uma definição e a procura de sua correspondência 
em um real?) pelos poucos eventos e pessoas mencionados. Só o pai 
foi mencionado (aliás, o foi muitas vezes). O que mr Moustache falou 
estaria mais para “um tipo de homilia filosófica do que propriamente 
para uma história de vida” (Kluckhohn, 1945, p.273, tradução livre), 
comentaria o antropólogo, ressaltando que possivelmente essa carac-
terística estaria no próprio contexto do entrevistado, que era um chefe 
e, portanto, estava acostumado a ser procurado para dar conselhos. 
Ora, isso teria se dado, principalmente, porque o antropólogo não 
interrompera a narrativa de mr Moustache nem lhe dera esquemas 
cronológicos. Assim, o que foi escolhido pelo narrador foi o que ele 
considerou significativo em sua vida para a resposta ao que o antro-
pólogo havia lhe pedido. Estaria exatamente aí o valor do relato como 
documento significativo. É como Kluckhohn vai analisá-lo, como um 
relato singular e como um documento cultural, isto é, as relevâncias 
foram aquelas da perspectiva Navaho e não a que teria lhe dado o an-
tropólogo. O que eu entendo como um documento etnográfico ou, 
como talvez dissesse Ingold (2007), um documento antropológico, do-
cumento etnográfico/antropológico que, notemos, se caracteriza pela 
cronologia e sequência de eventos, e com referência a pessoas con-
textualizadas, seja por relações mais imediatas, seja por linhas mais 
significativas. No caso do Navaho, tratou-se da referência ancestral ao 
seu pai. Um ponto de vista Navaho diante de um estrangeiro também 
explicaria algumas omissões de conteúdo. Comparando a narrativa de 
mr Moustache com a de outros Navaho, Kluckhohn sugere que as es-
colhas de conteúdo e ênfase são mais compartilhadas culturalmente do 
que se pode prever. haveria uma espécie de repetição dos valores cul-
turais nas narrativas de pessoas distintas. 
A meu ver, Kluckhohn nos diz que as lacunas informativas devem 
ser de fato compreendidas como valor cultural expressivo. Se é isso que 
4 Neste texto, ao dizer “ato biográfico” ou “narrativa autobiográfica”, estarei me re-
ferindo a narrativas de vida que possam ser consideradas para se traçar biografias, 
autobiografias, histórias de vida ou trajetórias.
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ele está dizendo, compartilho de sua afirmação. Entretanto, a análise 
de Kluckhohn naturaliza os valores culturais e o estrangeiro, torna 
absolutas essas categorias. Assim, o sentido do que fala mr Moustache 
– e o que ele contou de si – não foi compreendido na relação entre o 
antropólogo e o Navaho, nem foi considerado o que antropólogo sig-
nificava para mr Moustache e para os Navaho. Kluckhohn considera 
um esquema cultural objetivado, exteriorizado, não se tratando exata-
mente do que, mais tarde, se chamaria de “encontro etnográfico”. 
A postura de Kluckhohn é exatamente o inverso do que seria feito 
por Crapanzano (1980) anos depois. Nesse último caso, a alteridade 
(no encontro) explicariaa expressão narrativa, acionaria a presença 
do outro abstrato, imaginariamente recriando os personagens da inte-
ração concreta e a narrativa como a ficção produzida no encontro. 
Tuhami, marroquino, oleiro, casado com A’isha Qandisha, um 
demônio feminino [she-demon], dedicava-se aos santuários, romarias 
e sonhos. Crapanzano fez a sua pesquisa no Marrocos, na década de 
1960, interessado no estudo de A’isha Qandisha desde a sua pesquisa 
sobre uma irmandade especializada em rituais de cura dos possu-
ídos, a irmandade hamadsha; à qual ela pertencia. Tuhami não era 
membro da hamadsha, a sua relação com A’isha Qandisha era de 
esposo, e não de possuído, o que lhe dava ou o que justificava um 
status de outsider. Crapanzano oferece um quadro da cultura e rela-
ções sociais marroquinas, o significado da romaria, a relação entre 
humanos, santos e demônios e o uso que Tuhami faz de símbolos 
culturais e rituais. A história de vida de Tuhami remete a uma et-
nografia de concepções e relações religiosas. Com uma introdução, 
uma conclusão e cinco capítulos, o livro contém os diálogos das en-
trevistas feitas por Crapanzano e as respostas de Tuhami, permeadas 
pelos sonhos e narrativas em forma de recitações. Conforme diz 
Crapanzano: 
“Eu levo em conta a maneira com que Tuhami faz uso da linguagem 
particular disponível para articular sua própria experiência, incluindo 
a sua história pessoal em nossas negociações da realidade. Talvez 
com uma visão mais estreita e certamente com maior resistência, eu 
levo em conta o uso que eu faço do meu próprio idioma em nossas 
negociações.” 
(Crapanzano, 1980, p.xI–xII, tradução livre) 
Tuhami é um narrador, a história de vida escrita por Crapanzano 
baseou-se no que Tuhami lhe contou, e não no que outros lhe contam 
sobre ele. É assim quanto à própria noção de realidade, de realidade etno-
gráfica e de invenção que Crapanzano discute. As histórias contadas por 
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Tuhami e a narrativa de vida de Tuhami aproximam autobiografia, 
etnografia, narrativas míticas e contos de fada. Segundo Crapanzano, 
“… o real era uma metáfora para a verdade – e não idêntico a ela. 
Tuhami falava a verdade desde o início, … mas eu estava ouvindo 
apenas o real, que eu confundia com o verdadeiro.” 
(Crapanzano, 1980, p.130, tradução livre) 
O modo como Tuhami configura a sua narrativa é problematizado 
antropologicamente por Crapanzano, mas a narrativa não é consi-
derada como ilusão, e sim como linguagem, expressando também 
o choque entre idiomas culturais distintos. Levando em conta que 
a narrativa de Tuhami precisaria ser compreendida tendo em vista 
o que a palavra significa na cultura marroquina, no jogo compe-
titivo que ela contém, ganha quem detém a palavra. Conforme 
Crapanzano: 
“O conteúdo da narrativa de Tuhami é ontologicamente diferente 
daquele com que nós estamos familiarizados no Ocidente. Diferenças 
genéricas não são simplesmente diferenças formais. Elas são cons-
truções culturais e refletem as premissas mais fundamentais sobre a 
natureza da realidade, incluindo a natureza da pessoa e a natureza da 
linguagem, consideradas, se forem inteiramente consideradas, auto-
evidentes pelos membros de qualquer tradição cultural particular. O 
reconhecimento dessas diferenças, da possibilidade de um outro modo 
mais ou menos bem-sucedido de se constituir a realidade, é sempre 
ameaçador, pode produzir uma espécie de vertigem epistemológica 
e exigir uma posição de relativismo cultural extremo … No entanto, 
intencionalmente ou não, o antropólogo ou o leitor faz, muitas vezes, 
com que as diferenças desapareçam no ato da tradução. Essa tra-
dução pode tornar bizarro, exótico ou simplesmente irracional o que 
pode ser comum em seu próprio contexto. Então, a etnografia passa a 
representar uma espécie de antimundo alegórico semelhante aos anti-
mundos do louco e da criança.” 
(Crapanzano, 1980, p.8, tradução livre)
Nessas duas experiências distintas temporalmente (a de Kluckhohn 
com mr Moustache e a de Crapanzano com Tuhami), o relato biográ-
fico ancora-se na experiência etnográfica: uma criaria um documento 
etnográfico; outra, uma ficção etnográfica. O contraponto aqui esbo-
çado delineia polos exagerados visando a constituir um contraponto 
e, em seguida, uma mediação que permita esboçar um campo de 
discussões. 
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Vida & grafias30
Entre os atos: “a California morality tale”? 
Ou, uma biografia “boa para pensar” inclusive a antropologia?
“Uma pequena história explicará bem isso: a de um índio que 
escapou sozinho, milagrosamente, do extermínio das tribos cali[for]- 
nianas ainda selvagens, e que, durante anos, viveu ignorado por todos 
nos arredores das grandes cidades, talhando as pontas de pedra de 
suas flechas que lhe permitiam caçar. Entretanto, pouco a pouco a 
caça desapareceu; um dia descobriu-se esse índio nu e morrendo de 
fome às portas de um subúrbio. Terminou sua vida sossegadamente 
como porteiro da Universidade da Califórnia.” 
(Lévi-Strauss, 1996, p.57–58, tradução livre)
há quem considere a história de Ishi um dos capítulos mais assom-
brosos da história americana (Rockafellar & Starn, 1999). Se a vida de 
Ishi nos perturba e nos faz evocar a violência de muitos dos eufemis-
ticamente chamados “encontros culturais”, a biografia de Ishi escrita 
por Theodora Kroeber (1961) nos incomoda também por outros 
motivos. Como um fragmento da história de seu povo e da pré-his-
tória da Califórnia, a biografia de Ishi, “o último dos Yahi”, parece 
escrita para contar a história de seu povo como se fosse uma vida cujo 
sentido estaria na extinção de um povo. 
No prólogo do livro, Theodora (1961) conta que foi em 29 de 
agosto de 1911 que Ishi “entrou em nossa vida” – por “nossa vida”, 
não se deve entender o envolvimento pessoal de Theodora: ela não 
conheceu Ishi neste momento, aliás, nem ainda conhecera Kroeber, 
o antropólogo com quem viria a se casar bem depois. Ishi entrou na 
vida de Oroville, cidade onde ele foi encontrado em um matadouro, 
capturado pelo xerife e, sem entender ou falar inglês, levado à prisão. 
A captura do selvagem despertou intensa curiosidade. A notícia, os 
comentários sobre Ishi, inclusive a sua foto, chegaram aos jornais de 
São Francisco. Lendo os jornais, Kroeber e Waterman, professores 
da Universidade de Califórnia, se inteiraram do acontecido. Com a 
quase certeza de que se tratava de um Yahi, Waterman foi para Oro-
ville e conseguiu com esforço que Ishi reconhecesse a fonética de uma 
palavra de sua língua. Mais palavras, frases e os dois se comunicaram.
Após várias iniciativas envolvendo o xerife, Kroeber, Waterman, 
o Museu de Antropologia da Universidade da Califórnia e Wa-
shington, Ishi foi levado para São Francisco, onde viveu quatro anos e 
sete meses, até morrer em 1916, vitimado por doenças pulmonares. 
O nome Ishi homem [Man], na linguagem Yahi, lhe foi atribuído 
pelos antropólogos. Quando começou a corrida pelo ouro, em 1849, 
havia aproximadamente 400 Yahi na Califórnia. O massacre do povo 
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Narrativas biográficas31
Yahi se iniciou em 1865 e se prolongou até 1870, no meio do qual, em 
1860, se teria dado o nascimento de Ishi. Entre 1870 e 1911, um grupo 
de cinco a vinte Yahi em fuga perambulava por Mill Creek. Em 1908, 
o grupo de sobreviventes no qual estava Ishi, e que vivia se escon-
dendo e fugindo, estava reduzido a quatro. 
Com as notícias de seus aparecimentos esparsos, Waterman 
foi com uma expedição a Mill Creek, em 1810, tentando encontrar 
o bando de indígenas em “estado selvagem”, mas não conseguiu 
nenhum contato. Contudo, em 1911, Ishi foi encontrado em Oroville 
e, em 4 de setembro, levado para São Francisco. Durante seis meses, o 
Museu de Antropologia recebeu 24 mil pessoas que visitaram o museu 
e viram Ishi demonstrar, entre outras habilidades manuais, como 
fazer setas (flechas?) e fogo. Em 25 demarço de 1916, Ishi morreu no 
hospital da Universidade da Califórnia. O seu cérebro foi removido, 
pesado, examinado e preservado. Em 27 de março, Waterman, Pope, 
Loud Warburton e Gilford acompanharam o corpo ao cemitério onde 
ocorreu a cremação. Em 31 de março, as cinzas de Ishi foram colo-
cadas em um jarro Pueblo. Kroeber não foi à cerimônia, pois estava 
em Nova Iorque, em seu período sabático, do qual retornou em 27 de 
outubro de 1916. 
Theodora Kroeber estava com 60 anos quando escreveu a sua 
primeira biografia, sobre Ishi – ishi in two worlds –, publicada em 1961. 
Segundo Karl Kroeber, filho de Theodora e de Alfred Kroeber, relata 
na introdução à reedição de 2004, o título teve um forte impacto no 
contexto de sua edição original. Ainda conforme Karl, fora heizer – 
arqueólogo e antropólogo especialista em instrumentos de pedra, que 
atribuiu ingenuidade à consideração de que Ishi era um “puro” Yahi, 
pois ele seria também Yana – quem conseguira convencer Theodora 
a escrever a biografia, projeto recusado por Alfred Kroeber. Karl 
Kroeber conta como heizer convencera Theodora a escrever o livro e 
como trabalharam juntos no projeto. 
O livro teve uma enorme popularidade, transformando-se em 
filme, vídeos e peça – ishi: the last of the Yahi, drama teatral escrito por 
John Fisher (Theatre Rhino, UC Berkeley Production). Foi reeditado 
várias vezes, popularizando, segundo Karl Kroeber, também a defesa 
intelectual da antropologia boasiana contra o extermínio indígena e 
tendo sido um testemunho de defesas das populações indígenas da 
Califórnia em sua luta legal pelo reconhecimento de seu direito à 
terra. A biografia não apenas foi muito lida e criticada, como rendeu 
outras pesquisas sobre a vida de Ishi – uma delas, a pesquisa de M 
Steven Shackley (2003).
Aliás, a reedição de 2004 é particularmente significativa, bem 
como a sua introdução, tendo em vista o desdobramento de uma 
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Vida & grafias32
dessas controvérsias, que desencadeou um evento – reinventando 
e estendendo a narrativa Ishi – envolvendo nativos americanos e 
antropólogos. Em 1997, o Butte Country Native American Cultural 
Committee iniciou uma campanha pelo retorno dos restos de Ishi à 
terra dos Yahi, ao norte da Califórnia. Embora fosse conhecido que 
as suas cinzas estavam em um nicho no Olivet Cemitery, ao sul de São 
Francisco, os nativos americanos se inteiraram que o seu cérebro tinha 
sido extraído na autópsia e que fora guardado em outro lugar. 
O trabalho de pesquisar onde estava o cérebro de Ishi foi contado 
por Nancy Rockafellar & Orin Starn (1999; ver também Starn, 
2004). Em 1999, o Smithsonian acertou o envio do cérebro para o 
grupo nativo que o reivindicava, o que foi feito em 2000 em um lugar 
desconhecido, para evitar invasão de curiosos e turistas (Kroeber & 
Kroeber, 2003). Kroeber não estava em São Francisco quando Ishi 
faleceu e, contra a sua vontade – manifestada enfaticamente em cartas 
–, foi realizada a autopsia e a retirada do crânio de Ishi para análise, 
o que pode ser melhor conhecido na troca de correspondências entre 
Kroeber e Gifford em março de 1916, já no final da vida de Ishi, que 
no dia 18 de março fazia a sua última entrada no hospital da Universi-
dade da Califórnia.
Em torno desse evento, alguns membros do Departamento de 
Antropologia da Universidade da Califórnia, em Berkeley, iniciaram 
um movimento para que o Departamento de Antropologia – ao qual 
Kroeber estivera ligado de 1901, sendo um dos seus fundadores, a 
1947, quando se aposentou – se desculpasse publicamente pelo in-
defensável comportamento de Kroeber em relação a Ishi, sugerindo 
também que o prédio que aloja o departamento tivesse o seu nome, 
Kroeber’s hall, mudado. Embora lamentando que o cérebro de Ishi 
tivesse sido enviado ao Smithsonian e defendendo a sua entrega, 
junto às cinzas de Ishi, para os nativos que os reivindicavam, outros 
membros do Departamento consideravam injustificável a condenação 
de Kroeber (Kroeber & Kroeber, 2003). Esse evento provocou a publi-
cação de um livro organizado por Karl Kroeber e Clifton B Kroeber 
(2003), cujos artigos revisitam a vida de Ishi e a sua biografia, bem 
como a controvérsia no Departamento de Antropologia de Berkeley 
em torno da condenação ou não de Kroeber. 
Esse livro e ishi’s brain: in search of America’s last “wild” indian, de 
Orin Starn (2004), foram resenhados conjuntamente por Geertz no 
The New York Review of Books. A resenha começa assim: 
“Um conto moral da Califórnia, a história de Ishi é, em si mesma, 
como parábolas em geral, muito simples. São os narradores, cada um 
com envolvimento e intenções distintos, que a complicam.”
(Geertz, 2004, tradução livre)
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Narrativas biográficas33
Onde começaria e terminaria a narrativa biográfica de Ishi? Nos 
quatro anos e sete meses em que Ishi foi encontrado e viveu na Uni-
versidade da Califórnia? Em 1860, quando teria nascido, e em 2000, 
quando foi definitivamente enterrado? Entre 1860 e 1916? O que eu 
gostaria de sugerir para a presente discussão e para análises futuras 
é que, seja qual for a escolha, essa biografia conteria o mesmo con-
texto de relações e teria o mesmo sentido – não o da vida ou o de 
uma história, mas o sentido do encadeamento de relações e desdo-
bramentos narrativos. Eis o que torna essa biografia particularmente 
relevante para contestar algumas das dicotomias que cercam o debate 
sobre biografia e autobiografia na antropologia, por exemplo, como 
levantei no início, entre fato e memória (e, supostamente, entre obje-
tivo e subjetivo), ciência e literatura, narrativa e estrutura, indivíduo, 
rede de relações ou indivíduo e sociedade. Esses temas são, aliás, caros 
à antropologia e o tema biografia e autobiografia contribuiu para que a 
discussão fosse menos marcada pelo fantasma do ideográfico e no-
motético. Isso permitiria ainda estender a discussão sobre como os 
conjuntos normativos são interpretados e diferentemente acionados, 
tendo em vista as experiências de pessoas-indivíduos – ou, ainda, a 
teoria ator-rede de Bruno Latour (2005).
De qualquer maneira, há ainda um trabalho a fazer e um grande 
desafio: o de incluir as narrativas biográficas no fazer antropológico 
com o mesmo estatuto das narrativas etnográficas. Um bom desafio, 
para o qual seria preciso considerar que, onde há um nome, há um 
conjunto de relações. Poderíamos, então, parafrasear Lévi-Strauss no 
prefácio do livro Le Soleil hopi:
“… um pouco como se, arqueólogos do presente, nós desenterrás-
semos as disjuntas pérolas de um colar para percebermos de repente 
as contas atadas em sua disposição primitiva, em torno do jovem 
pescoço ao qual foram um dia destinadas a adornar...” 
(Lévi-Strauss, 1982, tradução livre)
Que antropologia fazemos 
quando focalizamos narrativas biográficas?
“Alguns conceitos na teoria antropológica são fundacionais. Porque 
são conceitos que fornecem o terreno sobre o qual antropólogos 
podem construir seus edifícios teóricos, eles frequentemente são 
tomados como óbvios e tendem a permanecer não questionados. Um 
desses conceitos é o de experiência. Experiência é um conceito chave 
ao longo da história da disciplina, mas tem, até recentemente, per-
manecido sem um exame crítico. Mesmo assim, a sua proliferação 
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nos escritos antropológicos contemporâneos é verdadeiramente 
notável. Com efeito, experiência se tornou um construto central para 
um número de perspectivas divergentes na antropologia, incluindo 
a teoria feminista, antropologia fenomenológica, antropologia psi-
cológica, antropologia médica e etnografia crítica. Em todas essas 
abordagens, enquanto a importância e a centralidade da experiência 
é evidente, a definição e propriedades operacionais do construto 
permanecem evasivas. Essa falta de clareza conceitual parece sur-
preendente dado que essas perspectivas teóricasfrequentemente 
consideram a experiência não somente como uma área central de pes-
quisa, mas também como uma base para que especulação, descrição e 
explicação posteriores sejam construídas.” 
(Throop, 2003, p.219, tradução livre)
Muitas das críticas à noção de experiência referem-se a que o seu uso 
estaria ligado aos supostos de visibilidade, transparência, individu-
alidade, autenticidade, a instâncias pré-discursivas, pré-narrativas, 
pré-conceituais, também existindo críticas ao vínculo da noção de ex-
periência com a subjetividade e consciência individual. Muitas dessas 
críticas partem da importância que precisaria ser dada às estruturas e 
processos (socioeconômicos, históricos, linguísticos etc), onde estariam 
assentadas as condições para experiência, o que significa que a experi-
ência seria resultante de estruturas e processos.
 A discussão é evidentemente marcada por distintos pressupostos 
teóricos e também, como bem sugere Troop, pelos escorregadios 
sentidos do termo e de seu uso. Não se trata aqui de adiantar uma 
exegese da noção de experiência nem de sugerir uma redução de seus 
sentidos, mas de procurar um sentido mais adequado ao argumento 
com o qual pretendo finalizar este texto. 
Lévi-Bruhl (1938, p.8–19), em seu último artigo, publicado 
postumamente, usa a noção de experiência para dar conta do afetivo 
enquanto uma diferença na ordem racional, diferença que uma con-
ceituação estreita de realidade desprezaria como um não real, como 
um não racional. Posteriormente, Turner usaria também a noção de 
experiência sem confundi-la com o imediatamente observado e vivido. 
Em Turner, a experiência é intrinsecamente relacionada à narrativa, 
revelando-se como estrutura (conectando momentos distintos: per-
cepções, evocações do passado, associações de eventos e sentimentos 
vividos, emergência de significações e valores) em sua expressão. Para 
ele, a expressão da experiência seria a unidade estrutural da expe-
riência (Turner, 1982, p.15), o que não é o mesmo que a experiência 
como empiricamente observável ou pré-narrativa. A expressão da 
experiência (a experiência narrada) conectaria eventos e afecções, 
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Narrativas biográficas35
incorporando e germinando significações e valores. Tomando esse 
último sentido, se o biográfico constitui narrativamente uma experi-
ência, como, aliás, pode fazer o etnográfico, as narrativas biográficas 
se prestam não a serem depoimentos orais ou apenas documentos 
para a antropologia. Assim, poder-se-ia dizer que Bourdieu (1986) tem 
razão sobre o que atribui à biografia, sendo necessário ressaltar que, 
como narrativa, a sua illusio é parte importante da sua significação: ela 
é o dito no ato de contar, compõe a expressão da experiência e, como a 
etnografia, amplia as possibilidades de inflexão do social.
Sugiro que a relação entre experiência narrada biograficamente 
e estrutura da experiência permite retirar a narrativa biográfica da 
oposição entre indivíduo e sociedade, subjetivo e objetivo. A expressão 
da experiência conteria relações, conexões, movimentos da vida, ex-
periência social e reflexão dos próprios sujeitos, conteria a expressão 
da experiência que não prescinde da sua expressão narrativa. A estru-
tura da experiência conectaria experiência vivida e os sentidos dados 
e criados pelos sujeitos. De certa maneira, com Turner, escapamos 
tanto da crítica de Joan Scott (1999) ao conceito de experiência de 
Thompson (1978) como da crítica do próprio Thompson (1978), sem 
descartar a noção de experiência.
É enquanto experimentação de não opor a estrutura e o vivido, o 
observável e o concebido, de abrir-se a expressões diferenciadas (por-
tanto, não opondo individual ao social ou coletivo), que experiência 
está sendo considerada. Pois, considerada como estrutura de experi-
ência, ela supõe a agency e um movimento com melhores rendimentos 
conceituais e metodológicos que os conceitos de campo e trajetória 
(Bourdieu, 1998 e 1986) ou a teoria ator-rede (Latour, 2005), porque 
leva em conta nas experiências narradas a ação e o agente, e cria uma 
relação entre quem narra e quem é afetado pela narrativa. 
Encontro no argumento de Turner um ponto médio entre a 
experiência e a narrativa, pois a expressão de experiências supõe 
uma dimensão narrativa, e não uma redução à linguagem: ela dra-
matiza um vivido. Como meio de expressão, a narrativa daria forma 
e temporalidade à experiência, sem a dicotomia entre a percepção e 
a conceituação do mundo, sem partir de uma totalidade pré-fixada – 
como na dicotomia indivíduo e sociedade, por exemplo.
Assim, não me parece que a discussão sobre narrativas biográficas 
deva continuar nos termos da oposição entre indivíduo e sociedade,⁵ 
5 Lembremos de uma das mais conhecidas. Sartre insiste sobre a situação particular 
na qual uma pessoa se forma: na pertinência ao meio como um acontecimento sin-
gular. Pode-se resumir a sua argumentação com a seguinte frase, onde dialoga com o 
marxismo: “Valéry é um intelectual pequeno burguês; quanto a isso não há dúvida. 
Mas nem todo intelectual burguês é Valery.” (Sartre, 1967, p.80)
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subjetividade e objetividade, ou da oposição entre estrutura, con-
cepção e ação social, apesar de as biografias serem fontes preciosas 
para tais discussões. As biografias podem ser dispositivos para criar 
pessoas, personalidades, santos, heróis e fracassados ou, ainda, incor-
porar ideias e valores – ideologias e moralidades – em vidas concretas, 
considerando-as como passíveis de serem expandidas, supondo a vida 
como modelo passível de imitação. 
Lucien Febvre (2012) nos dá um exemplo instigante – porque 
problematiza também a possibilidade de expansão do ato narrativo 
à imagem – do que poderia ser a estrutura da experiência, embora o 
autor não use esse conceito. Ele não inicia a biografia de Lutero – ou, 
como ele prefere designar o seu trabalho, “um juízo sobre Lutero”, 
juízo ao qual também se presta o ato biográfico – com o nascimento 
ou a sua vida em família: começa nos contando que, em julho de 
1505, aos 22 anos, o jovem Martin inicia uma vida monástica, contra-
riando as expectativas de uma carreira mais lucrativa. Nessa biografia 
– vou chamá-la assim, apesar do que diz o seu o autor –, a vida como 
narrativa contraria o naturalismo, contraria também algumas das 
convenções da narrativa biográfica, começa com Lutero cruzando o 
portão do convento agostiniano de Erfurt, iniciando uma vida mo-
nástica que duraria 15 anos, desviando-se das expectativas de uma 
carreira mais lucrativa. 
O esforço solitário, que dá nome ao primeiro capítulo do livro, 
estaria ocultado no retrato de Lutero, de 1532, retrato que Febvre 
problematiza em seu livro. Esse conhecido retrato congela um 
momento da vida e oculta outros momentos, congelando também 
a temporalidade e os seus efeitos, muitas vezes imprevisíveis, muitas 
vezes irônicos, de rumos tomados pelos sujeitos. O Martinho Lutero 
quinquagenário, no retrato pintado (ou gravado) por volta de 1532, 
expressaria a sua liderança política e a doutrina que fundou. Mas, se 
considerarmos o retrato como também narrativo, poderíamos dizer, 
contra Febvre, que ele narra e, assim, conforma uma experiência, a de 
sua liderança política. O desafio é o das conexões dessas expressões – 
a estrutura da experiência, para referir-me ao conceito de Turner. 
Mas, a pergunta de Febvre é outra. Sua pergunta é se aquele 
retrato revelaria as escolhas que Lutero fez antes, entre as que lhe 
estavam disponíveis. Então, Febvre começa a sua narrativa biográfica 
com o jovem Lutero cruzando o portão do convento agostiniano em 
Erfurt e iniciando a vida monástica. Segundo o autor, esse ato – não 
revelado pelo retrato mencionado – conteria o germe da Reforma 
Luterana. 
Ora, pode-se narrar a vida de alguém de muitas maneiras, 
embora, conforme Denzin (1989, p.17), dentro de certas convenções 
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que estruturariam como as vidas são contadas. Cheterston (1978, 
p.5–14), ao escrever sobre São Francisco de Assis, elenca algumas das 
convenções: celebrizar as virtudes sociais incorporadas no biografado, 
dizer que ele antecipou épocas, tornando-o um herói; falar do mundo 
do personagem como se fosse parte dele, escrevendo, por exemplo, 
piedosamente sobre a vida de um santo, como se fosse você mesmo 
um santo; como um observador simpatizante, equilibrar as qualidades 
e virtudes do personagem, salientando a distância e a proximidade 
entre mundos distintos, o mundo descrito, o mundo de quem escreve 
e o mundo de seus leitores – como simpatizante e como cético, o 
biógrafo criaria um conjunto coerente e compreensivo. Cheterston, 
por fim, escolhe uma variante dessa última convenção, sem o suposto 
de que só uma totalidade tornaria compreensível a santidade de São 
Francisco aos que prescindem de santidade, evocando admiração. 
 Muitas biografias são escritas com o objetivo de criar essa admi-
ração ou uma aversão, ou mesmo com o objetivo de fazer da distância 
a escrita objetiva de uma vida. O que é fascinante notar nas narrações 
biográficas é como iniciam-se de maneira distinta, como configuram 
temas distintos: memória, migração, família, trabalho rural e urbano, 
produções de gênero, de falas, de maneiras particulares do uso da lin-
guagem e formas narrativas, de crenças, religiosidade e personagens 
míticas, de atribuição de nomes e constituição de pessoas, de arte 
e de ciência. Essa relação entre biografia e narração, o nexo entre 
oralidade, escrita e visualidade, as interconexões do ato biográfico, 
retendo evocações e informações entre real (pessoa) e ficção (perso-
nagem), remetem ao estatuto ambíguo do fazer biográfico nas ciências 
humanas. 
Se a narrativa biográfica encontra-se com a etnografia ao mar-
carem para a antropologia a experiência da alteridade, permito-me 
terminar este capítulo reafirmando o nexo entre certa concepção de 
etnografia e uma possível perspectiva biográfica, ambas orientadas 
em sua atenção aos contextos de relações, às concepções, por uma 
atitude que não procura encaixar o objeto em categorias externas, 
mas extrair as construções com as quais operam os agentes em seus 
campos semânticos próprios. Eis porque muitas das discussões sobre 
o ato de biografar são também a do ato de etnografar. Essa formu-
lação lembra alguns dos impasses da etnografia, pela homologia da 
relação (singular-geral), pelos impasses sobre a representação, porque 
expõe os limites de um modo de ser e as limitações de um modo de 
pensar. Ou seja, são registros de alteridade. Biografia e etnografia são 
respostas às (mesmas) aflições: o problema de ambas e também o seu 
mérito é que são muitas e diversas as aflições às quais são chamadas a 
responder.
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Vida & grafias38
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Vida e grafias - miolo.indd 38 3/9/15 7:37 PM
Narrativas biográficas39
Suely Kofes é antropóloga, professora titular no Departamento de Antropologia do 
IFCh/UNICAMP, como professora e pesquisadora. Suas pesquisas antropológicas 
preocupam-se com a experimentação etnográfica, com pesquisas sobre temas distintos 
e em campos etnográficos distintos. Atua nas seguintes linhas de pesquisa: etnografia 
e a perspectiva biográfica; experiência e narrativa; antropologia, processos de diferen-
ciação e reconhecimentos identitários (diferença e identidade); temas concernentes ao 
campo dos estudos sobre raça e gênero; ritual, cosmologia, associativismo e política. 
É uma das coordenadoras do LA’GRIMA (Laboratório Antropológico de Grafia e 
Imagem), recém-criado no Departamento de Antropologia do IFCh/UNICAMP.
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Autobiografias, memoriais 
e a narrativa biográfica 
de um cientista
Daniela Manica
“Elsimar Metzker Coutinho é um dos maiores expoentes na endocri-
nologia da reprodução humana e no planejamento familiar. Médico 
formado pela Universidade Federal da Bahia, realizou cursos de 
especialização na Sorbonne, Universidade de Paris e fundação Ro-
ckefeller, em Nova Iorque. Foi um dos fundadores do International 
Committee for Contraceptive Research – ICCR, do The Population 
Council, órgão especializado no desenvolvimento de métodos contra-
ceptivos modernos, e atuou como membro do Steering Committee 
of the Expanded Program in human Reproduction, da Organi-
zação Mundial da Saúde. Professor e chefe do Departamento de 
Saúde Materna e Infantil da Faculdade de Medicina da Universidade 
Federal da Bahia, é diretor-presidente de uma clínica-modelo em pla-
nejamento familiar e saúde reprodutiva em Salvador, o CEPARh 
(Centro de Pesquisas e Assistência em Reprodução humana). 
Também preside a Organização Internacional de Pesquisa em Saúde 
Reprodutiva, o South-to-South Cooperation in Reproductive health. O pro-
fessor Elsimar é fundador e membro participante de várias sociedades 
médico-científicas e vem realizando conferências e eventos em todo 
o

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