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11 A Realidade do Sistema Penitenciário Brasileiro Frente Aos Direitos Humanos Autores Lígia Aparecida Alves Pimenta Diogo Henrique da Silva Paiva Resumo O presente trabalho objetiva a análise do Sistema Prisional Brasileiro frente aos Direitos Humanos, ressaltando o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, estabelecido no artigo 1º, inciso III da Constituição Federal. Para tal, através do método hipotético dedutivo, analisaremos na história o surgimento do direito que os Estados possuem de punir seus indivíduos infratores, tomando por base as ideias de Jean Jacques Rousseau e de Cesare Beccaria, além de verificar a evolução das penas impostas àqueles que infringem as leis, nos atendo à prática do suplício do corpo do condenado, as exibições públicas até a aplicação massiva da pena de prisão. Neste contexto, passamos à análise dos direitos humanos, ressaltando o princípio da dignidade da pessoa humana inserindo-os no contexto carcerário brasileiro, analisados na conjuntura atual. Trazendo à discussão, deste modo, a análise da legislação do país assim como a ratificação de tratados internacionais de proteção aos direitos humanos comparando a lei e a realidade prisional, partindo para a verificação da possibilidade de imposição de penas alternativas aos indivíduos condenados em uma busca pela humanização das penas impostas aos indivíduos infratores. Palavras-chave: sistema penitenciário, ressocialização, reeducação, direitos humanos, dignidade humana. 12 INTRODUÇÃO O sistema prisional brasileiro enfrenta atualmente grandes dificuldades, principalmente referentes ao alcance de seu objetivo ressocializador para devolver á sociedade um indivíduo regenerado. Tal dificuldade deve-se ao caos encontrado na maioria dos estabelecimentos prisionais no Brasil de um modo geral, que apresentam casos de superlotação, violência, falta de higiene, falta de atendimento médico, e vários outras situações vivenciadas pelos encarcerados no país. Surgiram, para tanto algumas outras formas de penas para tentar evitar mandar um número cada vez maior de pessoas para a prisão, como multa, prestação pecuniária, perda de bens e valores, tudo isso em uma tentativa de minimizar os efeitos negativos que as prisões têm causado à sociedade. Neste sentido, iniciamos o estudo analisando a origem das sociedades para encontramos a origem do direito de punir. A partir de então, passamos ao estudo dos meios punitivos, desde a utilização do suplício e da tortura como modo de punir o indivíduo infrator e coibir novos delitos através da exposição das penas ao público até chegarmos á utilização massiva da prisão como meio de punição às práticas delitivas. No desenrolar do estudo será analisado, também, os direitos humanos e o princípio da dignidade da pessoa humana inseridos no atual contexto carcerário brasileiro para que este seja por fim estudado como uma instituição em crise. E, finalmente, no terceiro e último capítulo, fechando o trabalho, analisaremos como a legislação brasileira porta-se frente ao sistema carcerário, ressaltando os Tratados de Direitos humanos ratificados pelo Brasil e as mudanças na lei penal em uma tentativa de substituição da pena de prisão por outras que impeçam o aumento da população carcerária no Brasil. 13 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA PUNIÇÃO DE INDIVÍDUOS INFRATORES Neste capítulo nos direcionaremos a analisar o surgimento das penas como forma de punição. Para tal, analisaremos preliminarmente a liberdade original e a posterior união dos homens em sociedade, conforme ressaltado por Jean Jacques Rousseau em seu livro O Contrato Social, encontrando neste ponto uma base histórica do direito que o Estado possui de punir indivíduos infratores por meio das leis impostas. Analisaremos também a evolução histórica de tais punições, desde o uso da tortura como modo de repreensão e prevenção de novas práticas delitivas, a exibição do suplício e do corpo do condenado até a utilização massiva da prisão como forma de pena. 1.1 A Origem da Punição e Surgimento das Primeiras Leis Penais Para encontrar a origem das penas infligidas aos indivíduos infratores, deve-se, primeiramente, ser levado em consideração o surgimento das primeiras formas de comunidade.Neste contexto, importa salientar que o homem, vivia, a princípio, de uma forma independente, isolado dos demais, sendo que as crianças permaneciam vinculadas a seus pais apenas o tempo necessário para sua formação e uma vez cessada essa necessidade, retornavam a sua liberdade.1 Porém, ao notar-se desprotegido e vulnerável, cercado de iguais que também buscavam proteção devido às incertezas de uma vida sem regras, o homem viu-se obrigado a reunir-se em comunidade, sacrificando parte de sua liberdade para que tivesse garantida sua segurança. Neste sentido leciona Rousseau: Eu imagino os homens chegados ao ponto em que os obstáculos, prejudiciais à sua conservação no estado natural, os arrastam, por sua resistência, sobre as forças que podem ser empregadas por cada indivíduo a fim de se manter em tal estado. Então este estado primitivo não mais tem condições de subsistir, e o gênero humano pereceria se não mudasse sua maneira de ser.2 Com a soma de todas estas parcelas de liberdade, surgiu a ideia de nação, a qual deveria garantir a seus membros uma vida segura e sem temores, na qual o fiel depositário dessa liberdade seria aquele que governaria todo o povo. Para tal, surgiram as leis como garantia da manutenção desse poder. De acordo com Cesare Beccaria“As leis foram as condições que reuniram os homens, a princípio independentes e isolados sobre a superfície da Terra”, porém ao desenvolver seu pensamento diz o autor que “não bastava, porém, ter formado esse depósito, era preciso protegê-lo, contra as usurpações de cada particular”.3 Neste sentido, foram criadas as penas que seriam impostas contra todo aquele que infringisse as leis e tendesse a violar a segurança e a liberdade depositadas nas mãos do soberano, ou seja, o acordo realizado entre os homens justificava a existência da pena, a qual seria imposta a todo aquele que violasse o pacto, e como afirma Beccaria “eram necessários meios sensíveis e bastante poderosos 1ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. Versão para eBook. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/contratosocial.pdf. Acesso em: 25/04/2017. p.11. 2ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. Versão para eBook. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/contratosocial.pdf. Acesso em: 25/04/2017. p. 23 3BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Versão para eBook. Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/delitosB.pdf> Acesso em: 22/05/2017. p. 26. 14 para comprimir esse espírito despótico, que logo tornou a mergulhar a sociedade no seu antigo caos. Esses meios foram as penas estabelecidas contra os infratores das leis”.4 Temos assim que o autor defende que a base do direito de punir está nas pequenas porções de liberdade cedidas por cada indivíduo, sendo que todo ato que se afaste dessa concepção será injusto, abusivo e uma forma de usurpação. Sendo que “as penas que ultrapassam a necessidade de conservar o depósito da salvação pública são injustas por natureza; e tanto mais justas serão quanto mais sagrada e inviolável for a segurança e maior a liberdade que o soberano conservar aos súditos”.5 Desta forma, somente podem ser impostas ao indivíduo infrator penas que estejam instituídas em lei pelo legislador, o qual representa a sociedade unida em um contrato social. Sendo assim, não poderá o magistrado imputar a determinado cidadão uma pena que seja mais ou menos rígida daquilo que a lei estabelece, sob a constatação de estar cometendo uma injustiça. Deverá, por conseguinte, estabelecer apenas, se, de acordo com a lei o delito existiu ou não,tendo em vista que de um lado está o soberano afirmando o rompimento do contrato social por meio do delito e do outro o acusado que nega tal imputação. 6 Complementando seu pensamento o autor discorre sobre a fixação das penas: Com leis penais executadas à letra, cada cidadão pode calcular exatamente os inconvenientes de uma ação reprovável; e isso é útil, porque tal conhecimento poderá desviá-lo do crime. Gozará com segurança de sua liberdade e dos seus bens; e isso é justo, porque é esse o fim da reunião dos homens em sociedade. É verdade, também, que os cidadãos adquirirão assim um certo espírito de independência e serão menos escravos dos que ousaram dar o nome sagrado de virtude à covardia, às fraquezas e às complacências cegas; estarão, porém, menos submetidos às leis e à autoridade dos magistrados.7 Vê-se, então, a necessidade de leis fixas que sejam de conhecimento da população, a qual poderia pautar suas atitudes de acordo com a letra da lei para que não cometessem infrações. Salienta também Beccaria a importância não apenas da criação de leis para coibir a prática de delitos que rompessem com o contrato estabelecido entre os cidadãos, era necessário, antes de tudo, a familiarização do povo com suas leis: Enquanto o texto das leis não for um livro familiar, uma espécie de catecismo, enquanto forem escritas numa língua morta e ignorada do povo, e enquanto forem solenemente conservadas como misteriosos oráculos, o cidadão, que não puder julgar por si mesmo as conseqüências que devem ter os seus próprios atos sobre a sua liberdade e sobre os seus bens, ficará na dependência de um pequeno número de homens depositários e intérpretes das leis. Colocai o texto sagrado das leis nas mãos do povo, e, quanto mais homens houver que o lerem, tanto menos delitos haverá; pois não se pode duvidar que no espírito daquele que medita um crime, o conhecimento e a certeza das penas ponham freio à eloqüência das paixões.8 4 Ibidem, p.27. 5 Ibidem, p. 28. 6BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Versão para eBook. Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/delitosB.pdf> Acesso em: 22/05/2017. p.30 7 Ibidem, p. 34-5 8 Ibidem, p.36 15 Havia a necessidade de que aqueles que cederam parte de sua liberdade, fossem informados da letra da lei, para que dessa forma evitassem a prática de delitos e tivessem controle de seus atos e sua liberdade, evitando as punições corporais que se desenvolviam e tomavam por base o sacrifício do corpo humano como forma de restituição da ordem que havia sido quebrada pelo delito cometido. 1.2 O suplício como prática de correção e prevenção Até o final do século XVIII, na Europa, as penas físicas constituíam uma parte considerável das formas de punição dos indivíduos infratores. Porém, ao contrário do que se imagina, não eram as mais recorrentes, a maior parte delas era, na verdade, o banimento e a multa, contudo, estas penas não corporais recebiam acessoriamente outras penas consideradas como suplício “Exposição, roda, coleira de ferro, açoite, marcação com ferrete […] Qualquer pena um pouco séria devia incluir alguma coisa de suplício”9 Mas o que era de fato o suplício? O suplício é uma técnica e não deve ser equiparado aos extremos de uma raiva sem lei. Uma pena, para ser um suplício deve obedecer a três critérios principais: em primeiro lugar, produzir uma certa quantidade de sofrimento que se possa, se não medir exatamente, ao menos apreciar, comparar e hierarquizar; a morte é um suplício na medida em que ela não é simplesmente privação do direito de viver, mas a ocasião e o termo final de uma graduação calculada de sofrimentos: desde a decapitação – que reduz todos os sofrimentos a um só gesto e num só instante: o grau zero do suplício – até o esquartejamento que os leva quase ao infinito, por meio do enforcamento, da fogueira e da roda, na qual se agoniza muito tempo […] O suplício faz correlacionar o tipo de ferimento físico, a qualidade, a intensidade, o tempo dos sofrimentos com a gravidade do crime, a pessoa do criminoso,o nível social de suas vítimas. 10 A pena supliciante não era, contudo, aplicada ao infrator sem antes ser estuda, medida e calculada. Era primeiramente analisado o tempo da dor, o tipo de mutilação a ser imposto, o número de açoites, o local que seria aplicado o ferrete em brasa, constituindo um verdadeiro ritual organizado para imposição da força da justiça que pune.11 A vítima destas punições deveria carregar consigo para todo o sempre a marca da vergonha de ter cometido um crime. Deveria haver a ostentação de uma marca, uma cicatriz deixada no corpo do condenado para que ele fosse a memória viva da roda, do açoite, da decapitação, da mutilação, do enforcamento que aguardava a cada um daquele que pretendesse em algum momento infringir a lei. Havia a necessidade também, do prolongamento da pena mesmo após a morte, deixando gravado o horror do suplício na memória de todos, por isso os corpos poderiam ser expostos à beira das estradas, queimados em fogueiras nas praças e terem suas cinzas jogas ao vento, tudo isso para reafirmar o poder do Estado que pune e a certeza da incidência de uma punição ao infrator.12 9FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. 31. ed. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 36. 10 Ibidem, p. 36-7. 11 Ibidem, p.37. 12FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. 31. ed. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 37-8. 16 Beccaria horrorizava-se com tais punições ao dizer: Como pode um corpo político, que, longe de se entregar às paixões, deve ocupar-se exclusivamente com pôr freio nos particulares, exercer crueldades inúteis e empregar o instrumento do furor, do fanatismo e da covardia dos tiranos? Poderão os gritos de um infeliz nos tormentos retirar do seio do passado, que não volta mais, uma ação já cometida? Não. Os castigos têm por fim único impedir o culpado de ser nocivo futuramente à sociedade e desviar seus concidadãos da senda do crime. 13 O referido autor ressalta também a correlação entre a aplicação cruel das penas e os crimes cometidos, uma vez que “Os países e os séculos em que os suplícios mais atrozes foram postos em prática, são também aqueles em que se viram os crimes mais horríveis. O mesmo espírito de ferocidade que ditava leis de sangue ao legislador, punha o punhal nas mãos do assassino e do parricida.” 14 Propunha, para tanto, para as punições uma outra perspectiva: Para que o castigo produza o efeito que dele se deve esperar, basta que o mal que causa ultrapasse o bem que o culpado retirou do crime. Devem contar-se ainda como parte do castigo os terrores que precedem a execução e a perda das vantagens que o crime devia produzir. Toda severidade que ultrapasse os limites se torna supérflua e, por conseguinte, tirânica.15 Porém, à época, acreditava-se que a tortura era meio de restituição da soberania lesada, pois o crime era visto como uma afronta ao poder do soberano, por isso a pena apresentava um caráter jurídico-político, e nela deveria haver a demonstração da força física do soberano que se abateria sobre o condenado, marcando seu corpo e agindo na sociedade com a política do medo, pois todo o povo deveria assistir atemorizado as consequências da insubordinação à lei. Presenciariam o desfile dos condenados, as declarações de arrependimento, ouviriam atentos a leitura pública da sentença além dos castigos corporais aplicados.16 Todas essas razões - quer sejam de precaução numa determinada conjuntura, ou de função no desenrolar de um ritual – fazem da execução pública mais uma manifestação de força do que uma obra de justiça; ou antes, a justiça como força física, material e temível do soberano que é exibida. Acerimônia do suplício coloca em plena luz a relação de força que dá poder à lei.17 Bruneau descreve, em uma obra sua,a morte de um cidadão de nome La Massola ocorrido em Avignon, na França, o qual após morrer por um golpe de seu executor com uma barra de ferro na têmpora, tem seu pescoço cortado com uma faca, seus nervos são cortados até os calcanhares, e após, seus órgãos são arrancados e pendurados em um gancho de ferro, tudo isso à vista da população.18 Vê-se que a soberania deveria ser restituída as vistas do povo, pois as pessoas deveriam não apenas ter o conhecimento da pena, elas deveriam ver o horror com seus próprios olhos. “Ele [povo] é chamado como espectador: é convocado para assistir às exposições, às confissões públicas; os 13BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Versão para eBook. Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/delitosB.pdf> Acesso em: 22/05/2017. p.85 14 Ibidem, p. 86-7. 15 Ibidem, p. 87. 16 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. 31. ed. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2014, p.50-1. 17FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. 31. ed. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 52. 18 BRUNEAU, A. apud FOUCAULT, Michel, 2014, p. 52. 17 pelourinhos, as forcas e os cadafalsos são erguidos nas praças públicas ou á beira dos caminhos […] porque é necessário que tenham medo”. 19 A presença da população, contudo, permitiu que ela se revoltasse contra o carrasco ou contra o magistrado quando consideravam uma pena injusta.Havia gritos em favor dos condenados, aplausos, demonstrando solidariedade para com eles, como uma forma de recusar o poder que pune e a violência legalizada que não tinha proporções. Isso se deve ao fato de que o povo se sentia próximo daquele infeliz supliciado, pois a pena poderia variar também de acordo com a classe social do condenado, fazendo sofrer ainda mais as camadas mais baixas da sociedade.20 O condenado era obrigado a dizer suas últimas palavras, sendo que ele deveria reconhecer sua culpa publicamente, pedir desculpas, alegar que a condenação era justa. Um discurso, na maioria das vezes, imposto. A sua história passava partir de então, a ser contada em folhetins, discursos populares, para que ficasse atestado a toda a população a probidade da pena aplicada. Algo, porém, não havia sido previsto: a glorificação do infrator, seja pelo fato de sua morte dolorosa, de seu arrependimento público, ou pelo fato de ser um popular, que ao ter sua história contada passa a ser herói do povo.21 Neste sentido, “[…] a proclamação póstuma dos crimes justificava a justiça, mas também glorificava o criminoso”.22 Para Benjamin Rush havia a esperança de que todo o suplício, um dia, fosse lembrado em um passado distante como uma marca vergonhosa na história: Só posso esperar que não esteja longe o tempo em que as forças, o pelourinho, o patíbulo, o chicote, a roda, serão considerados, na história dos suplícios, como as marcas da barbárie dos séculos e dos países e como as provas da fraca influência da razão e da religião sobre o espírito humano.23 Desta forma, fazia-se necessário uma justiça que visasse à punição das infrações e não mais uma mera vingança do soberano. 1.3 Fim do suplício do corpo e início das primeiras formas de processo penal No final do século XVIII e início do XIX, a punição por meio da tortura vai desaparecendo na Europa, tendo início a busca pela prática corretiva por meio da reeducação, isto é o que destaca Michel Foucault na qual relata a evolução das penas ao longo da história ressaltando as mudanças ocorridas: 19FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. 31. ed. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 58. 20 Ibidem, p.62-3 21 Ibidem, p.66-9 22FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. 31. ed. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 68. 23 RUSH, B. apud FOUCAULT, Michel, 2014, p. 15. 18 […] em algumas dezenas de anos, desapareceu o corpo suplicado, esquartejado, amputado, marcado simbolicamente no rosto ou no ombro, exposto vivo ou morto, dado como espetáculo. Desapareceu o corpo como alvo principal da repressão penal. No fim do século XVIII e começo do XIX, a despeito de algumas grandes fogueiras, a melancólica festa de punição vai- se extinguindo.24 A punição aos poucos ia se tornando algo abstrato, ficando gravado na subconsciência dos indivíduos, sumindo as visões diárias e bárbaras, pois a eficácia de tais punições deveria estar ligada à certeza de sua incidência e não mais ao horror das cenas fatídicas assistidas diariamente pela população.25 Deste modo constata-se que “o desaparecimento dos suplícios, é, pois, o espetáculo que se elimina; mas é também o domínio sobre o corpo que se extingue”.26 Pode ser percebido que, a partir de então, a punição deixa de visar unicamente o corpo do condenado: O castigo passou de uma arte de sensações insuportáveis a uma economia de direitos suspensos. Se a justiça ainda tiver que manipular e tocar o corpo dos justiçáveis, tal se fará à distância, propriamente, segundo regras rígidas e visando a um objetivo bem mais “elevado”. Por efeito dessa nova retenção, um exército inteiro de técnicos veio substituir o carrasco, anatomista imediato do sofrimento: os guardas, os médicos, os capelães, os psiquiatras, os psicólogos, os educadores; por sua simples presença ao lado do condenado eles cantam à justiça o louvor que ela precisa: eles lhes garantem que o corpo e a dor não são os objetos últimos de sua ação punitiva. É preciso refletir no seguinte: um médico hoje deve cuidar dos condenados à morte até ao último instante – justapondo-se destarte como chefe do bem- estar, como agente de não sofrimento, aos funcionários que, por sua vez, estão encarregados de eliminar a vida.27 Houve, portanto, um desvio do objeto da pretensão punitiva, não mais o corpo deveria sofrer as consequências do delito, o alvo passa a ser a alma do condenado. Segundo Foucault “À expiação que tripudia sobre o corpo deve suceder um castigo que atue, profundamente, sobre o coração, o intelecto, a vontade, as disposições.”28 Outra grande mudança aplicada foi o desaparecimento do espetáculo do suplício. O condenado não deveria ser visto, não haveria mais as festas da tortura pública. A execução se passaria agora em segredo e todo deslocamento seja para a morte, seja para o trabalho forçado, seria feito em uma carruagem fechada.29 Deste modo, as execuções bárbaras, como enforcamento, decapitação e tantas outras formas de suplício vão dando lugar às penas de prisão e de trabalho forçado, que aos poucos apareciam no cenário europeu. Sobre isso discorre Beccaria: 24FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. 31. ed. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 13 25 Ibidem, p. 14 26 Ibidem, p.15 27FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. 31. ed. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 16 28 Ibidem, p. 21 29 Ibidem, p. 19 19 O espetáculo atroz, mas momentâneo, da morte de um celerado é para o crime um freio menos poderoso do que o longo e contínuo exemplo de um homem privado de sua liberdade, tornado até certo ponto uma besta carga e que repara com trabalhos penosos o dano que causou à sociedade […] essa ideia terrível assombraria mais fortemente os espíritos do que o medo da morte, que se vê apenas um instante numa obscura distância que lhe enfraquece o horror.30 E ainda que, […] O legislador deve, por conseguinte, pôr limites ao rigor das penas, quando o suplício não se torna mais do que um espetáculo e parece ordenado mais para ocupar a força do que para punir o crime.31 Sendo assim, o corpo deixade ser o local no qual recai a fúria e o poder do soberano, passando a ser objeto do poder público em favor da coletividade. Fazia-se necessário, neste contexto de mudanças estabelecer, primeiramente, o que era uma prática delitiva, havia a necessidade de punir os indivíduos infratores com segurança, definindo a pena a ser imposta e assegurando sua aplicação de fato, uma vez que a transformação da própria sociedade européia exigia uma mudança imediata.32 Nota-se, desta forma, que os objetivos da punição começam a ser alterados, o alvo não é mais o suplício do condenado e sim a sua recuperação pela mudança de seu comportamento. E mais do que isso, era necessária uma delimitação do poder de punir controlando, contudo, as delinqüências da sociedade, deste modo pode-se dizer que “Em suma, a reforma penal, nasceu do ponto de junção entre a luta contra o super poder do soberano e a luta contra o infra poder das ilegalidades conquistadas e toleradas”33 Inicia-se, a partir de então, a mudança em relação ao processo de identificação do delito e o procedimento de investigação e julgamento que levará a condenação ou absolvição do suspeito, ou seja, começa a se organizar as bases do atual processo penal: 30BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Versão para eBook. Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/delitosB.pdf> Acesso em: 22/05/2017. p. 87 31BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Versão para eBook. Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/delitosB.pdf> Acesso em: 22/05/2017. p. 94 32FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. 31. ed. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 86 33 Ibidem, p. 87 20 Sem dúvida, a definição das infrações, sua hierarquia de gravidade, as margens de indulgência, o que era tolerado de fato e o que era permitido de direito – tudo isso se modificou amplamente nos últimos duzentos anos. Muitos crimes perderam tal conotação, uma vez que estavam objetivamente ligados a um exercício de autoridade religiosa ou a um tipo de vida econômica […]. Mas tais transformações não são, por certo, o mais importante: a divisão de permitido e proibido manteve, entre um e outro século, certa constância. Em compensação, o objeto “crime”, aquilo a que se refere a prática penal, foi profundamente modificado: a qualidade, a natureza, a substância, de algum modo, de que se constitui o elemento punível, mais do que a própria definição formal. A relativa estabilidade da lei obrigou um jogo de substituições sutis e rápidas. Sob o nome de crimes e delitos, são sempre julgados corretamente os objetos jurídicos definidos pelo código. Porém, julgam-se também as paixões, os instintos, as anomalias, as enfermidades, as inadaptações, os efeitos de meio ambiente ou de hereditariedade.34 O trabalho do magistrado também sofreu alterações, pois não mais estaria sozinho durante o desenrolar do processo penal ou na fase da execução da pena. Ele passa a ter colaboradores, como os educadores, peritos, psiquiatras, profissionais que poderiam esclarecer dúvidas, como por exemplo, a periculosidade do indivíduo, a possibilidade de insanidade mental, o cumprimento da pena em um presídio ou em um hospício, auxiliando-o, desta forma, em seu julgamento.35 Pode-se dizer, portanto, que no contexto das referidas mudanças “O direito de punir se deslocou da vingança do soberano à defesa da sociedade”.36 1.4 Prisão: o surgimento da instituição corretiva A prisão desde a antiguidade até o final do século XVIII servia apenas para a guarda e contenção dos réus, como um local para deixá-los até o momento em que seriam julgados ou executados. Era como um depósito de pessoas que ali ficavam aguardando seu suplício, geralmente em condições subumanas.37 A maioria das nações durante todo este tempo, até mesmo Grécia e Roma, tratavam a prisão como um local, em regra, de custódia, e não como pena, servindo apenas como meio de guarda e garantia do cumprimento dos castigos impostos.38 Contudo, a partir do século XIX, ela surge como uma marca das sociedades mais civilizadas, na qual a punição é exercida do mesmo modo para todo o povo, tornando a pena algo igualitário. “Desde os primeiros anos do século XIX, ter-se-á ainda consciência de sua novidade; e, entretanto ela surgiu tão ligada, e em profundidade, com o próprio funcionamento da sociedade, que relegou ao esquecimento todas as outras punições que os reformadores do século XVIIIhaviam imaginado” 39 34 Ibidem, p. 22 35FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. 31. ed. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 25-6 36 Ibidem, p. 89 37BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão: Causas e Alternativas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 28 38 Ibidem, p. 29-31 39FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. 31. ed. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 224 21 […] começou-se a observar que a prisão poderia ser útil instrumento não apenas à consecução dos fins gerais da pena a recair sobre os demais integrantes da sociedade, de modo a prevenir ou, ao menos, coibir a atuação dos predispostos à delinqüência. Viu-se na imposição de uma sanção estatal outras funções, entre as quais, a de regeneração e reeducação daqueles que se viam às voltas com o sistema carcerário […] 40 A partir do seu surgimento como pena, a prisão teve como objetivo não somente a punição com a privação de liberdade, visava a regeneração dos indivíduos infratores. Sendo que, lá, deveria haver uma ação intensa sobre o condenado, seja em sua educação, seja no combate à ociosidade, ou em sua disciplina. Para Foucault “ […] sua ação sobre o indivíduo deve ser ininterrupta: disciplina incessante. Enfim, ela dá um poder quase total sobre os detentos; tem seus mecanismos internos de repressão e de castigo: disciplina despótica”.41 Apesar da pena de reclusão ser igualitária, restringindo a liberdade dos infratores, ela deveria ser individualizada, ou seja, de acordo com o crime cometido seria aplicada determinada pena de modo que um condenado em faltas leves não estaria recluso com um condenado por faltas mais graves. 42 Neste sentido, “[…] se dois crimes que atingem desigualmente a sociedade recebem o mesmo castigo, o homem inclinado ao crime, não tendo que temer uma pena maior para o crime mais monstruoso, decidir-se-á mais facilmente pelo delito que lhe seja mais vantajoso […]”, deste modo a prisão deveria ser uma pena igualitária, porém, individualizada.43 Michel Foucault descreve a pena de prisão da seguinte forma “A prisão, essa região mais sombria do aparelho de justiça, é o local onde o poder de punir, que não ousa mais se exercer com o rosto descoberto, organiza silenciosamente um campo de objetividade em que o castigo poderá funcionar em plena luz como terapêutica e a sentença se inscrever entre os discursos do saber.”44 Desta forma a prisão como um todo deveria corroborar no seu objetivo de reeducação do detento sendo que até mesmo o isolamento dentro da prisão deveria garantir uma reflexão do condenado sobre suas próprias atitudes, uma convivência diária com a culpa, “O isolamento assegura o encontro do detento a sós com o poder que se exerce sobre ele”45 Mas qual deveria ser o tempo de permanência do condenado na prisão?Ela deveria ser o suficiente para transformar o detento durante sua pena: 40JUNQUEIRA, Ivan de Carvalho. Dos Direitos Humanos do Preso. São Paulo: Lemos & Cruz, 2005. p. 24. 41FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. 31. ed. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 228 42 Ibidem, p. 225-8 43BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Versão para eBook. Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/delitosB.pdf>Acesso em: 22/05/2017. p. 123 44FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. 31. ed. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 249-250 45FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. 31. ed. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 230. 22 A justa duração da pena deve, portanto, variar não só com o ato e suas circunstâncias, mas com a própria pena tal como ela se desenrola concretamente. O que equivale a dizer que, se a pena deve ser individualizada, não é a partir do indivíduo–infrator, sujeito jurídico de seu ato, autor responsável do delito. Mas a partir do indivíduo punido, objeto de uma matéria controlada de transformação, o indivíduo em detenção inserido no aparelho carcerário, modificado por este ou a ele reagindo.46 Nota-se, desta forma, que a pena deveria visar a correção do infrator e quando houvesse um resultado satisfatório, deveria ser restabelecido o convívio social do condenado já regenerado. Outra questão discutida ao tempo da disseminação das prisões no continente europeu, era o trabalho do condenado, sendo que a ideia não era a realização de trabalhos forçados para dar exemplos à sociedade, como ocorreu com os suplícios, na verdade, a intenção era a de uma combinação, uma vez que a pena de prisão viria acompanhada dos trabalhos a serem realizados, fazendo com que o prisioneiro fosse o meio e o fim do funcionamento das prisões. O trabalho realizado transformaria o condenado violento em um trabalhador dócil, em alguns países como na França havia até mesmo remuneração na tentativa de estimulação ao amor pelo trabalho.47 A utilidade do trabalho na prisão “ […] Não é um lucro; nem mesmo a formação de uma habilidade útil; mas a constituição de uma relação de poder, de uma forma econômica vazia, de um esquema da submissão individual e de seu ajustamento a um aparelho de produção.” 48 Surge, deste modo, para garantir maior controle sobre os detentos dentro das prisões, uma administração disciplinar, sobre a qual discorre Foucault “É preciso que o prisioneiro possa ser mantido sob um olhar permanente; é preciso que sejam registradas e contabilizadas todas as anotações que se possa tomar sobre eles”. Sendo assim, a prisão deveria ser um local de vigilância e estudo do comportamento do condenado para que a partir da pena imposta, houvesse uma transformação do condenado viabilizada pela própria prisão. 49 Trata-se de qualquer maneira de fazer da prisão um local de constituição de um saber que deve servir de princípio regulador para o exercício da prática penitenciária. A prisão não tem só que conhecer a decisão dos juízes e aplicá-la em função dos regulamentos estabelecidos: ela tem que coletar permanentemente do detento um saber que permitirá transformar a medida penal em uma operação penitenciária; que fará da pena tornada necessária pela infração uma modificação do detento, útil para a sociedade.50 1.5 Início da aplicação da pena de prisão no Brasil No Brasil, no fim do século XVIII e início do século XIX, embora houvesse uma forte tendência a copiar as novas formas de punir do continente europeu a escravidão fez tardar tais 46 Ibidem, p. 238. 47 Ibidem, p. 233-6. 48 Ibidem, p. 236-7. 49FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. 31. ed. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 242 50 Ibidem, 244. 23 modificações, sendo que até o final do século XIX, prisão e suplício se misturavam como forma de punição. 51 Pode-se dizer que as pretensas mudanças nas formas de punição do país, começam a ocorrer de fato com a construção da Casa de Correção do Rio de Janeiro, “A nova penitenciária deveria ser o local destinado ao cumprimento de penas que visam – a princípio – transformar, através do trabalho, o criminoso em um cidadão “probo e laborioso”. Deveria também servir de coerção às classes populares […]”52 A imposição da pena de prisão pode ser verificada a partir da Constituição Federal de 1824, na qual pode ser observada em seu artigo 179 inciso IX que: IX- Ainda com culpa formada, ninguem será conduzido á prisão, ou nella conservado estando já preso, se prestar fiança idonea, nos casos, que a Lei a admitte: e em geral nos crimes, que não tiverem maior pena, do que a de seis mezes de prisão, ou desterro para fóra da Comarca, poderá o Réo livrar-se solto. Importa ressaltar ainda o inciso XXI do mesmo artigo, o qual traz uma ideia de humanidade dentro da prisão: XXI- as Cadêas serão seguras, limpas, o bem arejadas, havendo diversas casas para separação dos Réos, conforme suas circumstancias, e natureza dos seus crimes.53 Porém, ao final do Primeiro Reinado e início do Período Regencial Brasileiro devido à intensificação dos tumultos e manifestações populares que se seguiram, no Rio de Janeiro algo precisava ser feito: As instabilidades políticas e as graves desordens no Rio de Janeiro forçavam uma atitude enérgica do governo em relação aos cárceres. Contudo, alguns melhoramentos nas prisões existentes não seriam suficientes para atender ao plano de controle que se pretendia exercer sobre os escravos, livres, pobres e libertos nas ruas da capital do império.54 Em 1830, havia três prisões no Rio de Janeiro: Calabouço, Aljube e Santa Bárbara, mas foi durante o Período Regencial Brasileiro que houve uma maior intensificação na tentativa de estabelecer a ordem prisional, sendo que “os tumultos ocorridos nas ruas da cidade durante os primeiros meses do governo regencial contribuíram para piorar ainda mais a situação dos cárceres” 55 Desta forma, em 1834 foi dado início ás obras da Casa de Correção do Rio de Janeiro, a primeira prisão com trabalhos no Brasil, em uma tentativa de adequar o sistema carcerário ao disposto na Constituição vigente.56 51ARAÚJO, Carlos Eduardo Moreira de . Cárceres Imperiais: a Casa de Correção do Rio de Janeiro. 2009. 328 f. Tese de Doutorado. ( Doutorado em História). Doutorado em História. Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2009. p. III. 52 Ibidem, p. 1. 53BRASIL. Constituição Federal de 1824.Outorgada em 25 de março de 1824. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm>. Acesso em: 03/07/2017. 54ARAÚJO, Carlos Eduardo Moreira de . Cárceres Imperiais: a Casa de Correção do Rio de Janeiro. 2009. 328 f. Tese de Doutorado. ( Doutorado em História). Doutorado em História. Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2009. p. 23 55 Ibidem, p. 25. 56 Ibidem, p. 46 24 Nota-se, desta forma, que com o passar dos anos, ao redor do mundo, as penas impostas aos indivíduos infratores sofriam mudanças significativas: A passagem dos suplícios, com seus rituais de ostentação, com sua arte misturada à cerimônia do sofrimento, as penas de prisões enterradas em arquiteturas maciças e guardadas pelo segredo das repartições, não é passagem a uma penalidade indiferenciada, abstrata e confusa; é a passagem de uma arte de punir a outra, não menos científica do que ela. Mutação técnica.57 Chegamos, por fim, ao século XXI, o qual possui suas próprias técnicas punitivas advindas, porém, das mudanças dos séculos passados. 57FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. 31. ed. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 251 25 2 DIREITOS HUMANOS E A REALIDADE DO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO No presente capítulo analisaremos, primeiramente, as generalidades dos Direitos Humanos e do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana para termos uma visão geral de sua conceituação e evolução ao longo da história e assim inserir tais conceitos no âmbitocarcerário brasileiro. Analisaremos ainda a pena privativa de liberdade como meio de entrada das prisões, e deste modo passaremos á análise de fato do sistema prisional brasileiro com a crescente onda de violência experimentada no início de 2017. 2.1 Generalidades dos Direitos Humanos O homem, desde sua concepção, é um sujeito de direitos, sendo que estes devem ser, indissociáveis da figura humana. O acesso à saúde, educação, moradia, alimentação, dentre vários outros devem ser analisados como direitos intrínsecos e indissociáveis da figura humana sendo que a definição da expressão “direitos humanos”, conforme Ivan de Carvalho Junqueira, “etimologicamente falando, envolve uma série de outros direitos e liberdades civis públicas de maneira que, sem embargo, a plenitude da contemplação desta expressão de forma cotidiana ensejaria elevado número de benefícios a todos os membros da coletividade, indistintamente”.58 Já a definição dada pela UNESCO aos direitos humanos fundamentais, por um lado, os considera como uma forma institucionalizada de proteção aos direitos das pessoas contra o poder do Estado e por outro, como regras pelas quais se estabelecem condições humanas para a vida e o desenvolvimento da personalidade humana. 59 “O importante é realçar que os direitos humanos fundamentais relacionam-se diretamente com a garantia de não ingerência do Estado na esfera individual e a consagração da dignidade humana, tendo um universal reconhecimento por parte da maioria dos Estados, seja em nível constitucional, infraconstitucional, seja em nível de direito consuetudinário ou mesmo por tratados e convenções internacionais.” 60 Tais direitos apresentam diversas características próprias, colocando-os em elevada posição hermenêutica em relação aos outros direitos estabelecidos no ordenamento jurídico, como a imprescritibilidade, uma vez que não se esvaem com o decorrer do tempo, a inalienabilidade, pois tais direitos não são passíveis de transferência seja a título gratuito ou a título oneroso.61 Os direitos humanos são, também, irrenunciáveis uma vez que não poderão ser renunciados, são invioláveis, porque não podem ser desrespeitados por autoridades públicas ou então por 58JUNQUEIRA, Ivan de Carvalho. Dos Direitos Humanos do Preso. São Paulo: Lemos & Cruz, 2005. p.37 59MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 20. 60MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 21. 61 Ibidem, p. 21-2 26 determinações infraconstitucionais. Apresentam também a característica da universalidade devido ao fato de que tais direitos englobam todos os indivíduos de um modo geral.62 Por fim, apresentam as características da efetividade, pois através de mecanismos coercitivos o Poder Público deverá garantir a efetivação de tais direitos, da interdependência pois para sua garantia são necessárias várias outras previsões legais dentro do Ordenamento Jurídico e da complementaridade pois os direitos humanos deverão ser interpretados de forma conjunta e não isoladamente almejando alcançar todos os objetivos intentados pelo legislador.63 Em relação ao desenvolvimento histórico de tais direitos, percebe-se que no decorrer do tempo e ao redor do mundo registraram-se marcos de grande valia à humanidade. Neste sentido, vale citar, a Carta Magna Libertatum, outorgada pelo Rei João, nos campos ingleses, na Alta Idade Média, com seu célebre dispositivo de número 39, o qual previa que nenhum homem livre seria privado de seus bens e de sua liberdade antes de ser julgado por seus pares ou pela lei de sua terra. 64 A Bill ofRights, de 1689, na Inglaterra, elaborou um modo de organização estatal objetivando a proteção dos direitos fundamentais. A Declaração Americana, de 4 de julho de 1776, reconheceu a necessidade de delimitar os princípios referentes a soberania popular, assim como o respeito às diferenças de ordem étnica, religiosa, cultural, social.65 Cita-se ainda, a Convenção de Genebra de 1864, pela qual muitas prerrogativas dos direitos humanos foram introduzidas internacionalmente, visando diminuir o sofrimento dos soldados e feridos de guerras. 66 Há inúmeros documentos, ainda, que, em síntese, merecem destaque, como a Constituição Mexicana de 1917, a Constituição de Weimar, de 1919, a Carta das Nações Unidas, a Convenção Europeia de Direitos Humanos, de 1950; a Convenção Americana, aprovada na conferência de São José da Costa Rica e por fim a Declaração Universal dos Direitos Humanos proclamada em 1948 na Assembleia Geral das Nações Unidas.67 Em relação a sua classificação, atualmente, tem sido apresentada pela doutrina uma organização dos Direitos Humanos tomando por base a ordem histórica em que passaram a ser reconhecidos constitucionalmente, sendo classificados como direitos fundamentais de primeira, segunda e terceira geração.68 Na primeira geração dos direitos humanos estão as liberdades públicas representadas pelas garantias e direitos individuais e políticos clássicos, já na segunda geração encontram-se os direitos econômicos, sociais e culturais e na terceira geração os direitos de fraternidade ou solidariedade, o qual representa o direito a uma qualidade de vida saudável, a paz, o progresso, a autodeterminação dos povos e um meio ambiente equilibrado.69 Porém, mesmo com toda essa evolução ocorrida ao longo da história mundial e a adoção de tais normas por grande parte dos países, é incabível pensar em direitos humanos fora de um Estado 62 Ibidem, p. 22 63 Id Ibidem. 64JUNQUEIRA, Ivan de Carvalho. Dos Direitos Humanos do Preso. São Paulo: Lemos & Cruz, 2005. p. 38. 65JUNQUEIRA, Ivan de Carvalho. Dos Direitos Humanos do Preso. São Paulo: Lemos & Cruz, 2005. p. 41 66 Ibidem, p. 44. 67 Id Ibidem. 68MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 25 69 Id Ibidem. 27 Democrático de Direito, uma vez que a democracia caracteriza-se justamente por ser uma soberania popular com total respeito aos direitos humanos. 70 2.2 Do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana Importante também se faz o estudo do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, estabelecido pelo artigo 1º da Constituição Federal em seu inciso 3º, o qual o garante como um dos Princípios Fundamentais da República Federativa do Brasil. A conceituação de dignidade, é “[…] qualidade, irrenunciável e inalienável, ínsita a todo ser humano que veda a submissão deste a tratamentos degradantes e a situações em que inexistam ou sejam escassas as condições materiais ou morais mínimas para sua subsistência ou autodeterminação”71 A dignidade da pessoa humana funda-se nas condições mínimas de existência que o Estado deve garantir ao indivíduo para que este tenha uma vida digna, levando em consideração os direitos inerentes à personalidade da pessoa e também aqueles estabelecidos para a coletividade.72 Tal princípio inserto na CF, ao ser considerado como fundamental, demonstra que todo o ordenamento jurídico brasileiro deve tomá-lo por base, sendo deste modo, um princípio orientador.73 Nas palavras de Ricardo Castilho, ao ser um princípio fundamental de todo o ordenamento, orientando todas as demais normas e princípios, pode ser chamado de supraprincípio e, assim sendo, a dignidade humana deve ser preservada e realizada ao máximo e em cada situação concreta. 74 Deste modo, a dignidade humanadeve também ser inserta e analisada no âmbito carcerário isto porque, salvo as peculiares restrições inerentes ao instituto da prisão e, conseguintemente, à liberdade de locomoção (direito de ir, de vir, de restar e/ou permanecer), dever-se-á resguardar, ao menos, grandioso liame de garantias para com o ser humano preso, então não mais vinculadas aos efeitos da sentença penal condenatória. Neste diapasão, cediço é que “o preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral” (CP, artigo 38). De maneira que, “ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela Lei”. 75 Assim, torna-se evidente o quão importante é a discussão dos Direitos Humanos da pessoa do preso tanto quanto a sua Dignidade Humana, uma vez que a pena privativa de liberdade não lhe retira tais garantias.“À sanctio juris caberá tão-somente impor certas restrições á liberdade individual, o que já não se mostra pouco. Havendo, pois, inclusão de outras formas de apenamento (torturas, p. ex), estar-se á admitindo o retorno de abomináveis anseios de vingança privada.”76 70JUNQUEIRA, Ivan de Carvalho. Dos Direitos Humanos do Preso. São Paulo: Lemos & Cruz, 2005. p. 45. 71CASTILHO, Ricardo. Direitos Humanos. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2013 p. 17. 72 Ibidem, p. 179. 73 Ibidem, p.182-3. 74 Ibidem, p. 184. 75JUNQUEIRA, Ivan de Carvalho. Dos Direitos Humanos do Preso. São Paulo: Lemos & Cruz, 2005, p. 62 76 Ibidem, p. 63 28 Verificasse, desta forma, que a não observância de tais direitos à pessoa do condenado mostra- se como um grande retrocesso, fugindo aos objetivos da pena privativa de liberdade e retrocedendo-se à muitos séculos na história, tempo em que a pena tinha apenas um caráter retributivo, como uma eterna lei de Talião. Neste sentido “sendo os presos, outrossim, sujeitos de direito, ressalte-se isto outra vez, enquanto não forem tratados como tal, incapazes serão os estabelecimentos penais à reeducação do Homem. Às palavras Oscar Wilde, “o que mais espanta não são os crimes praticados pelos maus, mas os castigos aplicados pelos chamados bons””. 77 Por fim, salienta-se que a declaração Universal dos Direitos Humanos “reconhece a dignidade como inerente a todos os membros da família humana e como fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo.”78 2.3 A Pena Privativa de Liberdade como entrada da prisão: Instituições em Crise A pena privativa de liberdade, assim como as penas antecessoras, de morte e castigos corporais, surgiu com o fim de manter à exposição o condenado, para que houvesse a propagação de sua imagem de criminoso, visto pela sociedade como um perigo a ser combatido, um inimigo. “Essa personalização e a visibilidade do “criminoso” contribuem de maneira decisiva para a ocultação de desvios pessoais, assim contribuindo para o reforço de estruturas de dominação, para o reforço do poder”. 79 Já no contexto jurídico atual, a pena, de um modo geral, é definida como um meio de sanção imposto pelo Estado para retribuir, através da ação penal, a prática de um ato ilícito, tendo como fim evitar novos delitos. A função geral da pena é a prevenção delitiva, já sua função especial, tem como objeto o agente infrator em uma tentativa de reintegrá-lo socialmente e impedi-lo de tornar a delinqüir.80 No Brasil as características das penas estão embasadas no artigo 5º da Constituição Federal e são: personalidade (inciso XLV) e legalidade (inciso XXXIX) e ainda a inderrogabilidade e a proporcionalidade. 81 Já o artigo 32 do Código Penal estabelece as espécies de pena, quais sejam: privativas de liberdade, restritivas de direito e multa. As penas privativas de liberdade se dividem em reclusão e detenção, conforme artigo 33, caput, do Código Penal, o qual ainda estabelece que a reclusão deve ser cumprida em regime fechado, semi-aberto ou aberto, já a de detenção será cumprida em regime semi- aberto ou aberto, salvo se for necessário o retorno ao regime fechado.82 O primeiro parágrafo do referido artigo destina-se a estabelecer o modo de cumprimento da pena em cada um dos regimes, sendo que no fechado o cumprimento da pena se dá em 77 WILDE, Oscar apud JUNQUEIRA, Ivan de Carvalho, 2005 p. 145. 78MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 49. 79MATTOS, Virgílio de. (Org). Desconstrução das Práticas Punitivas. Belo Horizonte: CRESS-MG e CRP-MG, 2010. p. 14-15. 80MIRABETE, Julio Fabbrini; FABBRINI, Renato N. Fabbrini. Código Penal Interpretado 7. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 32 81BRASIL. Constituição Federal de 1988. In: Vade Mecum Saraiva. 2. ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 10. 82BRASIL.Código Penal. Decreto Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Vade Mecum. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 526. 29 estabelecimento de segurança máxima ou média, o semi-aberto em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar e, por fim, o aberto será cumprido em casa de albergado ou estabelecimento adequado.83 Ressalta-se ainda que, ressalvadas as hipóteses de transferência para regime mais rigoroso, o indivíduo que for condenado a uma pena superior a oito anos começará a cumpri-la em regime fechado, já o condenado não reincidente que tiver decretada a sua pena em mais de quatro anos e não excedente a oito, poderá cumpri-la desde o início em regime semi-aberto e aquele que condenado, não sendo reincidente, tenha uma pena igual ou inferior a quatro anos, poderá cumpri-la desde o início em regime aberto, conforme estabelecido no parágrafo 2º do mesmo artigo. 84 Porém, é o artigo 59 do Código Penal que destina-se a estabelecer o regime inicial da pena, determinando que, o juiz, estabelecerá, embasado na conduta social, na personalidade do agente, nos motivos, conseqüências e circunstâncias do crime e ainda no comportamento da vítima a pena a ser aplicada dentre as cominadas, bem como, quando cabível, a substituição por outra espécie de pena.85 Tudo isso, refere-se ao modo como o ordenamento jurídico brasileiro trata as penas, e mais especificamente a pena privativa de liberdade, mas, após o indivíduo ser conduzido ao estabelecimento prisional, como se dá a prática, e o dia-a-dia de tal indivíduo neste ambiente? Muito tem sido questionado a respeito da pena de prisão, principalmente quando se leva em conta o cenário carcerário e a infraestrutura de seus estabelecimentos. De acordo com Bitencourt, a partir do século XIX, quando houve uma acentuada tendência à aplicação de penas privativas de liberdade em estabelecimentos carcerários, havia a crença de que a prisão seria um meio eficaz de realização das finalidades da pena reabilitando o condenado.86 Porém, as expectativas logo desapareceram e deram lugar às dúvidas sobre a capacidade de ressocialização do detento em um ambiente tão caótico como tem sido o sistema carcerário de um modo geral, uma vez que em tais condições seria impossível que a prisão alcançasse seu objetivo reabilitador. Conforme ressaltado: As graves deficiências das prisões não se limitam a narrações de alguns países; ao contrário, existem centros penitenciários em que a ofensa à dignidade humana é rotineira, tanto em nações desenvolvidas como em subdesenvolvidas. As mazelas da prisão não são privilégios apenas de países do terceiro mundo. De um modo geral, as deficiências prisionais compendiadas na literatura especializada apresentam muitas características semelhantes: maus tratos verbais ( insultos, grosserias etc.) ou de fato ( castigos sádicos, crueldades injustificadas e vários métodos sutis defazer o recluso sofrer sem incorrer em evidente violação do ordenamento etc.); superlotação carcerária, o que também leva a uma drástica redução do aproveitamento de outras atividades que o centro penal deve proporcionar […]87 Depreende-se, deste modo, que a crise enfrentada pela pena privativa de liberdade faz com que o objetivo de reeducar o condenado para uma vida em sociedade, não seja alcançado, pois ao invés de por freios à delinquência a prisão a tem estimulado. 83BRASIL.Código Penal. Decreto Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Vade Mecum. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 526. 84 Id Ibidem. 85 Ibidem, p. 529. 86BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão: Causas e Alternativas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p.162 87BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão: Causas e Alternativas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 163-4. 30 Christopher Hibber, em seu livro Lasraíces Del mal, expõe a influência negativa da prisão sobre um condenado que relata sua própria experiência prisional ao dizer que aos 15 anos foi enviado a uma instituição para jovens, saindo de lá com 16 anos convertido em um ladrão de bolsos. Ainda com 16 anos foi enviado a um reformatório como batedor de carteiras e de lá saiu como ladrão. Como ladrão foi enviado à uma instituição na qual diz ter adquirido todas as características de um delinquente profissional, praticando todo o tipo de delitos.88 Tal relato faz crer que a prisão imposta ao indivíduo por meio da pena privativa de liberdade, inflinge uma série de efeitos negativos à pessoa do encarcerado, principalmente no que diz respeito aos fatores materiais, psicológicos e sociais. Sendo que os fatores materiais dizem respeito à deficiência das instalações carcerárias, algo que contribui para a deterioração da saúde física e psicológica dos reclusos. Já referente aos fatores psicológicos “sob o ponto de vista social, a vida que se desenvolve em uma instituição total facilita a aparição de uma consciência coletiva que, no caso da prisão, supõe a estruturação definitiva do amadurecimento criminoso”.89 Por fim, os fatores sociais referem-se a desadaptação ocasionada pela retirada de um indivíduo de seu meio social, principalmente quando se leva em consideração as mudanças ocorridas na própria sociedade, sendo que, ao contrário do que se espera, uma segregação prolongada poderá, até mesmo, impedir a ressocialização do recluso.90 Salienta-se que a prisão como meio de controle social fracassou em seu objetivo geral ressocializador, uma vez que na busca pela redução da criminalidade por meio da ressocialização do recluso, acaba por transmitir a ele seus efeitos criminogênicos. “Exatamente, porque a sua função real, ao contrário do que anuncia é de “sementeira” de criminalização e de reiteração criminal”.91 Ressalta-se, ainda, que o cárcere além de nunca ter conseguido seu objetivo de reeducar e ressocializar seus agentes sempre reproduziu os valores das classes dominantes, daí a crítica ao sistema prisional, “dir-se-ia que, depois da euforia inicial da defesa social, vive-se uma profunda desilusão”. 92 Neste sentido, também pode ser levado em consideração as palavras de Vera Regina Pereira de Andrade que defende que o sistema prisional tem promovido sua eficácia de forma inversa à prometida não conseguindo garantir o cumprimento de suas funções oficialmente declaradas, e,ainda, que não tem conseguido reduzir a criminalidade, pelo contrário, ela a fabrica e condiciona seus apenados à reincidência. 93 Vê-se, deste modo que a prisão, de um modo geral, apesar de ter surgido como um aprimoramento das penas, um progresso no âmbito do direito penal [...] nunca evitou a formação de conflitos ou a ocorrência das condutas etiquetadas como crimes. O próprio discurso oficial acaba por revelar essa realidade. […] A realidade claramente indica que o surgimento de conflitos ou de condutas negativas ou indesejáveis pouco tem haver com o número de pessoas punidas ou com a intensidade das penas impostas.94 88 HIBBERT, Christopher apud BITENCOURT, Cezar Roberto, 2011, p. 165. 89BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão: Causas e Alternativas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 166. 90 Ibidem, p. 166-7. 91TRINDADE, Lourival Almeida. Ressocialização...uma (dis) função da pena de prisão. s.l. Sergio Antonio Fabris Editor, 2002. p. 18. 92 Ibidem, p. 29. 93ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema Penal Máximo X Cidadania Mínima: códigos da violência na era da globalização. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003.p. 89-91. 94MATTOS, Virgílio de. (Org). Desconstrução das Práticas Punitivas. Belo Horizonte: CRESS-MG e CRP-MG, 2010. p. 11-12. 31 Desenvolvendo seu raciocínio, o autor ressalta, ainda, a impossibilidade e incompatibilidade da utilização da pena de prisão para reintegrar um indivíduo à sociedade, uma vez que para alcançar tal objetivo, ela o retira do convívio social, mostrando-se como um meio totalmente ineficaz de recuperar alguém.95 2.4 O Cenário Carcerário Brasileiro Conforme os últimos dados divulgados em 2014 pelo Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN), o Brasil possui uma população carcerária de mais de seiscentos e sete mil pessoas privadas de liberdade, representando uma média de trezentos presos para cada cem mil habitantes no país.96 Ocorre, porém, que ao todo não passam de trezentos e setenta e sete mil vagas no sistema penitenciário, o que resulta em um déficit de mais de duzentas e trinta e uma mil vagas faltantes com uma taxa de ocupação média em torno de 161%. Em síntese, o relatório informa que uma cela destinada a dez presos, é ocupada por dezesseis.97 Ressalta-se que conforme tais dados, desde 2000 até 2014, a população carcerária crescia uma média de 7% ao ano, ou seja, mais rápido que a própria população brasileira. Tudo isso, por si só, demonstra a fragilidade do sistema prisional no Brasil, que traz como uma de suas características mais notórias a superlotação. 98 Outro importante documento para uma análise geral da situação dos presídios no Brasil é o relatório da II Caravana Nacional de Direitos Humanos, destinada à análise da realidade prisional brasileira com a realização de visitas em presídios, penitenciárias e delegacias em seis Estados do país reunindo cerca de 15 mil presos.99 Em apresentação ao referido documento o Deputado Marcos Rolim, presidente da Comissão de Direitos Humanos, destaca que: Nossas inspeções se realizaram, todas, sem prévio aviso, o que garantiu a possibilidade de inúmeros flagrantes de situações irregulares e procedimentos ilegais. A sensação que temos, ao final dos nossos trabalhos, é a de que conhecemos um sistema absolutamente "fora da lei". Os imperativos definidos pela Lei de Execução Penal (LEP) são solenemente ignorados em todos os estados. Realidade do arbítrio, os presídios brasileiros são uma re-invenção do inferno. A resultante, entretanto, não é uma construção metafísica ou uma especulação religiosa. Aqui, os demônios tem pernas e visitam os presos a cada momento.100 O referido relatório vai além de meros dados, números frios, ele entra nas celas e escancara a realidade dos presídios no Brasil. Relata sobre as condições precárias de infraestrutura, maus tratos 95 Id Ibidem. 96LEVANTAMENTO Nacional de Informações Penitenciárias. Justiça.gov. Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen- versao-web.pdf>. Acesso em 24/07/2017. 97 Id Ibidem. 98 Id Ibidem. 99RELATÓRIO da II Caravana Nacional de Direitos Humanos: uma amostra da realidade prisional brasileira. Dhnet. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/dados/caravanas/br/iicaravana.html>Acesso em: 24/07/2017. 100 Id Ibidem. 32 recebidos pelos presos, violência, revistas vexatórias as quais são expostos seus familiares, falta de higiene, de prevenção de doenças, de iluminação, de alimentação e tantas outras ausências. Conforme visita surpresa realizada pela Caravana no II Distrito Policial no bairro de Aldeota em Fortaleza/CE, as celas daquele Distrito, assim como a maioria visitada nos demais Estados, possuem um odor fétido que exalam ao longe. São todas escuras e sem ventilação, no meio da sujeira e do lixo transitam dezenas de baratas, e os presos são obrigados a dormir no chão frio, sendo que a maioria desenvolveu doenças de pele e bronco-pulmonares.101 De um modo geral o referido relatório demonstra que a população carcerária é doente, com vários casos de HIV, tuberculose, leptospirose, osteomilite, sendo que falta atendimento médico, que geralmente é prestado pelos próprios presos, algo que ocorre no Presídio Aníbal Bruno em Recife/PE, o qual, segundo o relatório, era, à época, um dos recordistas de superlotação, com históricos de motins, fugas, repressões e mortes violentas. Segundo relatos dos presos ao chegarem ao presídio ficam em uma cela de triagem e durante este período são espancados.102 Problemas não faltam também quanto a estrutura dos estabelecimentos prisionais, a qual muito diz sobre a capacidade das prisões de reeducarem seus detentos. Toma-se como exemplo o Presídio Evaristo de Moraes no Rio de Janeiro, descrito no relatório como um ginásio com mais de vinte metros de altura, coberto com telhas de Brasilit, sendo que as celas não possuem teto, apenas a cobertura do próprio ginásio que vive infestada de pombos que defecam o tempo todo na cabeça dos presos.103 Há ainda a informação de que as celas são fétidas, insalubres e cheias de ratos. Os espaços destinados à punição são cubículos de seis metros quadrados sem ventilação, sobre os quais diz o relatório que “Aí, chegamos a encontrar 16 presos. Um deles dormia sobre a água que inundava o “banheiro”. O calor ali dentro e o cheiro - que de tão forte impregna a roupa - tornam a permanência naquelas celas, ainda que por alguns minutos, um sofrimento."104 Já no Rio de Janeiro foi visitada a Penitenciária Laércio da Costa Pellegrino, mais conhecida como Bangu I, local que assim como a maioria dos presídios no país, segundo o relatório, divide os presos em suas celas conforme as quadrilhas as quais pertençam, como o “Comando Vermelho” e tantas outras. Porém, as reclamações por parte dos presos foram sobre a ociosidade, uma vez que não lhes são oferecidos trabalho ou estudo, pois imagina-se que isso poderia trazer riscos à segurança do local.105 Em São Paulo, foi visitada a DEPATRI, Delegacia especializada no combate aos crimes contra o patrimônio. Neste local, a Caravana colheu relatos de presos sobre ocorrências de maus tratos e espancamento. “Por esses relatos, os presos indicaram uma sala, na parte térrea da delegacia, onde alguns deles teriam sido torturados. Nos indicaram que a máquina utilizada para o suplício dos choques elétricos, aplicada normalmente sobre os testículos das vítimas […] estaria na sala indicada dentro de um armário”.106 Ainda em São Paulo, na Penitenciária Feminina do Butantã (Doutora Maria Marigo Cardoso de Oliveira), assim como na maioria das prisões visitadas, há violação de correspondências, e neste local em específico foi encontrado um saco de lixo no qual estavam depositadas cartas e requerimentos 101RELATÓRIO da II Caravana Nacional de Direitos Humanos: uma amostra da realidade prisional brasileira. Dhnet. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/dados/caravanas/br/iicaravana.html> Acesso em: 24/07/2017. 102 Id Ibidem. 103 Id Ibidem. 104RELATÓRIO da II Caravana Nacional de Direitos Humanos: uma amostra da realidade prisional brasileira. Dhnet. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/dados/caravanas/br/iicaravana.html> Acesso em: 24/07/2017. 105 Id Ibidem. 106 Id Ibidem. 33 das presas à diretora da penitenciária. Houve pelas presas, também, a denúncia de espancamento e violência sexual por parte de um agente.107 No Estado do Paraná, no Presídio Central de Piraquara, um detento chamado Valdir José Chamoskosvisk, conhecido como “general” foi encontrado em uma cela de isolamento havia sete anos, conforme registros do próprio presídio. Durante todo este tempo não havia recebido visitas ou tomado banho de sol.Não era, contudo, o único caso, foram encontrados outros presos em situações semelhantes de isolamento, um havia três anos e outro um ano e meio. 108 Importante, ainda, se faz discorrer sobre a revista vexatória, que Em verdade, consiste em instrumento para atingir indiretamente o apenado e diretamente a família, podendo ser considerada, inclusive, um meio de tortura por oferecer tratamento cruel, desumano e degradante não somente aos detentos, mas a sua própria família, pois todos são suspeitos, por pertencerem todos ao mesmo celeiro e, por ser igual, também, a sua origem: negros, pobres, com baixa escolaridade e com alta vulnerabilidade social.109 A Caravana de Direitos Humanos encontrou esta prática na maioria dos estabelecimentos prisionais pelos quais passou, uma vez que não possuem detector de metais. Tais revistas são feitas em regra pelo desnudamento, como no Presídio Central de Piraquara, local em que a Caravana recebeu até mesmo a denúncia de familiares dos presos que alegaram caso de abuso sexual contra a mulher de um preso por parte de um funcionário.110 Dentre tantas adversidades encontradas pelos reclusos, outra grande preocupação é com a falta de assistência judiciária. Neste sentido Ivan de Carvalho Junqueira, em visita à Penitenciária do Estado de São Paulo, relata que ali muitos não tinham sequer procurador, e que a assistência fornecida pela FUNAP (Fundação de Amparo ao Trabalhador Preso) é precária, levando-os a recorrerem diretamente ao Ministério Público em uma tentativa de resolução de questões como progressão de regime, unificação de penas, revisão criminal, dentre outras.111 De um modo geral, a II Caravana de Direitos Humanos, constatou nos estabelecimentos prisionais brasileiros, várias outras formas de violações às garantias fundamentais dos presos. Cita-se como exemplo a vigilância feita com a utilização de armamento por parte dos funcionários e policiais, como no Presídio Central no Rio Grande do Sul. Celas com vedação acústica, conhecidas como “cofres”, as quais possuem uma dupla estrutura de encarceramento, uma cela dentro de outra como na Penitenciária do Estado em São Paulo. Presos já condenados cumprindo pena em Delegacias superlotadas como na Delegacia de Furtos e Roubos de Curitiba.112 107 Id Ibidem. 108 Id Ibidem. 109MATTOS, Virgílio de. (Org). Desconstrução das Práticas Punitivas. Belo Horizonte: CRESS-MG e CRP-MG, 2010. p. 95. 110RELATÓRIO da II Caravana Nacional de Direitos Humanos: uma amostra da realidade prisional brasileira. Dhnet. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/dados/caravanas/br/iicaravana.html> Acesso em: 24/07/2017. 111JUNQUEIRA, Ivan de Carvalho. Dos Direitos Humanos do Preso. São Paulo: Lemos & Cruz, 2005. p. 115-6 112RELATÓRIO da II Caravana Nacional de Direitos Humanos: uma amostra da realidade prisional brasileira. Dhnet. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/dados/caravanas/br/iicaravana.html> Acesso em: 24/07/2017. 34 Nas palavras de Virgílio de Mattos, Às dores inerentes à privação de liberdade somem-se dores físicas provocadas pela falta de ar, de sol, de luz, pela promiscuidade dos alojamentos, pela precariedade das condições sanitárias, pela falta de higiene, pela alimentação muitas vezes deteriorada, o que resulta na propagação de doenças, especialmente doenças transmissíveis que atingem os presos em proporçõesmuito superiores aos índices registrados nas populações em geral.113 Como se não bastassem tantas precariedades, algo que também chama a atenção é que a maioria destas pessoas que passam por esta situação dentro destes estabelecimentos prisionais, nem mesmo foram condenadas. Conforme dados do Infopen de junho de 2014, 41% das pessoas em situação de privação de liberdade são presos sem condenação e ainda que “apenas 3% das pessoas privadas de liberdade estão em regime aberto e 15% em semiaberto. Para cada pessoa no regime aberto, há cerca de 14 pessoas no regime fechado; para cada pessoa do regime semiaberto, há aproximadamente três no fechado” , algo que colabora ainda mais com a superlotação carcerária.114 O relatório do Infopen, traçou ainda o perfil da população carcerária no país, chegando à constatação de que a maior parte é formada por jovens de 18 à 29 anos. Quanto à raça, cor ou etnia, dois em cada três presos são negros, o que representa 67% desta população, foi constatado também que 57% é solteira. Já em relação à escolaridade, constata-se que o nível de estudo dos presos é muito baixo, sendo que cerca de oito em cada dez pessoas presas estudaram até o ensino fundamental. 115 A respeito do sistema penitenciário brasileiro, importante, ainda, é ressaltar que no início de 2017, ocorreu uma série de rebeliões em alguns presídios brasileiros originadas pelas maiores facções de narcotráfico do país, as quais incentivavam ou promoviam rebeliões em unidades prisionais de alguns Estados Brasileiros.116 No dia 1º de janeiro no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em Manaus, segundo autoridades estaduais, o motim foi originado por uma guerra entre as facções, Família do Norte e Primeiro Comando da Capital, resultando em 56 mortes, tornando-se o segundo caso com maior número de mortos, perdendo apenas para o chamado Massacre do Carandiru, com 111 mortes.117 No dia 6 de janeiro, na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo em Boa Vista/RR em uma rebelião iniciada ainda de madrugada foram constatadas a morte de 33 presos, já em Natal no Rio Grande do Norte, 26 presos morreram em rebelião ocorrida na Penitenciária Estadual de Alcaçuz, sendo que o motim iniciado dia 14 foi contido apenas dia 15 de janeiro sendo mais um episódio, segundo o secretário Estadual da Justiça e Cidadania, de guerra entre facções para controlar o narcotráfico local.118 Já na Penitenciária Estadual de Piraquara, situada na região metropolitana de Curitiba houve registro da morte de dois e a fuga de 28 presos na madrugada do dia 15 de janeiro. No dia 16 de janeiro em Ribeirão das Neves/MG, presos reivindicaram melhorias nos atendimentos dentro do Presídio Antônio Dutra Ladeira, inclusive em relação ao tratamento de seus parentes. Em santa 113MATTOS, Virgílio de. (Org). Desconstrução das Práticas Punitivas. Belo Horizonte: CRESS-MG e CRP-MG, 2010. p. 19. 114LEVANTAMENTO Nacional de Informações Penitenciárias. Justiça.gov. Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen- versao-web.pdf>. Acesso em 24/07/2017. 115 Id Ibidem. 116JADE, Líria. Entenda a Crise no Sistema Penal Brasileiro. EBC. Disponível em: <http://www.ebc.com.br/especiais/entenda-crise-no-sistema-prisional-brasileiro> Acesso em: 26/07/2017. 117JADE, Líria. Entenda a Crise no Sistema Penal Brasileiro. EBC. Disponível em: <http://www.ebc.com.br/especiais/entenda-crise-no-sistema-prisional-brasileiro> Acesso em: 26/07/2017. 118 Id Ibidem. 35 Catarina, dia 19 de janeiro, no Presídio Regional de Lages, dez presos ficaram feridos em um motim, no qual foi ateado fogo em colchões. Por fim, em Bauru/SP uma rebelião no Instituto Penal Agrícola resultou a fuga de 200 presos. 119 Conforme citação feita por Virgílio de Mattos das palavras do Ministro Evandro Lins e Silva : “Prisão é de fato uma monstruosa opção. O cativeiro das cadeias perpetua-se ante a insensibilidade da maioria, como uma forma ancestral de castigo. Para recuperar, para ressocializar, como sonharam nossos antepassados? Positivamente, jamais se viu alguém sair de um cárcere melhor do que quando entrou […] Legalmente, dentro dos padrões convencionais não podem viver ou sobreviver.”120 Diante deste cenário caótico, verifica-se como urge a humanização do sistema prisional do país para que a população carcerária seja de fato ressocializada e reeducada conforme objetivo primordial das prisões. 119 Id Ibidem. 120 SILVA, Evandro Lins e apud MATTOS, Virgílio de, 2010 p. 18-19. 36 3 APLICAÇÃO DA LEI: A DISTÂNCIA ENTRE A TEORIA E A PRÁTICA No presente capítulo analisaremos o modo como a legislação brasileira se posiciona em relação ao indivíduo preso, fazendo uma comparação com a realidade carcerária vivenciada por todo país. Passaremos então á análise dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos dos quais o Brasil é signatário e a recente condenação pela ONU às rebeliões ocorridas em presídios brasileiros no início de 2017. Por fim, discorreremos sobre a imposição de penas alternativas aos condenados, em uma tentativa de humanização das punições impostas, dada a atual conjuntura prisional do país. 3.1 Dos Direitos do Preso Em relação ao Sistema Prisional, existe, no Brasil, uma grande diferença entre o que é estabelecido por lei e o que ocorre na prática. O preso, como qualquer pessoa, ainda continua a ser um sujeito de direitos, o que bem pode ser verificado pela análise da lei 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal), em seu capítulo IV, seção II, que aborda de forma direta os direitos do preso, além da Constituição Federal e legislações esparsas. Conforme inciso I do artigo 41 da Lei de Execução Penal, é direito do preso ter alimentação suficiente e vestuário. Ressalta-se que a aplicação do referido direito é urgente uma vez que, conforme Ivan de Carvalho Junqueira “não raro é preciso “recortar” os alimentos, procedimento este consistente na lavagem e, conseguinte, cozimento pelos próprios internos, da refeição antes servida, até então, imprópria ao consumo”.121 O referido autor ainda cita o testemunho de Luiz Alberto Mendes feito em seu livro Memórias de um Sobrevivente, o qual relata uma situação vivida em sua passagem pela prisão: A fome e o frio começaram a nos preocupar. Passaram-se os dias e as noites sem que ninguém se lembrasse de nós. Três dias depois, veio o carcereiro para ver se estávamos vivos. Pedimos comida. Respondeu que, naquela delegacia, ladrão não comia, e saiu batendo o portão de ferro da carceragem […] No décimo dia, o carcereiro apareceu com uma dessas latas de dezoito litros de óleo, cheia até a metade de macarrão. De longe cheirava azedo. Derrubamos a lata no chão, pois ficou para fora da grade e, como animais, devoramos até o último foi de macarrão, qual fosse a comida mais gostosa do mundo! 122 Outro direito do preso é o trabalho e sua remuneração, conforme inciso II do mesmo artigo. Embora este seja um direito que deve ter a concordância do preso, é algo que pode diminuir os efeitos negativos da prisão sobre ele com a redução do ócio, possibilidade de remição da pena e remuneração. Neste sentido, torna-se clara a necessidade de valorização e incentivo ao trabalho intramuros em uma tentativa de ressocialização por meio do labor. 123 121JUNQUEIRA, Ivan de Carvalho. Dos Direitos Humanos do Preso. São Paulo: Lemos & Cruz, 2005. p, 84. 122 MENDES, Luiz Alberto apud JUNQUEIRA, Ivan de Carvalho, 2005, p. 85-6. 123JUNQUEIRA, Ivan de Carvalho. Dos Direitos Humanos do Preso. São Paulo: Lemos & Cruz, 2005. p. 86-7 37 Ao preso deve ser garantida a Previdência Social, constituição de pecúlio, proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho,
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