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Literatura e ensino Comitê Editorial Ana Guedes (Unicamp) Carla Lynn Reichmann (UFPB) Clécio Buzen (UFPE) Dora Riestra (Universidad Nacional de Rio Negro) Florencia Miranda (Universidade Nacional do Rosário) Francine Cicurel (Sorbonne Nouvelle Paris 3) Ecaterine Bulea-Bronckart (Université de Genève) Eulália Leurquin (UFC) Jean-Paul Bronckart (Université de Genève) Jean-Remi Lapaire (Université Bordeaux Montaigne) Joaquim Dolz (Université de Genève) Juliana Alves Assis (PUC/Minas) Luzia Bueno (Universidade de São Francisco) Maria Ângela Paulino Teixeira Lopes (PUC/Minas) Maria Antónia Coutinho (Universidade Nova de Lisboa) Pierre-Yves Testenoire (Université Sorbonne) Roxane Gagnon (Université de Genève) eulália Leurquin Fernanda Coutinho (0rganizadoras) Literatura e ensino Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) ISBN 978-85-7591-560-8 Índices para catálogo sistemático: capa e gerência editorial: Vande Rotta Gomide preparação dos originais: Editora Mercado de Letras revisão final: dos autores DIREITOS RESERVADOS PARA A LÍNGUA PORTUGUESA: © MERCADO DE LETRAS® VR GOMIDE ME Rua João da Cruz e Souza, 53 Telefax: (19) 3241-7514 – CEP 13070-116 Campinas SP Brasil www.mercado-de-letras.com.br livros@mercado-de-letras.com.br 1a edição 2019 IMPRESSÃO DIGITAL IMPRESSO NO BRASIL Esta obra está protegida pela Lei 9610/98. É proibida sua reprodução parcial ou total sem a autorização prévia do Editor. O infrator estará sujeito às penalidades previstas na Lei. suMÁrio APRESENTAçÃO Capítulo 1 DA LITERATURA COMO TRAVESSIA: É POSSÍVEL ENSINAR LITERATURA? Claudicélio Rodrigues da Silva Capítulo 2 FIGURAS DO OUTRO. LITERATURA COMPARADA E INTERCULTURALIDADE Graciela Cariello Capítulo 3 APONTAMENTOS PARA UMA RELEITURA DE O GUARANI: A MATRIZ FOLHETINESCA E AS TRADUçÕES FRANCESAS NO SÉCULO XIX Ilana Heineberg Capítulo 4 APONTAMENTOS COGNITIVOS PARA UMA DIDÁTICA DA LITERATURA José Leite de Oliveira Júnior Capítulo 5 HERÓIS E HEROÍNAS EM TERRAS DESCONHECIDAS: AS TRADIçÕES AFRICANAS EM NARRATIVAS INFANTIS E JUVENIS Maria Carolina Godoy Capítulo 6 A CRÔNICA. GÊNERO AMBÍGUO... MAS GENUINAMENTE LITERÁRIO Maria Emilia Vico Capítulo 7 O GÊNERO POÉTICO NO ENSINO DE LITERATURA Márcia Cabral da Silva 7 aPresentaÇÃo A presença da conjunção aditiva “e”, na constitui- ção do par Literatura e Ensino, pode parecer, a princípio, que a adição, por ela expressa, reúna, de fato, instâncias que guardam tal nível de semelhança entre si, que se tor- naria impertinente qualquer indagação sobre o fato de as palavras estarem juntas. Na realidade, impertinente seria aceitar como pací- fica essa convivência, uma vez que uma das questões que se colocam com relação à Literatura e às artes em geral possui um nítido contorno epistemológico: As expres- sões do mundo sensível são passíveis de serem transmiti- das? Ou, dito de outra forma: Será que não haveria bar- reiras quase intransponíveis entre o eu e o outro, quando estamos diante de conteúdos não matematizáveis? Assim, um ponto de inflexão face ao problema seria a própria abertura das artes, e da Literatura em par- ticular. Em outras palavras, a recepção é da ordem da transitividade, dependendo da circunstância de fruição do leitor, de suas vivências no universo da leitura, e até da memória do já-lido como material potencialmente acio- nável nos registros que se empilham ao longo da experi- ência de viver-ler. Portanto, o “e” não lembra (nem deve lembrar!) aos professores de Literatura uma condição de 8 conforto, como se não houvesse mais perguntas a serem respondidas e/ou formuladas. É nessa perspectiva que se entende a provocação de mais um livro sobre Literatura e Ensino, o qual busca refletir sobre esse ambiente de aprendizagem na univer- sidade e, principalmente, sobre sua potência de reper- cussão nas aulas de Literatura do Ensino Médio. Como afastar os futuros professores do papel de agenciadores de respostas prontas, indubitáveis, quando se sabe que a complexidade da Literatura tem um efeito de atração -repulsão que nos aproxima mais das perguntas, distan- ciando-nos, consequentemente, das formulações de teor eminentemente conclusivo. Os oito artigos que formam esta coletânea vêm ratificar a amplitude do binômio Li- teratura e Ensino, na medida em que encontram formas singulares de pensar a Literatura como matéria de diálogo e ainda de colocá-lo em movimento, por intermédio das atividades propostas na sequência de cada trabalho. Em Da literatura como travessia: é possível ensinar Lite- ratura?, Claudicélio Rodrigues parte do texto poético de Manoel de Barros – um “menino perguntador” sobre o mundo das palavras –, para mostrar que há necessidade de uma didática da invenção, que ressalte a beleza e a tensão do texto literário. Apontando as vivências próprias ao ofício de en- sinar, o articulista chama a atenção para questões como a opção por uma aposta conteudista, tendo por meta uni- camente uma educação de resultados. Sua proposta, em contrapartida, parte do princípio de que: Literatura se vive. E qualquer saber, não apenas o literário, deve partir da experiência, vivida ou imaginada, que se deve narrar/ler a fim de que de fato exista no campo artístico. Cada ato hu- mano é a literatura em potência, como flor bruta prestes a romper, como chuva prestes a desabar que, ou promove o caos ou fecunda o solo. 9 Suas reflexões são atravessadas pela de pensado- res da linguagem, da educação, e da leitura, a exemplo de Mikhail Bakthin, Paulo Freire, Jacques Rancière, Rubem Alves e Vincent Jouve, cujas palavras desenham não um diagrama com as de Fernando Pessoa – Alberto Caeiro – e Guimarães Rosa, uma vez que a complexidade que envolve a discussão demanda, mais que uma estrutura plana, uma tridimensional, pois em seu espaço ainda de- vem caber as “inconclusões”. Em Figuras do outro. Literatura Comparada e Intercul- turalidade, Graciela Cariello insere no debate a discussão sobre a formação de professores de língua estrangeira. Em um texto bastante assertivo, a pesquisadora relata uma experiência concreta, havida no curso de formação de Professores de Português da Universidade Nacional de Rosário, Argentina. Tomando como base, a tensão que reveste a convivência entre as noções de identidade e outridade, são apontadas as incompreensões existen- tes durante muito tempo face à linguagem literária e sua inclinação para o desvio, entendido erroneamente como menosprezo à normatividade gramatical. Em sua argu- mentação, Cariello prefere se encaminhar para a compre- ensão de que: A literatura nos faz inventores de mundos. Ela prova que as palavras têm uma potencialidade criativa só limitada pelas regras que a própria li- teratura gera, e que aprender uma outra língua é adquirir mais uma porção dessa potencialidade. A literatura oferece à nossa imaginação a mul- tiplicidade de vidas que uma língua descortina para os leitores. Todas as formas de uma língua, aquelas que vamos aprendendo e até mesmo as que alguma vez descobriremos falando sem sa- ber que sabíamos, estão potencialmente na lite- ratura dessa língua. Se estudarmos a literatura de 10 uma língua estrangeira, estaremos construindo um espaço de diálogo fecundo, que permitirá ver como e por que cada um de nós é os outros. Ilana Heidelbeg, por sua vez, parte da noção de recepção para colocar em relevo o processo de cristali- zação, que cerca determinadas obras literárias, trazendo- lhes uma pecha negativa e o consequente afastamento do público. Segundo ela, Peri e Ceci são personagens caros ao imaginário popular, mesmo tendo sido gerados nos tempos de nosso Romantismo. O carisma do par, no en- tanto, não retira do discurso sobre O Guarani a reprovação quanto ao “artificialismo, a emotividade e o nacionalismo ingênuo.” A autora acolhe a afirmação de Maria Cecília Boechat de que esta narrativa alencariana seria “herdeira de suaprimeira recepção crítica”. Fica então a indagação: os leitores de nossa contemporaneidade poderiam extrair prazer desse gênero de leitura? Uma forma de aborda- gem, que renderia novos trajetos de leitura seria adentrar as páginas de O Guarani por meio de sua “inserção na matriz folhetinesca e sua recepção em âmbito interna- cional através das traduções francesas que foram feitas deste texto ainda no século XIX”. Os leitores da atua- lidade precisariam, então, mergulhar na face trepidante do romance-folhetim, sua vocação para o emaranhado de aventuras, e, buscando, particularmente como o folhetim à brasileira foi delineado. Em suplemento, Heineberg in- forma que “ao estudar as traduções de O guarani para a língua francesa ainda no século XIX, percebe-se que o romance de Alencar suscitou interesse fora das frontei- ras nacionais, afinal possui três publicações em francês”. Essa afirmação vale como um convite ao leitor para se- guir essa trilha e verificar como os romances, para além da ficção, também têm uma história, podendo ela ser vir a ser empolgante para quem se debruça sobre a Literatura com a curiosidade e o apetite de um aficionado leitor de romances-folhetim. 11 Assumindo um tom bastante didático, o texto Apontamentos cognitivos para uma Didática da Literatura, de autoria do professor José Leite de Oliveira Júnior, tem uma proposta de defender a ideia de se ter uma didáti- ca de ensino da literatura que focalize o aspecto cogniti- vo do leitor. Segundo o autor, os estudos desenvolvidos nesse campo apresentam um foco maior na didática e na pedagogia, deixando de lado outra parte igualmente importante: o aluno. Faz uma crítica ao tipo de aula de literatura e, defende a ideia de que seria mais eficaz uma aula centrada na experimentação do próprio aluno e con- centrada na complexidade do texto literário. Em direção a uma descrição da aula de literatura, ele apresenta o pla- no de aula, explicando o papel de cada uma das etapas. Ancora-se em Bloom (1976) para tratar das categorias do domínio cognitivo e em seu percurso apoia-se em clássi- cos da literatura brasileira exemplificando cada categoria (conhecimento, compreensão, aplicação, análise, síntese e avaliação. O capítulo intitulado de Heróis e heroínas em terras desconhecidas: as tradições africanas em narrativas infantis e juve- nis, de autoria de Maria Carolina Godoy, traz em evidência a literatura afro-brasileira, em particular, para o público infantojuvenil. A autora convida o leitor a uma discus- são em torno desse tema e questiona por que a pouca publicação de obras literárias afro-brasileiras e também a pouca representatividade nos textos. No desenvolvimen- to de seus argumentos, ela aponta razões para o fato de as crianças e jovens terem pouco acesso a esse tipo de leitu- ra. Godoy faz uma revisão da literatura e apresenta, desde os precursores da literatura afro-brasileira até os autores atuais. Faz uma forte crítica ao fato de as narrativas des- tinadas ao Ensino Fundamental se remeterem, muitas vezes, à religiosidade de matriz africana ou retomarem a contos de diferentes países africanos. Outro ponto de destaque neste capítulo é a reflexão desenvolvida pela au- 12 tora sobre as inovações no campo da leitura digital. Ela ressalta como ponto positivo para a formação de leitores os recursos utilizados. O capítulo seguinte tem a autoria de Maria Emilia Vico e é A crônica. Gênero ambíguo... Mas genuinamente li- terário. O texto está dividido em duas artes bem marcadas. A primeira parte apresenta um conjunto de perguntas que diretamente provoca no leitor um envolvimento par- ticular de coparticipação. A autora chama a sua atenção, convidando-o a pensar sobre o contexto de produção da crônica. De forma direta elenca um conjunto de pergun- tas (qual é o seu público? Quais os possíveis temas? Tem a crônica uma estrutura específica? Qual é a sua origem? E o veículo ou veículos? Quais são os objetivos da inte- ração? Quais são os gêneros que se lhe parecem? Quais as características que fazem com que possamos dizer que um determinado texto é uma crônica? A crônica é um gênero literário?). O momento seguinte desta etapa é marcado pela discussão sobre o o conceito de crônica, momento em que nos apresenta alguns estudiosos e seus textos. Na sequência da teorização, Vico põe em discus- são se esse texto literário é ou não um gênero literário. A segunda parte do capítulo é marcada pela analisa de uma crônica de Carlos Drummond de Andrade e culmina em uma proposta de atividade. Trata-se de um texto cheio de provocações que convida o leitor à reflexão e não à dar informações apenas. O último capitulo é de autoria de Márcia Cabral da Silva intitulado de O gênero poético no ensino de literatura. Teria um espaço para o gênero poético em sala de aula? Durante o artigo, a autora mostra que sim e o faz apre- sentando uma possibilidade de análise. Ela se posiciona de forma a valorizar o movimento dos elementos linguís- tico a favor a compreensão de um texto poético. Essa postura é muito particular e positiva para o ensino de lín- gua, para a formação de leitores, para a compreensão da 13 funcionalidade da língua na interação poeta e leitor. Nes- se sentido, ela trata da constituição da poesia e também apresenta uma análise com base nos elementos linguísti- cos que ela considera importantes. Inicia mostrando que para a construção de uma poesia é importante a seleção das palavras e que ela também dão ritmos à poesia. Nes- se sentido apresenta algumas poesias e as analisa. Nes- se exercício dinâmico, chama a atenção para o papel da metalinguagem, em outras as figuras de linguagem como recurso estilístico. Os exemplos dados mesclam da poesia ao cordel, de Patativa a Drummond de Andrade. O conjunto dos textos e a proposta desenhada pe- los autores, com base nos próprios objetivos da coleção, desafia os leitores, em particular os professores e forma- dores de professores a pensar o espaço da literatura na sala de aula. 15 Capítulo Da Literatura CoMo traVessia: É PossÍVeL ensinar Literatura? Claudicélio Rodrigues da Silva VI Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas leituras não era a beleza das frases, mas a doença delas. Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor, esse gosto esquisito. (...) O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença, pode muito que você carregue para o resto da vida um certo gosto por nadas... E se riu. (...) Manoel de Barros, O livro das ignorãças. Que é um conteúdo? Proponho uma reflexão que parta do nada e ao nada chegue, como o poema de Manoel de Barros. Sugiro uma conversa que mergulhe nas “ignorãças” e faça com 1 16 que elas evoquem em nós diversas questões que não ca- recem nem querem ser respondidas nesse momento: por que quisemos ser professores? O que nos induziu a essa empreitada (derrocada)? Por que o desejo por fomentar saberes e a aflição por encontrar um sentido para as coi- sas e para o mundo? Essas questões me abraçam como educador. E me alimento do nada que elas me oferecem. Mas há outras ainda. O que significa ensinar hoje, quando nossos alunos são mergulhados em uma infindável trama de informa- ções midiáticas, onde o apelo visual e sonoro do mundo virtual chama mais a atenção do que uma aula expositiva? Como promover um ensino que faça realmente sentido ao aluno, colocando-o no centro e não à margem do co- nhecimento? Como fomentar o desejo de autonomia na sala de aula sem perder o foco do projeto pedagógico? Fruto de uma “sociedade da excitação” (Türcke 2012), que conteúdo realmente faz sentido a esse aluno? Essas são apenas algumas demandas que per- meiam a cabeça dos graduandos e futuros professores da educação básica. Fora isso, o medo de não se conseguir o completo domínio da sala, o receio de serem incompre- endidos pelos alunos adolescentes e de rapidamente se decepcionarem com o processo de ensino-aprendizagem. Inúmeras questões para as quais não há respostas prontase acabadas. Se educação é processo, meio, e não fim, esta- remos sempre no caminho da dúvida, seja ela grande ou pequena. Pautar-se nos questionamentos evidencia um compromisso não com as respostas, mas com o anseio a que a educação faça sentido. As certezas podem nos trair. Ao longo do curso de graduação,1 além das disci- plinas de formação específicas, como língua e literatura, os graduandos têm acesso a cursos de formação didático -pedagógica a fim de perceberem a história da educação 1. Refiro-me, é claro, aos cursos de licenciatura plena. 17 no Brasil, seus entraves e avanços e as principais tendên- cias e correntes que fomentam os saberes. Às disciplinas didáticas específicas ao ensino de língua e literatura se vinculam as de estágio, que por sua vez se desdobram em observação, simulação e regência, respectivamente nes- sa ordem. Essas disciplinas são oferecidas no último ano da formação do aluno, após ter sido percorrido o longo trajeto pelas teorias do conhecimento. Assim, muitos alu- nos chegam a essa etapa cansados da rotina de estudos. Quando deveriam estar mais seguros, surgem exaustos e sem perspectiva, temendo assumir a regência e fracassar na profissão que escolheram. Nesse sentido, as disciplinas de observação e está- gio, bem como outras de feição didática, devem cumprir um papel de expor os entraves da educação que temos e discutir a educação que queremos. É imprescindível que os futuros educadores saibam que, se lhes falta a experi- ência pedagógica, sobra-lhes o dinamismo da juventude e a vontade de ousar. Mais que professores conteudis- tas, que se colocam no centro da sala, como se tivessem todo o conhecimento do mundo, a escola necessita de mediadores do saber, afinal, nunca fomos enciclopédias ambulantes. Com o avanço das tecnologias da informa- ção e comunicação, torna-se fácil descobrir o conheci- mento fora da sala. A vastidão do ambiente virtual atiça o curioso e é para lá que nossos olhos de educadores devem estar voltados. Somos arremessados na enxurrada de informações. Mas o que fazer com elas? Quais as que realmente importam? Como filtrá-las e como organizá -las em nosso próprio benefício? Essas questões devem permear o plano didático dos novos professores. Além disso, é importante perceber que as concepções de ensi- no mudam conforme o momento, o espaço e o público. Não há uma receita pronta para isso. Conteúdo é precisamente aquilo que está contido em algo. Um saber herdado. Uma cultura do fazer e do 18 pensar. Mas também é conteúdo uma atitude e o proces- so de tomada de consciência das sensações, das emoções, dos desejos. Pode-se, nesse sentido, pensar o conteúdo com uma tripla demanda: conceitual, procedimental e ati- tudinal. Saber o que é uma coisa não é tudo. O que fazer com ela? O que ela desperta em mim? O que sou depois de tê-la? O problema do conteúdo, para Mikhail Bakhtin (2002), pressupõe a conjunção entre conhecimento, ética e arte. Toda concepção de mundo exigiria do humano um domínio do saber fronteiriço, ou seja, nenhum conheci- mento está no interior, mas nas bordas, nas margens, nas ramificações e entrecruzamentos. É preciso saber-se su- jeito em potência, nunca concluso. Sobre a inconclusão se assenta a educação. E é assim que ela deve ser pensa- da: em processo. Deve-se partir de saberes empíricos e afetivos para chegar aos saberes das demandas culturais, sistemáticos. Um saber pautado na experiência não pode ser apagado por um saber formal. Para essa lição, basta compreender o que nos diz o mestre Alberto Caeiro: O meu olhar é nítido como um girassol. Tenho o costume de andar pelas estradas Olhando para a direita e para a esquerda, E de vez em quando olhando para trás... E o que vejo a cada momento É aquilo que nunca antes eu tinha visto, E eu sei dar por isso muito bem... Sei ter o pasmo comigo Que tem uma criança se, ao nascer, Reparasse que nascera deveras... Sinto-me nascido a cada momento Para a eterna novidade do mundo (...) (Pessoa 2005, p. 19) 19 Mais do que um poder de sintetizar, o que a educa- ção cobra de nós é o desejo de análise,2 o desnudamento das coisas, o espanto de ver aquilo que sempre víramos, mas agora sob nova perspectiva. Nascer “para a eterna novidade do mundo” com esse nítido olhar de girassol é estar atento às mudanças necessárias no percurso.3 Se- remos educadores quando, mais do que apresentarmos um conteúdo acabado, soubermos questioná-lo; mais do que defini-lo, soubermos problematizá-lo; mais do que apreendê-lo como verdade, soubermos descartá-lo quan- do ele não mais nos parecer importante. Será um sinal de que avançamos e, ainda, a constatação de que saber algum é imutável. Por uma pedagogia da autonomia do leitor Educar para a transformação plena do sujeito, no desejo de que ele abandone a passividade e assuma seu protagonismo, é o grande desafio. No Brasil, é Paulo Freire quem elabora um percurso pedagógico que tem 2. Percebo como a institucionalização do saber gerou e gera pro- fessores repetidores, sem um mínimo de consciência crítica. Repassam o conteúdo já pulverizado, sem se importar em produzir seu próprio material a partir de sua experiência de mundo. O Ensino Médio, particularmente, é um celeiro de síntese. É ela quem domina esse espaço. A criticidade passa longe daí, quando o que interessa é sistematizar um conheci- mento com base na utilidade: “Isso vai cair na prova”, “O ves- tibular – o ENEM – cobra tais habilidades e competências”, “Os concursos públicos abordam isso sob tal perspectiva”. E, longe da formação do sujeito, o ensino se torna refém de sínteses, como se a vida só tivesse sentido em função de uma profissão. 3. Refiro-me a uma pedagogia da sensação, onde o corpo em sua totalidade aprende enquanto apreende o mundo. Diante disso, ler equivale a sentir e não somente reter conteúdos. 20 como cerne a constituição de uma pedagogia que levanta do chão os excluídos e os faz partir de suas próprias ex- periências, mas não se limitando a elas. Num mundo que vê o sujeito como consumidor e mercadoria é necessário que o ensino busque outra ótica e ética. Diante de um sis- tema excludente, é preciso que os professores coloquem como suporte de sua prática o valor da ética, conforme afirma Paulo Freire: A ética de que falo é a que se sabe traída e ne- gada nos comportamentos grosseiramente imo- rais como na perversão hipócrita da pureza em puritanismo. A ética de que falo é a que se sabe afrontada na manifestação discriminatória de raça, de gênero, de classe. É por esta ética inse- parável da prática educativa, não importa se tra- balhamos com crianças, jovens ou com adultos, que devemos lutar. (2011, p. 18) No caso específico do professor de língua e lite- ratura, deve-se ter clareza que os discursos da literatura jamais são ingênuos. Sob hipótese alguma ela é neutra. Fruto do seu tempo de produção, uma obra está sempre em processo, diacrônica e sincronicamente, e requer lei- tura aberta. A literatura não faz concessões, não se rende à dissimulação dos espaços sociais e políticos, tampouco tolera seu uso em benefício de um fundamentalismo (seja de ordem religiosa, moral ou política). Ela promove uma emulação dos espaços de poder, assumindo também uma postura, sem se impor arrogantemente. Sempre funcio- nou assim, mesmo em tempos em que se tentou censurar as liberdades de expressão. Embora funcione como aparelho ideológico do Estado (Althusser 1985),4 a escola não deveria cercear a 4. Louis Althusser não apenas sinalizou que a escola era mais um 21 voz literária. Mas, infelizmente, é isso o que ocorre. Em nome de um ensino que prega valores, quando deveria as- sumir o debate frente às questões formativas do sujeito, a escola contenta-se em oferecer pobremente um currículo que se pauta em leituras do cânone. E qualquer desvio por parte dos professores, qualquer rota de fuga que leve a discussões polêmicas sobre o ser e o estar no mundo, provocam abalos.Parece que, quando deveria propor uma pedagogia da libertação, a escola prefere oferecer uma pedagogia que canta o coro da tradição, a fim de não correr riscos. Atualmente, em nome de uma pedagogia do “po- liticamente correto”, deixamos de lado diversas questões. Preferimos mais do mesmo, ao invés de buscarmos o outro. Rezamos a cartilha do contentamento. Conten- tamo-nos com um currículo que não rompe com uma tradição; contentamo-nos com um ensino que privilegia, não o questionamento, mas as respostas; contentamo- nos, enfim, com um ensino que diz o que o aluno deve fazer e como deve fazer, mas não o orientamos a produ- zir conhecimento. Para usar a metáfora de Rubem Alves (2012), oferecemos a “caixa de ferramentas” e exigimos que o aluno as utilize, quando poderíamos propor que, além disso, ele produzisse seus próprios instrumentos. Mais do que isso, esquecemos de valorizar a “caixa de brinquedos”, que promoveria a noção de mundo sob a perspectiva do prazer, não da obrigação. dos mecanismos do jogo do poder capitalista, como também prenunciou a mercantilização do saber. Nesse sentido, uma educação bancária dialogaria com os objetivos propostos por uma elite dominante. Assim, a literatura seria capaz de des- construir as noções imaginárias que a ideologia constrói no sujeito, fazendo-o perceber as amarras que o aprisionam. A educação popular, pensada para as massas e ao proletariado, encontrou em Paulo Freire um forte defensor da história do sujeito, que ele seja seu próprio narrador de sua história, e não se deixe levar pelos interesses burgueses. 22 Diante disso, como seria o papel ético do profes- sor? De que modo os professores de literatura devemos pautar nossas escolhas pedagógicas sob o compromisso de um ethos? Paulo Freire responde: Na maneira como lidamos com os conteúdos que ensinamos, no modo como citamos auto- res de cuja obra discordamos ou com cuja obra concordamos. Não podemos basear nossa críti- ca a um autor na leitura feita por cima de uma ou outra de suas obras. (2011, p. 18) Compreendendo uma visão de mundo, a literatura oferece, pela lente do escritor, as questões humanas, seus conflitos de ordem social e existencial. Cabe ao leitor (e nesse caso, penso no professor de literatura como um mediador na descoberta do poder do texto literário) in- vestigar por que as vidas com seus enredos nos interes- sam; por que os sentimentos, as perdas e as conquistas nos prendem. O que tudo isso evoca? Mais do que ensinar lite- ratura pelo viés historiográfico ou estético, é importan- te ensiná-la pelo viés ético. Nesse caso, o ensino ético pressupõe deixar que a literatura seja, sem remendos e sem ocultações de questões caras à formação humana. A literatura já foi acusada de transgressora inúmeras vezes,5 assim como foi cerceada, combatida, queimada em praça pública, encerrada nos espaços privados. 5. As Flores do Mal de Baudelaire passaram pelo crivo da censura, assim como Madame Bovary de Flaubert. No caso do Brasil, a prosa de ficção romântica, escrita por brasileiros ou por es- trangeiros, era considerada, tanto pela igreja quanto pela fa- mília, de má influência para o modelo patriarcal que erigia a mulher como submissa aos pais, ao marido e à pátria. 23 Ensinar literatura é, pois, estar consciente de que ela é obra humana e, como tal, aborda os impasses mo- rais, sexuais, psicológicos, religiosos, políticos etc. Tudo isso culmina numa apreensão de eticidade do texto lite- rário por parte do educador. Não se deve fugir dos pro- blemas, nem escondê-los, senão promover um discurso aberto sobre isso, uma leitura que não descambe para a reprovação de um autor com base nas concepções reli- giosas e morais do leitor.6 Aliás, todo conhecimento só tem sentido se for colocado em defesa da liberdade, que, não suportando fundamentalismo e hipocrisia, coopera para que o aluno elabore sua aprendizagem pelo viés da criticidade, conforme indica Paulo Freire: “(...) quanto mais criticamente se exerça a capacidade de aprender, tanto mais se constrói e desenvolve o que venho cha- mando ‘curiosidade epistemológica’, sem a qual não al- cançamos o conhecimento cabal do objeto” (2011, p. 26). O texto literário assume, por assim dizer, uma fun- ção profética, sem querer resvalar para questões doutri- nárias aqui. Tal profecia acontece no momento em que a obra se reveste de denúncia e anúncio. O que denuncia a literatura? As incongruências do passado e do presente, os impasses, os discursos anacrônicos e vazios, as rela- ções de poder, o jogo entre as moralidades e a natureza humanas, os limites do humano, a psicologia do abismo etc. Denuncia, porque todo texto traz consigo uma marca de passado que, atualizada no agora da leitura, promove uma ruptura e anuncia uma novidade à medida que apon- ta outros percursos. Se o texto literário evoca uma dupla visão de mun- do (particular, por ser recorte de vivências e construção do imaginário do autor; coletiva, porque o autor se insere num tempo-espaço demarcado pela herança cultural), sua 6. Configurando-se como insubmissa, a literatura não suporta isenção e tampouco aceita ser usada por fundamentalistas. 24 leitura também implica um saber de mundo, um olhar duplo, para fora de si, onde estão os fatos narráveis, e para dentro si, onde estão as sensações que detêm o mun- do. Cabe ao professor não persistir na concepção de que ensinar é transferir o que sabe, mas conduzir (isso é o que significa a palavra pedagogo) o aprendiz no caminho das descobertas. Muitos professores são apenas repetidores. Leem muito - quando leem - e depois apresentam o lido sem problematizá-lo, sem questioná-lo, como isso fosse verdade absoluta. É o tipo de educador que “fala bonito de dialética, mas pensa mecanicistamente” (Freire 2011, p. 29). Pensada como um ambiente desgarrado do con- creto, nesse caso, a escola supõe que a realidade lá fora é pesada demais para adentrar ao paraíso fictício do saber, templo do conhecimento. Mas não existe um “lá fora” desmembrado de um “aqui dentro”. O mundo é o mes- mo, nós é que criamos as barreiras. O ensino da literatura, então, deve pautar-se na consciência de uma “reflexão so- bre o mundo inserida no mundo” ou melhor “(...) nem a teoria é transcendental em relação às situações em que se produz e se usa, nem o teórico é geralmente um pensador isolado e misantropo” (Jobim 2002, p. 119). Num espaço onde se joga o jogo do politicamen- te correto, não entram as questões humanas, porque ser humano pressupõe ser complexo, repleto de problemas, sobrecarregado de dúvidas, e sonhos, e desejos. Fora dis- so, há o olhar limítrofe, preconceituoso, que prejudica nosso percurso pedagógico, porque não percebemos que a realidade é apenas uma construção particular e nunca completa, ou, segundo Bakhtin: É preciso lembrar de uma vez por todas que não se pode opor à arte nenhuma realidade em si, nenhuma realidade neutra: pelo próprio fato de que falamos dela e a opomos a algo, nós, como que a definimos e lhe damos um valor; é preciso 25 apenas sermos claros com nós mesmos e com- preender o verdadeiro sentido da nossa aprecia- ção. (2002, p. 31) O autor se alimenta exatamente da realidade, não para dar respostas, senão para provocar reflexões. Fora isso, ficamos todo o tempo discutindo o caráter mimético da obra e não nos apercebemos das várias dimensões do humano que ela aborda. Então, que é ser professor de lite- ratura? Devo dizer que fico bastante preocupado quando vejo alunos de graduação em Letras – futuros professo- res – com uma visão bastante romantizada da literatura. Como se a literatura fosse uma caixa alucinógena, buscam trabalhar apenas textos que evoquem o prazer. Esquecem que as dores, desesperanças, tristezas, decepções, precipí- cios também compreendem o mundo da literatura e, ao contrário do que se pensa, trabalhar com isso é como uma espécie de purgação, uma cura pela leitura.7 A literatura deve realizar uma panaceia,com a qual, humanos que somos, devemos tratar-nos. Mas, sin- ceramente, ela não é salvação, não é um fim em si mes- ma, não quer ser vista como o prazer descompromissado. Porque toca questões sérias à humanidade, é um saber como outro qualquer com o qual devemos nos deparar para que percebamos a complexidade que é o humano. A dimensão do ser, seus limites e fronteiras, bem como seus anseios, impregnam o texto literário com todo o seu vigor poético (e por que não dizer mitopoético?!8). 7. Aliás, é exatamente isso uma das funções do teatro grego. Na Poética de Aristóteles (2005), as apresentações do drama deve- riam infundir no espectador as tragédias possíveis ao humano que, chorando, sentindo terror ou piedade, deveria ficar livre daquilo que nem chegara a padecer. 8. Letradas ou não, todas as civilizações construíram e cons- troem mitos, e os alimentam na tentativa de entender o que são, de onde vieram, aonde vão. Ao contrário do que se pensa, 26 Talvez a lição mais importante que o professor de literatura deve ministrar é propriamente a “lição do igno- rante” (Rancière 2013), a necessidade de se criar mecanis- mos para a emancipação do educando desse sistema ex- cludente que, ao invés de trabalhar a sensibilidade, tenta a qualquer custo freá-la. Travessias do literário Tendo suspeitado da existência do Diabo em inú- meras conjecturas, Riobaldo, o velho narrador de Grande sertão: veredas (Rosa 1980), usando sua filosofia de vida jagunça, resolve concluir seu relato afirmando que não existe Diabo nenhum, mas homem humano. A narrativa começa com uma palavra-símbolo – “nonada” – e termi- na com a palavra “travessia”. Com base nisso, exponho aqui minha reflexão sobre o ato de ensinar. Todo saber parte desse “nonada” e culmina numa “travessia” porque conhecimento é percurso. Assim, para responder ao título desse artigo com base numa estética da negação, entendo que não se pode ensinar literatura; pelo menos não do jeito como a esco- la tradicional quer pensar o texto literário. Literatura se vive. E qualquer saber, não apenas o literário, deve partir da experiência, vivida ou imaginada, que se deve narrar/ ler a fim de que de fato exista no campo artístico. Cada ato humano é a literatura em potência, como flor bruta os conhecimentos filosófico e científico não ofereceram res- postas, e, com isso, não suplantaram as mitologias. Frutos de questões existenciais daqueles povos, os deuses do passado só morreram enquanto projeções de culto, mas continuam, enquanto construções imaginárias, a alimentar nossos sonhos e desejos. 27 prestes a romper, como chuva prestes a desabar que, ou promove o caos ou fecunda o solo. Antes de pensar na função da literatura, e em como e para que ensiná-la, cabe pensar por que o homem se in- teressa tanto por vidas reais ou imaginadas; por que “per- de” seu tempo com leitura daquilo que nunca ocorreu? Em que isso se tornará produtivo? Por que gosta de jogar com vidas e se surpreender com o aflorar de suas emo- ções (o terror, o humor, a alegria, a raiva etc.) ao ler um texto? Aí está a própria resposta que se quer para funda- mentar o papel da literatura na formação do aluno: ela dei- xa entrever o mundo real, assim como apresenta um mun- do possível, e nos faz refletir sobre as possiblidades das escolhas, boas ou ruins, que fizemos ou venhamos fazer. Ela suscita desejos, libera sensações tolhidas, infunde uma vontade de reparação, ou simplesmente, tira-nos do nosso eu e nos lança ao outro. Sua matéria é feita de possibilida- des. De um “se” que se projeta sobre nós, e nos cumula de alteridade. Por isso, a significação do texto literário não é fechada ou circunscrita ao tempo e espaço de produção, já que a intencionalidade do autor é substituída por camadas de leituras e teorias novas que cada época traz. É porque sempre somos obrigados a buscar um sentido para as coisas que, geralmente, vemos os conte- údos das artes como aquilo que não tem valor prático. Somos a sociedade da utilidade. Esquecemos que a inu- tilidade também é um saber. O ócio contemplativo não gera reflexão e questionamento? Um quadro abstrato não se torna uma questão a quem contemplá-lo? Uma música não evoca lembranças, que, por sua vez, permitem entre- ver o que fomos e somos? Há saberes práticos e saberes contemplativos. As artes querem que as contemplemos como se mirássemos a nós mesmos, não como diante de um espelho, que mostra nossa imagem por reflexo, e não consegue revelar o interior. Se houvesse um espelho que nos revirasse pelo avesso... 28 Se, como indica Vincent Jouve (2014, pp. 84-85), o autor não controla completamente seu texto que, assim, escapa à sobrecarga de intencionalidade, a obra literária deve ser considerada mais um sintoma do que um sinal; seu sentido é diverso, não aceitando inteiramente con- ceito. Estudar/ensinar literatura, então, é não perder de vista que a obra não vigora na superfície do sentido, não se deixa prender por categorias, nem aceita que as marcas do tempo e do espaço sejam as únicas formas de do- miná-la. Esse caráter de impermanência da obra literária não é um dos mecanismos que justamente a faz vigorar como obra? Cada tempo produzirá, portanto, objetos conceituais para dar conta da obra. O problema do ensi- no de literatura é a tentativa de esquematizá-la e esgotar, na leitura, todas as possibilidades de sentido. O conceito fugidio é essencial, portanto, para que o texto continue a despertar interesse, pois, “como o autor não domina tudo o que ele investe em seu texto, alguns conteúdos só serão identificados muito tempo depois da publicação da obra, uma vez que já terão se configurado as ferramen- tas teóricas que permitam determiná-los” (Jouve 2012, p. 87). Entram em jogo na leitura a diferença entre sentido e significação, donde se conclui que: O sentido é singular; a significação, que coloca o sentido em relação a uma situação, é variável, plural, aberta e, talvez, infinita. (...) O sentido é o objeto da interpretação do texto; a significação é o objeto da aplicação do texto ao contexto de sua recepção (primeira ou ulterior) e, portanto, de sua avaliação. (Compagnon 2010, p. 85) O diabo do Riobaldo nos assombra também quan- do nos deixamos levar pela concepção mercadológica do saber utilitário repousando o “para que serve” no sentido da obra. Queremos saber para ter ou para ser? O diabo 29 do Riobaldo murmura o tempo todo em nossos ouvidos, na ânsia de assumirmos o lado utilitário da vida. Mas, à semelhança do suposto pacto que Riobaldo fez com o coisa-ruim, na meia-noite de uma encruzilhada no sertão, devemos fazer um pacto com a palavra, que nos permite encarar o mundo com olhar de leitores atentos, em tra- vessia, como a literatura, que atravessa espaços, tempos e nos atravessa, professores e alunos. Algumas inconclusões Cabe agora voltar ao que prognosticou o precep- tor do então menino Manoel de Barros. Pode ser que, como educadores, acalentemos um “certo gosto por na- das”. Talvez isso seja considerado doença num mundo em que vence quem tem mais força, quem manipula mais e quem canta conforme a ética do mercado financeiro e a lógica do carreirismo. Estar à margem disso, numa con- tracorrente, não é fácil, mas seguramente é mais digno. Na escola que estamos gestando, há uma série de aprendizagens necessárias, elencadas nesta lista: é preciso ouvir o apelo do novo; ver o aluno com mais lucidez; não subestimar o aprendiz; ser menos mestre e sempre aprendiz; quebrar as velhas estruturas, os velhos concei- tos, as resistências, mas sem desvalorizar os experientes; ter medo dos conceitos prontos; divagar e ir devagar; ensinar inteligência emocional (sobretudo, é necessário tê-la); ter clareza do caminho, mesmo quando tudo é tur- vo e neblinado (clareza não significa certezas); a verdade singular é a maior inimiga do educador (que tal falar de verdades plurais?); falar a linguagem do aluno, que passa necessariamente pelo afeto;promover a arte do diálogo e reconhecer que nem todo grupo é uma equipe; saber que em matéria de educação menos por menos é sempre mais 30 (elimine os excessos); fazer do texto o núcleo do debate e deixá-lo de utilizar como pretexto (aliás, a educação está minada de pretextos); ser guardião da liberdade, que deve ser entoada em cada aula, em cada gesto, em cada atitude, em uníssono. Utopia? Entendam como quiser, entretanto, o “demônio da teoria” não pode condenar o texto literário ao limite da interpretação particular e acabada. Há um horizonte da história onde o texto literário se inscreve, mas ele é perpassado constantemente pela atualização desse mesmo tempo. Ainda que tentemos fugir para o passado ou para o futuro, estaremos sempre atravessados pelo tempo presente. Ao final deste artigo, há uma ativi- dade que retoma as nossas reflexões. Referências bibliográficas ALTHUSSER, Louis (1985). Aparelhos ideológicos de estado: Nota sobre os aparelhos ideológicos de estado. Rio de Ja- neiro: Graal. ALVES, Rubem (2012). Educação dos Sentidos e Mais... Campinas: Verus Editora. ARISTÓTELES (2005). “Poética”, in: A poética clássica. São Paulo: Cultrix, pp. 17-52. BAKHTIN, Mikhail (2002). “O problema do conteúdo”, in: Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo: Annablume/Hucitec, pp. 29-44. BARROS, Manoel de (2013). “O livro das ignorãças”, in: Poesia Completa Manoel de Barros. São Paulo: LeYa, pp. 273-299. CANDIDO, Antonio (2010). “O Escritor e o Público”, in: Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, pp. 83-98. 31 COMPAGNON, Antoine (2010). O demônio da teoria: li- teratura e senso comum. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão e Consuelo Fortes Santiago. Belo Horizonte: Editora da UFMG. FREIRE, Paulo (2011). Pedagogia da autonomia: saberes ne- cessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra. JOBIM, José Luís (2002). “O trabalho teórico na história da Literatura”, in: Formas da teoria. Rio de Janeiro: Caetés, pp. 117-131. JOUVE, Vincent (2012). Por que estudar literatura? Tradu- ção de Marcos Bagno e Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola. PESSOA, Fernando (2005). Poesia completa de Alberto Caei- ro. São Paulo: Companhia das Letras. PUCHEU, Alberto (2013). Mais cotidiano que o cotidiano. Rio de Janeiro: Azougue Editorial. RANCIÈRE, Jacques (2013). O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Belo Horizonte: Au- têntica Editora. ROSA, Guimarães (1980). Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: José Olympio Editora. TÜRCKE, Christoph (2010). Sociedade excitada: filosofia da sensação. Tradução de Antonio A. S. Zuin et al. Campinas: Editora da Unicamp. 3232 ATIVIDADES PROPOSTAS A leitura do poema de Alberto Pucheu deve nortear a refl exão. a) Divide-se a turma em dois grupos; b) O grupo 1 deverá fazer um elenco do que seriam a força e a fraqueza do nosso tempo. Esse grupo refl etirá sem ter lido o poema; trata-se de uma análise do mun- do contemporâneo; c) O grupo 2 receberá uma cópia do poema e deverá circunscrever sua leitura ao que se refl etiu no artigo (a função da literatura, os sentidos da obra e o papel do professor como mediador). O que seria esse “pon- to cego” da literatura? A resposta dos poemas aponta para uma defi nição ou indefi nição do ser e do mun- do? A literatura exige do leitor que tipo de abertura? Ensinar literatura privilegiando defi nições concluídas não seria um contrassenso, já que todo tempo tem seu “ponto cego”? d) Os grupos formam uma plenária para apresentar suas análises. Nesse momento é importante que o profes- sor estimule a discussão em que fi quem explicitadas a leitura de mundo (grupo 1) e a leitura do texto (gru- po 2). Sugere-se que o grupo 1 só receba o poema imediatamente após a apresentação de suas refl exões. Assim, poderá lançar-se a uma outra leitura do tempo presente mediada pelo texto. PONTO CEGO (da força e da fraqueza de nosso tempo) “Quem somos?” – perguntam aos poemas em busca de uma resposta que complete a pergunta, 3333 sobrepondo uma, sem falta nem excesso, à outra. Mas os poemas repetidamente respondem que somos aquilo em que nos perdemos ao buscarmos encontrar o que acreditamos ser. Se insistirem, portanto, em perguntar aos poemas de buscas, encontros, crenças... se insistirem, portanto, em saber a voz dos poemas, saibam que, de diferentes modos, eles só dizem o que não se busca nem se encontra, a perdição, o fi m das crenças, o que não se oferece a nenhuma frase, nem mesmo mais a nenhum verso. Há um ponto cego nos poemas, como há um ponto cego na vida, não visto por mim nem por você nem por ninguém, desde o qual eles são o que são, um ponto cego que somente os poemas – talvez – nem sei – vejam. Se insistirem, portanto, no trato com os poemas, se de fato quiserem permanecer com eles, sejam, ainda que os últimos afeitos a tal empenho, fortes, porque quase todos os outros – sinal dos tempos – os abandonaram (Pucheu 2013, p. 85) 35 Capítulo FiGuras Do outro. Literatura CoMParaDa e interCuLturaLiDaDe Graciela Cariello Eu sou os outros Provérbio africano Citado por Mia Couto, na orelha do romance O evangelho segundo a serpente, de Faíza Hayat (2006). O presente artigo propõe-se abordar o ensino da Literatura Comparada no encontro de culturas e línguas, para a formação de professores de língua estrangeira. Tem como objetivo aportar aos alunos de estágio alguma reflexão e alguns exemplos de prática possível. Para tal, apresentarei uma proposta, aplicada e provada no curso de formação de Professores de Por- tuguês da Universidade Nacional de Rosário, Argentina. Ela se fundamenta no conceito de interculturalidade, e na representação do Outro na literatura. 2 36 O outro e a identidade Para se pensar no outro é imprescindível revisar o conceito de identidade. Na raiz do termo existe o substan- tivo latino identitas, átis, que provém de idem, “o mesmo”. É verdade que hoje identidade não é pensada desse ponto de vista, mas como conjunto de características próprias, diferenciais. Mas a ideia do que é igual a si mesmo, que não varia, persiste. E mais ainda: a ideia do que é centro, em relação com o que é outro, diferente. Acompanhando a teoria de Eduardo Grüner, po- demos dizer que, como afirmou Lacan, depois de Sartre, não há Outro para o Outro. O princípio é que para se qualificar algo como alteridade tem de se pensar a si pró- prio com arrogância: como mesmo, mesmice, identidade, e a partir daí é que se definem o outro e a diferença. E afirma que quando ele no livro fala em Outro / Outros, deve-se ouvir: “el Mismo/Otro-como-parte-que-no-tie- ne-parte porque ha sido excluida de su lugar constitutivo de lo mismo para que no pueda verse que lo mismo sólo es tal porque justamente le falta una parte con la que no quiere saber nada” (Grüner 2002, p. 49). Ou, diríamos, como fala o provérbio africano citado como epígrafe des- te artigo: eu sou os outros. Não existe separação entre eu e os outros, se não é política, se não é em termos de exclusão. Por isso, quando ensinamos uma língua estran- geira, uma cultura estrangeira, é preciso prestar atenção ao sentido que damos a esses termos: identidade, outros. Não venha resultar que estejamos colocando isso que chamamos de outro no lugar da diferença porque estamos colocando algo (eu, minha realidade, ou uma realidade qualquer) no lugar do mesmo que exclui e delimita. A lite- ratura pode ajudar a nos impedir de cair nessa armadilha. Vejamos de que modo. 37 Os estudos literários na formação de professores de língua estrangeira Como sempre que pretendo descobrir algo sobre a literatura, fui perguntar aos poetas que sobre ela refleti- ram. E foi lendo um desses poetas que achei uma primei- ra resposta para a questão que irei tratar aqui: a relação entre literatura e língua estrangeira. Eliot, no seu ensaio“A função social da poesia”, afirma acerca de textos em língua estrangeira: [...] me tem sucedido, por vezes, encontrar tre- chos de poesia que eu não saberia traduzir, con- tendo numerosas palavras para mim desconhe- cidas e frases cujo sentido estava fora do meu alcance, mas que me transmitiram, de forma imediata e vívida, algo de único, diferente de tudo o que exista em inglês – algo que eu não seria capaz de articular por palavras e que no entanto senti ter compreendido. (Eliot 1997) E acrescenta que chegando a conhecer melhor essa língua pôde comprovar que a impressão era alguma coisa que estava lá. E continua dizendo: Deste modo, na poesia, é possível, de vez em quando, penetrar noutro país, por assim dizer, antes de possuir passaporte ou de ter tirado bi- lhete. (Eliot 1997) Aqui vou me deter, e fazer uma breve digressão histórica. Na história do ensino de línguas estrangeiras houve um movimento em relação ao papel da literatura que vou tentar resumir em poucas palavras. 38 Antigamente, o texto literário era o modelo do bom emprego da língua, e a referência aos autores con- sagrados era obrigatória para provar o uso das formas. Isto vale tanto para língua estrangeira quanto para língua materna. Tudo mudou, é claro, a partir das vanguardas. Os poetas modernistas e vanguardistas já não podiam ser considerados modelos, dado ser sua revolução esté- tica precisamente uma revolta contra o academismo das formas consideradas corretas e aceitas. Em português, por exemplo, Mário de Andrade, Oswald de Andrade ou Almada Negreiros não poderiam ser pensados como tais modelos. Uma teoria da literatura veio dar base para se analisarem esses textos aparentemente agramaticais ou, no mínimo, desrespeitosos das regras estabelecidas: a no- ção do desvio A língua poética não era errada, mas des- viava-se da regra da língua ordinária. Uma outra teoria, agora filosófica, aborda a questão dessa língua ordinária, que diferentes linguistas chamaram de standard, comum, prática, ou então comunicativa. Surge a pragmática, no interior da filosofia da linguagem. Paralelamente, consti- tuem-se a teoria da informação e a teoria da comunicação. Foi, para a linguística, sem dúvida, um avanço científico. Mas no ensino de línguas –materna e estrangeira – deu como consequência a expulsão do texto literário, consi- derado um desvio da norma, do palco do ensino. Pensa- va-se que a literatura não mais podia ser modelo por essa artificialidade que ela tem. A literatura foi banida dos ma- nuais de língua, e principalmente de línguas estrangeiras, que optaram pela abordagem “comunicativa”, e talvez atrelados a um dos sentidos do termo “comunicação”, os teóricos e os autores de manuais decidiram que o melhor modelo para a língua eram os textos da mídia. Um comentário à margem merece uma outra con- sequência das tendências para um ensino de línguas que visava à comunicação, mas com fins específicos -espe- cificamente comerciais. Uma língua, uma das mais ricas 39 em produção literária, chegou a transformar-se em língua franca, ou seja, uma língua muito próxima do que pode- ríamos considerar artificial: uma língua quase-morta. A aprendizagem dessa língua – o inglês – tende, ainda hoje, para virar uma elencagem de termos e construções fixas, pouco menos que um código matemático, que possa ser utilizado rapidamente em um contexto quase impessoal. Sinto uma enorme dor pensando em Borges e Pessoa, no que poderiam eles sentir ante esse empobrecimento da língua amada... Deixo isso por enquanto e volto à minha pequena história. Uma nova teoria da literatura e da língua veio questionar, mais tarde, aquela do desvio. Trata-se da teo- ria que considera o texto como produtividade, e a língua poética como possibilidade infinita. Para el escritor, el lenguaje poético se presen- ta como una infinitud potencial [...]: el conjunto infinito (del lenguaje poético) es considerado como posibilidades realizables; cada una de esas posibilidades es realizable por separado, pero no son realizables todas juntas. La semiótica por su parte podría introducir en su razonamiento la noción del lenguaje poéti- co como infinitud real imposible de representar... (Kristeva 1978, pp. 234-235) Aguiar e Silva, na sua Teoria da Literatura, expõe as coincidentes teses de Coseriu, segundo as quais “...a lín- gua poética [...] deve ser concebida [...] como a realização de todas as virtualidades da língua, como materialização da plena funcionalidade da língua...” e afirma: À luz destas teses de Coseriu, os pretensos “des- vios” da língua literária configuram-se como 40 realizações inéditas ou incomuns das potencia- lidades do sistema linguístico; em sede teórica, a língua recupera, contra a dialetização a que a condenam as teorias desviacionistas, a função que historicamente sempre tem desempenhado de agente conformador por excelência da res- pectiva língua natural; o estudo da língua literá- ria, algumas vezes denunciado como restringen- te e deformante da omnímoda funcionalidade da língua, adquire, sob o ponto de vista científi- co e didático, o estatuto de insubstituível meio de conhecimento e aquisição dessa omnímoda funcionalidade e, por conseguinte, o estatuto de privilegiado instrumento de cognição do ho- mem, da sociedade e do mundo. (Aguiar e Silva 1994, pp. 172-173) Assim, para essas teorias, a literatura é o espaço privilegiado da língua, a máxima expressão das possibili- dades – nunca realizadas – de uma língua, a manifestação da sua potencialidade artística, estética e da sua virtuali- dade expressiva e, como em alguma forma diz Aguiar e Silva, transforma-se em espaço privilegiado também para o estudo da língua. Mas não é só, e agora é que começa realmente minha reflexão. Concordo, devo esclarecer an- tes de mais nada, com as teses de Aguiar e Silva, Cose- riu, Kristeva. No entanto, acrescentarei que a literatura é mesmo aquele espaço infinito, não só pelas virtualidades linguísticas que comporta, mas também porque é o espa- ço da expressão do outro. É na literatura que o estudante de língua estrangei- ra vai descobrir um efeito de estranhamento. Quer dizer, vai situar um ponto de vista deslocado porque os objeti- vos da literatura são bem outros do que os objetivos da comunicação quotidiana. Ela provoca essa sensação de se estranhar ante a língua estrangeira que em um primeiro 41 momento todo o mundo aprende para poder falar e mais ou menos compreender o outro. A literatura é o modo complexo, surpreendente e belo de se expressar esse outro que está do outro lado cultural, com quem pretendemos ter um diálogo para além da comunicação superficial, que veicule aquela car- ga de sentimentos, de desejos, de ilusões que só o tex- to literário consegue pôr em palavras. Porque, seguindo Grüner, podemos afirmar que a literatura é o modo que as línguas têm de falar do indizível (Grüner 2002, p. 320). Voltemos a Eliot. O poeta diz: “É mais fácil pensar do que sentir em língua estrangeira” (Eliot 1997). Não di- remos então que se alguém consegue sentir, ou interpre- tar o sentimento de um poema em língua estrangeira sabe muito mais dessa língua do que qualquer um que apenas consegue compreender uma comunicação instrumental? A literatura é o espaço, ainda, das sutilezas do su- bentendido, aquilo que na língua se inscreve como não- dito, e de que depende, inúmeras vezes, a nossa com- preensão do que se diz na superfície. O subentendido é também o espaço da possibilidade de dizer o que às vezes não se pode dizer. E tem mais: a literatura é o espaço em que as lín- guas vivem. Essa produtividade que é o texto literário, que faz com que a nossa leitura seja sempre uma aventura de descobrimento, é o refúgio das línguas, ainda daquelas que já não têm falantes. Está aí o exemplo nas línguas clássicas, de que os especialistas rejeitam o termo “mortas” com que se costu- ma designá-las. Eles têm razão: elas vivem, e eternamente viverão, enquanto houverum leitor disposto a entrar nos seus textos literários e trazê-los para essa vida mágica da literatura quando é lida. E toda outra língua, também a língua franca que acima mencionei, vive e continuará vi- vendo na sua literatura. Mas para podermos captar essa 42 vida, a literatura deve fazer parte da nossa aprendizagem da língua. Hoje, muitos professores voltaram a incluir a lite- ratura entre os textos que os seus alunos frequentam. Por motivos como os que acabei de expor, e também pelo prazer, motivação que nunca deve ser descurada no en- sino, não só de línguas mas de qualquer outra disciplina. Na formação do futuro professor de língua estran- geira, a literatura tem uma dupla função. Por um lado, como construto coletivo, social, manifestação de proces- sos gerais de uma época, de uma corrente de pensamento (filosófico, estético, até político) ela é um produto cul- tural. A literatura, como construção de bens simbólicos com que uma sociedade expressa a concepção que ela tem de si própria, dará ao professor aportes para o co- nhecimento dessa sociedade. Mas por outro lado a lite- ratura será, para o professor e também para seus alunos, o espaço da liberdade: liberdade de interpretar, de fazer sua leitura crítica, de comparar, relacionar, ativar sua livre imaginação; liberdade para colocarem seus próprios pon- tos de vista, dialogarem com os textos, com suas leituras prévias, ativarem mecanismos de compreensão profunda do outro e também de expressão. A literatura nos faz inventores de mundos. Ela prova que as palavras têm uma potencialidade criativa só limitada pelas regras que a própria literatura gera, e que aprender uma outra língua é adquirir mais uma porção dessa potencialidade. A literatura oferece à nossa imagi- nação a multiplicidade de vidas que uma língua descortina para os leitores. Todas as formas de uma língua, aquelas que vamos aprendendo e até mesmo as que alguma vez descobriremos falando sem saber que sabíamos, estão potencialmente na literatura dessa língua. Se estudarmos a literatura de uma língua estrangeira, estaremos cons- truindo um espaço de diálogo fecundo, que permitirá ver como e por que cada um de nós é os outros. 43 Literatura Comparada e interculturalidade Como se representa o outro na Literatura? A abor- dagem que, no meu entender, melhor pode dar conta disso é a Literatura Comparada. É nela que se estuda o encontro/desencontro de culturas: a interculturalidade, representada no texto literário. Ao se lerem comparati- vamente textos pertencentes a culturas diferentes, paten- teia-se tanto a proximidade quanto a distância que vai de uma à outra, e cada uma fica mais visível e compreensível. Cada texto deita luz sobre o outro, e a iluminação recí- proca faz surgir mais clara a expressão do outro na sua língua, na sua retórica, nos recursos literários e nos temas. Um comparatista francês, Daniel-Henri Pageaux, dedicado ao estudo das literaturas hispano-americanas, refutando a teoria das formações supranacionais, de Clau- dio Guillén (1985), afirmava, em finais do século passado, o princípio metodológico da visão diferencial: “¿Tendrá el comparatista, como lo admiten algunos, una visión ‘su- pranacional’? Confieso que prefiero asentar el principio metodológico de la visión ‘diferencial’”. E concluía: Preséntase la literatura comparada como una toma de conciencia por mínima que sea que procede de una puesta en relación de un ‘Yo’ frente al ‘Otro’, de un ‘aquí’ frente a un ‘allá’. Aquella confrontación estriba pues en el estudio de una distancia significativa entre dos o más se- ries de datos culturales. (Pageaux 1988) Nossa leitura de hoje, baseada em pensadores latino-americanos, confirma essa leitura da diferença, contrária à procura de regularidades mesmo que sejam “multiculturais”. No entanto, sem rejeitar o pensamento europeu e admitindo as coincidências quando elas exis- 44 tem, defendemos uma atitude crítica. Evitamos, como Grüner, cair na armadilha de considerar o outro como di- ferente excluído. Faz longo tempo estamos discutindo como con- figurar um modelo de análise para a literatura e a cultu- ra com um olhar latino-americano. Alguns livros foram exemplares, como aquele que coordenou Ana Pizarro (1985). Os textos de Zilá Bernd e outros autores brasi- leiros em Escrituras Híbridas (1998) tomavam como base, entre outras, a teoria de García Canclini (1992) sobre as culturas híbridas nas Américas. Começavam assim a ela- borar uma linha da Literatura Comparada Interamericana nestas regiões marginais que demandam seu espaço pró- prio, ultrapassando, até, a apropriação “antropofágica” das culturas impostas por um passado colonial. O meu trabalho, ainda na linha desses teóricos e críticos latino-americanos, vem-se encaminhando pela vereda que parte dos textos de García Canclini (2004) e Zulma Palermo (2005) e configura o conceito de intercul- turalidade. De diferentes lugares de algum modo marginais, nos primeiros anos do presente século, estes pensado- res têm desenhado o conceito, que considero o centro descentrado da reflexão latino-americana atual. García Canclini faz suas pesquisas no México e publica sua obra sobre a interculturalidade em uma das poucas editoras espa- nholas “de tamaño medio” que, “con sedes en Barcelona, México y Buenos Aires” publicam obras de reflexão so- cial e cultural latino-americana, como ele próprio afirma em seu livro (García Canclini 2004, p. 121). As pesquisas de Zulma Palermo, por sua vez, situam-se na margem da margem. Ella trabalha em Salta, no NOA- Nordeste argentino, margem com respeito a Buenos Aires, que é espaço central para a Argentina, porém é margem para a 45 Europa e os Estados Unidos. Ela publica o seu livro de 2005 em Córdoba. Néstor García Canclini coloca um conceito abran- gente de cultura, como “el conjunto de procesos sociales de producción, circulación y consumo de la significación en la vida social” (Canclini 2004, p. 34). Aquilo “inter- cultural” (assim, como adjetivo) é definido por ele como el conjunto de procesos a través de los cuales dos o más grupos representan e intuyen imagi- nariamente lo social, conciben y gestionan las relaciones con otros, o sea las diferencias, or- denan su dispersión y su inconmensurabilidad mediante una delimitación que fluctúa entre el orden que hace posible el funcionamiento de la sociedad, las zonas de disputa (local y global) y los actores que la abren a lo posible. (Canclini 2004, p. 40) García Canclini passou de considerar apenas as “culturas híbridas”, para refletir sobre as tensões que se criam no espaço intercultural. Uma outra hipótese acerca da interculturalidade é co- locada por Zulma Palermo, com um sentido ativista e po- lítico, como lugar de resistência, como “operación políti- ca descolonizadora” (Palermo 2005, p. 179). Zulma situa, nessa perspectiva, uma intercultura, uma interlíngua, uma interliteratura, uma leitura contrastiva, semelhantes aos que postulamos nos princípios e nos projetos do nosso Centro de Estudos Comparativos, e na disciplina “Literaturas Comparadas Argentina e Brasileira” do Curso de Português, na Faculdade de Humanidades e Artes da Universidade Nacional de Rosario, Argentina. Coincido com Zulma Palermo na proposta de lei- tura contrastiva e também com García Canclini, em par- 46 ticular na sua análise da interculturalidade como tensão e negociação. No entanto, as leituras de ambos não coinci- dem totalmente entre elas, e na interpretação que Zulma faz de García Canclini se exerce também alguma forma de tensão intercultural. É verdade, todavia, que Zulma não se refere ao livro que estou aqui considerando, e a sua crítica orienta-se ao conceito de “hibridação”, que o próprio García Canclini iria discutir. Mas do que se tra- ta finalmente, do meu ponto de vista, é de descentrar o nosso olhar, para pensar a interculturalidade como espaço de questionamento da leitura imposta desde o momento da colonização.Uma metodologia possível Nada melhor do que aprender a ensinar fazendo o que se pretende ensinar a fazer. É o princípio que norteia a metodologia da disciplina “Literaturas comparadas ar- gentina e brasileira”, na UNR. A disciplina visa, de uma parte, a repor o valor linguístico do estudo da literatura para a aprendizagem de uma língua estrangeira; da ou- tra, a abordar a literatura como portadora e produtora de cultura. O enfoque comparatista se relaciona diretamente com o intuito de considerar a literatura como espaço e diálogo de culturas, do encontro com o outro, da inter- culturalidade. O programa da disciplina tem um componente histórico, no que diz respeito à periodização das litera- turas argentina e brasileira, que se sustenta nas nossas pesquisas. Desse ponto de vista histórico, é estudado comparativamente o gênero conto em cada um dos perío- dos. A escolha do gênero obedece a dois motivos: a breve extensão dos textos, que permite a análise comparativa 47 de grande número deles, e a produtividade do gênero em ambas as literaturas em todos os períodos, que facilita a comparação contrastiva sincrônica e diacrônica. São, em alguns casos, estudados ensaios e poemas, mas o eixo central é o conto. Inclui-se ainda uma parte diferenciada do programa, que estuda a problemática teórica e his- tórica da literatura infantil, e analisa obras do gênero de ambos os países. Ao serem comparados os textos, levam-se em consideração aspectos temáticos, mas também formais, incluído o trabalho com as línguas, suas variedades, suas realizações diatópicas, diastráticas e diafásicas. Analisam- se, aliás, as estruturas narrativas, as categorias do gênero, as manifestações retóricas, procurando as diferenças e os pontos de confluência. Seguem-se as orientações das te- orias da literatura, que os alunos adquirem na disciplina “Análise do texto literário em português”. Paralelamente são discutidos textos teóricos e críticos sobre a proble- mática da Literatura Comparada e a teoria dos gêneros textuais. Assim, o estudo da Literatura Comparada consti- tui um encontro interdisciplinar entre estudos literários, estudos linguísticos e estudos das culturas, que tecem uma rede entre textos, construída por tanto como efei- to de leitura/s crítica/s. O conceito de interculturalidade, com o seu olhar sobre as figuras do Outro, rege essas leituras, e dirige-se tanto às culturas quanto às línguas e às literaturas. Aquilo que se propõe como objeto de estudo é também elaborado na prática. O objeto da Literatura Comparada existe só na leitura. Os textos estão dados, mas é a leitura contrastiva que faz deles um objeto novo, plural, intercultural. Dando continuidade às reflexões, ao final deste capítulo, há uma atividade a realizar. 48 Referências bibliográficas ANDRADE, Mário de (1963). O baile das quatro estações. São Paulo: Martins. AGUIAR E SILVA, V. (1994). Teoria da Literatura. Coim- bra: Almedina. BERND, Zilá (org.) (1998). Escrituras Híbridas – Estudos em Literatura comparada interamericana. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS. ELIOT, T. S. (1997). “A função social da poesia”, in: En- saios de doutrina crítica. Lisboa: Guimarães Editores. GARCÍA CANCLINI, N. (1992). Culturas híbridas, estrate- gias para entrar y salir de la modernidad. Buenos Aires: Editorial Sudamericana. ________. (2004). Diferentes, desiguales y desconectados – ma- pas de la interculturalidad. Barcelona: Gedisa. GRÜNER, E. (2002). El fin de las pequeñas historias. De los estudios culturales al retorno (imposible) de lo trágico. Buenos Aires: Paidós. GUILLÉN, C. (1985). Entre lo uno y lo diverso. Introducción a la literatura comparada. Barcelona: Editorial Crítica. HAYAT, Faíza (2006). O evangelho segundo a serpente. Rio de Janeiro: Língua Geral. Kristeva, J. (1978). “Para uma semiologia de los paragra- mas”, in: Semiótica 1. Madrid: Fundamentos. PAGEAUX, Daniel-Henri (1988). “Literatura comparada e Hispanoamérica.” Palinure, Rev. del CRECIF, nº 4, Paris. PALERMO, Z. (2005), Desde la otra orilla. Pensamiento crí- tico y políticas culturales en América Latina. Córdoba: Alción Editora. PIZARRO, Ana (coord.) (1985). La literatura latinoamerica- na como proceso. Buenos Aires: CEDAL. 4949 ATIVIDADES PROPOSTAS Proponho aqui alguns exemplos de trabalhos que os estu- dantes – futuros professores – realizam e que podem orien- tar algumas atividades do estágio PRINCÍPIOS TEÓRICOS: a) Compare os começos das literaturas argentina e bra- sileira, levando em consideração a língua, o período histórico, as produções literárias, que caracterizam a época. b) Escolha um período das literaturas argentina e brasilei- ra em que situações comuns sejam dadas, e desenvol- va os traços fundamentais. c) Desenvolva de forma concisa os itens abaixo: 1. A problemática da periodização em Literatura Comparada. Diferentes formulações. 2. Proposta de periodização das Literaturas Com- paradas Argentina e Brasileira: O critério ado- tado para o programa da disciplina LCAB do Curso de Português da UNR. ANÁLISE COMPARATIVA DE TEXTOS LITERÁRIOS 1. Escolha um eixo de comparação entre os seguintes (pode escolher mais de um): a) língua (como tema e como forma) b) narrador c) personagens d) espaço e) tempo f) diegese (organização da história) g) aspectos temáticos relativos à sociedade e sua apresentação formal. 5050 2. Escolha um conto de Pago Chico, de Roberto J. Payró, e um conto de Papéis Avulsos, de Machado de Assis. 2.1. Situe os autores no período. 2.2. Analise comparativamente esses contos, segun- do o/s eixo/s escolhido/s. 3. Escolha um conto de El jorobadito, de Roberto Arlt, e un conto de Os contos de Belazarte, de Mário de Andrade 3.1. Situe os autores no período. 3.2. Analise comparativamente esses contos, segun- do o/s eixo/s escolhido/s. TRABALHO FINAL (de conclusão) ROTEIRO DE TRABALHO: 1. Quadro histórico-social dos períodos e breve conside- ração sobre a problemática da interculturalidade. 2. Análise 2.1. Escolher um gênero: A) conto B) literatura infantil C) poesia lírica 2.2 Dentro do gênero, escolher dois autores de um período (um brasileiro e um argentino) e um texto de cada um, pertencente aos livros lidos durante o desenvolvimento das aulas e que constam do programa. 2.2.1 Dar os traços gerais do gênero no qua- dro do período. 2.2.2. Situar os dois autores dentro do perí- odo, dando, comparativamente, as ca- racterísticas de sua escritura. 2.2.3 Comparar os livros de ambos os autores (organização, temas). 2..2.4. Comparar os textos escolhidos, dando to- dos os seus traços, segundo o gênero, e aplicando a análise comparativa a todas as categorias. 51 Capítulo aPontaMentos Para uMa reLeitura De O GUARANI: a MatriZ FoLHetinesCa e as traDuÇÕes FranCesas no sÉCuLo XiX Ilana Heineberg Se Peri e Ceci são referências conhecidas para grande parte dos brasileiros do século XXI, confirmando a inserção de O guarani (1857) na tradição literária nacio- nal, não se pode afirmar que o romance de José de Alen- car esteja bem cotado junto ao público e à crítica atuais. O discurso sobre a obra do escritor cearense reprova o artificialismo, a emotividade e o nacionalismo ingênuo, revelando que a recepção do autor permanece “herdeira de sua primeira recepção crítica” (Boechat 2003, p. 12). Ainda é possível ler com prazer O guarani nos dias de hoje? Como ajudar o público jovem a tirar proveito dessa leitura para compreender não apenas a vertente indianista do romantismo brasileiro, mas também o contexto literá- rio e jornalístico do século XIX? Propomos aqui que O guarani seja estudado em sala de aula a partir de dois as- pectos: sua inserção na matriz folhetinesca e sua recepção em âmbito internacional através das traduções francesas que foram feitas deste texto ainda no século XIX. 3 52 O romance-folhetim e a construção do romance brasileiro O guaranifoi inicialmente publicado nas páginas do Diário do Rio de Janeiro. Foram 59 episódios que circu- laram entre 1/1/1857 e 20/4/1857. A seguir, a própria tipografia do jornal imprimiu o romance em livro sem grandes modificações. Trata-se, portanto, de um roman- ce-folhetim, ou seja, de uma narrativa publicada de ma- neira seriada no espaço chamado de folhetim ou rodapé, rubrica localizada na parte inferior da página de um pe- riódico, geralmente na capa (confira Heineberg 2004 e Meyer 1996). O objetivo dos periódicos ao distribuir essa fatia de ficção cotidiana era, num primeiro momento, atrair e manter o número de assinantes, tornando-se então interessante para os anunciantes. Ou seja, o sucesso do romance-folhetim contribuía à saúde financeira do veí- culo. A ideia de utilizar o espaço do folhetim, que até então abrigava crônicas, para a ficção coube ao empresá- rio francês Émile Girardin, proprietário de La presse, em 1836. Girardin foi imediatamente imitado por inúmeros jornais franceses e estrangeiros. A descontinuidade da narrativa, a popularização e a diversificação do público leitor, a proximidade com o texto jornalístico e a práti- ca da leitura oral e coletiva explicam que, aos poucos, o romance-folhetim forjasse uma poética própria: multipli- cam-se as peripécias e os personagens, estes geralmente polarizados por um forte maniqueísmo; o narrador faz- se presente no texto e interpela o leitor para guiá-lo na intriga. No Brasil, o romance-folhetim aclimatou-se ra- pidamente, cumprindo uma dupla função: por um lado, tornou rapidamente acessíveis os últimos sucessos roma- nescos europeus para um público emergente e, por outro, 53 serviu de trampolim aos escritores nacionais, apresentan- do-se como alternativa para publicar e circular em um mercado editorial ainda pouco estruturado (Heineberg 2008, p. 498). Assim, o Jornal do Commercio publicou a nar- rativa brasileira O aniversário de D. Miguel em 1828 em 1839, apenas três anos depois do lançamento do romance-fo- lhetim pela matriz francesa. Vale lembrar que a impres- são de livros e jornais no Brasil só foi autorizada a partir de 1808, com a transferência da família real para o Rio de Janeiro. Antes disso, os autores nacionais precisavam passar por editoras e tipografias estrangeiras, geralmente portuguesas, a fim de circular no Brasil. O atraso editorial de 300 anos em relação à América espanhola explica a de- sestruturação do mercado editorial brasileiro e, portanto, o papel essencial da imprensa na publicação de autores nacionais e estrangeiros e na própria formação do gênero romance no Brasil. Aos estudar as narrativas publicadas entre 1839 e o final da década de 1870 no Jornal do Commercio, Diário do Rio de Janeiro e Correio mercantil, principais diários flumi- nenses, pude discernir três fases do processo de forma- ção do romance-folhetim: a mimética, a de aclimatação e de transformação do gênero.1 Vou expô-las brevemente antes de deter-me na publicação de O guarani. São exemplos da fase mimética diversos textos na- cionais publicados no folhetim do Jornal do Commercio em 1839, ano particularmente profícuo para autores brasilei- ros que, na década seguinte, passam a ser preteridos em favor de estrangeiros. Entre textos importados de autores populares franceses, como Paul de Kock, Eugène Scribe e Alexandre Dumas, esse diário sisudo e conhecido por 1. Abordei a formação do romance-folhetim em minha tese de doutorado (Heineberg 2004) e retomei posteriormente os principais pontos desse trabalho num capítulo publicado no Brasil (Heineberg 2008). 54 sua linha conservadora publica narrativas assinadas por brasileiros que trabalham como tradutores, cronistas e jornalistas. O que nos permite denominar esses textos de miméticos é justamente o fato de confundirem-se com textos importados que servem de modelo para a incipien- te produção nacional. A aparência de narrativa estrangei- ra decorre do fato de a maioria deles situar sua intriga na França, em Portugal ou na Itália. O que está por trás des- sa vontade, consciente ou não, de travestir-se de roman- ces estrangeiros? Provavelmente fatores variados, como uma exigência do jornal, a preferência do público e a pró- pria falta de hábito de se publicar romances nacionais. Para Flora Sussekind, a ficção nacional, para se construir, estabelece um “diálogo (mais ou menos) estreito, porém inevitável com o jornal, o romance e os folhetins estran- geiros, que parecem compreender a atividade literária possível do país na época” (Sussekind 2000, p. 99). Além da preferência pelo cenário europeu, en- contramos nos textos miméticos narradores que muitas vezes se confundem com tradutores. A abertura de A pai- xão dos diamantes, de Justiniano José da Rocha, é um bom exemplo: Será inventada, será imitada, será original a no- vela que vos ofereço, leitor benévolo? Nem eu mesmo que a fiz vo-lo posso dizer. Uma obra existe em dois volumes, e em francês, que se ocupa com os mesmos fatos; eu a li, segui seus desenvolvimentos, tendo o cuidado de reduzi -los aos limites de apêndices, cerceando umas, ampliando outras circunstâncias, traduzindo os lugares em que me parecia dever traduzir, subs- tituindo com reflexões minhas o que me parecia dever ser substituído; uma coisa só tive em vista, agradar-vos; Deus queira que tenha consegui- do. (Jornal do Commercio, 27/3/1839, p. 1) 55 Nem tradutor, nem autor, a definição mais apro- priada para essa tarefa que descreve o narrador de Jus- tiniano José da Rocha é a de adaptador. Os narradores da fase mimética figuram de maneira insistente no tex- to e sempre de maneira segura, autoritária e onisciente diante de um leitor que concebe como ingênuo e dócil. Exemplo disso são as inúmeros explicações e informa- ções enciclopédicas disseminadas nos textos. No entan- to, é justamente a insistência constante sobre os papéis narrativos do leitor e do narrador que acaba por revelar a inexperiência e a insegurança deste último. Entre 1839 e a década de 1850, os romances-fo- lhetins publicados nos três principais jornais do Rio de Janeiro passam a acompanhar a tendência nativista do romantismo. Fincam os pés no território nacional, ora optando por um panorama geral do Brasil, como encon- tramos em A providência (1854), de Teixeira e Sousa, ora seguindo uma tendência regionalista, fixando-se no inte- rior. A dimensão histórica é outro aspecto fundamental desses folhetins que dividem-se entre o resgate do passa- do colonial e a discussão de questões contemporâneas, como a escravidão. Os romances dessa fase de aclima- tação mantêm o molde folhetinesco. Uma característica marcante é a multiplicação de vozes e dos níveis narrati- vos e, consequentemente, das peripécias. É somente nas décadas de 1860 e 1870 que a pro- dução nacional folhetinesca consolida-se e deixa de lado a simples reprodução do modelo importado, o que não significa necessariamente a negação deste. Pelo contrário, os procedimentos narrativos apontam para o folhetines- co muitas vezes pelo viés do humor e da paródia. Na medida em que o sistema literário brasileiro está em vias de estabilização, a presença constante do narrador e os seus comentários sobre a narração do texto, que serviam unicamente para tornar a intriga e a narração claras para o leitor, agora, através do exagero, tornam o folhetinesco 56 risível. O melhor exemplo disso é a maestria com a qual Machado de Assis dirige-se ao leitor em seus contos e ro- mances, não mais para guia-lo, mas para impedir qualquer atitude conformista. O guarani e a vertente folhetinesca Parece-me evidente que O guarani situa-se no mo- mento de aclimatação. A busca da cor local, própria à estética romântica de Alencar, alia-se às técnicas folheti- nescas do suspense e da multiplicação das peripécias. Ou seja, trata-se de um romance construído aos moldes do folhetim mas com uma temática e sobretudo um projeto de construção da literatura nacional, idealizado pelo pró-
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