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Organizador: Rogério Schmitt ANTONIO PAIM PERSONAGENS da política brasileira PERSONAGENS DA POLÍTICA BRASILEIRA 1ª ed. - São Paulo: Scriptum Editorial, 2019. ISBN 978-85-65897-04-4 Espaço Democrático - Fundação para Estudos e Formação Política do PSD espacodemocratico.org.br Organizador: Rogério Schmitt Revisão: Martha Jalkauskas / Lucas Lima Projeto gráfico: Marisa Villas Boas PERSONAGENS da política brasileira Todos os direitos desta publicação reservados ao autor. Organizador: Rogério Schmitt ANTONIO PAIM 98 PARTE IV – ERA VARGAS E REGIME CONSTITUCIONAL DE 1946 15. Washington Luís e o fim da República Velha 16. Lindolfo Collor e a organização sindical 17. Francisco Campos e o molde para a universidade brasileira 18. Góis Monteiro e a doutrina da ingerência militar na política 19. Salles Oliveira e a tradição do estado democrático de direito 20. Getúlio Vargas e a modernização do País 21. João Goulart, o presidente derrubado por forças militares 22. João Mangabeira e o partido socialista democrático que não vingou 23. Milton Campos e o descompasso com a evolução da doutrina liberal 24. Juscelino e o projeto que deu uma trégua ao País 25. Carlos Lacerda, controvertida figura liberal PARTE V – REGIME MILITAR E REDEMOCRATIZAÇÃO 26. Castelo Branco e seu governo reformador 27. Geisel e a abertura lenta, gradual e segura 28. Roberto Campos, arauto da modernização econômica 29. Tancredo Neves, a figura central da redemocratização 30. Ulysses Guimarães e a lição de comportamento democrático 10 12 14 17 18 22 26 31 32 40 47 52 57 58 62 64 67 71 75 79 INTRODUÇÃO PREFÁCIO APRESENTAÇÃO PARTE I – INDEPENDÊNCIA E NOVAS INSTITUIÇÕES 1. O papel formativo da atividade jornalística de Hipólito da Costa 2. Silvestre Pinheiro Ferreira: um mestre para a elite do século XIX 3. Antonio Carlos de Andrada e Silva e nossa primeira Constituição PARTE II – IMPÉRIO 4. Visconde de Uruguai e o valor da unidade nacional 5. Conselheiro Saraiva e a reforma eleitoral de 1881 6. Visconde do Rio Branco e a modernização do Brasil 7. Joaquim Nabuco, paladino da abolição da escravatura PARTE III – PRIMEIRA REPÚBLICA 8. Quintino Bocaiúva e a ingerência militar na política 9. Deodoro e o empenho em impedir a transformação do governo em ditadura 10. Floriano Peixoto, segundo presidente da República 11. Benjamin Constant e o ideário positivista no meio militar 12. Campos Sales e a prática autoritária da República Velha 13. Rui Barbosa e o elemento liberal na República 14. Pedro Lessa e a consolidação do Poder Judiciário independente SUMÁRIO 83 84 89 94 98 103 108 112 116 121 126 130 135 136 141 145 149 153 PERSONAGENS DA POLÍTICA BRASILEIRA 1110 Este não é o primeiro livro publicado pela Fundação Espaço Democrático, nos anos recentes, que compila artigos de sua equipe de colaboradores. Em 2017, por exemplo, Luiz Alberto Machado e Túlio Kahn organizaram a coletânea Para onde vamos? Política, Economia, Segurança Pública e Relações Internacionais no Mun- do Contemporâneo. A mesma dupla organizou, em 2018, o volume Interpretações do Brasil: Tradicionais e Novas Abordagens Históricas, Econômicas e Diplomáticas. Ambos são trabalhos que reúnem artigos selecionados, escritos pelos especialis- tas - cientistas políticos, economistas, sociólogos e internacionalistas -, que cola- boram com a Fundação. A publicação que o leitor agora tem em mãos, porém, é bem diferente das ante- riores. Trata-se de uma homenagem do Espaço Democrático ao professor Antonio Paim, cuja extensa produção para o website da Fundação jamais havia sido compi- lada em formato de livro. Uma homenagem mais do que merecida. A primeira série de artigos escritos por Antonio Paim tratou de temas de Teoria e Filosofia Política. Essa série inaugural contou com um total de 23 artigos, publicados entre agosto de 2015 e março de 2016. Os artigos dedicados a Jean Jacques Rousseau até hoje figuram entre os mais acessados pelos internautas que navegam pelo nosso site. INTRODUÇÃO O livro que agora tornamos acessível ao público corresponde à segunda série de artigos publicados pelo professor Antonio Paim. Sob a denominação original Grandes Personagens Brasileiros, Paim publicou outros 30 artigos entre maio de 2017 e setembro de 2018, os quais se transformaram nos 30 capítulos deste volume. Trata-se de uma escolha inteiramente pessoal do autor, elaborada com a finalidade de “recuperar o prestígio da classe política” – como ele próprio escreve em sua Apresentação. Salvo engano, um objetivo que é necessário e estrategica- mente louvável nos tempos atuais. Coube ao organizador somente a tarefa de propor ao autor a organização das cinco partes em que o livro se divide, estruturadas cronologicamente - “Indepen- dência e Novas Instituições”, “Império”, “Primeira República”, “Era Vargas e Regime Constitucional de 1946” e “Regime Militar e Redemocratização”. Em cada parte, no entanto, a sequência dos capítulos não é necessariamente a sequência cronológi- ca dos personagens apresentados. Acredito que este volume passará a integrar toda boa biblioteca sobre o pensa- mento político brasileiro. Boa leitura! Rogério Schmitt PERSONAGENS DA POLÍTICA BRASILEIRA 1312 Foi com enorme prazer que recebi o convite para prefaciar mais esta obra de Antonio Paim, sem favor algum, um dos maiores intérpretes da política mundial e da brasileira em particular. Quem conhece a trajetória de Paim possui condições de compreender melhor o extraordinário conhecimento que acumulou ao longo da vida. Nascido no inte- rior da Bahia, concluiu seus cursos de filosofia na Universidade Lomonosov, em Moscou, numa etapa em que se impressionou com os ideais do socialismo marxis- ta. Em seu retorno ao Brasil, prosseguiu os estudos na Universidade do Brasil e, desencantado com os caminhos do socialismo em diferentes partes do mundo, abraçou as ideias liberais, tornando-se um de seus mais abalizados intérpretes. Sua carreira acadêmica teve início como professor auxiliar na Universidade Federal do Rio de Janeiro, cidade onde prosseguiu como professor adjunto na Pontifícia Universidade Católica e, na sequência, na Universidade Gama Filho, onde se aposentou depois de ter sido professor titular e livre-docente. Durante sua brilhante carreira acadêmica, Paim se notabilizou como pesquisa- dor de História das Ideias, Filosofia Brasileira, Pensamento Político Brasileiro, Fi- losofia Luso-Brasileira, Filosofia Moral e Filosofia da Educação, participando e lide- rando uma série de projetos inovadores em nosso meio universitário a respeito da política brasileira, como aconteceu com os cursos em nível de pós-graduação na PUC-RJ, na década de 1970, e da Universidade Gama Filho, na década de 1980. Paralelamente a esses projetos, chama a atenção a intensa atividade editorial de Paim, com verdadeiros clássicos, entre os quais História das Ideias Filosóficas no Brasil, ganhador do Prêmio Jabuti de 1985 na área de ciências humanas, Cairu e o Liberalismo Econômico, A Querela do Estatismo, Liberdade Acadêmica e Opção Totalitária, e História do Liberalismo Brasileiro, recém-reeditado. PREFÁCIO Para além dos intelectuais que permanecem apenas no plano das ideias, Paim foi um ativo participante tanto no campo da política brasileira como no terreno da organização político-partidária. No primeiro caso, elaborou projetos preparatórios para a Constituição de 1988 sobre aspectos relacionados à representação, de- fendendo, na respectiva comissão parlamentar, a questão do voto distrital. Pos- teriormente, tive em Paim o meu assessor mais importante enquanto presidente do PFL, o Partido da Frente Liberal. No segundo caso, Paim tem dado enorme contribuição aos institutos e fundações que atuam como centros de estudo e formação política dos partidos políticos. Foi assim no Instituto Tancredo Neves (PFL, posteriormente DEM, o Democratas) e, agora, noEspaço Democrático do PSD, o Partido Social Democrático. Sua atuação se caracteriza pela tentativa de esclarecer os quadros partidários no que se refere ao aperfeiçoamento da representação, ao papel das Forças Ar- madas, à formulação de políticas públicas relacionadas à privatização, à desburo- cratização, às áreas de ciência e tecnologia, bem como à reforma partidária, com o objetivo de garantir efetiva representação dos interesses do eleitorado. Em seu incansável estudo sobre os problemas brasileiros, Paim se destaca pela apurada análise do patrimonialismo na nossa formação política, identificando neste fator um dos principais obstáculos ao nosso desenvolvimento. Apesar de seu vasto conhecimento, o professor Paim, verdadeiro exemplo de liberal convicto, é um sábio escondido em sua natural modéstia. Por todas essas razões, não haveria nome comparável ao de Antonio Paim para este breve mergulho na contribuição de trinta personagens da nossa história política, em momento mais do que oportuno oferecido ao público pelo Espaço Democrático. Jorge Bornhausen PERSONAGENS DA POLÍTICA BRASILEIRA 1514 Quando Francis Fukuyama, em 1989, divulgou o posteriormente famo- so ensaio intitulado “O fim da história?”, publicado na revista acadêmica The National Interest, discutiu-se primeiro o significado da afirmação. O próprio autor teria oportunidade de esclarecer que tinha em vista o senti- do, o direcionamento, onde iria chegar. Deslindada essa questão, logo os ânimos serenavam – e considerou-se tratar de uma aspiração legítima, mas de difícil consecução. Com a extinção da União Soviética, em dezembro de 1991, a “previsão” de Fukuyama passou a ser levada a sério. Entendeu-se que a Rússia automaticamente se transformaria numa democracia. Levou-se em conta que, quando se constituiu o governo re- presentativo, este processo não cogitava a democracia. A representação era monopólio da classe proprietária. A democratização (no limite estava o sufrágio universal) foi, em cada país, um processo complicado. Evidenciou- -se a necessidade da constituição de apoio social (para simplificar: classe média). No caso da Rússia, as reformas levadas a cabo na União Soviética, ocorridas na mesma época do lançamento da hipótese descrita, por si só, não proporcionavam base para a aceitação da nova doutrina. A Rússia não se transformaria automaticamente num regime democrático. APRESENTAÇÃO Levou-se em conta que as reformas realizadas pelo então primeiro-mi- nistro Yegor Gaidar (1956-2009) iriam permitir a formação de classe média apoiada nas empresas, o que possibilitaria a volta ao capitalismo. A expe- riência ocidental mostrara que primeiro lançam-se as bases da nova forma de organização política: o sistema representativo. A democratização desse sistema requer processo autônomo. Mais recentemente, em 2017, Fukuyama voltou ao tema para afirmar que a China vivenciará o mesmo processo. E mais: se o sistema político chinês não levasse ao governo representativo, posteriormente democratizado, daria por equivocada a sua teoria. Com base nessas premissas, podemos acreditar que o Brasil seguirá o mesmo destino. Estamos há cerca de duzentos anos tentando organizar o arcabouço político do sistema representativo e não vem ao caso registrar as dificuldades. O mais importante, parece-me, é dar-se conta de que à socieda- de capitalista seria preciso construir e assegurar ampla distribuição de renda. Nos Estados Unidos, 70% da renda nacional encontra-se em mãos de grupos sociais de renda média. Quer dizer: não há extremos significativos. A tarefa é desafiadora. O principal obstáculo a vencer está identificado: tra- ta-se do patrimonialismo. Em resumo, estamos no caminho que nos conduzirá à plena instauração do regime democrático representativo, compreendidas as ca- racterísticas sociais requeridas (classe média). Para tanto, é preciso recuperar o prestígio da classe política. O propósito da identificação de personalidades marcantes ora empreendido evidencia a presença de figuras destacadas no meio político. Nada sugere que o ciclo histórico ora vivenciado seja diferente. Antonio Paim PERSONAGENS DA POLÍTICA BRASILEIRA 17 PARTE I INDEPENDÊNCIA E NOVAS INSTITUIÇÕES 1918 CAPÍTULO 1 O papel formativo da atividade jornalística de Hipólito da Costa1 Durante cerca de 15 anos, de junho de 1808 à proclamação da Independência do Brasil em 1822, Hipólito da Costa editou regularmente o Correio Braziliense, jornal mensal que compunha em Londres com o propósito de familiarizar a elite com o novo regime que deveria substituir a monarquia absoluta. Editado sem qualquer censura, correspondia o periódico a feito verdadeiramente extraordi- nário, tendo aberto o caminho para a compreensão do novo sistema político que ensaiava seus primeiros passos no continente, depois de haver se consolidado na Inglaterra. Hipólito da Costa nasceu em 1774, no extremo sul do País, onde seu pai, natural do Rio de Janeiro, servia nas tropas reais. Frequentou a Universidade de Coimbra e, em 1798, aos 24 anos, foi enviado para estudar a experiência norte-americana em matéria de agricultura por D. Rodrigo de Sousa Coutinho, então ministro da Marinha e do Ultramar. Permaneceu por dois anos nos Esta- dos Unidos. De volta a Portugal, associou-se à Maçonaria, acabando preso. Após três anos de encarceramento, conseguiu fugir e se refugiar na Inglaterra. Era, então, 1805. Em dezembro de 1822, deu por encerrada a carreira jornalística, ingressando nos serviços diplomáticos do jovem Império Brasileiro, resultante da Independência. Chegou a ser nomeado cônsul-geral na Inglaterra, mas faleceu em setembro de 1823, antes de assumir o cargo. Tinha então 49 anos, dos quais 18 vividos na Inglaterra, onde casou e deixou descendentes. Tanto pelo formato como pelo conteúdo, o Correio Braziliense não tinha fei- ção de jornal, mais parecendo uma revista; para o nosso entendimento, houve números com 200 páginas. Embora o autor buscasse comentar os acontecimen- tos, as dificuldades de comunicação não eram de molde a permiti-lo. Assim, só comenta a abertura dos portos, estabelecida em janeiro de 1808, no número de agosto. A notícia da insurreição pernambucana, iniciada a 6 de março de 1817, só é conhecida em Londres a 24 de maio. Por isso, quando o Correio (número de junho) chega ao Brasil (agosto), o movimento já havia sido abortado. Em razão de tais circunstâncias, revestiu-se sobretudo de caráter doutrinário. Além do mais, circulando sem censura, ele ocupa posição ímpar até a Independência. O Brasil não dispunha de tipografias, sendo a primeira importada por D. João VI para dar lugar à Impressão Régia (1808). O Correio Braziliense comentou todas as obras que pudessem ser do interes- se da elite então radicada no Brasil, com a mudança da Corte, mesmo quando edi- tadas em inglês ou francês, dando-se ao trabalho de traduzir e transcrever o que lhe parecia essencial. Esse papel formativo refletia-se também nos comentários que dedicava à política europeia, notadamente o comportamento da Santa Alian- ça. Embora condenasse os descaminhos da Revolução Francesa, achava inúteis os esforços contra o constitucionalismo, movimento que lhe parecia “resultado do nosso estado de civilização, em direta oposição às formas estabelecidas em tempos bárbaros e apoiadas pela força dos senhores feudais; enfim, é uma guer- ra de opinião, contra a qual é ineficaz a potência física dos governos”. Neste passo escrevia: “A história da Revolução Francesa, a causa da aniquila- ção do poder de Bonaparte, os meios por que os governos de Alemanha recobra- ram a sua independência, tudo tende a mostrar que há na Europa um indomável espírito de liberdade individual, que não admite reconciliar-se com o despotismo, por mais brando que ele seja, por mais que se exorne com o esplendor de vitórias, e por mais que se disfarce com as aparências deformas legais” (junho de 1821). Comentando esse posicionamento, na obra que lhe dedicou, Hipólito da Costa e o Correio Braziliense (Companhia Editora Nacional, 1957, p. 112), Car- los Rizzini indica que, embora apoiando as medidas do Congresso de Viena restritivas ao poder ofensivo da França, quando “constituíram-se, na Santa Aliança, em força contrária à evolução das instituições políticas, admitindo o ressurgimento dos jesuítas, perseguindo a imprensa e as sociedades secretas e obstando o advento de regimes constitucionais, verberou o Correio o obscu- rantismo daqueles déspotas e o engano de terem destruído em Waterloo as conquistas espirituais do século”. PERSONAGENS DA POLÍTICA BRASILEIRA PARTE I 1 Publicado originalmente no site do Espaço Democrático em 21/8/2017. 2120 O Correio Braziliense acompanhou detidamente a luta pela Independência da América Espanhola. Considerava que “a obstinação em que está a Europa de que- rer considerar aquelas importantes e poderosas regiões como pequenas colônias em sua infância é um erro que a experiência dos Estados Unidos da América devia ter ensinado a retificar. Mas tal é a força dos prejuízos e da educação que a mesma experiência mal pode remediar os seus efeitos” (edição de junho de 1821). Entendia não ter a situação nada de similar com o caso brasileiro. A ocu- pação da Espanha pela França deixara-a sem governo. Não cabia reconstituí-lo sem a participação da América Espanhola nem muito menos deixar passar a oportunidade de introduzir o regime constitucional. O Brasil encontrava-se em situação diversa desde que passara a abrigar a Corte. A separação não convinha a nenhuma das partes. Neste sentido, o Cor- reio apresentou um programa minucioso, que compreendia desde a criação de uma universidade e o aprimoramento do sistema escolar até o estabelecimento da mais ampla liberdade de imprensa. A reforma por ele proposta compreendia a organização de um judiciário independente e o abandono da prática odiosa de delegar a justiça ao arbítrio policial. Em matéria de organização econômica, propugnava a abolição da escravatura, melhoramentos técnicos na agricultura e fomento de manufaturas. No tocante ao ordenamento político, parecia-lhe que a história de Portugal ofe- recia a experiência na qual se devia inspirar, restaurando-a. Tinha presente que a força das instituições inglesas provinha do seu tradicional enraizamento popular. Explica-se: “Um governo popular é, na minha opinião, o mais bem calculado para sacar a público os talentos, que há na Nação, e para desenvolver o entusiasmo, que resulta de se considerarem todos os cidadãos em via de ter parte ou voto na administração dos negócios públicos. Mas, quando assim falo, entendo o cha- mamento de Cortes e outras instituições que formavam a parte democrática da excelente Constituição antiga de Portugal. Não quero, pois, entender, de forma alguma, por governo popular a entrega da autoridade suprema nas mãos da popu- lação ignorante, porque isto é que constitui verdadeiramente a anarquia; e nesta se deve cair necessariamente todas as vezes em que o vigor e o entusiasmo do povo excedem a energia e o talento dos que governam” (II. 175. fev. 1809). Tudo fez para que os leitores tivessem presente o que chamou de “legitimi- dade da monarquia portuguesa”, porquanto Afonso Henriques, o fundador da na- cionalidade, foi eleito pelas Cortes de Lamego. Desse ponto de vista, apresenta superioridade em relação à monarquia inglesa. No curso de sua evolução, esta última superou a portuguesa ao deixar de ser “monarquia hereditária absoluta”, como em Portugal, para tornar-se mista, “porque o poder Legislativo reside no Parlamento, compreendendo-se por tal o Rei, a Casa dos Lordes e os Comuns”. Escreve: “As Cortes são uma instituição nacional, e a população do Brasil é tão considerável que com toda a justiça pode requerer o entrar com seus procurado- res nessa respeitável Junta. (…) O não serem os povos do Brasil representados em Cortes é a primeira origem dos seus males presentes e será causa de muitos outros para o futuro” (nov. 1809). Hipólito da Costa apoiou a Revolução do Porto na esperança de que poderia significar o reinício do funcionamento de instituições, notadamente as Cortes, para que eliminasse de vez a necessidade de futuras revoluções. Tinha presente os males trazidos pela Revolução Francesa ao insistir que as reformas devessem ser feitas pelos governos e não pelos povos. Entretanto, à medida que empreen- dem o caminho de restaurar a situação anterior em que se encontrava o Brasil, os líderes daquela Revolução passam a prestigiar o movimento pela Independência. Repete que, com a desunião, mais perderia Portugal que o Brasil. A decisão de Hipólito da Costa de suspender a edição do Correio Braziliense resulta da convicção de que, ao ser instaurada a liberdade de imprensa no Bra- sil independente, estava cumprida a sua principal missão. Seu último conselho dirige-se à Assembleia Constituinte: seguir o bom senso na elaboração da Carta Constitucional, evitar o impulso de em tudo imiscuir-se, ter presente que as re- formas de grande magnitude não se fazem num dia, confiar em que as Constitui- ções se aperfeiçoam ao longo do tempo. Como em Portugal, o aprendizado da liberdade tornou-se penoso. Viveríamos praticamente duas décadas de lutas fratricidas. A semente plantada por Hipólito da Costa, porém, iria frutificar sobretudo naquelas personalidades que soube preparar para a compreensão do significado da mensagem de Silvestre Pinheiro Ferreira e do liberalismo doutrinário. PERSONAGENS DA POLÍTICA BRASILEIRA PARTE I 2322 CAPÍTULO 2 Silvestre Pinheiro Ferreira: um mestre para a elite do século XIX2 Português de nascimento, tendo vindo para o Brasil em decorrência da mu- dança da Corte, Silvestre Pinheiro Ferreira desempenharia papel-chave no orde- namento institucional propiciado pelo Regresso, isto é, do movimento ocorrido no início dos anos quarenta, a partir do qual tem início, efetivamente, a construção das instituições do governo representativo no Brasil. Essa circunstância advém do fato de que estabeleceu sólidos vínculos com muitas das personalidades que viriam a assumir os destinos do País. Tendo permanecido no Rio de Janeiro por cerca de onze anos, manteve um curso de cultura geral. Sua hipótese era a de que a experiência de governo representativo, que vinha sendo implementada no continente europeu, em meio a graves dificuldades, somente se tornaria com- preensível a partir da consideração do conjunto das novidades suscitadas pela Época Moderna. Entendia também que, dado o papel destacado da ciência nesse conjunto, era imprescindível partir da reviravolta que o seu surgimento provocara na teoria tra- dicional do conhecimento, ligada a Aristóteles. Em Portugal, chegou-se a dizer que “era de fé” a tese aristotélica da existência de formas substanciais e aciden- tais. Essa tese vinculava-se à Contrarreforma e à necessidade de reivindicar o papel da Igreja, negada pelos protestantes. Em contrapartida, com a emergência de Pombal, passou-se para o extremo oposto, negando qualquer validade à obra de Aristóteles. O curso que ministrou no Rio de Janeiro, ao ser editado, mereceria o nome de Preleções Filosóficas. Mais tarde, notabilizar-se-ia por ter se tornado chefe do governo de D. João VI, regressando a Portugal com a Corte e assumindo a res- ponsabilidade de representar a moderação no processo de transição para a mo- narquia representativa. Inexistindo clima para a moderação, exilou-se em Paris, onde se dedicaria exclusivamente à complementação de sua obra teórica. Desta vez, ocupar-se-ia de estruturar a doutrina liberal, então denominada de “direito constitucional”. Ao longo de toda essa fase final, manteve os vínculos que estabelecera com os brasileiros, agora tendo assumido os destinos do País. Atuou, portanto, como conselheiro, dispondode enorme audiência. Seu grande feito iria consistir em ter familiarizado a corrente moderada, em formação, com a doutrina da representa- ção como sendo de interesses. Insistiu na necessidade de identificá-los e tratar de organizar a sua representação no Parlamento. Este teria que ser entendido como o local da negociação, com a incumbência de pôr termo à luta armada que grassava, tanto no Brasil como em Portugal. Dados biográficos – Silvestre Pinheiro Ferreira nasceu a 31 de dezembro de 1769, em Lisboa. A família o destinou à vida eclesiástica, fazendo-o ingressar na Ordem do Oratório, em 1783, aos 14 anos de idade, onde permaneceu durante cerca de dez anos. Ali recebeu sua formação intelectual. Na Ordem, a influência de Verney (Luiz Antonio Verney, 1713-1792), crítico do ensino escolástico, haveria de ser muito presente, uma vez que até à sua mor- te faria divulgar sucessivos textos, dando sequência ao programa formulado no Verdadeiro Método de Estudar (1746-1747). Assim, os horizontes filosóficos de- veriam ser fixados pela doutrina filosófica batizada de empirismo mitigado, obra do próprio Verney e do filósofo italiano Antonio Genovesi (1713-1769). Silvestre Pinheiro Ferreira iria se chocar com essa doutrina dominante, o que o levaria, pri- meiro, a abandonar o projeto eclesiástico e, pouco mais tarde, conforme se men- cionará, a emigrar de Portugal. Afastando-se do seminário, ministrou aulas particulares em Lisboa e logo (1794) obteve, por concurso, na Universidade de Coimbra, o lugar de lente subs- tituto da cadeira de filosofia racional e moral do Colégio das Artes. Na nova situa- ção, buscou aprofundar a crítica ao sistema filosófico vigente. Tal iniciativa não foi bem aceita pela comunidade, que o denunciou às autoridades. Ameaçado de prisão, fugiu de Portugal, embarcando clandestinamente em Setúbal, a 31 de ju- lho de 1797. Tinha, portanto, menos de 30 anos. No exílio, Silvestre Pinheiro Fer- reira estabeleceu relações com Antônio de Araújo, futuro conde de Barca, ministro PERSONAGENS DA POLÍTICA BRASILEIRA PARTE I 2 Publicado originalmente no site do Espaço Democrático em 25/8/2017. 2524 de Portugal em Haia, pessoa de influência ascendente e que iria introduzi-lo na carreira diplomática. Assim, foi secretário interino da Embaixada em Paris e, a seguir, secretário da Legação na Holanda (1798) e, mais adiante (1802), encarre- gado de negócios na Corte de Berlim. A permanência na Alemanha se prolongou até 1810. Acompanhou de perto o movimento idealista pós-kantiano, tendo assistido a conferências e debates com a presença, entre outros, de Fichte e Schelling. Suas simpatias, contudo, eram todas para o sistema Wolf-Leibniz que, naquela opor- tunidade, ainda contaria com a adesão da maioria das universidades. Regressou diretamente para o Brasil, em 1810, quando a Corte já se achava sedimentada. Cercava-o, então, a fama de erudito e liberal, que a posteridade comprovaria não ser imerecida, mas que lhe acarretaria inúmeros dissabores. No Rio de Janeiro, Silvestre Pinheiro Ferreira voltou à condição de professor de filosofia. Seu magistério contribuiu decisivamente para eliminar a influência da teoria do conhecimento posta em circulação, o já mencionado empirismo mitiga- do. A experiência brasileira comprovaria que esse sistema acabou se combinando com o democratismo. Assim, sem minar seus fundamentos últimos e sem a formu- lação de novos elementos teóricos, não teria sido possível o ulterior predomínio dos moderados. A Corte o prestigiava ou hostilizava segundo a maré montante do libera- lismo. Com a Revolução Constitucionalista do Porto (1820) e sua repercussão no Brasil, decide o Monarca entregar a chefia do governo a Silvestre Pinheiro Ferreira. Nessa condição, acompanha a Corte em seu regresso a Portugal. O clima lá vigente não era, entretanto, de molde a facilitar a transição da monar- quia absoluta para a constitucional. Nas Cortes predominavam os partidários do democratismo, que resistiam a praticar a monarquia constitucional, o que, por sua vez, açulava o elemento restaurador. Diante da crescente ascendên- cia desse último grupo – liderado por D. Miguel – Silvestre Pinheiro Ferreira não se sente em condições de manter-se no posto. Abandona o governo e se exila na capital francesa. Ali permaneceria até o início da década de quarenta. Tendo sido, pela terceira vez, eleito deputado, em 1842, decidiu-se afinal por regressar a Portugal. Tinha então 73 anos, saúde debilitada, supondo-se que haja na verdade optado por morrer em solo pátrio. Com efeito, menos de três anos depois, viria a falecer, a 2 de julho de 1846. Obra teórica – Durante a longa estada parisiense, cerca de vinte anos, Sil- vestre Pinheiro Ferreira elaborou extensa obra de filósofo e publicista político. Comentou e criticou à exaustão as Constituições brasileira e portuguesa, discutiu em detalhes os problemas da doutrina liberal e, em 1834, publicou a síntese de suas ideias no Manual do Cidadão - Em um Governo Representativo, em três to- mos, reeditado pelo Senado. No entender de Silvestre Pinheiro Ferreira, o direito constitucional, como en- tão se denominava o liberalismo político, se encaixava num amplo sistema filosó- fico, cuja concepção seria obra do período brasileiro. Como naquela oportunidade não pôde se dedicar a apresentá-lo por escrito, o que só em parte se efetiva em Preleções Filosóficas – publicação que reúne o material do curso ministrado no Rio de Janeiro –, em Paris cuidou de fazê-lo em Essai sur la Psychologie (1826), que, mais tarde (1836 e 1839), resumiria, em forma de compêndio, na obra Noções Elementares de Filosofia Geral e Aplicadas às Ciências Morais e Políticas: Ontolo- gia, Psicologia e Ideologia (1839). PERSONAGENS DA POLÍTICA BRASILEIRA PARTE I 2726 CAPÍTULO 3 Antonio Carlos de Andrada e Silva e nossa primeira Constituição3 Antonio Carlos Ribeiro de Andrada e Silva nasceu em Santos, em 1783, sendo o mais moço dos Andradas. José Bonifácio, bem mais velho, era de 1763, e Mar- tim Francisco, de 1775. Do mesmo modo que seus irmãos, estudou em Coimbra, na Faculdade de Direito – curso que concluiu em 1797, aos 24 anos de idade –, enquanto os outros tornaram-se naturalistas. Em que pese a diversidade de formação, os três Andradas destacaram-se no plano político, no ciclo histórico da Independência. Do ponto de vista da estruturação das instituições, Antonio Carlos ocupa um papel especial. De regresso ao Brasil, atuou basicamente como magistrado, primeiro em sua terra natal, Santos, e mais tarde em Olinda (Pernambuco). O fato de ter sido nomeado conselheiro do governo criado em Pernambuco pela Revolução de 1817, valeu-lhe quatro anos de prisão. Sua carreira política se inicia tão logo é libertado. São Paulo o elege deputado às Cortes de Lisboa, cuja con- vocação decorreu da Revolução do Porto, movimento que eclodiu em fins de 1820. A eleição da representação brasileira teve lugar entre maio e agosto de 1821. O movimento revolucionário tinha motivação diversificada. Entre os ele- mentos unificadores mais importantes encontrava-se o desejo de promover a volta do rei, ausente, no Brasil, há mais de dez anos. Nesse período, Portugal fora vítima de sucessivas invasões estrangeiras. A guerra durou sete anos e produziu grande destruição. Morreram mais de 100 mil pessoas. Cidades foram saqueadas e devastadas enquanto a economia agrícola ficou comple- tamente desorganizada. Terminado o conflito, o comando do Exército se manteve em mãos de ofi- ciais ingleses. A insatisfação dos oficiais portugueses com essa situação foi reprimida em 1817, enforcando-se os implicados, entre eles militares de mui- to prestígio, conquistado durante a defesa do País. Na época da Revolução do Porto, havia 100 mil homens em armas e sua manutenção consumia 75% das receitas públicas. Vigorava a crença algo difundida de que tudo isto seria sanado com a voltade D. João VI. Seu retorno promoveria a reconstituição das instituições e certamente a sua modernização, consoante a tendência do tempo. A Revolução do Porto atendia, assim, a profundas aspirações nacionais. Acontece que o movimento foi empolgado por elementos radicais, dissociados da realidade. Caracterizando o comportamento dessa liderança, o conhecido historiador português José Hermano Saraiva escreve o seguinte: “Quase todos os deputa- dos com formação universitária eram formados em Direito; o formalismo, a sub- missão do real ao conceitual e a ilusão de que são as leis que moldam os países estarão presentes em toda a sua obra legislativa. Eram, finalmente, ideólogos românticos, por vezes de exaltação mítica, com a qual substituíam uma completa inexperiência das contradições políticas; o caráter radical da Constituição que elaboraram, a atitude assumida para com o rei, quando este regressou; o conflito com o cardeal-patriarca, que foi expulso do País; a recusa de um parlamento bi- cameral (solução preconizada pelos elementos mais moderados como forma de diminuir a hostilidade das classes privilegiadas) são alguns dos resultados desse idealismo”. Mais grave que tudo, como destaca o próprio Hermano Saraiva, é que a li- derança da Revolução do Porto iria “tentar impor de novo a tutela colonial ao Brasil”. A representação do País às Cortes deparou-se, assim, com tal situa- ção. O conjunto de representantes, escolhidos para constituir o que seria o início de funcionamento da instituição parlamentar, não dispunha de qualquer experiência na matéria. Estavam ali para começar um aprendizado conjunto. Naturalmente, algumas qualidades pessoais iriam predispor esse ou aquele deputado ao exercício de liderança. Este justamente seria o caso de Antonio Carlos, reconhecidamente um grande orador. A par disto, cuidou de dominar o conteúdo das Constituições existentes na época. Assim, a passagem pelas Cortes de Lisboa iria credenciá-lo a arcar com grandes responsabilidades, quan- PERSONAGENS DA POLÍTICA BRASILEIRA PARTE I 3 Publicado originalmente no site do Espaço Democrático em 18/9/2017. 2928 do nos defrontássemos com idêntica questão. Antonio Carlos estaria entre os deputados brasileiros que, ao abandonarem Portugal por discordarem da orien- tação dominante nas Cortes de Lisboa, exilaram-se na Inglaterra, de onde re- gressaram ao Brasil. Dado o agravamento das disputas com a metrópole, o País acabou procla- mando a sua independência a 7 de setembro de 1822. Tendo assumido desde logo o compromisso de se tornar “Imperador Constitucional”, D. Pedro I convocou Assembleia Constituinte, que se instalou a 17 de abril de 1823. Antonio Carlos encontrava-se entre os parlamentares eleitos, na condição de deputado por São Paulo. Na Assembleia, rapidamente teria a sua liderança reconhecida, sendo-lhe delegada a função de elaborar o projeto de Constituição. Como não poderia deixar de ser, a Assembleia, a par da inexperiência da imensa maioria, revelou-se grandemente heterogênea. Emergiu nitidamente uma tendência nativista, fruto do ressentimento em face dos desdobramentos ocorridos nas relações com o que, até a véspera, era a pátria comum. Parte desse grupo entendia que a indisposição com os portugueses deveria se estender a D. Pedro I. Outros pretenderam interferir no funcionamento do governo, posto que não se sabia direito quais seriam as atribuições do Parlamento. Enfim, enquanto a elaboração constitucional ficava a cargo de poucos representantes, a maioria estava envolvida nessa espécie de disputa, o que acabaria levando o imperador a se indispor com a instituição. D. Pedro dissolveu a Assembleia Constituinte a 12 de novembro daquele ano (1823). Com o propósito de deixar claro que sua indisposição não o levaria a renegar o compromisso constitucional, imediatamente formou uma comissão destinada a elaborar a Constituição. Assim, a primeira Constituição brasileira, de 1824, seria outorgada. Voltando ao País, Antonio Carlos seria mais uma vez eleito deputado, em 1928. Finda a legislatura, regressou às funções de magistrado e somente retor- naria ao Parlamento, ainda na Câmara, nas legislaturas de 1838-1841 e 1845- 1847. Como ministro do Império, integrou o gabinete de 1840, para, afinal, che- gar ao Senado como representante de Pernambuco, em 1845, poucos meses antes de morrer. Na obra clássica História dos Fundadores do Império do Brasil, Octávio Tarquí- nio de Souza nos deixou o seguinte depoimento sobre o grande compatriota: “As fases culminantes da vida pública de Antonio Carlos foram quando representou São Paulo nas Cortes de Lisboa e na Constituinte de 1823. Na Assembleia portu- guesa, nenhum dos deputados conduzidos a Portugal pelo jogo contraditório dos acontecimentos políticos desempenhou papel mais eminente. Tornou-se, sem contestação, o líder dos interesses e dos sentimentos do seu país, não lhe fal- tando audácia para revidar a insolência dos deputados lusos, nem discernimento para perceber o espírito recolonizador e antibrasileiro que o soberano Congresso mal encobria sob o disfarce de pregões liberais. Em meio de homens como Feijó, Lino Coutinho, José Martiniano de Alencar, Cipriano Barata, Francisco Agostinho Gomes e tantos outros, tomou naturalmen- te a dianteira, enfrentou a hostilidade de uma Câmara ressentida, desafiou a patuleia das galerias e das ruas. Na assembleia brasileira não exerceu ação me- nos decisiva. Em confronto com homens de notável consciência política, Antonio Carlos para logo se impôs, marcando uma superioridade que lhe asseguravam a inteligência lúcida, o contato nada superficial com o pensamento da época e a circunstância de ser um grande orador.”. Antes de morrer, Antonio Carlos nos dei- xaria depoimento sobre a elaboração do texto que se tornaria a nossa primeira Constituição (de 1824). Em discurso na Câmara dos Deputados, pronunciado a 24 de abril de 1840, na discussão sobre uma questão teórica da maior relevância – a doutrina da re- presentação política, de que se louvou a elite daquela agitada fase histórica, no tocante aos interesses da alçada da chamada Câmara Baixa com respeito à fixação de impostos –, Antonio Carlos esclareceu o que se segue: “a nossa Constituição seguiu este mesmo trilho, nem podia ser de outro modo; alguns senhores ignoram como ela foi formulada. Eu tive nela grande parte; todo mundo sabe que na Assembleia Constituinte juntamo-nos sem plano, não haven- do bases em que assentasse a discussão, nomeou-se uma comissão para tratar da Constituição; eu fui um dos nomeados, o atual regente foi outro, meu falecido irmão, outro; e, além destes, o finado Marquês de Inhambupe, o sr. Muniz Tavares e meu sobrinho Costa Aguiar; eu tive a honra de ser nomeado presidente dessa PERSONAGENS DA POLÍTICA BRASILEIRA PARTE I 3130 comissão; em pouco apresentaram seus trabalhos; e eu tive a sem-cerimônia de dizer que não prestavam para nada: um copiou a Constituição Portuguesa, outro, pedaços da Constituição Espanhola. À vista desses trabalhos, a nobre Comissão teve a bondade de me incumbir da redação da nova Constituição. E que fiz eu? Depois de estabelecer as bases fundamentais, fui reunir o que havia de melhor em todas as outras Constituições, aproveitando e coordenando o que havia de mais aplicável ao nosso Estado; mas, no curto prazo de 15 dias para um trabalho tão insano, só pude fazer uma obra modesta. Eu o disse quando a apresentei à Assembleia Constituinte. Mas lembrei que a fosse melhorando pouco a pouco. A Constituição atual é pura cópia de quanto ali escrevi; apenas diverge a respeito de impostos, a respeito do elemento federal que nos tem dado a entender, e a respeito de direitos naturais escritos.”. Na sessão de 12 de junho de 1841, instado a voltar ao tema, afirmaria que “a Constituição foi feita às carreiras; quanto mais nela medito, mais me persuado de que quem a fez não entendiao que fazia. Eu provarei que não a entenderam em parte”. Interrompido por Carneiro Leão, que lembrou que antes dissera ter sido obra sua, reassume a palavra: “a que eu projetara não tinha Poder Mode- rador. Também disse que fiz as bases da Constituição, que reconheci, quando apresentei o projeto, que ela era muito defeituosa e esperava que na discussão se modificasse; mas os senhores conselheiros de Estado, que entraram a fazer a Constituição, não fizeram senão inserir o Poder Moderador, o elemento federa- tivo, colocar alguns artigos diferentemente e, no mais, copiaram o meu projeto.”. O grande mérito da Constituição de 1824 reside em que evitou excessivo detalhamento. Essa opção, diferentemente das Constituições Republicanas, fa- cultaria aprimoramento institucional, aconselhado pelo processo histórico, sem a necessidade de tudo refazer no texto da Lei Básica. Assim, embora não tivesse previsto a adoção do parlamentarismo, na década de quarenta introduziu-se a prática da aprovação, pela Câmara, do nome do presidente do Conselho de Minis- tros, com o que se inicia a nova experiência governamental. Quanto à introdução, no projeto de Antonio Carlos, de um quarto Poder, tam- bém a sua prática iria enriquecer grandemente o animado debate teórico a que daria origem. PARTE II IMPÉRIO PERSONAGENS DA POLÍTICA BRASILEIRA 3332 CAPÍTULO 4 Visconde de Uruguai e o valor da unidade nacional4 Paulino José Soares de Sousa (1807-1886) ensinou-nos o valor primordial da unidade nacional. O seu papel no encontro do ordenamento institucional, que contribuiu decisivamente para pôr fim à instabilidade política e à marcha do se- paratismo – presentes nas duas décadas subsequentes à proclamação da Inde- pendência – veio a ser amplamente reconhecido. Contudo, deixou-se de enfatizar o fato que vimos destacar. Talvez em decorrência de um incidente histórico apa- rentemente irrelevante, mas que, na prática, obscureceu o verdadeiro objetivo de sua obra fundamental. O texto que passou para a história com o nome de Ensaio sobre o Direito Ad- ministrativo (1662) intitulava-se, na primeira tiragem (como então se designava), Ensaio sobre o Direito Administrativo com Referência ao Estado e Instituições Peculiares do Brasil (1862). Certamente por considerar esse título muito longo e cuidando de reduzi-lo, optou-se por fazê-lo sacrificando o que era essencial: O Estado e as Instituições Peculiares do Brasil. Esse enunciado esquemático comporta o detalhamento que se segue. I. O CONTEXTO HISTÓRICO a) A situação material Estima-se em 5,3 milhões a população de 1830 e em 7,2 milhões, a de 1850. Neste último ano, o número de escravos era de 2,5 milhões, equivalentes, por- tanto, a 34,5% do total. Em 1872, quando se realiza o primeiro Censo, a popula- ção é de 10.112.000 e os escravos, 1.511.000 (14,9%). Em 1890, o número de habitantes alcança 14,2 milhões. Entre 1872 e 1890, o aumento populacional é de 4,2 milhões de pessoas, provindo da imigração 570 mil, ou seja, a contribuição do elemento estrangeiro para aquele crescimento equivalia a 13,5%. Em 1890, havia certo equilíbrio entre a população do Nordeste (6 milhões) e do Sudeste (6,1 milhões). No Sul se encontravam 1,4 milhão; no Norte, 47 mil, e, no Centro-Oeste, 321 mil. O Rio de Janeiro em 1890 tinha 522 mil habitantes, sendo Salvador a segunda maior cidade (174 mil) e Recife (112 mil), a terceira. São Paulo era então um centro diminuto (65 mil habitantes), pouco maior que Belém (50 mil) ou Porto Alegre (52 mil). Manaus e Fortaleza tinham cerca de 40 mil habitantes cada. Na década de noventa, a imigração incrementou significativamente, ingres- sando no País 903,5 mil pessoas (23,4% do crescimento populacional registra- do no mesmo decênio, pouco mais de 4 milhões). Nas duas primeiras décadas do século XX, chegaram ao País 940 mil imigrantes e, nos vinte anos seguintes (1921-1940), 860 mil. O fluxo declina na década de quarenta, provavelmente devido à guerra na Europa, tendo chegado ao Brasil, entre 1940 e 1950, 107 mil imigrantes. O café se implantou inicialmente no Rio de Janeiro e em Minas Gerais, expan- dindo-se, subsequentemente, na direção de São Paulo. Este estado, em 1860, produzia apenas 9% do total brasileiro, mas, em 1890, já ofertava mais que as duas outras regiões juntas. A construção das Estradas de Ferro Santos-Jundiaí (1860) e Jundiaí-Campinas (1870), bem como de outros troncos, foi decisiva para a expansão da cafeicultura paulista. A exportação média era de 1,2 milhão de sacas em 1840, de 3,8 milhões em 1870 e de 9,8 milhões em 1900. No que se refere à implantação de indústrias, são inexpressivas as iniciativas da primeira metade do século. Em 1844, introduziu-se uma tarifa protecionista para induzir a produção local de certos bens. Considera-se que o nível tecnológico se elevou em decorrência do progresso cultural e da entrada, cada vez mais maci- ça, de imigrantes europeus. O setor cafeeiro fornecia mais recursos, aos quais se juntavam, além dos capitais estrangeiros, os capitais liberados em decorrência da abolição do tráfego negreiro. O espírito empresarial se abriu para horizontes mais largos. Foi a época dos grandes empreendimentos de Irineu Evangelista de Sousa, Visconde de Mauá, que compreendeu a importância da infraestrutura, lançando-se na criação de bancos, linhas de navegação, ferrovias etc. PERSONAGENS DA POLÍTICA BRASILEIRA PARTE II 4 Publicado originalmente no site do Espaço Democrático em 18/9/2017. 3534 O poder público interveio também, embora tímida e insuficientemente, cons- truindo ferrovias (a partir da Estrada de Ferro D. Pedro II, em 1854) e rodovias (a partir da União e Indústria, em 1856). Em 1808, existiam pouco mais de 200 fábricas, que se elevaram a 636 em 1889, distribuídas nos seguintes setores: têxtil, 60%; alimentação, 15%; química, 10%; madeira, 4%: vestuário e metalur- gia, 3% cada; e outros, 5%. b) A situação política Desde que chegou ao Rio de Janeiro a notícia da Revolução do Porto, mais ou menos dois meses depois de sua eclosão, em outubro de 1820, a política ocupa, de maneira gradativa, todos os espaços, com a peculiaridade de se abrir à elite brasileira, até passar inteiramente às suas mãos. Desde então, as pessoas de escol não se sentiam com o direito de se ocupar da cultura. A radicalização fez o restante, transformando o choque elétrico – de que fala Silvestre Pinheiro Fer- reira (1769-1846) no seu depoimento daqueles meses iniciais, que denominou Cartas sobre a Revolução do Brasil, numa espécie de grande curto-circuito. Os fatos da radicalização são bem conhecidos, razão pela qual me limito a dispô-los em ordem, para destacar a magnitude crescente: • Dissolução da Assembleia Constituinte em fins de 1823. • Confederação do Equador (1824), que convulsionou de Pernambuco ao Ceará. • Agitação intermitente no Rio de Janeiro, inclusive com levantamentos mili- tares em 1831 e 1832, entremeada pelo desfecho colossal que foi a abdicação de Pedro I (7 de abril de 1831). • Guerra civil no Pará (1835-1840). • Guerra civil na Bahia (1837-1838). • Guerra civil no Maranhão (1838-1841). • Revolução Farroupilha nas províncias do Sul, começada em 1835 e que só terminaria em pleno Regresso (1845). O Ato Adicional de 1834 se inclinava francamente por uma república de estilo americano ao estabelecer eleição direta de um regente único, extinguindo, ao mesmo tempo, o Conselho de Estado. As guerras civis se travavam com grande ferocidade. Para exemplificar, na Sabinada (guerra civil da Bahia) morreram em combate 1.685 indivíduos, dos quais 594 governistas e 1.091 insurretos, com cerca de 3 mil feridos em ambos os lados. O que há a destacar nesse conjunto é o fato do alastramento do separatismo de que a Confederação do Equador e a República Farroupilha são os exemplos mais dramáticos, a bem dizer sancionados pelo Ato Adicional. II. O REGRESSO A experiência republicanafracassou de maneira fragorosa. Aos fins da Re- gência Feijó (setembro 1837), como indica Octávio Tarquínio de Souza, chega-se a certa saturação do monopólio e do fascínio da política. A esse propósito escre- ve: “O certo é, porém, que do país, pela classe que ascendera à direção política, se apoderou um cansaço de lutas tão ásperas, um grande desejo de ordem e estabilidade”. A Regência Araújo Lima, subsequente à de Feijó, desembocou diretamente no Regresso, iniciado em julho de 1840, que lança as bases do mais longo período de estabilidade política da história brasileira. Denominou-se Regresso o conjunto de medidas legais então votadas. O cen- tro moderado consegue se articular e estruturar o Partido Conservador e o Par- lamento vota, de maneira sucessiva, um conjunto de providências cujo objetivo central consistiria em afiançar a unidade nacional, na visão dos conservadores ameaçada pela execução e interpretações vigentes sobre o Ato Adicional. Não se tratou de extinguir, mas de limitar a autonomia das províncias. Esse objetivo se refletiu na sua própria denominação: Lei de Interpretação do Ato Adicional. A segunda medida legal seria a decretação da maioridade do imperador, provi- dência que objetivava permitir a restauração do Conselho de Estado. Este órgão vi- ria a adquirir grande nomeada pelo desempenho exemplar da missão que lhe cabia. Seus membros seriam personalidades detentoras de comprovada experiência polí- tica. Cabia-lhes, quando consultados, emitir parecer sobre determinada política go- vernamental, parecer esse que não tinha nenhum caráter de execução obrigatória. A elite brasileira alçada ao poder aderira à doutrina da representação como sendo de interesses. A função do Parlamento consistia então em substituir o em- PERSONAGENS DA POLÍTICA BRASILEIRA PARTE II 3736 prego da força na solução dos inevitáveis conflitos pela negociação. Semelhante entendimento facilitava ao Conselho de Estado a identificação do interesse na- cional, vale dizer o sentido moral de sua atribuição. Duas outras providências de ordem administrativa seriam a criação da figura do Presidente do Conselho de Ministros, que iria dar maior consistência à opção pelo regime parlamentar e a reforma do Código de Processo, medida essa na qual aparece a personalidade que pretendemos destacar. Paulino José Soares é um dos principais artífices da solução institucional que pôs fim ao ciclo das guerras civis e iniciou, desde o começo da década de 1850, a plena estruturação das instituições nacionais afeiçoadas ao governo representa- tivo na forma de monarquia constitucional. Estudou em Coimbra até o quarto ano de Direito, vindo a concluir o curso na Faculdade de São Paulo, após o que ingres- sa na magistratura, tendo sido juiz municipal da capital paulista. Desde 1837, foi deputado pelo Rio de Janeiro em várias legislaturas, senador do Império em 1849 e ministro de Estado por cinco vezes, ocupando, em duas, a pasta da Justi- ça e, nas outras, a dos Estrangeiros. Foi membro do Conselho de Estado e, além da obra escrita, de grande densidade teórica, considera-se que deu importante contribuição à formulação da política exterior do Império. Consagra essa traje- tória, como se dava no Império, o recebimento do título de Visconde de Uruguai. Mais relevante, contudo, é o fato de que haja compreendido que o essencial, na difícil conjuntura vigente, para assegurar a plena consolidação da conquista magna de todo esse processo – a manutenção da unidade nacional – consistia em organizar a representação e, ao mesmo tempo, fixar os limites do seu apri- moramento. Conseguiu, por esse meio, institucionalizar a negociação, destinada a substituir o confronto armado. Ao fazê-lo, Uruguai valeu-se da regra que ele mesmo havia estabelecido na concepção das instituições do governo represen- tativo. Ei-la: 1º) “Para copiar as instituições de um país e aplicá-las a outro, no todo ou em parte, é preciso, primeiro que tudo, conhecer o seu todo e o seu jogo perfeita e completamente”. 2º) “não o copiar servilmente como o temos copiado, muitas vezes mal, mas sim acomodá-lo com critério, como convém ao país”. Dando conta do trabalho de- senvolvido, com base nesse princípio, que batizaria com o nome de “ecletismo es- clarecido”, deixou-nos um texto fundamental: Ensaio sobre o Direito Administrati- vo com Referência ao Estado e Instituições Peculiares do Brasil (1862), obra que, conforme tivemos oportunidade de destacar, desde a segunda tiragem (como se dizia na época), teve o título abreviado, preservando-se apenas a sua primeira parte, circunstância que iria induzir a equívocos quanto ao seu conteúdo. Exercendo na oportunidade as funções de Ministro da Justiça do primeiro go- verno ao qual incumbiria implementar a execução das leis que designaríamos como “regressistas”, Paulino José Soares indica que a alteração fundamental introduzida no Código de Processo diz respeito à eliminação das eleições para Juízes de Paz e a revisão de suas atribuições. No livro referido, reeditado após a primeira tiragem com o título de Ensaio sobre o Direito Administrativo, Paulino José Soares examina em detalhe os fundamentos da reforma que ajudara a con- ceber, incumbindo-se de levá-la à prática. Mostra, em primeiro lugar, que a herança legal recebida de Portugal inse- ria uma grande confusão entre a Administração e o Poder Judiciário, decorrente, aliás, como indica, da circunstância de tratar-se de monarquia absoluta, alheia à divisão dos poderes. Segundo aquela legislação, os juízes exerciam muitas fun- ções administrativas. Antes de introduzir as reformas pertinentes ao novo regime, isto é, adequar a monarquia tradicional aos institutos do sistema representativo, competia, se- gundo Uruguai, separar inteiramente as funções administrativas das judiciárias para, em seguida, delegá-las aos poderes competentes. Nada disso se fez, cui- dando-se tão somente, segundo suas próprias palavras, de “tornar a autoridade judicial, então poderosamente influente sobre a administração, completamen- te independente do poder administrativo pela eleição popular. O governo ficou, portanto, sem ação própria sobre agentes administrativos também dos quais dependia sua ação, e que, todavia, eram dele independentes”. Os Juízes de Paz, “filhos da eleição popular, criaturas da cabala de uma das parcialidades do lugar”, foram cumulados de atribuições, na esfera criminal e outras, abrangendo, inclu- sive, aquelas relacionadas com o processo eleitoral. PERSONAGENS DA POLÍTICA BRASILEIRA PARTE II 3938 “Sucedia vencer as eleições uma das parcialidades em que estavam divididas as nossas Províncias”, prossegue Uruguai, “a maioria da Assembleia Provincial era sua. Pois bem, montava o seu partido e, por exemplo, depois de nomeados para os empregos e postos da Guarda Nacional homens seus, fazia-os vitalícios. Amontoava os obstáculos para que o lado contrário não pudesse para o futuro governar. Fazia Juízes de Paz seus, e Câmaras Municipais suas. Estas autoridades apuravam os jurados e nomeavam, indiretamente, por propostas, os Juízes Mu- nicipais, de Órgãos e Promotores. Edificava-se assim um castelo, inexpugnável, não só para o lado oprimido, como ainda mesmo para o Governo Central”. Quer dizer, um instrumento do novo regime – a eleição – fora colocado a ser- viço da dominação de uma das facções em luta, contrariando frontalmente suas verdadeiras funções, que eram a seleção do representante apto à defesa dos interesses, mas obrigado a fazê-lo mediante a negociação em vez da imposição. Nas reformas do período do Regresso aboliu-se a eleição do Juiz de Paz. As instituições do Judiciário e da polícia passaram então a se subordinar ao Poder Central. Criavam-se as condições para a organização da justiça em bases defi- nitivas, assegurando-lhe a possibilidade de ser de fato independente. A esse respeito escreve Uruguai: “A Lei de Interpretaçãodo Ato Adicional, e a de 3 de dezembro de 1841 (Código de Processo), modificaram profundamente esse es- tado de coisas. Pode por meio delas ser montado um partido, mas pode também ser desmontado quando abuse. Se é o governo que monta, terá contra si, em todo o Império, todo o lado contrário. Abrir-se-á então uma luta vasta e larga, porque terá de se basear em princípios, e não na luta mesquinha, odienta, mais perseguidora e opressiva, das localidades. E se a opinião contrária subir ao Po- der, encontrará na legislação meios de governar. Se quando o Partido Liberal dominou o Poder no Ministério a 2 de fevereiro de 1844, não tivesse achado a Lei de 3 de dezembro de 1841, que combateu na tribuna, na imprensa e com as armas na mão, e na qual não tocou nem para mudar-lhe uma vírgula, se tivesse achado o seu adversário acastelado no siste- ma anterior, ou teria caído logo, ou teria saltado por cima das leis. Cumpre que na organização social haja certas molas flexíveis, para que não quebrem quando aconteça, o que é inevitável, que nelas se carregue um pouco mais. Assim, nos começos da década de 1840, foram estabelecidas as regras se- gundo as quais os segmentos da sociedade que podiam fazer-se representar tinham assegurado esse direito, tornando-se sucessivamente desnecessário o recurso às armas. Começa o ciclo em que ganham forma os instrumentos capazes de proceder à negociação e sancionar a barganha, em primeiro lugar os Partidos Políticos, então simples blocos parlamentares, como nos demais países em que se ensaiava a prática do sistema representativo. Eram, porém, capazes de fazer valer os interesses dos grupos sociais, que tinham acesso à representação. O aprimoramento desta seria um tema que não mais se excluiria da ordem do dia. O aprimoramento em causa, que se estendeu por mais de quarenta anos – in- terrompendo-se, afinal, pelo advento da República – compreendia a delimitação rigorosa da base territorial abrangida pelo mandato do representante, o proble- ma da representação da minoria e, finalmente, a ampliação da base social pos- suidora do direito de fazer-se representar. Além da obra antes referida, na qual comenta e justifica a maneira como se processou a implantação no País das instituições básicas do governo represen- tativo, Paulino José Soares se preocupou com a adequada estruturação da ad- ministração provincial, reunindo em volume os estudos que dedicou ao assunto, Estudos Práticos sobre a Administração das Províncias do Brasil (1865). Editou e comentou o Código do Processo Criminal de primeira instância, que promulgou quando Ministro da Justiça, em 1842, com o propósito que se referiu. Incumbiu- -se da elaboração do Código Criminal (1861). Muitos de seus discursos chegaram a ser impressos. Por fim, como membro do Conselho de Estado desde 1853, contribuiu para estruturar os procedimentos do órgão que se tornaria o fiador do exercício do Poder Moderador. Referências bibliográficas CARVALHO, José Murilo de (Org.). Visconde do Uruguai. Rio de Janeiro: Editora 34, 2002 (Coleção Forma- dores do Brasil). COSER, Ivo. Visconde do Uruguai - Centralização e Federalismo no Brasil, 1823-1866. Instituto Univer- sitário do Rio de Janeiro, 2007. TORRES, João Camillo de Oliveira. Construtores do Império. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968. PERSONAGENS DA POLÍTICA BRASILEIRA PARTE II 4140 CAPÍTULO 5 Conselheiro Saraiva e a reforma eleitoral de 18815 Natural do estado da Bahia, bacharelou-se pela Faculdade de Direito de São Paulo. Durante algum tempo exerceu a magistratura e, a partir de 1853, aos 30 anos de idade, empreendeu bem-sucedida carreira política. Reelegeu-se su- cessivamente para a Câmara dos Deputados nas Legislaturas de 1853 a 1867. Neste último ano, seria escolhido para integrar o Senado. Presidiu as províncias do Piauí (sendo fundador de Teresina, para onde se transferiu a capital, até en- tão em Oeiras), Alagoas, São Paulo e Pernambuco. Foi ministro da Marinha e de outras pastas. Alcançou grande notoriedade pelo fato de haver patrocinado, na condição de Presidente do Conselho de Ministros, a reforma eleitoral de 1881, que pôs fim à votação em dois turnos. Esse procedimento era então praxe generalizada, isto é, tinha lugar em diversos países. As pessoas com direito a voto e constantes do registro eleitoral votavam numa lista de personalidades locais incumbidas de escolher o candidato (a deputado ou senador) pelo respectivo distrito (na época, denominado de círculo). A eliminação desse sistema, introduzindo-se a escolha direta do repre- sentante, correspondia a uma aspiração recorrente, isto é, desde a reforma de fins da década de 1850, com frequência era lembrada a necessidade de revisão. No início da década de 1880, o Partido Liberal entendeu que não mais podia ser postergada. Seguindo a opinião de membros do Conse- lho de Estado, o Imperador entendia que a providência requeria emenda constitucional. Ao aceitar o encargo de organizar o gabinete em 1880, José Antonio Saraiva informou a D. Pedro II a disposição em empreender a reforma eleitoral. Contudo, sua proposição seria no sentido de o fazer por lei ordinária, não tendo encontra- do qualquer oposição. O assunto foi discutido intensamente no Senado, onde se formou ferrenha oposição provinda dos conservadores. Entendia Saraiva que se tratava de aten- der à aspiração da maioria da opinião. Louvava-se do apoio integral com que contava em seu partido, além de verificar-se em parcela considerável dos inte- grantes do Partido Conservador. A intenção do Presidente do Conselho é expressa com toda clareza nos dis- cursos que constam da coletânea que os reúne (Perfis Parlamentares, Volume 4, Brasília, Câmara dos Deputados, 1978). Não se trata de reforma de cunho demo- crático. Não aspira à introdução do sufrágio universal. Quer sobretudo tornar a Câmara mais independente. Nesse particular, José Antonio Saraiva preferiu fazê-lo segundo o caminho moderado adotado pelos ingleses ao invés do modelo francês. É muito frequente justificar-se a crítica ao parlamentarismo praticado no Se- gundo Reinado, sob a alegação de que se baseava num sistema eleitoral que não era democrático. Acontece que, ali onde se tentava copiar o modelo inglês de governo – basicamente em reduzido número de países europeus e nos Esta- dos Unidos –, o sistema eleitoral limitava o direito de voto. Vigorava o chamado “sistema censitário”, segundo o qual o direito de se fazer representar estava limitado aos proprietários. Essa condição era comprovada mediante a fixação de determinado nível de renda, tanto para se tornar eleitor como para se candidatar a cargos eletivos. No início da segunda metade do século XIX, na França se introduziu o que en- tão se entendia como sufrágio universal, limitado à população masculina. Logo se verificou que a iniciativa se destinava a estabelecer uma nova modalidade de autoritarismo: o governo através de plebiscito, criado por Napoleão III, siste- ma que lhe permitiu, entre outras coisas, fechar o Parlamento. Durou até 1870, quando se proclamou a III República, que iria se notabilizar como a primeira ex- periência de parlamentarismo republicano. O modelo republicano, popularizado pelos Estados Unidos, era, como se sabe, presidencialista. Deste modo, a experiência francesa serviu para dar maior credibilidade ao ca- minho adotado pelos ingleses para ampliar o sufrágio. Com a Reforma de 1832, o eleitorado inglês expandiu-se de 4,5 para 7,1% da população maior de 21 anos. PERSONAGENS DA POLÍTICA BRASILEIRA PARTE II 5 Publicado originalmente no site do Espaço Democrático em 15/5/2017. 4342 Somente se cogitou de sua ampliação a partir dos anos 1860. Sempre progres- sivas, as reformas se sucederam nas décadas seguintes. Por esse meio, no fim do século completa-se o processo de introdução do sufrágio universal masculi- no - eleitorado em torno de 30% da população maior de21 anos; a extensão às mulheres ainda iria demorar algumas décadas. Nessa retomada do debate eleitoral, na Inglaterra ocorrida nos anos 1860, surgiu uma modalidade de ampliar o eleitorado que iria ser adotada na Lei Sa- raiva, indicando claramente que a elite imperial tinha de fato presente as re- comendações do Visconde de Uruguai. Consistiam de dois princípios: 1º) para copiar instituição de outro país, cumpre conhecê-la de modo circunstanciado; e 2º) não fazê-lo servilmente, mas atentando para circunstâncias nacionais que aconselhem adaptações. A modalidade em causa aparece no projeto de reforma submetido à Câmara dos Comuns pelo líder do Partido Liberal, William Gladstone (1809-1898), em 1866, que facultava o direito de voto aos chefes de família residentes da Capital. Provada essa condição, estariam dispensados da prova de renda, novidade que iria constar do projeto de lei apresentado por Saraiva. A proposição de Gladstone, apresentada em 1866, viria a ser derrotada pelos conservadores, fato que daria origem a uma grande celeuma no País, vendo-se o líder do Partido Conservador, Benjamin Disraeli (1804-1881), obrigado a ado- tá-la. Nas eleições ocorridas dois anos depois, em 1868, os conservadores serão derrotados, organizando-se governo liberal que reabriria o debate, aprovando-a. Em discurso pronunciado na sessão do dia 26 de maio de 1880, diz expres- samente: “Qual a razão pela qual adotei o censo mais alto? Porque queria que se averiguasse a renda de uma maneira mais severa e rigorosa, e esse rigor na averiguação da renda me convenceu de que um censo mais alto diminuiria con- sideravelmente o eleitorado no interior”. Tenha-se presente que o sistema cen- sitário vigente (exigência de prova de renda para votar e ser votado) servia para assegurar a formação de maiorias, mecanismo imprescindível à governabilidade. Paulino José Soares tratou de modo circunstanciado do problema ao descrever, na obra que foi referida na nota precedente e comentada em texto autônomo nesta mesma página, que lhe é dedicada, a natureza das instituições imperiais. A novidade da Lei Saraiva nessa matéria consiste em haver dispensado da prova de renda a sucessivos segmentos da população urbana, a exemplo dos seguintes: a) os oficiais do Exército, da Armada, dos corpos policiais, da guarda nacional e da extinta 2ª linha, compreendidos os ativos, da reserva, re- formados e honorários; b) os pagantes de impostos e taxas gerais de diversa índole; c) os advogados e solicitadores, médicos, cirurgiões e farmacêuticos, os que tiverem qualquer título conferido ou aprovado por faculdades, acade- mias, escolas e institutos de ensino público secundário superior e especial; d) os que exercessem o magistério particular, como diretores e professores de colégios ou escolas frequentadas por 40 ou mais alunos; e) os clérigos seculares de ordens sacras, seguindo-se a enumeração para abranger os que exerciam diversas atividades no comércio (inclusive guarda-livros e primei- ros-caixeiros); na navegação e os que se dedicavam à corretagem e leilões. Enfim, trata-se de uma enumeração minuciosa de que se depreende ter bus- cado ser exaustiva justamente para fazer emergir um novo tipo de interesse, com a intenção de ampliar a base social dos que dispunham da prerrogativa de se fazer representar. No texto de João Camilo de Oliveira Torres, adiante transcrito, acha-se docu- mentado o fato de que, nas eleições realizadas naquela década de 1880, a vota- ção obtida pelo Partido Liberal comprova ter passado a dispor de base eleitoral autônoma, junto ao eleitorado urbano. Assim, deu início a uma nova dinâmica no processo político. Se tivermos presente a forma cautelosa como os ingleses procederam à expansão do eleitorado, veremos que a Lei Saraiva, ao eliminar a necessidade da prova de renda, antes exigida para diversos setores da po- pulação urbana, trilhava o caminho que iria desembocar na democratização do sufrágio, processo esse abruptamente interrompido pela nova elite do poder que ascendeu com a República. Com a proclamação da República, José Antonio Saraiva não se afastou da polí- tica, elegendo-se para o Senado por seu estado natal, a Bahia. Como já indicado, faleceria em 1895, aos 72 anos de idade. Segue-se a transcrição do texto mencionado: PERSONAGENS DA POLÍTICA BRASILEIRA PARTE II 4544 A base social dos partidos imperiais João Camilo de Oliveira Torres (1916-1973) Se a sociedade imperial era predominantemente agrária, não o era exclusivamente. Era um tipo medieval de sociedade, com a influência de grandes clãs rurais, mas com a presença de artesanato e do comércio nas cidades. O fato era mais visível em Minas, já que a tradição urbana do ciclo do ouro não se perdera e permanecia uma classe média sensivelmente forte, operando no comércio, em pequenas indústrias, nos serviços públi- cos, nas profissões liberais, no clero etc. Em qualquer época do Império, o equilíbrio campo-cidade era visível em Minas. Certamente era reduzida essa classe média de funcionários, comer- ciantes, profissionais liberais e pequenos industriais, mas era visível. Con- vém recordar que, dentro de soluções medievais, numa comunidade do tipo tradicional, o profissional independente exercia papel decisivo. Mais ainda: numa sociedade de elites escassas, se as cidades conheciam dois ou três profissionais liberais, sua influência era imensa, porém. No estudo da sociedade imperial, os autores costumam cometer al- guns enganos sérios. Um deles, o de considerar como coisa normal ser a atividade comercial privilégio de súditos portugueses. Convém lembrar, primeiramente, que os naturais de Portugal que estivessem no Brasil por ocasião da Independência poderiam optar pela nacionalidade brasileira. De fato, com exceção do Rio, havia um ou outro comerciante português. Poder-se-ia citar o caso de Itabira, que estudei. Seu comércio durante todo o século XIX esteve em mãos de brasileiros. A projeção política da estratificação social pode ser explicada do se- guinte modo: embora as classes rurais fossem mais numerosas, o “censo” excluía do voto (era um princípio universal na época) grande parte dos tra- balhadores rurais e, além disso, a escravidão completava a exclusão. Como em várias épocas se adotou o sistema de distritos, as cidades podiam ter representantes próprios, com exclusão do interior. Eleitoralmente, as cida- des eram super-representadas. É conhecido o provérbio, destinado a criticar os líderes liberais que, combatendo os abusos dos conservadores, neles incidiam, por sua vez: “Nada tão parecido a um ‘saquarema’ como um ‘luzia’ no poder”. Mas havia diferenças. Liberais e conservadores realmente encaravam o mundo dos valores políticos de maneira radicalmente diversa. Podemos dizer que os conservadores partiam do princípio de que o Brasil era aquilo que estava ali e, portanto, não interessava sair correndo atrás de teorias para modifi- cá-lo. Com o tempo, por si as coisas mudariam. Os liberais queriam que as práticas inglesas se adaptassem ao Brasil, e não só eles como também os conselheiros queriam estar em dia com a Inglaterra. O coronel Manuel Monteiro Chassim Drummond, chefe liberal de Itabira, comerciante em grosso e varejo, era leitor assíduo do The Illustrated London News e outras prestigiosas publicações britânicas, conforme tive oca- sião de verificar quando da liquidação de seu espólio. Em minha opinião, baseada em algumas pesquisas, é mesmo uma generalizada maneira de sentir da época, sendo lícito desse modo estabelecer uma relação entre a distribuição partidária e a linha de classes. A Grande Lei, de 1881, obra em grande parte de Rui Barbosa, bene- ficiava os liberais por valorizar o eleitorado urbano. Em primeiro lugar, a eleição por distritos permitia que os grandes centros tivessem seus depu- tados próprios só votados nas cidades, sem interferência do eleitorado ru- ral. Depois,pelo censo alto, que, excluindo as atividades de remuneração baixa, atingia proporcionalmente mais à gente do campo, como é óbvio. Os liberais, aliás, eram conscientes de seu interesse no caso. Tavares Bastos, ao propor reformas eleitorais não cogitava de alargar o direito de voto, mas de restringi-lo. Chegara à conclusão de que no Brasil havia, de fato, sufrágio universal e que se impunha restabelecer a vigência do princípio constitucional, excluindo as classes que votavam indevidamente. Vamos comparar Minas, Rio e Rio Grande do Sul em três eleições. Em 1881, com vitória liberal: Minas teve 14 deputados liberais e 6 conserva- dores; Rio Grande, todos liberais; Rio (Corte e província), 10 conservadores e 2 liberais. Em 1884, com discreta maioria liberal, eleição quase empata- PERSONAGENS DA POLÍTICA BRASILEIRA PARTE II 4746 da em Minas com 12 liberais, 7 conservadores e 1 republicano; Rio Grande do Sul, todos liberais (eram os “maragatos”, de Silveira Martins, dominando tudo). Em 1886, esmagadora vitória conservadora: Minas, 11 liberais e 9 conservadores; Rio, 12 conservadores; Rio Grande, 5 conservadores e 1 liberal. Estes dados, aliás, mostram que, em Minas, pelo predomínio da população urbana, o governo de nada valia. O Rio (província e Corte) era dominado pelos barões do Vale do Paraíba. Conclusão: a urbanização permite o aparecimento de forças liberais autônomas e, principalmente, reduz a ação do governo nos pleitos. Nas zonas propriamente agrícolas, de latifúndio escravocrata, dominavam con- servadores; em regiões mais rurais do que urbanas, pouco importando o gênero de atividade, o governo atuava largado. (Transcrito de Os Construtores do Império. São Paulo: Companhia Edi- tora Nacional, 1968; Coleção Brasiliana, volume 340). CAPÍTULO 6 Visconde do Rio Branco e a modernização do Brasil6 De certa forma ofuscado graças à notabilidade alcançada por seu filho ho- mônimo, o Barão do Rio Branco, José Maria da Silva Paranhos, Visconde do Rio Branco, foi personalidade central na história política do País. Depois de alcançar grande nomeada nas questões relacionadas ao Prata, cuja relevância seria torna- da patente devido às dimensões assumidas pela Guerra do Paraguai, equacionou e deu passos decisivos no encaminhamento das reformas essenciais de que ca- recia o País. Tal se deu como presidente do Conselho de Ministros, cargo exercido durante cerca de cinco anos – período mais longo de permanência no cargo –, na primeira metade da década de 1870. Ao contrário do comum dos políticos de sua época, em geral formados em Direito, José Maria da Silva Paranhos diplomou-se em ciências matemáticas na Real Academia Militar, tornando-se professor da então recém-organizada Escola Central, que consumava, naquele estabelecimento de ensino superior, a separa- ção entre a formação militar e o curso de engenharia. No momento em que, na- queles círculos, tinha lugar a aproximação ao positivismo – que iria transformar o discurso acerca da ciência numa peça de retórica, sobretudo política –, demons- traria o pleno entendimento de que o País não poderia descurar do desenvolvi- mento científico propriamente dito. Nesse particular, como veremos, tinha uma visão harmoniosa do conjunto da problemática educacional, como de resto iria demonstrar nas outras reformas que viria a introduzir. Começou a carreira política em 1845, aos 26 anos de idade, como deputado à Assembleia Provincial do Rio de Janeiro. Dois anos depois se elegeu para a Câmara dos Deputados, reelegendo-se em sucessivas legislaturas. Foi presiden- te da Província do Rio de Janeiro. Desde os anos 1850, exerceu vários cargos diplomáticos relacionados à Bacia do Prata. Graças à familiaridade adquirida com PERSONAGENS DA POLÍTICA BRASILEIRA PARTE II 6 Publicado originalmente no site do Espaço Democrático em 2/10/2017. 4948 personalidades e problemas da região, terminada a Guerra do Paraguai, coube- -lhe a incumbência de organizar o novo governo que, em conformidade com o desejo expresso do Brasil, assegurasse a independência do País, preservando, ao mesmo tempo, a convivência pacífica com os vizinhos. Ocupou ainda as pastas da Marinha, dos Negócios Estrangeiros, da Guerra e da Fazenda. Em 1862, passou a integrar o Senado. Tornara-se uma das figuras mais proeminentes do Partido Conservador. Ao ascender à chefia do governo, no começo de 1871, Paranhos tinha plena consciência de que, apaziguada a si- tuação internacional, na Bacia do Prata – ponto mais sensível nessa matéria –, era imprescindível empreender o caminho das reformas no interior do País. De- cidiu-se por começar pela mais relevante e, ao mesmo tempo, a mais sensível e polêmica: a eliminação do trabalho escravo. Naquela altura, já se esboçara em São Paulo o esquema de transição para as atividades agrícolas, em especial as plantações de café, carro-chefe das exportações, pela introdução do sistema de meação, exigente de mão de obra de outro tipo, isto é, constituída de imigrantes familiarizados com a prática da agricultura. O presidente do Conselho começou por uma proposição que, aparentemente, corresponderia a uma forma de protelar a solução do problema: tornar livres os filhos de escravos, por meio da providência que passou à história com o nome de Lei do Ventre Livre. Provocou debates dos mais acalorados na Câmara dos De- putados, ensejando o surgimento de dissidência no próprio Partido Conservador. A discussão se arrastou ao longo dos meses de julho e agosto. A oposição às ambições reformadoras de Paranhos, gestada em suas próprias hostes, assumiu tais proporções que, no ano seguinte, obteve a dissolução e a correspondente convocação de eleições. No que se refere à Lei do Ventre Livre, tendo encontrado oposição mode- rada no Senado, viria a ser promulgada a 28 de setembro. Avaliação tornada pública em seguida à Abolição, que teria lugar em 1888, indica que a Lei do Ventre Livre reduzira substancialmente o contingente de escravos no País, re- dução essa que, se estimou, seria da ordem de 1,6 milhão de cativos. Na altura em que foi decretada, os escravos eram estimados como equivalendo a entre 3,5 milhões e 4 milhões. A população do País em 1872, quando teve lugar o primeiro recenseamento – cuja efetivação seria determinada justamente por Paranhos –, era pouco inferior a 10 milhões. A par disto, o Gabinete Rio Branco instituiu um fundo especial para financiar a alforria. Iniciada a utilização desses recursos, sob a sua presidência do Conselho, te- ria continuidade nos governos subsequentes, de modo que, quando veio a abolição, somente em parte iria ser afetada a produção agrícola, à época a mais relevante. De igual relevância são as providências concomitantes no terreno da imigra- ção. Na biografia que lhe dedicou o Visconde de Taunay, afirma-se: “A introdução de colonos europeus também muito prendeu a atenção do estadista. Numerosos foram os atos fomentadores da imigração, para diferentes partes do Império, e vários contratos com aliciadores de imigrantes, num total de muitas dezenas de milhares de pessoas. A par e passo se legislara sobre terras devolutas, tendo-se em vista a localização dos novos habitantes do País”. Leve-se em conta que, notadamente em São Paulo, que marchava para ser o maior produtor de café, introduzira-se uma nova relação de trabalho, os chamados contratos de parceria (ou de meação), que acabaram por promover a formação de camada média entre os produtores agrícolas. Ainda no plano da modernização econômica do País, o Gabinete deu conti- nuidade à política de estímulos à construção de ferrovias. Além da expansão da Estrada de Ferro D. Pedro II, destinada a atender ao Vale do Paraíba, devendo ligar-se a Minas Gerais, decretou-se a criação da Rede Ferroviária do Rio Grande do Sul. A marinha mercante nacional, a indústria de construção naval e a navega- ção de cabotagem também mereceriam a devida atenção.
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