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CARTA DOS EDITORES “Toda ideia de país resulta de uma construção ideológica”. São com essas provocadoras pa- lavras que o Embaixador Rubens Ricupero, em seu livro “A diplomacia na construção do Brasil”, discute a formação da identidade nacional. Se as bases de nossa atuação externa foram, em grande medida, consolidadas pelo Barão do Rio Branco, nossa mais recente “ideia de país” é em muito influenciada pela Constituição Federal de 1988. Fruto de uma euforia advinda do fim de um longo regime autoritário, a Constituição é a imagem de uma sociedade que se pretende democrática, pacífica e promotora da equidade social. Ao dialogar com a função simbólica da Carta, a décima edição da Revista Juca propôs-se a discutir os avanços reais da Constituição na esteira das comemoração de seus trinta anos de exis- tência. Além de entrevistarmos atores políticos relevantes nesse processo e discorrermos sobre ele, questionamos a nós mesmos: consideramos que os alunos-diplomatas, espraiados por páginas e páginas da Juca, são consequência inexorável da Constituição de 1988. Refletir sobre ela é, por- tanto, ruminar sobre política externa brasileira, sobre os rumos da política interna e sobre nosso papel numa democracia que, embora adulta, enfrenta uma luta cotidiana para consolidar-se. Es- crever sobre a Constituição de 1988 acaba por ser autorreferente: trata-se de entender um pouco mais sobre nós. Tal como em suas edições anteriores, a Revista Juca continua a ser um esforço de representa- ção dos novos integrantes da carreira diplomática. Ela acaba, igualmente, por refletir as mudan- ças institucionais na formação dos novos diplomatas brasileiros. Com a redução da extensão do curso, os esforços para a publicação da Revista Juca principiam no intervalo das primeiras lições de “Política Internacional I”, mas apenas terminam ao longo de nossa primeira lotação. Isso aca- ba por refletir nos temas abordados na revista: artigos como “Cooperação em saúde no BRICS: símbolo de um novo ciclo de atuação do agrupamento” e “A Plataforma para o Biofuturo e a nova diplomacia brasileira da bioenergia” são fruto de uma inquietação intelectual que tem como base o trabalho cotidiano dos novos diplomatas nas respectivas divisões. Há, igualmente, artigos que exibem a vida profissional pregressa de seus autores, tais como “Relações Brasil-URSS, Primeiro Ato” e “O início dos Amores”. De certo modo, a Juca é a soma do que fomos, do que somos e do que almejamos ser. A publicação, sem nenhum descontinuidade, da décima edição da Revista Juca é motivo de celebração. Muitas publicações não sobreviveram aos dez anos de existência. A Juca, por sua vez, perseverou. Ano após ano, uma equipe de diplomatas aprende as bases da editoração, muitas ve- zes sem experiência prévia, para exercer uma das maiores conquistas da Constituição de 1998: a liberdade de expressão. O resultado soma-se aos esforços de suas antecessoras e, esperamos, estimula as próximas turmas a seguir adiante. A todos, desejamos uma boa leitura! JUCA Edição 10 / 2018 Instituto Rio Branco Impressa em Brasília Brasil EDITORES HONORÁRIOS Embaixador José Estanislau do Amaral Souza Neto Embaixadora Gisela Maria Figueiredo Padovan EDITORA-CHEFE Maria Eduarda Paiva EDITORA-EXECUTIVA Isadora Loreto da Silveira EDITORES DE ARTE Mariana Marshall Parra Pedro Barreto da Rocha Paranhos EDITORES DE DOSSIÊ Ellen Cristina Borges Londe Mello Arthur Cesar Lima Naylor EDITORES DE ENTREVISTAS João Soares Viana Neto Ramiro Januário dos Santos Neto EDITOR DE DIPLOMACIA E POLÍTICA INTERNACIONAL Wallace Medeiros de Melo Alves EDITOR DE CULTURA E ARTE Guilherme Fernando Rennó Kisteumacher EDITOR DE MEMÓRIA DIPLOMÁTICA Adriano Bonotto EDITORA DE ENSAIOS E RESENHAS Mariana Marshall Parra EDITORA DE TRADUÇÕES Camilla Corá DIAGRAMAÇÃO Helkton Gomes CAPA Arquivo da Câmara dos Deputados Expediente Ministro de Estado das Relações Exteriores, Senhor Aloysio Nunes Ferreira, Secretário-Geral das Relações Exteriores, Embaixador Marcos Bezerra Abbott Galvão, Diretor-Geral do Instituto Rio Branco (2016-2018), Embaixador José Estanislau do Amaral Souza Neto, atual Diretora-Geral do Instituto Rio Branco, Embaixadora Gisela Maria Figueiredo Padovan. Deputada Benedita Souza da Silva Sampaio. Embaixador Eduardo Paes Saboia, Embaixadora Eugênia Barthelmess, Embaixador Norberto Moretti, Embaixador Sílvio José Albuquerque e Silva. Ministro Felipe Hees, Ministro Sérgio Barreiros de Santana Azevedo. Conselheiro Bruno de Lacerda Carrilho, Conselheiro Cícero Tobias de Oliveira Freitas, Conselheiro Francisco Eduardo Novello, Conselheiro George de Oliveira Marques, Conselheiro João Mauricio Cabral de Mello, Conselheiro Ronaldo Alexandre do Amaral e Silva, Conselheira Viviane Rios Balbino. Secretário Danilo Vilela Bandeira, Secretário Diogo Ramos Coelho, Secretário Felipe Krause Dornelles, Secretário Felipe Neves Caetano Ribeiro, Secretário Filipe Correa Nasser Silva, Secretário Henrique Choer Moraes, Secretária Laís de Souza Garcia, Secretário Luiz de Andrade Filho, Secretário Pedro Mendonça Cavalcante, Secretário Vismar Ravagnani Duarte Silva, Secretária Yukie Watanabe. Senhor Adriano César Santos Ribeiro, Senhor Carlos Alexandre Fernandes Considera, Senhora Dieime Simões de Souza Madureira, Senhora Giovanna Cerqueira Lombardo, Senhor Iuri Medeiros de Jezus, Senhora Natanni Fernandes Santiago, Senhor Rafael Lima Barbosa. Agradecimentos Sumário ENTREVISTAS “Ser ministro das Relações Exteriores é estar no lugar onde a atividade política, em sua acepção mais elevada, é exercida. É uma enorme fonte de satisfação”: Entrevista com o ministro Aloysio Nunes Ferreira – 36 Isadora Loreto da Silveira, João Soares Viana Neto, Maria Eduarda Paiva e Ramiro Januário dos Santos Neto ESPECIAL 10 ANOS DE JUCA Celebrando as “ficções da memória”: lembranças afetivas dos dez anos da JUCA – 26 Camilla Corá, Maria Eduarda Paiva e Wallace Medeiros de Melo Alves MEMÓRIA DIPLOMÁTICA Quem foi Bertha Lutz? – 78 Camilla Corá e Sarah Venites 3006 Massachusetts Avenue: A relação Brasil-EUA nas memórias de diplomatas brasileiros – 88 Filipe Nasser e Wallace Alves Diplomacia, soberania e estratégia: a atuação do Barão do Rio Branco na Questão do Acre (1902-1903) – 98 Guilherme Fernando Rennó Kisteumacher Relações Brasil-URSS, Primeiro Ato: A Chancelaria Brasileira Frente à Dupla Revolução de 1917 – 108 Marcelo Laraburu DOSSIÊ Apresentação do Dossiê – 04 Os Editores Os impactos da Constituição de 1988 nas Políticas Sociais – 06 Camilla Corá, Isadora Loreto e Maria Eduarda Paiva Contrato Social Antieconômico? A relação ambígua entre a Constituição Federal e a economia – 14 Arthur Cesar Lima Naylor Da Discriminação Racial no Direito Internacional e na Constituição Federal de 1988 – 18 Ramiro Januário dos Santos Neto Muitos tons de verde: o longo e acidentado caminho do meio ambiente até a Constituição – 22 Arthur Cesar Lima Naylor DIPLOMACIA E POLÍTICA INTERNACIONAL A plataforma para o biofuturo e a nova diplomacia brasileira da bioenergia – 58 Adriano Bonotto Cooperação em saúde no BRICS: símbolo de um novo ciclo de atuação do agrupamento – 62 Ramiro Januário dos Santos Neto e Isadora Loreto da Silveira Mercosul e Venezuela: Direito e Democracia – 68 Riane Laís Tarnovski Brasil e os países do Conselho de Cooperação do Golfo – uma análise das relações históricas e perspectivas – 72 Al-Anoud Al-Sabah RESENHAS “Eu cruzaria a cidade em bicicleta só para te ver dançar”: resenha de “Jóquei”, de Matilde Campilho – 114 Isadora Loreto da Silveira Resenha: “Madame President – The extraordinary journey of Ellen Johnson Sirleaf” – 118 Mariana Marshall Parra “Lima Barreto – triste visionário” Lilia Moritz Schwarcz – 122 Maria Eduarda Paiva Benedita da Silva “Eu nunca vi, no Brasil, um momento tão rico quanto o da Assembleia Nacional Constituinte[...]. Eu passei por um momento de grande emoção.” – 44 Elaine Cristina PereiraGomes; Igor Goulart Teixeira; Rafaela Seixas Fontes; Ramiro Januário dos Santos Neto; Rodrigo Cruvinel Barenho e Rodrigo Ponciano Guedes Bastos dos Santos. “Você conhece algum diplomata brasileiro negro?”: Entrevista do embaixador Silvio José Albuquerque e Silva à revista JUCA – 50 João Soares Viana Neto CULTURA E ARTE Athos Bulcão e o mundo ao seu redor – 126 Vismar Ravagnani Um estadista brasileiro no país do sol nascente: um pioneiro da diplomacia pública – 130 Daiki Inaba “Os Embaixadores” de Hans Holbein e a desordem mundial – 134 Guilherme Fernando Rennó Kisteumacher O início dos amores: Império e militarismo na poesia – 138 Hudson Caldeira Brant Sandy f Ellen cz – 122cz – 122cz – 12 DIVERSOS Na Itaipu, o traço todo da diplomacia – 144 Maria Eduarda Paiva A OMC em águas turbulentas – 152 Pedro Gazzinelli Colares o no DOSSIÊ Apresentação Escolher a Constituição como tema do Dossiê desta JUCA foi até certo ponto fácil. Não é apenas que as efemérides se consolidaram, ao longo dos dez anos da revista, como critério preferencial na hora de esco- lher o assunto de sua seção mais importante. É também que, embora 2018 seja um ano pródigo em celebrações relevantes, como provam o centenário do fim da 1a Guerra e os 50 anos das revoltas juvenis que abalaram o mundo, os 30 anos da Constituição são um tema que muito de perto diz respeito a nós, jovens diplomatas, por afinidade tanto geográfica quanto geracional. Não é exagero dizer que somos os filhos da Constituição, do Brasil que ela refletiu e do Brasil que ela sonhou, passa- do e futuro entrelaçando-se nas múltiplas possibilida- des de um presente que estamos permanentemente a construir. Contudo, além de homenagear uma tradição edi- torial já enraizada, a escolha dessa efeméride específi- ca vem a calhar por uma razão que o próprio tema deste Dossiê celebra. Somos uma turma diversa, com interes- ses e visões diversos, e temos a convicção, que a Carta de 88 elevou a princípio organizador de nossa demo- cracia, de que a diversidade deve celebrada e estimula- da, jamais reprimida. A Constituição é o Brasil e o mun- do, é um espelho e uma bússola, é uma enciclopédia e um manual de instruções. Tudo ao mesmo tempo, tudo no mesmo pacto. Portanto, cara leitora, caro leitor, ao ler, nas próximas páginas, sobre políticas sociais, eco- nomia, meio ambiente e racismo, sugerimos que não pense num conjunto de assuntos em busca de um nor- te. Pense num caleidoscópio, que, com suas múltiplas refrações, longe de parecer desconjuntado, revela uma unidade colorida e desconcertante. Boa leitura! Os editores 5 DOSSIÊ Os impactos da Constituição de 1988 nas Políticas Sociais Camilla Corá, Isadora Loreto e Maria Eduarda Paiva A redemocratização e a Constituição de 1988 Era 05 de outubro de 1988, pouco antes das três e meia da tarde. Ulysses Guimarães, presidente da As- sembleia Nacional Constituinte, José Sarney, presidente da República, e Rafael Meyer, presidente do Supremo Tribunal Federal, reuniram-se em frente ao Congresso Nacional, onde foram saudados por tiros de canhão e pela execução do Hino Nacional. Após a revista às tro- pas, os três presidentes subiram a rampa do Congresso, quando foram aclamados por fogos de artifício. No Plenário da Câmara dos Deputados, o pre- sidente da Assembleia Constituinte e o presidente do Senado, Humberto Lucena, foram os primeiros a chegar para a composição da Mesa. A entrada das autoridades naquele que foi o palco principal dos grandes debates da Constituinte foi seguida de uma grande salva de palmas. Com a chegada dos presidentes José Sarney e Rafael Meyer, conduzidos ao Plenário pelos líderes dos parti- dos políticos, deu-se início à cerimônia de promulgação da Constituição Federal de 1988. Todos os presentes ouviram de pé o Hino Na- cional. Em seguida, o deputado Ulysses Guimarães as- sinou cinco exemplares originais da nova Constituição. Faltavam dez minutos para as quatro da tarde quando o deputado declarou promulgada a Constituição, numa fala de improviso, que transmitia a emoção do interlo- cutor: “Declaro promulgada o documento da liberdade, da dignidade, da democracia, da justiça social do Brasil. Que Deus nos ajude. Que isto se cumpra”. Se é inegável que a Constituição foi marco po- lítico fundamental para um país que, havia vinte anos, desconhecia a democracia, não restava claro, naque- la conjuntura, qual seria a contribuição do novo texto constitucional para os mais pobres – a grande parcela da população que nunca havia se identificado como sujeito de direitos. Nesse aspecto, o texto constitucional de 1988 contém normas que ora ampliaram direitos e garantias sociais anteriores a sua promulgação, ora instituíram políticas sociais até então inexistentes. Os direitos so- ciais foram a principal inovação de uma Constituição que se pretendeu cidadã, norteando fundamentalmente os objetivos da Carta: (...) instituir um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvi- mento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconcei- tos, fundada na harmonia social (...). Passados trinta anos da promulgação da Consti- tuição, pode-se afirmar que, embora a implementação das políticas sociais seja um processo inconcluso e com graus distintos de êxito a depender das políticas anali- sadas, houve avanços inegáveis. Não apenas são percep- tíveis as inovações promovidas nas áreas de assistência social, saúde, educação e combate à extrema pobreza, como também a manutenção de grande parte do arca- bouço normativo original. Em um texto emendado por noventa e nove vezes desde 1988, em meio a distintas 7 crises políticas e econômicas, é surpreendente a perma- nência de grande parte dos avanços constitucionais em termos de políticas sociais. Compreender a magnitude da Constituição de 1988 para as políticas sociais demanda um olhar à legislação que a antecedeu. O sistema de políticas sociais brasileiro surge, em sua essência, em 1930, com a vigência de uma legislação que ampliava benefícios assistenciais, previ- denciários e, especialmente, trabalhistas e com a atua- ção do Estado como regulador de um pacto social que se constituía. No entanto, os sistemas que se formavam eram bastante seletivos e voltados a um número res- trito de beneficiários. Essa limitação torna-se evidente na área de saúde, em que, até 1988, o acesso a serviços hospitalares estava limitado a pessoas formalmente in- seridas no mercado de trabalho, estando o restante da população ao arbítrio da filantropia. Antes de 1988, o acesso à maioria dos serviços so- ciais era essencialmente baseado no vínculo trabalhista do cidadão. Essa lógica de sistema protetivo é perversa por estimular um círculo vicioso de pobreza quase im- possível de ser rompido. Aqueles que não estavam no mercado formal de emprego – ou seja, os estratos mais marginalizados da sociedade – não tinham uma rede de apoio do Estado que propiciaria a superação da pobreza no médio prazo. Como os mais pobres eram necessaria- mente os menos protegidos, praticamente inexistia mo- bilidade social. Segundo Jorge Abrahão e José Apareci- do Ribeiro, em “As Políticas Sociais de 1888: conquistas e desafios”, os dados sociais evidenciavam as condições de vida precárias de boa parte da população: em 1980, a esperança de vida ao nascer era de apenas 60 anos; a taxa de mortalidade infantil era de 88 por mil nascidos vivos; o analfabetismo na população de 15 anos ou mais era de 25%. Como grande feito, a Constituição de 1988 intro- duziu no ordenamento jurídico brasileiro o conceito de Seguridade Social, que, de acordo com o art. 194 da Carta, “compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, des- tinadas a assegurar os direitos à saúde, à previdência e à assistência social”. Determinadosdireitos sociais são, pela primeira vez, vistos de maneira integrada, como uma medida necessária para combater situações de vul- nerabilidade. Essa inovação ganha importância quando se verificam os princípios que regem a Seguridade So- cial: universalidade da cobertura e do atendimento; uni- formidade e equivalência dos benefícios e dos serviços às populações urbanas e rurais, caráter democrático e descentralizado da gestão administrativa, entre outros. A Constituição orientou a necessidade de um cuidado integrado, abrangente e intersetorial para uma popula- ção, em geral, desassistida. Como se percebe, a Constituição de 1988 buscou romper com essa lógica seletiva em políticas sociais, adotando um modelo mais redistributivo. Não era uma opção óbvia: o Brasil dos anos 1980 vivia uma de suas piores crises econômicas, e estabelecer de que maneira custear as ambições da Constituição em questões so- ciais foi um dos duros debates travados na Constituinte. Esse debate, como se sabe, estava longe de se limitar ao Brasil: o papel do Estado estava sendo questionado nas maiores economias do mundo, com acentuada projeção das teses em favor de um Estado mínimo. Adotar políti- cas sociais abrangentes e universais não era um movi- mento natural, exigindo grande capital político de seus defensores. Uma Constituição, quando elaborada, não é um re- trato fiel da sociedade, mas, sim, uma rota para o seu futuro. A implementação da Constituição cidadã certa- mente não foi fácil e segue, até os dias atuais, incom- pleta. Ainda assim, o explícito comprometimento com a inclusão e com a redução da pobreza rendeu frutos que devem ser comemorados no aniversário de 30 anos da Carta. As políticas sociais da Constituição de 1988 Os novos dispositivos constitucionais tiveram im- pacto direto na vida de milhões de brasileiros, como Dalva Gomes e sua família. Tendo crescido nos anos DOSSIÊ 1980, Dalva teve pouco acesso a uma rede efetiva de pro- teção social. Foi nesse contexto que, aos 15 anos, ela saiu de Cristino Castro, no Piauí, para trabalhar como em- pregada doméstica em Brasília. A situação já era distinta quando suas quatro filhas nasceram: Dalva pode contar com o apoio do Sistema Único de Saúde para a realiza- ção do parto e para o acompanhamento materno-infan- til. Dalva também se tornou beneficiária do Programa Bolsa Família, o que lhe permitiu complementar a renda familiar de modo que suas filhas não precisassem repro- duzir a história da mãe, acumulando rotina escolar com trabalho. Em 2016, Suellen – a filha mais velha de Dal- va – entrou na faculdade de Enfermagem, caminho que Dalva espera ser seguido pelas demais. A melhoria das condições de vida de Dalva e sua fa- mília tornou-se possível em razão das garantias da Cons- tituição de 1988. O sistema brasileiro de proteção social, criado a partir do arcabouço constitucional de 1988 e posteriormente incrementado e regulamentado, pode ser analisado a partir da definição de José Celso Cardo- so Jr. e Luciana Jaccoud em “Políticas sociais no Bra- sil: organização, abrangência e tensões da ação estatal” (2005), segundo a qual a ação social estatal no âmbito federal pode ser dividida em quatro eixos estruturantes básicos: emprego e trabalho, assistência social e comba- te à pobreza, direitos incondicionais e cidadania social e infraestrutura social. O primeiro eixo inclui previdência social, políticas de apoio ao trabalhador e organização agrária e política fundiária; o segundo, assistência so- cial, alimentação e nutrição e ações de combate à pobre- za e transferência de renda; o terceiro, saúde e ensino fundamental; e o quarto, habitação e saneamento. Esse rol de políticas não é exaustivo, podendo-se pensar tam- bém em uma série de políticas de promoção de igualda- de racial e de políticas para mulheres, por exemplo. No que se refere ao segundo eixo, foco principal deste artigo, a Lei Orgânica de Assistência Social, de 1993, definiu as ações de assistência social a partir de quatro categorias: benefícios (Benefício da Prestação Continuada e benefícios eventuais), serviços (ativida- des de atendimento ou abrigamento para crianças, jo- vens, idosos, portadores de deficiência, etc.), programas e projetos assistenciais (nas áreas de erradicação do tra- balho infantil e combate à exploração sexual de crian- ças, por exemplo). É importante notar que, com o ad- vento da “Constituição Cidadã”, a política de assistência social foi decididamente vinculada ao Estado, diferen- ciando-se substancialmente da abordagem baseada na intervenção filantrópica e na transferência de recursos a entidades privadas de caridade. As políticas dessa ver- tente, uma vez dispersas e fragmentadas, foram ganhan- do consistência, e a década de 2000 inaugurou também a adoção de políticas de transferência de renda no âm- bito federal (Bolsa-Escola, Bolsa-Alimentação, Auxílio- -Gás e, mais tarde, Bolsa-Família). Dentre as políticas mencionadas, o Programa Bol- sa Família tem papel de destaque, dado seu alcance e potencial transformador. Instituído em 2003, por meio da unificação dos procedimentos das ações de transfe- rência de renda criadas no governo Fernando Henrique Cardoso, seu objetivo principal é contribuir para o com- bate à pobreza e à desigualdade social no país. O pro- grama é pautado no complemento da renda familiar, em somas que variam a depender da vulnerabilidade social e do número de integrantes da família. Mensalmente, mulheres de todos os cantos do Bra- sil – que foram priorizadas pelo Programa e consistem em mais de 90% dos representantes familiares – podem sacar o complemento de renda transferido pelo progra- ma em agências bancárias ou casas lotéricas, por meio de um cartão magnético pessoal e intrasferível. Esse mecanismo impede, de certa maneira, o personalismo de muitas políticas sociais anteriores, em que um aten- dimento ou uma cesta básica dependiam, em essência, das benesses de um gestor municipal. Ao tornar impes- soal a seleção dos beneficiários e a transferência de ren- da, o Bolsa Família humanizou as políticas sociais. A grande inovação do Bolsa Família parece ter sido a sua integração às políticas sociais incondicionais: saú- de, educação básica e assistência social, cujo acesso é, em teoria, de caráter universal. Tanto a saúde quanto a educação básica passaram, a partir da nova Constitui- 9 ção Federal, a ser localizados na esfera dos direitos inalienáveis de todos os cidadãos e do dever do Estado. Persiste, contudo, uma série de desafios em ambas as áreas, uma vez que a cobertura universal é segmentada e marcada pela qualidade variável dos serviços oferta- dos pelo Estado. A fim de garantir a manutenção do benefício finan- ceiro do Bolsa Família, as famílias precisam estar em dia com as condicionalidades, tais como o cumprimento do calendário vacinal e frequência escolar. Ao garantir que crianças e jovens pobres acessem as redes públicas de saúde e educação, o Bolsa Família auxilia na forma- ção de uma geração mais saudável e mais letrada que a sua antecessora. Mais apta, assim, a romper com sua condição de pobreza. A transferência condicionada de renda também gera uma demanda importante para o poder público: ofertar os serviços necessários para que os beneficiários do programa consigam, efetivamente, cumprir as condicionalidades. Isso demandou maior investimento em escolas, postos de saúde e centros de Assistência Social. Embora o Bolsa Família esteja longe de ser o único programa social instituído após a Constituição de 1988, ele é um grande símbolo de como a questão social ga- nhou relevância nas últimas décadas. A transferência condicionada de renda aos mais pobres foi, por muito tempo, o programa social mais discutido nos debates políticos, nas redes sociais e nos almoços de domingo. As discordâncias são expressão saudável de uma demo- cracia que teve seu primeiro contato com desenhos de políticas sociais de amplo alcance para a população de-sassistida. O debate não deve, no entanto, ignorar os resultados consideráveis na vida das pessoas: a preocupação com o caráter cidadão e redistributivo inscrita da Constitui- ção 1988 e as políticas sociais posteriormente adotadas foram um dos determinantes para a melhoria da renda domiciliar per capita, do índice de Gini, e dos níveis de pobreza e extrema pobreza no Brasil nas décadas que se seguiram. De acordo com Paulo de Martino Jannuzzi em “Pobreza, Desigualdade e Mudança Social: trajetó- ria no Brasil recente (1992 a 2014)” (2016), entre 1992 e 2014, a renda domiciliar per capita média passou de 541 reais para 1.058 reais. O índice de Gini baixou de 0,61 em 1993 para 0,59 em 2001 e para 0,52 em 2014. A extrema pobreza (parcela da população com renda domiciliar per capita de até R$ 70,00) afetava 13,5% da população brasileira em 1992, passando para 8,2% em 2003 e atin- gindo 2,5% em 2014. A pobreza (renda domiciliar per capita de até R$ 140,00) passou de um nível de 31% em 1992 para 24% em 2003, e alcançou 7% em 2014. Os reflexos na política externa brasileira É difícil separar os impactos das políticas sociais introduzidas ou possibilitadas pela Constituição de 1988 na política externa daqueles do próprio processo de redemocratização. A nova Constituição regulava, em dimensão inédita, a condução da política externa brasileira, destacadamente em seu artigo 4º, que elenca, entre os princípios que regem as relações internacionais do Brasil, a «prevalência dos direitos humanos», o «repúdio ao terrorismo e ao racismo», e a «cooperação entre os povos para o progresso da humanidade». Conforme Polveiro Jr., no artigo «As relações internacionais na Constituição de 1988 e suas consequências na política externa brasileira”, a partir da promulgação da Constituição Cidadã, evidenciou-se a percepção da política externa como instrumento para realização dos objetivos fundamentais da República, conforme elencados no artigo 3º daquela Carta: i) cons- truir uma sociedade livre, justa e solidária; ii) garantir o desenvolvimento nacional; iii) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e re- gionais; e iv) promover o bem de todos, sem preconcei- tos de origem, raça, sexo, cor, idade ou quaisquer outras formas de discriminação. Os efeitos mais diretos das políticas sociais pós- 1988 na política externa podem ser percebidos no âm- bito da cooperação internacional. Fundamentado na noção de que a cooperação deve ser horizontal e regida DOSSIÊ pela demanda, o Brasil passou a atuar não apenas como receptor, mas como provedor de cooperação naquelas áreas em que se identificaram maiores sucessos inter- namente. Nesse sentido, a Constituição concedeu não apenas legitimidade à atuação externa, mas também os meios, ao possibilitar que programas sociais bem-suce- didos se tornassem exemplos a serem compartilhados com outros países. Nesse contexto, inegável destaque foi conferido aos programas de transferência condicionada de renda da rede Fome Zero, que incluem o Bolsa Família. Ainda que seja impossível delimitar o número exato, dados do Banco Mundial de 2016 apontavam a implementação de iniciativas no formato do Bolsa Família em 52 países. O Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) teria, ain- da, entre 2011 e 2015, recebido mais de 400 delegações Biritinga-BA. A quilombola Maria José de Souza Santos, mais conhecida como Mãe Pequena, e seus netos. Foto: Sergio Amaral/MDS 11 de quase 100 países, interessadas no funcionamento do programa. Um dos mais notórios exemplos de iniciativa diretamente inspirada no modelo brasileiro – e o pri- meiro programa de transferência condicionada de ren- da nos Estados Unidos – é o “Opportunity NYC”, fun- dado pelo prefeito de Nova Iorque, Michael Bloomberg, em 2007, para beneficiar famílias em situação de vulne- rabilidade na metrópole. Os exemplos – que incluem ainda países da Améri- ca Latina, África e Europa – demonstram que a chamada “tecnologia social” desenvolvida no Brasil tornou-se, ra- pidamente, elemento de soft power na política externa. Nesse sentido, não apenas multiplicou-se a participação do Brasil como também cresceram as suas propostas de criação de instrumentos internacionais de combate à fome. Exemplos incluem a Ação contra a Fome e Po- breza, lançada na ONU, em 2004, originada de parceria entre o Brasil, a França, o Chile e a Espanha, e o Fun- do IBAS para o Alívio da Pobreza e da Fome, criado no mesmo ano, em parceria com Índia e África do Sul. Sem prejuízo de outros setores, há que se ressaltar a atuação internacional do Brasil no tema da saúde. Ainda no âmbito da Ação Contra a Fome e a Pobreza, foi lança- da, em 2007, por iniciativa de Brasil, França, Chile, No- ruega e Reino Unido, a Central Internacional de Com- pras de Medicamentos (UNITAID), com a intenção de acelerar o acesso a medicamentos de alta qualidade e ao diagnóstico de doenças como HIV/AIDS, tuberculose e malária. A diplomacia brasileira, amparada pelo trata- mento interno da questão dos medicamentos de HIV/ AIDS, favoreceu, ainda, o tratamento do tema das pa- tentes na Organização Mundial da Saúde e apoiou pro- jetos de cooperação Sul-Sul na África e na América do Sul, sob o prisma da chamada “cooperação estruturante em saúde”, conceito formulado pelo Centro de Relações Internacionais da Fiocruz segundo o qual é necessário construir capacidades internas para o desenvolvimento. As políticas sociais elencadas pela Constituição Ci- dadã dialogaram, ainda, com as mudanças no cenário internacional no que tange aos elementos mais gerais da política externa brasileira pós-redemocratização. A chamada “década das conferências”, nas palavras do embaixador Lindgren Alves, coincidiu temporalmente com o momento de “quitação de hipotecas” do Brasil, conformando um cenário de ampla participação – e de- manda – do Brasil em conferências e organizações in- ternacionais sobre temas sociais. Ao mesmo tempo, a política externa brasileira não se podia furtar da abertu- ra promovida em outros setores domésticos, passando a valorizar maior diálogo com as Organizações Não Go- vernamentais (ONGs) e com a sociedade civil em geral. Nesse sentido, viu-se a aproximação da agenda interna- cional de temas sociais à agenda de integração regional, a exemplo do Mercosul e, mais tarde, da UNASUL e da CELAC. Em que pesem essas constatações, deve-se ressaltar que, como tudo em política (externa), não se pretende inferir que as mudanças aqui repassadas advieram de consensos. Conforme assinalam Monica Hirst e Letícia Pinheiro, no artigo “A política externa em dois tempos”, os primeiros anos pós-1988 foram de intensos debates sobre os rumos do Itamaraty e a inserção internacional do Brasil. Desde então, os únicos possíveis consensos são aqueles que estão, corretamente, plasmados no arti- go 4º da Carta. De toda sorte, o caso das políticas sociais inauguradas em 1988 e implementadas nas décadas se- guintes, as quais viriam a beneficiar milhões de brasilei- ros como Dalva, e da sua reverberação na ação externa brasileira evidencia o papel inegável da política exterior como política pública. Os novos rumos das políticas sociais 30 anos após a promulgação da Constituição, já se torna difícil lembrar do plenário lotado do Congresso Nacional e da voz do “Doutor Ulysses”, anunciando as novas regras da democracia. As vozes atuais frequen- temente enfatizam a necessidade de revisão da Consti- tuição, argumentando que o texto pode ser aprimorado para se tornar mais condizente com a realidade política do país. Com as recentes discussões sobre reequilíbrio DOSSIÊ fiscal, é natural e necessário que as políticas sociais se- jam rediscutidas, a fim de tornar seu desenho mais efi- ciente e sustentável. Nesse processo, no entanto, torna-se fundamental dialogar com os mais vulneráveis – vozes que o nosso sistema político passou a escutar a partir da redemo- cratização. É certamente desafiador fazerajustes sem interromper um processo de inclusão social. Por outro lado, ignorar a população mais pobre é esgarçar o tecido social e abrir o flanco para conflitos que tornarão a so- ciedade mais desagregada. Em tempos de intenso deba- te político, cabe ouvir as vozes – como as de Dalva e de suas filhas – que nos ensinam que a Constituição deve servir a todos os cidadãos. Manaus, AM. O técnico de enfermagem da Secretaria de Saúde de Manaus, Mauro Idemburgo, mede Gustavo Santos de Souza, filho da beneficiária do Bolsa Família, Greice Geane Siqueira dos Santos, pelo programa de atendimento itinerante da prefeitura. Foto: Ana Nascimento/MDS 13 Contrato Social Antieconômico? A relação ambígua entre a Constituição Federal e a economia Arthur Cesar Lima Naylor “Declaro promulgada. O documento da liberdade, da dignidade, da democracia, da justiça social do Bra- sil.” Com essas palavras, Ulysses Guimarães entregou aos brasileiros, no já histórico 5 de outubro de 1988, a Constituição que, mais do que marco institucional de- finitivo do Brasil contemporâneo, representava a pro- messa de um novo tempo para o país. Não parece casual que tão poucos qualificativos tenham sido escolhidos para apresentar uma extensa Carta de 245 artigos. Os três primeiros, pertencentes ao mesmo campo semân- tico, fazem referência tanto ao legado autoritário a ser eliminado quanto à sociedade plural a ser construída. O quarto fala da dívida histórica a ser paga à enorme par- cela da população mantida afastada dos benefícios do DOSSIÊ William Gropper, Construction of the Dam, 1938. crescimento que o país experimentou ao longo do sécu- lo XX. É difícil não notar, porém, a ausência de um item nessa declaração de propósitos. Ao menos desde a década de 1930, o desenvolvi- mento econômico esteve no centro das prioridades do Estado brasileiro. Isso se refletiu nas leis do país e nas ações de governo que moldaram da política econômica à política externa. Durante o regime militar, cuja insti- tucionalidade autoritária a nova ordem constitucional buscava sepultar, o Brasil cresceu de forma acelerada, encurtando a distância que o separava dos países desen- volvidos. Foi um crescimento de fundamentos frágeis, baseado em uma dinâmica demográfica favorável –em que se combinavam elevados índices de crescimento populacional e de urbanização – e em forte intervenção estatal na economia, o que produziu distorções que ter- minariam por solapar as bases de sustentação do regi- me. Ainda assim, não se pode ignorar fatos significativos como a elevação da renda média do trabalhador brasi- leiro de 17% para 28% em comparação com a renda mé- dia do trabalhador americano, entre 1964 e 1978. Apesar desse forte crescimento econômico, a distri- buição de renda e os índices de desenvolvimento social do Brasil permaneciam entre os piores do mundo em mea- dos da década de 1980. O índice de Gini girava em torno de 0,60 em 1985, um dos mais altos da época. No mes- mo ano, espantosos 83% dos brasileiros tinham apenas a educação primária; a expectativa de vida ao nascer era de 64,4 anos, a 170a entre 221 países; e 42% da população do país era pobre, enquanto 18% era extremamente po- bre. Com a abertura política e a incorporação da grande massa de excluídos ao processo eleitoral, essa situação tornava-se intolerável. Não seria mais possível esperar o bolo crescer para só então dividi-lo. O Estado deveria desenvolver um conjunto de medidas cujo mote, como definido pelo presidente José Sarney, fosse “tudo pelo social”. Não que o crescimento econômico deixasse de ser importante. O Brasil, afinal, ainda estava longe de ser um país desenvolvido. Mas, entre crescer e distribuir, a prioridade do Brasil democrático parecia clara. A cons- pícua omissão de Ulysses ganhava uma explicação plau- sível. Redemocratização, mau desempenho econômico e fortalecimento institucional Com efeito, o que se verifica desde a redemocratiza- ção, em matéria de desenvolvimento econômico-social, é uma espécie de negativo da fotografia do regime mili- tar. Assim, avanços notáveis foram alcançados em dis- tribuição de renda, com o índice de Gini caindo de 0,60 em 1998 para 0,52 em 2012, e em redução da pobreza, com a queda de 24,4% para 10,2%, entre 2003 e 2011, da parcela da população brasileira abaixo da linha da po- breza. Além disso, investimentos maciços em educação levaram a um aumento de cerca de 5 anos na média de escolaridade do brasileiro entre 1980 e 2010 (de 2,5 para 7,5 anos), comparado ao modesto avanço de 1 ano entre 1950 e 1980 (de 1,5 para 2,5 anos). Na área de saúde, a Constituição criou o SUS, um sistema de saúde pública universal que, a despeito de suas deficiências, represen- ta grande avanço em relação à situação de desamparo em que vivia boa parte da população antes de 1988. Deve-se mencionar, ainda, a construção de uma rede de proteção social, consolidada em iniciativas como o Programa Bol- sa Família e o Benefício de Prestação Continuada, este último previsto na Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), de 1993. Por outro lado, as taxas de crescimento econômico foram pouco mais que modestas. Entre 1985 e 2012, o crescimento médio do PIB per capita brasileiro foi de apenas 1,4% ao ano, índice inferior à média dos países emergentes, mesmo quando se excluem aqueles de cres- cimento acelerado, como China e Índia. As razões para essa baixa performance parecem fáceis de identificar. É difícil não associá-las ao ordenamento institucional, Constituição à frente, e à dinâmica social vigentes no país desde a redemocratização. As múltiplas demandas 15 represadas durante o regime autoritário vieram à luz com o retorno da democracia e impuseram ao Estado brasileiro um pesado fardo fiscal. Nesse sentido, é sinto- mático que, em 1984, a despesa corrente da União fosse apenas 8% maior, em termos reais, do que em 1980, pas- sando a ser 46% maior em 1986. Ou seja: a partir 1985, ano da redemocratização, a curva dos gastos públicos in- flete decisivamente para cima, chegando, em 2012, a um patamar 600% superior ao que era em 1980. Para cobrir esse crescimento vertiginoso de gastos, o Brasil tem tido de aumentar continuamente sua carga tributária, a qual passou de 24,5% para 33,5% do PIB entre 1991 e 2011, muito acima da média dos países em desenvolvimento. Como consequência desse quadro, a poupança do setor público tornou-se estruturalmente negativa, dando ori- gem a déficits nominais recorrentes, o que se traduz em altas taxas de juro e baixo nível de investimento. Embora desolador à primeira vista, esse cenário é visto por alguns estudiosos como uma manifestação su- perficial e temporária de uma trajetória que fará do Bra- sil um país desenvolvido dentro de alguns anos. É esse o argumento defendido por Lee J. Alston, Marcus André Melo, Bernardo Mueller e Carlos Pereira em Brazil in transition: beliefs, leadership, and institutional change. Explorando a fecunda fronteira entre a nova economia institucional1 e a ciência política, os autores fazem uso de um arsenal de conceitos para defender a tese de que o Brasil está em uma trilha virtuosa rumo a uma “transi- ção crítica” para o seleto clube dos países desenvolvidos. Na narrativa dos autores, a partir da redemocratização, a sociedade brasileira, em especial suas “redes domi- nantes”, isto é, os atores politicamente mais relevantes do país, foi lentamente aderindo à crença de que o cami- nho a ser perseguido pelo Brasil deve ser o da “inclusão social fiscalmente responsável”. 1 Desenvolvida, entre outros economistas, pelo ganhador do Prê- mio Nobel de 1993 Douglass North, a nova economia institucional alcançou popularidade com o best-seller Why nations fail (2012), dos professores Daron Acemoglu (MIT) e James Robinson (Uni- versidade de Chicago). Essa crença, tida como adequada para países que pretendem fazer a “transiçãocrítica”, foi posterior- mente incorporada pelas instituições do país, que se encarregaram de dar materialidade e, pela reiteração típica da ação institucional, aprofundar cada vez mais a adesão da sociedade à ideia de “inclusão social fiscal- mente responsável”. Postas essas condições, seria mera questão de tempo para que o Brasil fizesse a transição de uma “ordem de acesso limitado” para uma “ordem de acesso aberto”, na tipologia de Douglass North, e de “instituições extrativas” para “instituições inclusivas”, na de Daron Acemoglu e James Robinson. Mas como a Constituição de 88 se encaixa no es- quema de Alston, Melo, Mueller e Pereira? A Cons- tituição é, a um só tempo, a codificação das crenças vigentes no momento de sua confecção e um organismo vivo, estando aberta a mudanças que contemplem os sempre renovados anseios da sociedade. Desse modo, em vez de falar em uma Constituição, os autores op- tam por falar em um “momento constitucional”, que se estende pelos dez anos que vão do início da Assem- bleia Constituinte, em 1987, ao término do processo de emendas constitucionais que redimensionam o papel do Estado na economia, em 1997. A razão para essa aborda- gem é que, quando do processo constituinte originário, apenas as crenças de natureza política e social hoje vi- gentes já eram dominantes na sociedade: democracia participativa, império da lei e inclusão social. Foi pre- ciso uma década de processo hiperinflacionário para que a crença econômica, hoje dominante, de responsa- bilidade fiscal, fosse adotada pelos brasileiros e incor- porada pelas instituições do país. O Brasil passou, então, do estágio de “inclusão po- pulista”, em que a redistribuição, ao ser neutralizada pela inflação, revela-se apenas temporária, para o de “inclusão dissipativa”, em que, a despeito de crises e ineficiências, frutos inevitáveis de uma dinâmica com- plexa de rearranjo distributivo, o processo transcor- DOSSIÊ re de maneira consistente. O próximo estágio é o da “inclusão eficiente”, quando a crença dominante já está tão consolidada e as instituições operam com tanta sintonia que as crises se tornam cada vez menos fre- quentes e os conflitos sociais passam a ter baixa inten- sidade. Embora não arrisquem dizer quando isso irá ocorrer, os autores afirmam que o Brasil está no cami- nho para chegar lá. A promessa de crescimento na encruzilhada Nem todos os analistas, porém, concordam com diagnóstico tão otimista. Em Por que o Brasil cresce pouco?: desigualdade, democracia e baixo crescimento no país do futuro, o economista Marcos Mendes defen- de a tese de que a combinação de elevada desigualda- de com democracia participativa condena o Brasil, ao menos no curto e no médio prazo, a uma dinâmica de “baixo crescimento com redistribuição dissipativa”. A razão para isso é que, como a democracia cria incen- tivos eleitorais para que as demandas de todos os se- tores sociais sejam contempladas, não mais apenas as das elites com acesso direto ao poder, o Estado acaba- ria sobrecarregado, tornando-se disfuncional a ponto de prejudicar o crescimento econômico do país. Nada muito diferente, portanto, do cenário traçado alguns parágrafos acima, quando se descreveu a dinâmica que explica o baixo crescimento do Brasil desde a redemo- cratização. Mas Mendes dá um passo além ao atribuir à desi- gualdade um papel-chave nessa equação. Para o autor, quanto maior a desigualdade de um país, mais violen- to o seu conflito distributivo. Como a desigualdade é muito elevada no Brasil, o fenômeno do rent seeking seria particularmente forte em nosso país, com cada grupo social reivindicando sempre mais do Estado: os ricos, isenções tributárias e subsídios; os setores mé- dios, aposentadorias generosas para o funcionalismo e universidades públicas gratuitas; os pobres, programas de transferência de renda e serviços públicos de saú- de e educação. Onde Alston, Melo, Mueller e Pereira veem uma sociedade que, a despeito de seus conflitos, teria chegado a um acordo básico sobre que rumo dar ao país, Melo vê uma dinâmica essencialmente confli- tiva, cujo resultado pode não ser inclusivo, como pa- recia sugerir a queda constante do índice Gini desde o fim da década de 1990. Escrito em 2013, o livro faz referência ao fato de que, em 2012, as estatísticas ofi- ciais já apontavam para uma forte desaceleração na queda da desigualdade. Estudos mais recentes, como os de Marcelo Medeiros, Pedro Souza e Fábio Castro (2013) e de Marc Morgan (2017), que demonstram que a desigualdade no Brasil teria se mantido estável, ou ao menos não caído no ritmo que se supunha, parecem dar razão a Mendes. Isso não quer dizer que o economista não veja luz no fim do túnel. Ao contrário dos autores de Brazil in transition, para os quais o Brasil já estaria na rota da “transição crítica”, Mendes diz que o desfecho da tra- vessia ainda está em aberto. Pode ser que o forte con- flito distributivo em uma sociedade democrática e de- sigual como a brasileira produza efeito neutro, isto é, a manutenção das grandes distâncias que separam os grupos sociais no país. Isso manteria o Brasil preso ao que os economistas chamam de “armadilha de renda média”, com a dinâmica de “baixo crescimento com redistribuição dissipativa” se projetando indefinida- mente no futuro. Mas pode ser também que, embora dissipativa, a redistribuição encurte, pouco a pouco, as distâncias sociais no Brasil, de modo a formatar uma sociedade essencialmente de classe média em que os conflitos distributivos seriam muito mais amenos. Para que o Brasil tome a segunda rota, em vez da primeira, será necessário fazer as escolhas políticas certas, con- tar com uma liderança confiável e ter, por que não?, um pouco de sorte. 17 Foto: “La Porte du non retour de la maison des esclaves, Gorée, Sénégal” Créditos: Elvin Ross Studios DOSSIÊ Da Discriminação Racial no Direito Internacional e na Constituição Federal de 1988 Ramiro Januário dos Santos Neto Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 (CF/88), o combate ao racismo progrediu signi- ficativamente no Brasil. Com a definição constitucio- nal de que a prática do racismo configura crime, foi reforçada a persecução penal de atos racistas. Esses atos estiveram sujeitos a sanção desde a Lei Afonso Arinos, de 1951, que os definia como contravenção penal, mas foi apenas com a Lei Caó, em 1989, por- tanto já sob a vigência da Carta de 88, que se estabe- leceram penas mais duras para os crimes de racismo. Da década de 2000 para cá, as políticas de combate ao racismo deixaram de restringir-se a obrigações de não fazer (não discriminar) e evoluíram para ações de caráter afirmativo, de que são exemplos o Estatu- to da Igualdade Racial (Lei 12.288/2010) e as leis de cotas em universidades (Lei 12.711/2012) e no serviço público (Lei 12.990/2014) federais. O presente artigo visa a apresentar a definição de discriminação racial e os contornos conferidos a esse fenômeno pelo Direito Internacional e pela CF/88. No plano internacional, o racismo é entendido como uma ofensa ao princípio da igualdade, uma vez que promove, por meio de ações atentatórias à dig- nidade humana, o entendimento de que determina- das pessoas ou grupos não são iguais em direitos em relação aos demais. Segundo o Embaixador Silvio Albuquerque, membro do Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial (CERD) da ONU, o direito à igualdade e o princípio da não discriminação estão na base da arquitetura jurídica internacional de prote- ção dos direitos humanos e de combate ao racismo, tendo sido reconhecidos pela Carta Internacional de Direitos Humanos, a qual é formada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, pelo Pacto Interna- cional de Direitos Civis e Políticos e pelo Pacto Inter- nacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Na legislação brasileira, convencionou-se iden- tificarduas formas de manifestação do racismo: o preconceito racial e a discriminação racial. O precon- ceito racial é a disposição afetiva imaginária, ligada a estereótipos sobre raça, cor, origem nacional ou étni- ca, que pode ou não ser manifestada por quem a sen- te. A discriminação racial, por sua vez, ocorre quando se nega aos indivíduos, ou a grupos, a igualdade de tratamento que têm direito de receber. Além disso, promove medidas de exclusão contra pessoas consi- deradas estranhas ao grupo com o qual o discrimina- dor se identifica. Discriminação racial no Direito Internacional Tendo presente que a discriminação racial é parte constitutiva do racismo, cabe analisar como o Direito Internacional a delimita. A definição de discrimina- ção racial está inscrita na Convenção sobre a Elimi- nação de Todas as Formas de Discriminação Racial (ICERD), de 1965. Em seu artigo 1º, item 1, o termo discriminação racial é assim definido: Artigo I 1. Nesta Convenção, a expressão “discriminação racial” significará qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseadas em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tem por objetivo ou efeito anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício num mesmo plano, (em igualdade de condição), de direitos humanos e liberdades fundamentais no domínio político, econômico, social, cultural ou em qual- quer outro domínio de vida pública. 19 Inicialmente, cabe analisar os fundamentos da discriminação racial. De acordo com a Convenção de 1965, eles podem ser a raça, a cor da pele, a descen- dência e a origem nacional ou étnica. Vê-se, assim, que os Estados membros da ICERD, os quais negocia- ram essa Convenção no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), não limitaram o embasamento da discriminação ao racismo em sentido estrito (ba- seado exclusivamente na alegada existência de raças biológicas). São acolhidos outros fundamentos, como cor de pele, origem nacional ou étnica, o que mostra o consenso em torno do entendimento de racismo, para fins de Direito Internacional, como racismo deriva- do (vários fundamentos podem ser invocados para a prática do ato discriminador). De fato, a elaboração da ICERD foi influenciada pelas práticas raciais do nazismo, nos anos 1930 e 1940, em especial as antis- semitas, e pelo desenvolvimento da segregação ra- cial institucionalizada conhecida como apartheid, na África do Sul. No primeiro caso, havia o racismo fun- damentado na descendência, e no segundo, na origem étnica e na raça. Nos trabalhos preparatórios da Convenção de 1965, as delegações brasileira e norte-americana de- fenderam que se incluísse uma referência explícita ao antissemitismo, sem sucesso. Os argumentos con- trários à proposta diziam ser impossível enumerar de forma exaustiva as formas específicas de discrimina- ção racial, sendo preferíveis os enunciados jurídicos de caráter geral, como o artigo 1º citado acima. Ainda segundo o artigo 1º da ICERD, a discrimi- nação racial, para se materializar, precisa ser expres- sa por meio das seguintes ações: distinção, exclusão, restrição ou preferência entre seres humanos. Todos esses quatro atos mostram a necessidade de existir uma ação – e não apenas um sentimento de precon- ceito racial – para a configuração da discriminação racial. A discriminação racial, por meio de uma ação, gera desigualdade entre os seres humanos, o que con- fronta diretamente as principais convenções de di- reitos humanos ratificadas por centenas de Estados, entre eles o Brasil. No Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (art. 2º, item 1) e no Pacto Internacio- nal de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (art. 2ª, item 2), há a preocupação de que todos os seres humanos gozem de direitos fundamentais justamen- te pelo fato de pertencer à espécie humana, não po- dendo haver restrição no gozo desses direitos. Nesse mesmo entendimento, ressalta-se que a Carta das Na- ções Unidas, de 1945, traz como um dos propósitos da organização (art. 1º, 3) a promoção e o estímulo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião. As distinções elencadas na Carta da ONU (e também nos Pactos de 1966), se verificadas, estão em desacor- do com a previsão de igualdade entre todos os seres humanos para usufruírem e serem titulares de direi- tos humanos. Discriminação racial na CF/88 Na legislação pátria, a discriminação racial conta com contornos expressamente delineados no artigo 5º da CF/88 e na Lei nº 7.716/1989 (Lei Caó). Essa lei, que define os crimes resultantes da discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedên- cia nacional, esposa o entendimento amplo de racis- mo, em seu caráter derivado. Inicialmente, cabe mencionar que o combate ao racismo está inserido entre os princípios fundamen- tais da Constituição, sendo, no plano interno, obje- tivo fundamental da República (art. 3º, inciso IV) e, no plano externo, princípio que rege as relações in- ternacionais do País (art. 4º, inciso VIII). O art. 5º da CF/88, por sua vez, traz o significado jurídico de racismo enquanto prática, a qual pode se manifestar como discriminação racial e preconceito racial. De acordo com o inciso XLII deste artigo, “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”. DOSSIÊ A primeira observação é a de que o racismo é considerado crime, o que enseja a tutela penal dos casos de discriminação racial e de preconceito racial. Em linha com o entendimento de Norberto Bobbio, essa tutela constitui faceta inovadora da terceira eta- pa de afirmação dos direitos humanos, a etapa da es- pecificação, que, para além de determinar de forma concreta os destinatários da proteção jurídica, prevê medidas que visem a coibir a violação de direitos. A segunda observação sobre o inciso XLII refere- -se ao caráter imprescritível do crime de racismo, po- dendo uma pessoa prestar queixa de práticas racistas a qualquer tempo, desde que observado o princípio da anterioridade da lei penal. Ou seja: só podem ser julgados, e seus autores devidamente punidos, os cri- mes de racismo ocorridos após a entrada em vigor da Lei Caó, em 1989. A Lei Caó, que regulamenta as penas e multas resultantes do crime de racismo, tem esse nome em homenagem ao Deputado Carlos Alberto de Oliveira, o Caó, parlamentar que se destacou na Assembleia Constituinte por ter elevado o combate ao racismo à norma constitucional. Oliveira acreditava que a intro- dução do inciso XLII no art. 5º da CF/88 viabilizaria medidas efetivas de promoção do princípio da igual- dade, o qual está inscrito no caput do mesmo artigo e é um dos direitos humanos violados pelas práticas racistas. Cabe ressaltar que a existência do tipo penal da injúria racial (art. 140, §3, do Código Penal, intro- duzido pela Lei 10.741/03) também visa a efetivar o mandamento constitucional do combate ao racismo, prevendo a punição daqueles que ofendem a honra subjetiva e objetiva das vítimas com fundamento em preconceito racial. Verifica-se que o Direito Internacional e a legis- lação brasileira apresentam, de forma expressa, as ca- racterísticas da discriminação racial, o que contribui significativamente para a instituição de medidas de combate ao racismo. No Brasil, o estabelecimento da Lei Caó e a introdução da figura da injúria racial no Código Penal mostram que as normas de combate ao racismo estão em consonância com a terceira etapa de afirmação dos direitos humanos, a da especifica- ção, promovendo o princípio da igualdade. O recur- so a essa legislação pelos cidadãos tem demonstrado sua utilidade e necessidade, bem como apresentado o cumprimento, pelo Estado brasileiro, do objetivo de promover o bem de todos sem qualquer distinção, como previsto na CF/88. Em pesquisa realizada pelo autor junto à Se- cretaria de Segurança Pública de São Paulo, verificou-se que, só nesse Estado,9.976 víti- mas de injúria racial registraram Boletim de Ocorrência, entre 2011 e 2016. No que tange ao crime de discriminação racial, tipificado na Lei Caó, 706 pessoas procuraram a Polí- cia Civil paulista, entre 2012 e 2016. Segundo Norberto Bobbio, em A era dos di- reitos, as etapas de afirmação dos direitos humanos são três: positivação, generaliza- ção e especificação. Na primeira etapa, há a transformação do valor da pessoa humana em direito positivo. Na segunda, há a afir- mação jurídica da igualdade perante a lei, seguida de seu corolário lógico, o princípio da não discriminação. Por fim, na terceira etapa, prevê-se a aplicação da norma a des- tinatários concretos, como mulheres, crian- ças e vítimas de racismo, e não a destinatá- rios genéricos, como os seres humanos ou cidadãos. 21 Muitos tons de verde: o longo e acidentado caminho do meio ambiente até a Constituição Arthur Cesar Lima Naylor Foto: Zé Paiva DOSSIÊ A entrada do meio ambiente na Constituição de 1988 tem sua origem muito antes de começarem os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte (ANC). Na década de 1960, em um contexto de distensão da bipolaridade da Guerra Fria, uma extensa pauta de temas até então sufocados pelas preocupações com paz e segurança ga- nha oportunidade de florescer no cenário internacional. Os dois modelos em confronto passam a ser questiona- dos não mais um pelo outro, mas desde dentro, a partir do surgimento de novos padrões de comportamento e de uma renovada disposição para questionar as estrutu- ras de poder. O ano de 1968 é, ao mesmo tempo, a culminação desse processo e o marco inicial de uma série de desen- volvimentos que tornariam mais complexas as relações internacionais nos anos seguintes. No caso específico da agenda ambiental, o que era foco de preocupação apenas de alguns setores da sociedade civil dos países desenvolvidos no início daquela década converte-se em pauta de mobilização política a partir de 68. A principal expressão desse novo cenário é o crescimento do mo- vimento verde, que, em países como a Alemanha Oci- dental, transformou-se em força política relevante em prazo relativamente curto. Se um cenário internacional mais distendido, me- nos aferrado ao monotematismo da fase quente da Guerra Fria, era condição necessária para a ascensão de uma pauta internacional mais diversificada, estava longe de ser suficiente. Várias foram as razões que leva- ram a questão ambiental a atrair atenção no debate que se desenvolvia naquele momento. Em primeiro lugar, é preciso mencionar as grandes tragédias ambientais da- queles anos, como a intoxicação por mercúrio de pesca- dores em Minamata, no Japão, ou o naufrágio do navio petroleiro Torrey Canyon, em 1967, próximo à costa de Cornwall, na Inglaterra. Deve-se citar também a publi- cação de uma série de livros que chamavam a atenção para a questão ambiental, como Silent Spring (1962), de Rachel Carson, e This Endangered Planet (1971), de Ri- chard Falk. Mas talvez mais determinante que qualquer outro fator tenham sido as décadas de rápido crescimento econômico dos países centrais desde o fim da Segunda Guerra Mundial, período conhecido pela historiografia como “the golden age” ou “les trente glorieuses”. Satis- feita em suas necessidades básicas, a classe média das nações desenvolvidas pôde voltar sua atenção a pautas mais abstratas, de efeitos mais diluídos no tempo. Não demorou muito para que a causa ambiental passasse de bandeira de setores progressistas a preocupação gene- ralizada nos países centrais, fenômeno de que é exem- plo a reunião de grandes industriais no Clube de Roma. A Conferência das Nações Unidas sobre Meio Am- biente Humano (CNUMAH), em Estocolmo, em 1972, é a principal expressão de como o meio ambiente adqui- riu centralidade na agenda internacional. A partir daí, foi questão de tempo para que o tema fosse incorporado às legislações nacionais, recebendo tratamento consti- tucional em países que então se democratizavam, como Grécia (1975), Portugal (1976) e Espanha (1978). Como afirma Herman Benjamin, “na história do Direito pou- cos valores ou bens tiveram uma trajetória tão espetacu- lar, passando, em poucos anos, de uma espécie de nada- -jurídico ao ápice da hierarquia normativa, metendo-se com destaque nos pactos políticos nacionais”. Um gradual esverdeamento A integração do meio ambiente ao arcabouço nor- mativo brasileiro também é fruto do “espírito de Esto- colmo”. Exemplo representativo desse processo, surgi- do já no ano seguinte à CNUMAH e por iniciativa de um regime extremamente desconfiado da agenda ambien- tal como era o militar, é a criação da Secretaria Especial do Meio Ambiente (SEMA), no âmbito do Ministério do Interior. Em 1981, ainda antes da redemocratização, vem à luz a Lei 6938, que cria a Política Nacional de Meio Ambiente, verdadeiro marco na transição para um paradigma jurídico-econômico que confere centralida- 23 de à questão ambiental. Mas seria apenas com o retorno à democracia e a elaboração de um novo pacto político que o meio ambiente seria acolhido por inteiro na or- dem jurídica brasileira. Várias constituições brasileiras anteriores conti- nham dispositivos que, em alguma medida, resvala- vam na questão ambiental. Tratavam de aspectos como a preservação do patrimônio natural; a competência da União para legislar sobre florestas, caça de animais e gestão das águas; e a inclusão dos lagos, da platafor- ma continental e das terras indígenas entre os bens da União. Era, contudo, uma abordagem indireta, em que a questão ambiental figurava como coadjuvante entre as preocupações do legislador, surgindo como pano de fundo da organização geral do Estado. Foi apenas com a Carta de 1988 que o meio ambiente passou a ser um bem tutelado de maneira direta, em sede constitucional, a partir de um esforço deliberado do constituinte. Uma série de acontecimentos às vésperas da rede- mocratização, nos planos internacional e doméstico, condicionou esse acolhimento. No plano internacional, o fortalecimento do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), surgido em 1973 na esteira da Conferência de Estocolmo, ajudou a organizar e dar projeção à temática ambiental no âmbito da ONU. Isso contribuiu para renovar o propósito de uma instituição que, em vários momentos da Guerra Fria, teve sua re- levância questionada. Foi o PNUMA que dinamizou as discussões sobre a camada de ozônio, que redundariam na Convenção de Viena (1985) e em seu Protocolo de Montreal (1987), talvez os mais exitosos exemplos de tratados ambientais multilaterais. Paralelamente a isso, em 1983, reunia-se a Comissão Mundial para Meio Am- biente e Desenvolvimento, que redefiniu os parâmetros do debate ambiental com a consagração do conceito de desenvolvimento sustentável em seu relatório final, Nosso Futuro Comum, de 1987. No plano doméstico, uma série de iniciativas de- monstrava que a sociedade brasileira, cada vez mais livre para expressar suas opiniões em um regime que se abria, atribuía à agenda ambiental uma importância crescente. O surgimento do movimento dos seringuei- ros no Acre, sob a liderança de Chico Mendes, no início da década de 1980; a criação da ONG SOS Mata Atlân- tica, em 1986; e a fundação do Partido Verde, no mesmo ano, são exemplos de como, antes de ser acolhido pela Constituição, o meio ambiente já se havia convertido em força mobilizadora para a ação política no Brasil. Assim como ocorrera no exterior duas décadas antes, o des- pertar da consciência ambiental brasileira não ocorreu sem o choque de impactantes acidentes, como o grande incêndio causado pelo vazamento de gasolina em uma indústria de Cubatão, em 1984, e a trágico episódio do Césio 137 em Goiânia, em 1987. Mas o fator determinan- te parece ter sido igualmente o fato de que, após duas décadas de crescimentoacelerado, uma classe média robusta podia vocalizar demandas que iam além da sa- tisfação de necessidades básicas imediatas. Uma ordem constitucional ambiental Segundo Marina Silva, o sucesso da inserção do meio ambiente no texto constitucional deve-se à estra- tégia de frentes criada durante a Assembleia Nacional Constituinte. A Frente Parlamentar Verde, assim como muitos grupos de interesse organizados no âmbito da ANC, tinha natureza suprapartidária, mas, à diferença da maioria, cruzava o espectro ideológico para unir os setores mais avançados da esquerda e da direita. Além do ecumenismo ideológico, outros fatores que poten- cializaram a adesão à Frente foram o ativo engajamento da sociedade, por sua vez estimulado pela realização de audiências públicas em diversas partes do Brasil; a novi- dade do tema e a oportunidade que se oferecia aos cons- tituintes de constitucionalizá-lo pela primeira vez; e até mesmo o fato de que, por ainda ser encarado como uma mera carta de intenções, o tratamento constitucional do DOSSIÊ meio ambiente não era visto por muitas pessoas poten- cialmente hostis à causa como uma ameaça ao cresci- mento econômico. Os dispositivos sobre meio ambiente passaram por mudanças significativas até a redação final. Do relatório final da Subcomissão encarregada do tema constavam, por exemplo, artigos sobre a criação de um “tributo de conservação e reposição do meio ambiente”, a ser co- brado de toda pessoa física ou jurídica que utilizasse ou explorasse, com fins de lucro, recursos ambientais de qualquer natureza, bem como sobre a criação de um piso orçamentário de 1% da receita anual da União, dos estados e dos municípios a ser aplicado na proteção do meio ambiente. Nenhum desses dispositivos empla- cou o texto definitivo da Carta. Em uma segunda fase de discussões, na Comissão da Ordem Social, o grau de oposição ao capítulo sobre meio ambiente já era maior, particularmente em relação às restrições previstas a instalações nucleares. Já na Comissão de Sistematiza- ção, encarregada de dar forma final ao texto, a contra- riedade dos interesses econômicos potencialmente afe- tados manifestou-se com grande virulência, o que quase redundou na eliminação da questão ambiental do texto da Constituição. Apesar dos ataques sofridos, o texto final apresenta notável grau de integridade, que o coloca em linha com os principais documentos sobre meio ambiente publica- dos no plano internacional desde a Conferência de Es- tocolmo. É desse modo que o “meio ambiente ecologica- mente equilibrado” (art. 225, caput), pela primeira vez em nossa história constitucional, aparece como objeto de direito subjetivo, ademais de titularidade coletiva, e não mais como mero cenário onde se desenvolvem ati- vidades econômicas sob supervisão estatal. Além disso, como que a enunciar a transversalidade da questão am- biental na Carta, os dispositivos sobre meio ambiente não se restringem ao Capítulo VI (Do Meio Ambiente) do Título VIII (Da Ordem Social), mas abrangem arti- gos que vão dos princípios gerais da atividade econômi- ca (art. 170, VI) à definição do valor social da proprieda- de rural (art.186, II). Interessante observar a mudança paradigmática operada pelo acolhimento do meio ambiente pela Cons- tituição como direito subjetivo de titularidade coletiva. Segundo Herman Benjamin, são ao menos três as mu- danças significativas em relação ao paradigma constitu- cional clássico, que ele classifica como “tríplice fratura”: a diluição da fronteira entre credores e devedores da obrigação jurídica, na medida em que todos têm direito a um meio ambiente equilibrado e a todos compete zelar pela preservação desse equilíbrio; a perda de relevância na distinção entre sujeito público e sujeito privado, em razão de serem ambos responsáveis potenciais pela de- gradação ambiental; e o enfraquecimento da separação entre sujeito e objeto da relação jurídica, uma vez que encurta o poder de disposição dos dominantes sobre os dominados. Ao alterar o paradigma constitucional, a incorpora- ção do meio ambiente à Carta transcende as contingên- cias do presente e projeta-se no futuro, servindo como referência para desenvolvimentos institucionais e legis- lativos posteriores. Não é coincidência que, após 1988, uma série de instituições voltadas para a questão am- biental surge no Brasil, como o Ibama (1989), o Ministé- rio do Meio Ambiente (1992) e o ICMBio (2007). Igual- mente, leis como a 9433/97 (Lei das Águas), a 9605/98 (Lei dos Crimes Ambientais) e a 9985/2000 (Sistema Nacional de Unidades de Conservação) detalham e sis- tematizam o tratamento a diferentes aspectos da pauta ambiental, indicando a maturidade da questão junto à sociedade brasileira. Com muito já realizado, mas muito ainda por fazer na área ambiental, o Brasil tem encon- trado na Constituição de 88 uma plataforma adequada para enfrentar os desafios colocados por essa tão impor- tante agenda do século XXI. Não parece exagero dizer que, ao menos, já contamos com uma ordem constitu- cional ambiental. 25 ESPECIAL 10 ANOS DE JUCA Celebrando as “ficções da memória”: lembranças afetivas dos dez anos da JUCA por Camilla Corá, Maria Eduarda Paiva e Wallace Medeiros de Melo Alves Murmuro para mim mesma: “É tudo imaginação!” Mas sei que tudo é memória... Cecília Meireles Quando o embaixador Alberto da Costa e Silva deci- diu transformar a sua autobiografia em prosa, designou como “ficções da memória” os frutos desse empreendi- mento literário. A caracterização não poderia ser mais oportuna. A reconstituição fidedigna de nossas vidas e de seus eventos marcantes é, por certo, ilusória. Nossa memória é composta por fragmentos, frequentemente reinterpretados e reinventados pela passagem do tempo. Narramos nosso passado, à luz do presente, de maneira, ainda que inconscientemente, a conferir um aparente sentido linear e teleológico às nossas escolhas. Torna-se, de certa maneira, difícil diferenciar a reconstituição de nossas lembranças do trabalho de um ficcionista. Para comemorar o décimo aniversário da Re- vista JUCA, e no espírito de ressignificar o passado, entrevistamos os nove editores-chefes anteriores da pu- blicação e propusemos-lhes a experiência de rememorar seu período na coordenação da JUCA. Estávamos em busca das memórias afetivas, para tentar reconstituir o espírito dos novos diplomatas que, a cada ano, participa- ram da revista. Em seguida, transformamos as entrevis- tas realizadas em pequenas histórias e testemunhos, de modo a tornar ainda mais tênue a linha entre a memória e sua ficção. Ao prestarmos esta merecida homenagem às gera- ções de diplomatas que nos antecederam na tradição de- cenal da JUCA, registramos, igualmente nestas páginas, nossas memórias afetivas, de forma despretensiosa e com o único compromisso de sermos autênticos a nós mes- mos. Serão lembranças que certamente estarão abertas à releitura do tempo como reflexo daquilo que fomos e ao que aspirávamos ser quando jovens diplomatas. 27 Filipe Nasser, editor da JUCA n° 1 I. O SURGIMENTO Sou da primeira turma grande – a “turma de 100” –, que ingressou em 2006 no contexto de ampliação dos quadros do Itamaraty. A gente sentia que havia muita energia repre- sada entre os novos alunos, havia uma certa eletricidade no ar, ainda não-canalizada. Acho que o espírito da turma era o de ter ingressado em um momento especial da polí- tica externa brasileira e do Itamaraty, que coincidia com o acolhimento de tantos novos diplomatas justamente para dar musculatura à ação diplomática brasileira. Havia uma pletora de projetos sendo considerada no começo da nossa experiência no Instituto Rio Branco. E uma das ideias que vingou, entre outras, foi a de produzir uma revista. II. O NOME O então diretor do Instituto Rio Branco, embaixador Fernando Reis, estimulou a criação da revista, garantindoinclusive a viabilização financeira e operacional do proje- to, o que deu tranquilidade para a gente trabalhar. Fizemos inicialmente uma assembleia, para discutirmos, primeira- mente, a vontade de fazer a revista e, em seguida, come- çamos a debater os possíveis nomes, temas, a estrutura editorial da revista, a sua periodicidade. Alguns dos nomes propostos eram “caretas”. Não havia surgido ainda um que refletisse justamente a energia e a pulsação que os colegas transmitiam nas aulas, no espírito das confraternizações da turma. Por isso, de certa maneira, optamos pelo nome “JUCA”, que tinha uma “pegada” de juventude – sem dei- xar de evocar a memória do Barão – alinhada ao espírito da turma. III. A AUTONOMIA A ideia era a de que a revista não fosse “chapa bran- ca”. Aliás, o que foi interessante é que a própria direção estimulou que não o fosse. A turma realmente encampou essa missão: levamos a sério a ordem de sermos, digamos assim, um pouco indisciplinados, rebeldes, talvez até ico- noclastas – por mais que haja um certo paradoxo contido em uma “orientação” para que fôssemos livres. Por isso, a identidade visual da primeira edição da revista é um pouco agressiva: ela é colorida; ela mexe um pouco com o cânone das publicações do Itamaraty em geral. E foi bem recebida dessa forma na época. IV. A CAPA Tudo na JUCA foi uma construção coletiva. A equi- pe conseguiu o contato de um excelente designer gráfico, que diagramou um artigo como amostra. Aquilo encantou as pessoas envolvidas. Vimos que a revista inteira poderia ser daquele jeito mais colorido, mais artesanal, mais ex- perimental, mais “sacana”, se é que ainda se pode utilizar esse tipo de linguagem aqui. Nesse espírito, um colega trouxe para mim um quadro pintado com as balinhas “Juca” – uma coisa autorreferente assumidamente sardônica. Afinal, era esse o espírito prevalecente. Houve um debate para saber se a tiragem da primeira edi- ção sairia em preto-e-branco com tiragem maior ou colori- da, com tiragem menor. Acabamos optando pelo colorido, com o objetivo indisfarçado de “chegar chegando”. Quero crer que deu certo... V. O LANÇAMENTO A cerimônia de lançamento foi muito emocionante. Estavam presentes o chanceler do Brasil, embaixador Cel- so Amorim; o embaixador João Clemente Baena Soares, que tinha sido secretário-geral da OEA; vários outros em- baixadores e chefes da Casa, toda a minha turma, a turma seguinte, que acabara de ingressar no Instituto Rio Bran- co, e que é quem estávamos querendo motivar a carregar o cetro da revista adiante. Era um bocado de gente no au- ditório do Instituto. Há fotos desse dia que, quando eu as vejo, realmente mexem comigo. À noite, nós fomos para um samba, organizado por um colega de turma, em que co- memoramos o lançamento com os amigos mais próximos. Realmente, é uma memória de vida – além de profissional – que eu vou levar comigo. VI. O ESPÍRITO A JUCA não buscava contestar a política externa do momento, as tradições do Itamaraty. Não buscava dizer tampouco que os ritos eram ultrapassados. Não era essa a intenção. Era, sim, a de renovar o sangue da Casa. A ideia era criar um espaço para que os colegas pudessem refletir, escrever, publicar, experimentar em temas da diplomacia ou da cultura brasileiras sem muitas amarras. Trabalha- mos em dois eixos: buscávamos que a revista se tornasse um documento histórico sobre o que pensavam as novas turmas em seu momento de formação – os terceiros-secre- tários que passarão as próximas décadas a serviço do Bra- sil no Itamaraty; e procurávamos promover o resgate da memória diplomática brasileira, em especial, as memórias que estavam um pouco escondidas, que não fazem parte da narrativa cotidiana. Fazia parte do nosso espírito escavar as histórias que não estão ditas ou – se estão ditas – não se encontram expressas em uma circulação maior. Esse feliz ciclo de entrevistas que vocês promoveram com os editores dos primeiros números da JUCA acaba, um tanto metalinguisticamente, reforçando essas duas vocações que concebemos lá atrás. ESPECIAL 10 ANOS DE JUCA Felipe Krause Dornelles, editor da JUCA n° 2 I. ENTRE A INOVAÇÃO E A TRADIÇÃO Fazemos parte de uma corporação muito tradicional. A originalidade e a criatividade são, é claro, valorizadas, mas o que é ainda mais valorizado é a capacidade de de- fender, com afinco e desenvoltura, as posições do governo. Nós tínhamos isso muito presente. Considerávamos que, em última instância, seria quase impossível não sermos uma publicação “chapa branca”, mas queríamos muito que a JUCA fosse um projeto o mais criativo possível. Era um jogo estar naquela linha tênue, naquele limite das possibi- lidades: de ser criativo e de formular alguma ideia inova- dora, mas respeitando as tradições e a hierarquia. Acredito que a homenagem que a JUCA 02 presta ao embaixador Ovídio de Andrade Melo captura muito bem esse espírito. do tom da revista, ela poderia soar pretensiosa, não autêntica. “Você não é diplomata ainda. Calma, você acabou de entrar... seja autêntico”, ele dizia. Eu acho que essa era a in- tenção. III. OS BASTIDORES Um dos trabalhos mais difíceis da JUCA era o de co- brar os colegas de turma, para entregarem as matérias no prazo. Vários prazos se passaram antes que as pessoas os cumprissem. Eu me lembro muito dessa fase de pressio- nar as pessoas. O Raphael Nascimento [diretor-executivo] e eu tendíamos a adotar a estratégia “good cop, bad cop”. Eu tentava ser o bonzinho: “ah, que legal o que você tá fazendo. Que bom. Estamos esperando ansiosamente sua contribuição”. Em seguida, eu comentava para o Raphael: “essa pessoa já passou do prazo há 2 meses. Pelo amor de Deus, dá uma cutucada novamente!”. Adotávamos muito essa estratégia. Acabou funcionando, mas foi engraçado. IV. A REBELDIA Tenho a impressão de que a nossa turma tinha um espírito mais independente, mais rebelde, do que as ante- riores. No bom sentido: no sentido de que estávamos in- gressando nessa Casa longeva, de tradições, mas que éra- mos uma turma muito grande e diversa, e muitos não se sentiam inteiramente representados por essas tradições e queriam contribuir com inovações. Havia aquela sensação de que os colegas não iriam contribuir para a JUCA, se ela adotasse um perfil “chapa branca”. Muitos tinham interes- se em propor mudanças. V. A TRADIÇÃO LITERÁRIA NO ITAMARATY É impossível negar que o Itamaraty sempre teve uma tradição literária, e continua a atrair pessoas voltadas para as letras. A inclusão de poemas e textos literários na JUCA é reflexo natural da vocação de muitos colegas. Tivemos e temos ainda muitos bons e alguns grandes escritores. Não só aqui, como em vários países da América Latina. Chile e México, por exemplo, têm pelo menos dois grandes escri- tores-diplomatas, Pablo Neruda e Octavio Paz, que foram inclusive agraciados com o Prêmio Nobel de Literatura. Um outro Juca apresentado pela JUCA: o embaixador Ovídeo de Andrade Melo II. O ESTÍMULO Uma grande influência da JUCA 02 foi o embaixa- dor Fernando Reis, que havia estimulado a elaboração e publicação da primeira edição. Ele tinha muito presen- te a importância do jovem diplomata para a instituição e apreciava essa referência ao Barão quando jovem, a quem chamavam de Juca. Com a juventude, surge essa ideia de criatividade, de ser inovador, de estar pensando, mas tam- bém vem aquela constante ideia de renovação. Porque esse constante reinventar tem um quê de tradição também, conforme a frase célebre do Chanceler Azeredo da Silvei- ra. Eu lembro de o embaixador Fernando Reis bater muito na tecla de que a JUCA fosse algo experimental, de que transmitisse um espírito de jovialidade. Não deveria ser uma publicação sisuda, amadurecida demais. A depender 29 Laís de Souza Garcia, editora da JUCA n° 3 I. O IMPULSO PARA A NOVA JUCA No início do curso de formação, os dois editores ante- riores da JUCA foram ao Instituto Rio Branco conversar com a nova turma de diplomatas,
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