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A interpretação de expressões idiomáticas para pessoas surdas Iara Mikal Holland Olizaroski (PG-Unioeste)1 Leidiani da Silva Reis (PG-Unioeste/Capes)2 Jorge Bidarra (Orientador – Unioeste)3 RESUMO: As expressões idiomáticas (EIs) compõem a área da fraseologia e são próprias de uma língua, necessitado, muitas vezes, serem traduzidas para outra(s). No caso da Língua Brasileira de Sinais (Libras), esse processo se dá por intermédio de um Tradutor e Intérprete de Libras (TILS) e tem sido um meio eficaz diante das atividades cotidianas da pessoa surda, tais como palestras, contexto educacional, concursos, entre outras. Tal profissional precisa estar preparado para interpretar, consecutiva e simultaneamente, de forma coerente nas mais distintas situações. À vista disso, a presente pesquisa objetiva investigar como o TILS tem procedido diante da interpretação quando da ocorrência de EIs. Para tanto, foi solicitado a três TILS a interpretação de três expressões, sem a intenção de comparar estratégias por eles utilizadas, mas de verificar como estão chegando aos surdos tais idiomatismos que são específicos da Língua Portuguesa. Para a realização dessa investigação, além da pesquisa de revisão bibliográfica, utilizamos também a de campo e a documental, uma vez que, após contato com os TILS, o corpus pauta-se em filmagens para a análise das EIs em questão. O que pudemos verificar, portanto, diante das interpretações é que, para que uma EI saia da Língua Portuguesa e chegue ao surdo, por meio da Libras, de forma a lhe fazer sentido, o intérprete deve, além de ter conhecimento de tais idiomatismos, lançar mão de táticas para que possam ser compreendidas e, assim, tornarem-se conhecidas pelo surdo. PALAVRAS-CHAVE: Expressão Idiomática; Interface Língua Portuguesa-Libras; Tradutor e Intérprete de Língua Brasileira de Sinais. ABSTRACT: Idioms are part of the phraseology area and are inherent of language. Furthermore, many times they need to be translated to other(s). At the Brazilian Sign Language (Libras), this process occurs through a Translator and Interpreter of the Libras (TILS), and it has been effective at deaf people’s everyday activities, such as speeches, educational context, public tenders, among others. This professional must be prepared to interpret, consecutive and simultaneously, in a coherent way and in various situations. Therefore, the objective of this research is to investigate how the TILS have proceeded towards interpretation when any idiom happen. For this purpose, it was asked to three TILS the interpretation of three expressions, with no intention of comparing the strategies used by them, but to verify how this idioms, which are specific of Portuguese Language, are being translated to deaf people. In order to the investigation to succeed, besides the bibliographic review, we will also use field and documentary research, since, after the contact with the TILS, the corpus will be guided on video 1 Aluna da Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, Área de Concentração em Linguagem e Sociedade, Nível de Mestrado, da Unioeste de Cascavel-PR. E-mail: iaramikal@hotmail.com 2 Aluna da Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, Área de Concentração em Linguagem e Sociedade, Nível de Doutorado, da Unioeste de Cascavel-PR. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). E-mail: leidianireis@hotmail.com 3 Doutor em Linguística pela Unicamp. Professor da Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, Área de Concentração em Linguagem e Sociedade, da Unioeste de Cascavel-PR. E-mail: Jorge.bidarra@unioeste.br mailto:iaramikal@hotmail.com mailto:leidianireis@hotmail.com mailto:Jorge.bidarra@unioeste.br recordings for further analyses of the these idioms. Thus, so far what we have verified by the interpretations is that, for an idiom to go from Portuguese Language and arrive with sense to a deaf person through Libras, besides the knowledge of these idioms, the interpreter must resort strategies in order to the idioms to be understood and, thus, to be known by the deaf people. KEYWORDS: Idioms; Portuguese Language-Libras Interface; Brazilian Sign Language Translator and Interpreter. INTRODUÇÃO A comunicação ocorre de forma “natural” sendo, de maneira geral, uma necessidade de interação social. No ato da fala, para que a comunicação se torne dinâmica, são utilizados, entre outros, recursos como gestos e expressões, com significados novos ou amplos, suprindo a fala também com termos no sentido conotativo. Um dos recursos que desempenha essa função são as expressões idiomáticas (EIs) ou idiomatismos4, que compõem a área da fraseologia. Cada país ou até mesmo localidade de um mesmo país tem suas próprias EIs que surgem em uma determinada comunidade por questões culturais e se cristalizam por seu frequente uso. Por isso, o fato de algumas delas não fazerem sentido em outros contextos culturais ou não se proliferarem para além das fronteiras onde nasceram não é de causar estranheza. Assim, a parcimoniosa quantidade de pesquisa quanto à origem das EIs, justifica-se pelo fato de serem expressões populares sem registros formais as quais foram passando de geração em geração e, quando não, proferidas despercebidamente. Para além dessas questões, surge um novo impasse: o contato que se dá entre a Língua Portuguesa (LP) e a Língua Brasileira de Sinais (Libras) durante a comunicação entre ouvinte e surdo ou no ato da interpretação. Há de se considerar que, no caso das EIs, a distinção não está apenas na diferença cultural entre surdos e ouvintes, mas também na modalidade de línguas, sendo a Libras visuoespacial e a LP oroauditiva. Objetivamos, portanto, neste artigo, investigar como o Tradutor e Intérprete de Libras (TILS) tem se portado diante da interpretação simultânea de EIs, com o intuito de observar como tais expressões, que são específicas da LP, têm chegado aos surdos. Cabe ressaltar que não tivemos a intenção de comparar estratégias de interpretação, mas, tão somente, verificar quais critérios estão sendo utilizados nesse processo. Abordamos, inicialmente, considerações gerais sobre fraseologia, postuladas por 4 Para fins deste artigo os termos expressão idiomática (EI) e idiomatismo foram usados indistintamente. Bevilacqua (2004/2005), Werker (2011) e Monteiro-Plantin (2012). Restringimo-nos, em seguida, às EIs, para as quais nos valemos de conceitos determinados principalmente por Xatara (1998, 2002), capítulo no qual explanamos, também, sobre a ocorrência das EIs na interface LP-Libras e fazemos algumas considerações sobre o processo de tradução e interpretação5, objetivando elucidar os critérios estabelecidos para a realização desse procedimento. Passamos então à análise das EIs na interface LP-Libras, para tanto, os idiomatismos “engolir sapo”, “por cima da carne seca” e “falar pelos cotovelos” foram proferidos à três TILS para que os representassem assim como fazem durante a interpretação simultânea. Essas filmagens constituíram o corpus da nossa pesquisa. Por fim, apontamos algumas constatações resultantes de nossas análises. A FRASEOLOGIA De modo geral a fraseologia delineia um contexto no qual uma palavra é empregada, apresentado-se por meio de unidades fraseológicas (UF), as quais obedecem a certa sequência cristalizada ou semicristalizada de forma peculiar, com significado parcial ou plenamente transferido. Para alguns pesquisadores, a fraseologia limita-se às EIs própriasde uma língua; outros consideram que ela inclui provérbios, ditados, locuções e lexias compostas. Há ainda quem considere que tais unidades possuem estruturas extremamente variáveis, podendo incluir desde uma única palavra até conjuntos de frases. Observamos, portanto, que há uma diversidade de unidades que são consideradas fraseológicas, assim como também há grande diversidade em relação a sua denominação. Apesar de existir tal divergência entre pesquisadores, os falantes nativos de uma língua sabem reconhecê-las e utilizá-las adequadamente (BEVILACQUA, 2004/2005). Para Monteiro-Plantin (2012), a UF é um grupo de palavras lexicalizado e reproduzível que pode ser composto por duas palavras (bilexêmico) ou integrado por vários termos (polilexêmico) em uso comum, com uma relativa estabilidade sintática e semântica, sendo composta de parêmias, EIs, colocações e pragmatemas. Segundo esse autor, os provérbios – prototípicos de parêmias – têm como principais características a transmissão de uma lição, ensinamento ou conselho de forma independente, impessoal e atemporal, sem comprometimento 5 Embora o foco esteja na “interpretação” da LP para a Libras, em alguns casos utilizamos o termo “tradução”, pois o tema em questão apresenta teorias as quais abarcam apenas as línguas orais. Quanto a Libras o termo interpretação refere-se ao processo de intermediar a LP para a Libras e vice-versa por meio de sinais, os quais correspondem às palavras nas línguas orais. direto de quem os profere; os fraseologismos – prototípicos de EIs – são aqueles que necessitam de integração a um contexto frásico ou, pelo menos, sintagmático, pois sua interpretação está condicionada ao reconhecimento da intertextualidade e/ou de inferências; as colocações, por sua vez, são formadas por uma base (lexema que se deseja) e um colocado (lexema que combina com a base) e os pragmatemas estão presentes em todas as culturas como condição à participação e à inclusão social à categoria de “bem educado”. A fraseologia é separada por Bevilacqua (2004/2005) em fraseologia da língua comum, fazendo parte desse grupo os provérbios, ditados, EIs, colocações e locuções; e fraseologia da língua especializada que são unidades formadas por um núcleo eventivo e por um núcleo terminológico. A primeira seria, conforme o autor, utilizada por pessoas para se comunicarem cotidianamente, sem restrições; a segunda refere-se à terminologia própria de determinada área do conhecimento. No cuidado de distinguir colocações de EIs, Werker (2011), menciona também as expressões semi-idiomáticas. Para ele as colocações são transparentes, pois o significado das partes pode ser tomado literalmente, enquanto as EIs são opacas, pois o significado das partes não pode ser individualmente tomado para a compreensão, como nos exemplos “executar uma sentença” e “engolir sapo”, respectivamente. Expressões semi-idiomáticas, por sua vez, são casos nos quais um dos componentes mantém seu sentido literal: em “notícia quente”, exemplo dado por Werker (2011), se o dicionário indicar que um dos significados de “quente” é “recente”, o termo será considerado uma colocação, caso contrário será uma expressão semi- idiomática. Podemos ainda, a título de exemplo, citar a expressão “sair de fininho”, pois “sair” pode ser tomado em seu sentido denotativo e “fininho”, apenas conotativo, significando, nesse caso, “mansinho/devagarinho”. Muitos pesquisadores, preocupados com o processo de tradução ou com o ensino e aprendizagem de uma segunda língua ou língua estrangeira, dedicam-se a estudar os fraseologismos e a produzirem dicionários bilíngues de EIs. Para que sejam supridas dúvidas quanto ao significado, origem e, também, a um termo correspondente que possa ser contextualizado na língua de chegada, muitos pesquisadores se dedicam aos diversos tipos de UFs existentes, “muito embora a grande maioria se volte ao ensino de línguas estrangeiras e à confecção de dicionários” (LEGROSKI, 2011, p. 29). Não obstante tenhamos teorizado alguns conceitos sobre fraseologia e apontado algumas de suas subdivisões, o objetivo desse artigo não consiste em delimitá-la, mas, em conceituar e caracterizar EIs, as quais acreditamos ser uma e não a única UF existente. Para tanto focamos nossa atenção às diversas considerações a elas atribuídas enquanto UF. A EXPRESSÃO IDIOMÁTICA “São vários os termos empregados no lugar de expressão idiomática: fraseologismo idiomático, idiomatismo, fraseolexema, frasema” (WELKER, 2011, p. 149). Independente do termo empregado, ela é carregada de traços culturais e serve para ilustrar o que se pretende dizer de forma diferenciada, com significado próprio que vai muito além da fiel tradução ou de mera paráfrase. Seu uso é cabível e aceitável em contextos específicos de falantes da mesma língua por ser um recurso dinâmico, dispensando explicações, pois tanto emissor quanto receptor da mensagem em questão, possuem um background cultural comum, tendo, portanto, a compreensão da expressão no contexto de uso. Para Xatara (1998) a EI é uma lexia complexa, indecomponível, conotativa e cristalizada em um idioma pela tradição cultural: Lexia complexa porque tem o formato de uma unidade locucional ou frasal; indecomponível porque constitui uma combinatória fechada, de distribuição única ou de distribuição bastante restrita; conotativa porque sua interpretação semântica corresponde a pelo menos um primeiro nível de abstração calculada a partir da soma de seus elementos sem considerar os significados individuais destes; cristalizada porque sua significação é estável, em razão da frequência de emprego, o que a consagra (XATARA, 1998, p. 170). Embora haja diversas pesquisas nos mais variados campos da Linguística sobre as EIs, não há consonância quanto a sua origem. Ela pode ser fundamentada na cultura do próprio país de onde originou ou ter influências distintas como religiosa, histórica, mitológica entre outras, sendo, portanto, próprias de uma língua ou dialeto. Assim, justificar uma EI ou, até mesmo buscar sua origem, envolve questões complexas que, na maioria das vezes, resultam em fracasso por parte do pesquisador. Quanto ao conceito de EI podemos observar que há relativo consenso entre pesquisadores, visto que considerar que seu significado “[...] não corresponde à soma dos significados das partes [...]” (Welker, 2011, p. 150) é comum. Monteiro-Plantin (2012, p.71) postula que a independência das EIs é menor que a das outras fraseologias, pois elas “carecem de integração a um contexto frásico, ou pelo menos sintagmático”. Integradas a um contexto elas serão facilmente compreendidas porque fazem parte da cultura de quem e para quem são proferidas, não sendo, portanto, consideradas uma excentricidade. Conhecer e saber usar uma EI denota conhecimento e domínio linguístico, o que não é difícil para um falante nativo seja qual for o idioma, porém, no ato da aprendizagem de outra língua, o estudante deve estar preparado para interpretar seu significado a ponto de não desvirtuar o contexto tornando-o estranho ou incompreensível, pois os idiomatismos [...] são dificilmente interpretáveis por falantes não nativos. Tendo em vista que o léxico de uma língua reflete sempre a cultura ligada a essa língua, para compreender essas expressões é necessário um conhecimento extralinguístico que possibiliteanalogias entre diferentes culturas. Enfim, um último ponto que nos parece mais importante, é a especificidade cultural, sobre a qual repousa a originalidade dessas expressões, apresenta um obstáculo real para a tradução (SFAR, 2007, apud MONTEIRO-PLANTIN, 2012, p. 74,75). As EIs não encontram tradução fiel em outras línguas visto que traduzidas denotativamente ficam sem sentido, justamente por conta da impossibilidade de significado exato da sentença para outro contexto cultural. Pesquisas no campo das EIs acerca da tradução em outros idiomas e sobre seu significado na língua de origem, acena para um problema relevante o qual levanta questões ainda não esclarecidas quanto à Libras, gerando questionamentos que necessitam de respostas imediatas por se tratar de um público – pessoas surdas – que espera por contribuições para a compreensão de tais idiomatismos, pois essas expressões estão presentes em algumas situações nas quais são necessárias a interpretação. A EI NA INTERFACE LP-LIBRAS O fato de utentes de Libras viverem no mesmo território que falantes de LP, não os aproximam culturalmente, já que, na maioria das vezes, não há convivência entre eles e, consequentemente, não ocorrem relações sociais que os abarquem em um mesmo contexto linguístico. A parca convivência se justifica pelo fato de surdos e ouvintes não utilizarem a mesma língua. Todavia, o (pouco) contato que acontece entre surdos e ouvintes, advém, na maioria das vezes, do ato de interpretação em atividades como palestras, contexto educacional, concursos, vestibulares, entre outras nas quais se faz necessária a presença do TILS. Momentos esses em que, diante da ocorrência de EIs, o TILS necessita lançar mão de estratégias distintas para interpretá-las, simultânea6 ou consecutivamente7, a ponto de fazer com que o surdo as conheça e 6 Simultâneo é o processo de interpretação de uma língua para outra que acontece ao mesmo tempo e o intérprete precisa ouvir/ver a enunciação na língua fonte, processá-la e passar para a outra língua alvo no tempo da enunciação (BRASIL, 2004, p. 11). compreenda, pois o que é utilizado na LP como um recurso que enriquece a comunicação, na Libras, pode acontecer o oposto: tornar-se um recurso determinante de eventuais dúvidas quanto a concepção do significado, gerando equívoco semântico, dependendo da forma como é interpretado. O Código de Ética do Tradutor e Intérprete de Língua de Sinais Brasileira e Língua Portuguesa em seu Cap. 1, Art.1º, § 3º determina que “o intérprete deve interpretar fielmente e com o melhor da sua habilidade, sempre transmitindo o pensamento, a intenção e o espírito do palestrante. Ele deve lembrar dos limites de sua função e não ir além de sua responsabilidade” (BRASIL, 2004, p. 32). A interpretação fiel de EIs da língua oroauditiva para a visuoespacial ou a tradução entre as línguas orais não é possível, pois culminaria em um ato bizarro, por isso, no caso da Libras, o TILS pode optar por transmitir o pensamento, a intenção do palestrante, interpretando apenas seu significado. O idiomatismo “engolir sapo”, por exemplo, se for exatamente assim enunciado ao surdo, ou se o intérprete optar apenas pela datilologia8, a imagem por ele construída será rigorosa à interpretação e ele não conseguirá produzir mentalmente o respectivo sentido conotativo, considerando-o apenas denotativamente, tornando o contexto completamente desprovido de significado. Rosa (2008, p.13), expõe seus anseios ao indagar: “Faço a tradução de tudo o que está sendo dito, mesmo que eles não compreendam devido à falta de conhecimento prévio do assunto, ou explico a ideia do que está sendo dito do modo que julgo compreensível a eles?”. Ao buscar resposta a essa indagação, surge uma nova: “se a escolha fosse por explicar a ideia que estava sendo discutida poderia estar selecionando previamente o que era, ou não, cabível de ser compreendido pela comunidade surda?” (ROSA, 2008, p. 13). Percebemos, portanto, que há uma constante inquietação sobre como agir em determinadas situações de interpretação. Essa inquietação se manifesta também diante das EIs, pois ao “identificarmos uma lexia complexa como EI, não devemos nos contentar, na tradução, com uma paráfrase da expressão” (XATARA; RIVA; RIOS, 2002, p. 188). ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A INTERPRETAÇÃO DAS EIs EM LIBRAS 7 Consecutivo é o processo de interpretação de uma língua para outra que acontece de forma que o intérprete ouve/vê o enunciado na língua fonte, processa a informação e, posteriormente, faz a passagem para a língua alvo (BRASIL, 2004, p. 11). 8 Alfabeto digital ou manual trata-se da soletração de uma palavra ou expressão, recurso utilizado, em Libras, decorrente da inexistência de sinais próprios. Refletir sobre as EIs em Libras torna-se relevante tendo em vista a tentativa de compreender como o surdo pode ter acesso a elas em seu sentido conotativo, por se entender “o processo tradutório não como um ato de transferência de significado” (XATARA; RIVA; RIOS, 2002, p. 185), mas como um ato imprescindível de mediação do conhecimento. Por isso, ao se propor uma tradução para EIs, devemos recuperar seu valor metafórico e não apenas explicar seu sentido por meio de definições (XATARA, 1998). Embute-se às EIs informações que vão além daquelas que tentamos expor no ato da interpretação, pois são elas carregadas valores tanto cultural quanto histórico-social, advindo daí o caráter de fixidez (XATARA; RIVA; RIOS, 2002). Elas são utilizadas metaforicamente em uma língua, porém sem tradução rigorosa para outra. Podemos citar, a título de exemplo, a expressão em espanhol “muñecas parlantes” que tem como significado “falar demais” e, rigorosamente traduzida, ficaria “bonecas falantes” ou, ainda, “bonecas que falam muito”. Por haver muito mais carga sociocultural no idiomatismo, a fiel tradução desvaloriza sua especificidade léxica. Para tal expressão, uma equivalente em LP, seria “falar pelos cotovelos” ou “falar como uma matraca”. Em Libras, no entanto, não há, até o presente momento, expressão correspondente, o que a torna desconhecida e, consequentemente, não utilizada pela comunidade surda. Todavia, “para que a expressão se prolifere tão facilmente, falantes e ouvintes tem de estar dissecando a metáfora implícita para desnudar as conexões entre as coisas nomeadas pela metáfora e os conceitos abstratos aos quais realmente se referem” (PINKER, 2008, p. 277-278). Na Libras também é possível tornar os idiomatismos conhecidos e compreendidos, visto que trata-se de [...] uma língua genuína; portanto complexa e rica, com sintaxe própria, capaz de expressar conceitos abstratos diferentes, ideias, pensamentos, fatos de natureza sociopolítica, etc. Não se trata somente de um meio de comunicação entre pessoas surdas, mas um meio de pensamento interno da pessoa (BARROCO, 2007, p. 325). A inquietação paira, porém, sobre a indagação: como representar coerentemente um idiomatismo em Libras a ponto de manter a mesma riqueza nele incutido quando proferido em LP? Para responder a esse questionamento nos propusemos, primeiramente, a investigar como tem ocorrido o processo de interpretação de EIs na interface LP-Libras, para, a partir de então, refletir sobre a possibilidade de se propor critério(s) com vista à padronização da interpretação desse tipo de UF.ALGUMAS OCORRÊNCIAS DE EIs NA INTERFACE LP-LIBRAS O idiomatismo se caracteriza pela impossibilidade de identificar seu significado por meio das palavras individualmente e por não se encontrar estrita tradução entre línguas. Origina- se em contextos diversos, independente de classe social, faixa etária, escolaridade etc., dependendo da peculiaridade de cada região e/ou nacionalidade. Logo, o que é conhecido e usado por determinada comunidade pode não fazer sentido em outra e o que faz sentido em um determinado idioma pode ser completamente desprovido de significado para os demais. Compreender uma EI em sua essência é atribuir-lhe conceitos que vão além do superficial significado, pois “[...] o sentido conotativo de uma EI advém de um acontecimento histórico-social, determinado por uma cultura e delimita seu significado” (XATARA; RIVA; RIOS, 2002, p. 186). O surdo, quando se depara com uma EI pela primeira vez, tem dificuldade de atribuir a ela significado conotativo, visto que, diante de informações novas, normalmente tenta buscar um sentido lógico, denotativo, portanto. Contudo, ele poderá ser capaz de compreendê-la se lhe for proporcionado não apenas o seu significado, mas a natureza sociocultural a ela atribuída. O fato é que durante a interpretação, principalmente simultânea, o TILS, por diversos motivos, interpreta tais idiomatismos de modo distinto, já que não se tem um critério estabelecido, podendo ele optar pelo método que lhe convier no momento. Com o intuito de se obter informações a respeito de como as EIs tem chegado aos surdos, os idiomatismos “engolir sapo”, “por cima da carne seca” e “falar pelos cotovelos” foram apresentados a três TILS, para que os representassem como o fazem no ato da interpretação simultânea e foram aqui demonstrados por meio de glosas9. O significado atribuído a essas expressões foi coletado do Dicionário de Expressões Idiomáticas online10 (doravante, DEIs online), por meio do qual também buscamos uma expressão equivalente nas línguas nele disponibilizadas, como forma de comprovar a possibilidade de se ter uma tradução correspondente. As traduções equivalentes correspondem à legenda: EI em PB: Português do Brasil. EI em PP: Português de Portugal. 9 “Recurso para transcrição de traduções de palavras, frases e textos da língua fonte para a língua alvo” (SANTOS, 2012, p. 178). 10 Dicionário de Expressões Idiomáticas: Português do Brasil e de Portugal – Francês da França, da Bélgica e do Canadá, produzido por Cláudia Xatara. Disponível em: <http://www.deipf.ibilce.unesp.br/pt/busca.php>. Acesso em: 20 de out. 2015. http://www.deipf.ibilce.unesp.br/pt/busca.php EI em FF: Francês da França. EI em FB: Francês da Bélgica. EI em FC: Francês do Canadá. Fonte: Adaptado do DEIs online. Disponível em: <http://www.deipf.ibilce.unesp.br/pt/busca.php>. Acesso em: 20 de out. 2015. INTERPRETAÇÃO DA EI “ENGOLIR SAPO” Tolerar situações desagradáveis sem reclamar: Engolir sapo Engolir sapos (vivos) Avaler des couleuvres Avaler des couleuvres Avaler des couleuvres Fonte: Adaptado do DEIs online. Disponível em: <http://www.deipf.ibilce.unesp.br/pt/busca.php>. Acesso em: 20 de out. 2015. A expressão “engolir sapo” está relacionado ao fato de ouvir calado uma repreensão e considerá-la injusta por se entender não ser dela merecedor. Faz “referência a esse animal que causa repugnância na maior parte das pessoas” (DEIs online). Segue abaixo como cada intérprete procedeu diante dessa EI: TILS 1: Fonte: autoras da pesquisa11. TILS 2: 11 Ilustrações produzidas pelas autoras. Para a confecção dos diagramas, foram utilizadas imagens de sinais retiradas do Dicionário Enciclopédico Ilustrado Trilíngue da Língua de Sinais Brasileira – Libras (CAPOVILLA; RAPHAEL, 2001). http://www.deipf.ibilce.unesp.br/pt/busca.php http://www.deipf.ibilce.unesp.br/pt/busca.php Fonte: autoras da pesquisa. TILS 3: Fonte: autoras da pesquisa. Todos os intérpretes utilizaram Expressão Facial no ato da interpretação. O TILS 1 utilizou apenas o sinal: AGUENTAR. O TILS 2 iniciou com o sinal ASPAS12, seguido da datilologia da EI e da sentença: CALAR AGUENTAR. O TILS 3 optou pelo sinal FRASE e pela datilologia da EI, proferindo em seguida a paráfrase: PESSOA GROSS@13 BRAV@ EU SENTIR MAL MAS RESPONDER NADA CALAR. O fato do intérprete 2 e 3 utilizarem os sinais ASPAS e FRASE, respectivamente, torna-se um critério conveniente diante da interpretação de EI, pois a partir dele o surdo entenderá que as sentenças proferidas posteriormente são próprias da LP, sem termos correspondentes em Libras. INTERPRETAÇÃO DA EI “POR CIMA DA CARNE SECA” A expressão “por cima da carne seca14”, geralmente está associada ao fato de uma pessoa estar bem financeiramente, numa situação privilegiada da qual sempre desfrutou ou que nunca esteve antes. Bernardes e Brito (2008, p. 03), ao compararem a expressão “por cima da carne seca” com a tradução “bem financeiramente”, ressaltam que o idiomatismo é muito mais convincente em seu sentido conotativo porque “acaba por significar mais que somente estar rico, mas também estar em uma situação privilegiada que nunca esteve antes”. Quanto à 12 Recurso empregado em Libras também para indicar que a sentença seguinte é própria da LP. 13 A @ é utilizada na glosa-Libras para indicar que a palavra pode ser tanto masculina quanto feminina em LP, pois na língua de sinais não há marcadores de gênero, apenas de sexo, representado pelos sinais HOMEM e MULHER. 14 Essa EI não foi encontrada no DEIs online. representação desta EI os intérpretes assim procederam: TILS 1: Fonte: autoras da pesquisa. TILS 2: Fonte: autoras da pesquisa. TILS 3: Fonte: autoras da pesquisa. O TILS 1 valeu-se apenas dos sinais que formaram a sentença: PESSOA PODEROS@ CHIQUE SUPERIOR. O TILS 2 novamente iniciou com o sinal ASPAS, seguido da datilologia da EI e da sentença: RIQUEZA DINHEIRO. Todavia, com o TILS 3, ocorreu um fato inusitado: ele não conseguiu interpretar, naquele momento, o idiomatismo que lhe foi solicitado, utilizou, portanto, apenas o sinal FRASE, seguido da datilologia e, depois de breve pausa, proferiu: DESCULPAR NÃO-SABER, para justificar que não sabia como interpretar por, talvez, não lembrar ou ignorar tal “frase”. Não lembrar ou não saber o significado e/ou conceito, não só de uma EI, mas de termos próprios das distintas áreas do conhecimento, é fato quase que frequente diante da interpretação simultânea, isso porque, na maioria das vezes, o intérprete não está, antecipadamente, ciente do assunto a ser tratado. INTERPRETAÇÃO DA EI “FALAR PELOS COTOVELOS” Falar muito: Falar pelos cotovelos Falar como uma matraca (equivalente) Dar à língua Falar pelos cotovelos Avoir la langue bien pendue Être bavard comme une pie Ne pas avoir sa langue dans sa poche Avoir la langue bien pendue Ne pas avoir sa langue dans sa poche Avoir la langue bien pendue Avoir une grande langue Ne pas avoir sa langue dans sa poche Fonte: Adaptado do DEIs online. Disponível em: <http://www.deipf.ibilce.unesp.br/pt/busca.php>.Acesso em: 20 de out. 2015. O surdo utiliza como meio natural a língua de sinais, de modalidade visuoespacial e, assim como acontece entre ouvintes, uns falam mais que outros e muitas vezes o que se fala pode não ter relevância para quem ouve. O DEIs online postula que tal expressão se cristalizou na antiguidade quando “em suas obras, Horácio menciona as pessoas que têm o costume de conversar e puxar o cotovelo dos ouvintes para chamar-lhes a atenção”. Portanto, para fazer com que o surdo compreenda tal peculiaridade, os intérpretes procederam da seguinte maneira: TILS 1: Fonte: autoras da pesquisa. TILS 2: http://www.deipf.ibilce.unesp.br/pt/busca.php Fonte: autoras da pesquisa. TILS 3: Fonte: autoras da pesquisa. Todos os intérpretes utilizaram Expressão Facial e a repetição do sinal FALAR. A repetição de um sinal, na Libras, indica quantidade exagerada, ou seja, repetição do ato e é representada pelo símbolo “+++”. O TILS 1 utilizou, novamente, apenas sentença: PESSOA FALA+++ LONG@. O TILS 2 utilizou o sinal ASPAS e a datilologia seguida da sentença: FALAR+++ EXAGERO e o TILS 3, o sinal FRASE, a datilologia e a sentença: FALAR+++ LONG@ FALAR+++. CONSIDERAÇÕES FINAIS As EIs são dotadas de informalidade, todavia, são proferidas independentemente de classe social, grau de escolaridade ou faixa etária, basta o falante da língua conhecê-las para utilizá-las livremente. Quanto aos surdos, percebe-se que, paulatinamente, estão tomando conhecimento de tais idiomatismos que embora sejam destituídos de tradução, podem ser proferidos às pessoas surdas, desde que o TILS utilize estratégias diversas no ato interpretação, resultando, assim, na sua compreensão e, consequentemente, em enriquecimento vocabular desse público. Limitar a interpretação na explicação ou mera paráfrase da expressão fará com que, cada vez mais, o surdo seja privado desse recurso linguístico que é, grosso modo, por sua característica sociocultural, uma variação da língua. Felizmente, pudemos perceber que nenhum dos intérpretes consultados utiliza apenas a datilologia da expressão. A estratégia do TILS 1 de proferir apenas sentenças explicativas para a interpretação das EIs em questão, contribui para que o surdo continue a desconhecê-las enquanto idiomatismo, restando-lhe o que o próprio intérprete entende como verdade e/ou conceito de tais expressões. Já a estratégia utilizada pelo TILS 2 pode colaborar para que o surdo perceba que há expressões próprias da LP e que elas têm um “significado próprio”, desta forma, quando, em outro contexto, novamente, o surdo se deparar com idiomatismos, estes não lhe serão completamente inusitados, podendo, posteriormente, apropriar-se dos mesmos em sua essência. Quanto a intenção do TILS 3 de utilizar o sinal FRASE seguido da datilologia da EI, chama a atenção do surdo em relação à expressão propriamente dita, porém o conceito de frase, o qual dispensamo-nos em aqui detalhar, é amplo e pode induzir a compreensão de que é concebível da forma como lhe foi passado por meio do alfabeto manual. A verificação de que não há um padrão para tal procedimento nos fez constatar a necessidade de estudos aprofundados para o estabelecimento de critérios de interpretação e, até mesmo, a elaboração de um dicionário de EIs na interface LP-Libras. Essa pesquisa não esgota o conteúdo, pelo contrário, é uma chamada para que mais pesquisas surjam referentes ao tema em questão, nas quais possam ser aludidos critérios de interpretação e, futuramente, a elaboração de um dicionário bilíngue de EIs, organizado de forma a contemplar os idiomatismos existentes em LP com suas respectivas interpretações (EIs equivalentes) em Libras, bem como apresentar seus respectivos significados, respeitando o critério sociocultural de ambas as línguas. REFERÊNCIAS BARROCO, Sônia Mari Shima. A educação especial do novo homem soviético e a psicologia de L. S. Vigotski: implicações e contribuições para a psicologia e a educação atuais. 2007. 414 f. Tese (Doutorado em Letras). Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara. Universidade Estadual Paulista, São Paulo. BERNARDES, Alessandra; BRITO, Karim Siebeneicher. Expressões Idiomáticas e Interculturalidade. União da Vitória: FAFIUV, 2008. BEVILACQUA, Cleci Regina. 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