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MARACAJA_AlbaValdez

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VOL. 4 | nº 4
Maio de 2019
Suplemento Gratuito
ISSN 2596-1373
Realização:Apoio:
2
ARTIGO 
Alencar e Nabuco: 
dois polemistas e cavalos
Charles Ribeiro Pinheiro
FLORES DE AÇUCENA
Ode ao Amor do Mar
Barros Pinho
Minha Terra
Caio Porfírio Carneiro
Dia da libertação
Caetano Ximenes Aragão
Invenção
Nilto Maciel 
(in memoriam)
GENTE ILUSTRADA 
Weaver Lima
CHAPULETADAS 
Alba Valdez: 
em sonho e realidade
Lílian Martins
RADIADORA
Bruno Paulino
Ricardo Kelmer
Juliana Guedes
João Bosco Ribeiro
Raymundo Netto
Milena Bandeira
Marcello Camelo
Henrique Beltrão
Daniel Glaydson Ribeiro
Inocêncio de Melo Filho
Íris Cavalcante
Dércio Braúna
Gylmar Chaves
Renato Pessoa
Carlos Nóbrega
Alves de Aquino
Luan Brito de Azevedo
CRISTALEIRA 
Franklin Nascimento: 
a história de uma 
biografia perdida
Raymundo Netto
04 06
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FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA
João Dummar Neto
presidência
André Avelino de Azevedo
direção administrativo-financeira
Raymundo Netto
gerente editorial e de projetos
Emanuela Fernandes
análise de projetos
MARACAJÁ
Raymundo Netto
curadoria, pesquisa e edição geral
Emanuela Fernandes
assistência editorial
Charles Ribeiro, Lílian Martins, Weaver Lima, 
Lene Chaves, Daniel Brandão e Raymundo 
Netto colaboraram nesta edição com textos, 
cartuns e quadrinhos (exceto os da seção 
“Radiadora”)
Rafael Limaverde
ilustrações
Amaurício Cortez
editor de design
Giselle Fernandes 
projeto gráfico
Amaurício Cortez
Welton Travassos
editoração eletrônica
Karlson Gracie
tipografia Maracajá
revistamaracaja@gmail.com
contato
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução 
sem autorização prévia e escrita. Todas as 
informações e opiniões são de responsabilidade dos 
respectivos autores, não refletindo a opinião deste 
suplemento ou de seus editores.
Este suplemento literário mensal é parte integrante 
do Programa Fortaleza Criativa, em decorrência 
do Termo de Fomento celebrado entre a Fundação 
Demócrito Rocha e a Secretaria Municipal da Cultura 
de Fortaleza, sob o nº 05/2018.
ISSN 2596-1373
Fundação Demócrito Rocha
Av. Aguanambi, 282/A - Joaquim Távora 
Cep 60.055-402 - Fortaleza-Ceará 
Tel.: (85) 3255.6037 - 3255.6148 - Fax (85) 3255.6271 
fdr.org.br | fundacao@fdr.org.br
Todos os direitos desta edição reservados à:
TIRAGOSTOS 
Raymundo Netto
Daniel Brandão
Leni Chaves
Artista da capa
Rafael Limaverde 
24
MALA DE ROMANCES 
O Impossível Romance da 
Franga de Granja com o 
Galo Pé-Duro
Klévisson Viana
23
Para ler todas as edições da revista Maracajá 
e assistir a todas as suas videoentrevistas, acesse:
fdr.org.br/maracaja
3
Do Alpendre
L
eitores, amigos e amigas dessas aventuras maracajás, 
bem-vindos e bem-vindas.
Como nas demais edições, trazemos uma parte, apenas, 
da produção da literatura pintada no cenário cearense.
Dela, extraímos contos, poesias e artigos, sempre no 
esforço de traçar a diversidade e a pluralidade estética e/ou temática, seja de auto-
res reconhecidos (vivos ou não), assim como a de iniciantes.
A “Mala de Romances” volta nessa edição com Klévisson Viana. 
Alba Valdez, primeira mulher a ingressar na Academia Cearense de Letras é o tema 
da “Chapuletadas”, por Lílian Martins. 
“A História de uma Biografia Perdida” deita na “Cristaleira” Franklin Nascimento, 
um dos autores de O Canto Novo da Raça, obra inaugural do Modernismo no Ceará, 
e de Maracajá.
 “Gente Ilustrada” tem como protagonista do mês, Weaver Lima, artista plástico, 
quadrinista e fanzineiro.
O pesquisador Charles Ribeiro, nos 190 anos de José de Alencar, fala um pouco so-
bre o famigerado e polêmico debate jornalístico entre Alencar e Joaquim Nabuco.
Na videoentrevista do mês, Daniel Brandão, jornalista, professor e quadrinista, 
autor de “Os Mundos de Liz”, tiras diárias publicadas em O POVO, e colaborador 
deste suplemento.
A Maracajá é terreno vasto e pertence a todos que dela se apropriarem. Abanquem-
se e a devorem!
Raymundo Netto
Curador e editor de Maracajá 
O Rio Jaguaribe é uma artéria aberta 
 por onde escorre 
 e se perde 
 o sangue do Ceará. 
O mar não se tinge de vermelho 
porque o sangue do Ceará 
 é azul
O Rio Jaguaribe é uma artéria aberta 
(Demócrito Rocha – assinando “Antônio 
Garrido” – para Maracajá nº 1)
4
Artigo
Alencar e Nabuco: 
dois polemistas 
e cavalos
U
ma das mais instigan-
tes polêmicas da litera-
tura brasileira ocorreu 
entre José de Alencar e 
Joaquim Nabuco. 
O mote da briga foi a repercussão negativa da peça O 
jesuíta, escrita por Alencar em 1860, somente encenada em 
1875. O espetáculo atraiu pouco público ao Teatro São Luís, no 
Rio de Janeiro, saindo de cartaz após a terceira apresentação. 
Com esse fracasso, a polêmica se instaurou quando Nabuco, 
anonimamente, escreveu um texto ácido contra a peça no 
jornal O Globo. Esse confronto verbal é significativo para ob-
servamos a tensão na construção da tradição literária brasi-
leira, pois Alencar já era considerado o “chefe da literatura 
nacional”, segundo Afrânio Coutinho. O desafiador, Joaquim 
Nabuco, era jovem aristocrata, filho de um senador imperial, 
que passou uma longa estadia na França e, para se afirmar 
como novo escritor, imprescindível era demolir o “gigante”. 
Nabuco iniciou a série de ataques com a coluna “Aos do-
mingos”, no dia 3 de outubro de 1875, com o intuito de “fazer 
um minucioso exame da obra literária de Alencar”. Com a 
repercussão do texto, revelou sua identidade e escreveu mais 
sete artigos. Impetuosamente, acusou o autor de Iracema de 
estar em decadência literária; de ser um escritor de gabinete 
que “desconhecia” as paisagens brasileiras que pintava; de en-
tregar um livro mais falso do que outro e de só ter sucesso na 
imprensa, pois coagia os jornalistas com seu prestígio político.
José de Alencar, aborrecido com as críticas, defendeu a 
sua peça e, ao descobrir a identidade do seu algoz, seguiu es-
crevendo mais artigos irritadiços no mesmo jornal. A troca de 
desaforos se estendeu por três meses: Nabuco, aos domingos, 
e Alencar, às quintas.
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O mais interessante dessa polêmica 
é a comparação entre escritores e cavalei-
ros, por Nabuco. Ele comparou a ativida-
de literária a uma corrida e a obra de cada 
autor a um cavalo, tendo como hipódro-
mo principal, o Rio de Janeiro.
No concorrido turfe do romantis-
mo, cujo prêmio era a “popularidade” 
entre os leitores, citou vários corredores 
como Gonçalves de Magalhães, Sales 
Torres Homem, Porto Alegre, Pereira 
da Silva, contudo, declarou que o “jo-
ckey do Guarani” se encontrava muito 
adiantado e o único que lhe estava pró-
ximo era Joaquim Manuel de Macedo. 
Na metáfora do crítico, os cavalos de 
Alencar foram vencedores porque, 
além do público ser diminuto, os con-
correntes fraquíssimos.
Em contrapartida, Alencar com a 
missão de “arrancá-lo do êxtase em que 
vive como um narciso namorado de si” 
usou vários epítetos para desqualificá-
-lo como escritor, taxando-o de “folheti-
nista parisiense”, “tribuno gorado”, “ma-
caqueador da língua francesa” e, para 
ser alvo constante da atenção pública, 
seus textos nos jornais serviam como 
um “tônico” ao “orgasmo de vaidade” 
que impacientemente cultivava.
Sobre a metáfora suscitada, 
Alencar como “jockey” afirma que 
se sua Carta sobre Confederação dos 
Tamoios foi uma égua voraz, enquanto 
o irrelevante “Sr. J. Nabuco” não pas-
sava de um dr. Fausto montado em 
um cabo de vassoura, “a cavalgar por 
esses ares a fora, levando por pajem 
um Mefistófeles, bom diabo, fanfar-
rão, mas inofensivo”.
Anos depois, no livro Minha 
Formação, Joaquim Nabuco reconhe-
ceu ter sido bastante audacioso e ima-
turo em tentar demolir José de Alencar, 
que também tinha uma face prepo-
tente. Os dois foram intelectuais que 
contribuíram inestimavelmentepara 
a cultura brasileira, porém o embate 
verbal estampado nos jornais nos reve-
la que nem tudo são flores em relação 
à Literatura, constituindo-se também 
num minado espaço de concorrência. 
No afã de vituperar um contra o outro, 
os escritores se comportaram mais 
como cavalos do que cavaleiros.
Charles Ribeiro Pinheiro
zefiro_cr@hotmail.com
Professor de Literatura, com douto-
rado em Literatura comparada pela 
Universidade Federal do Ceará (UFC), 
com a tese “Rodolfo Teófilo polemista: 
a crítica polêmica como estratégia de 
glorificação literária” (Capes). Foi coor-
denador do projeto de extensão “O en-
tre-lugar na Literatura cearense” (UFC), 
além de atuar como revisor, redator, 
roteirista e autor de livros didáticos de 
literatura. 
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Flores de Açucena
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Dia da 
libertação
pelas vertentes da noite
a manhã já se fazia
quando Iansã abriu as grades
das cadeias da Bahia
pra ver Bárbara passar
por dentro da luz do dia
 
dia pleno de orixás
cavalgando a ventania
ogun oxum olorun
vento alvo alvenaria
de cabelos cor de cal
que de seu rosto escorria
 
do corpo dos encantados
a noite se fez em dia
tocaram todos os sinos
das igrejas da Bahia
pra ver Bárbara passar
por dentro da luz do dia
Caetano Ximenes Aragão
Invenção
De tanto não te ver, aflito o peito,
desesperado, resolvi inventar-te.
Hoje duvido se eras desse jeito
e se de fato és, no todo ou em parte.
De tanto não te ver, nunca te ver,
ou por sumires tão furtivamente,
ou minha sorte bem mesquinha ser,
achei por bem criar-te novamente.
Quem mais existe? Qual mais delas noto?
Talvez a que me fez seu criador,
talvez a que me fez versejador.
Não sei a quem amor eu mais devoto:
se a ti que foges − minha inspiração,
se a ti que chegas − minha criação.
Nilto Maciel 
(in memoriam)
Minha Terra
Minha terra  
querida com laço de fita  
eu rimaria sem pressa.  
A minha terra é áspera  
é tempo que se prolonga  
desde avoengos tropéis  
que o sopro do vento não mata  
em espaço tão corrido  
ao embalo desta rede.  
Meu pé borrando a parede  
e o ranger dos armadores  
pra cá pra lá  
pra lá pra cá  
marca o tempo presente  
tic-tac ao correr do tempo  
que firma o mourão na terra  
e com ela perpetua  
currais porteiras campos  
espelhos de águas tranquilas  
paredes buscando os céus  
pé direito oito metros  
janelas portas rangentes  
alpendre aberto aos caminhos  
retratos que fitam austeros  
esperam muito de mim  
e me eternizam aqui  
na argila deste chão.
Caio Porfírio Carneiro
Ode ao 
Amor do Mar
Gosto do mar  
pelo absurdo  
sensual  
de suas sereias  
 
pelo encrespar  
do vento  
no ventre  
de peixes  
abomináveis  
 
pelo lésbico  
despudor  
das ondas  
violentando  
as águas  
 
gosto do mar  
absorvendo  
sol  
na máscara  
de bronze  
dos pescadores  
 
gosto do mar  
mistério azul  
das mulheres-marinhas  
visivelmente estranguladas  
 
gosto do mar  
concupiscente  
e paradoxal  
em seus horrores.
Barros Pinho
7
Q uando o assunto é a presen-ça feminina nas academias literárias no país, muito se fala sobre Rachel de Queiroz 
(1910-2003), a primeira mu-
lher a ingressar na Academia Brasileira de Letras (ABL). Mas 
este aparente pioneirismo não nos deveria ser um motivo de 
orgulho e, sim, de vergonha! Pensar que somente em 1977 
permitiram que uma mulher pudesse ocupar o espaço de 
poder1 da mais prestigiosa academia literária nacional é, para 
1 A expressão vem dos postulados teóricos de Pierre Bourdieu sobre 
os campos de produção cultural (intelectual, científica e artística) e 
as suas relações de poder, explícitas ou implícitas, conscientes ou in-
conscientes, em que permeiam todas as relações humanas, em toda 
parte do espaço social.
Alba 
Valdez:
em sonho e 
realidade
Chapuletadas
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nós brasileiros, um advento tardio 
frente a todas as demais mulheres 
escritoras que a antecederam e que 
muito contribuíram para as letras 
nacionais, até mesmo para a própria 
edificação do projeto artístico-literá-
rio da ABL como, por exemplo, Júlia 
Lopes de Almeida (1862 - 1934). 
Neste sentido, apesar da relevân-
cia da romancista de O Quinze, poucos 
saberiam dizer qualquer fato a mais 
sobre a presença dela e de quaisquer 
outras mulheres nas academias e agre-
miações literárias no Brasil. Bem pou-
cos, ainda, saberiam informar quem 
teria sido a primeira escritora cearen-
se a ingressar na primeira academia de 
letras no país, a Academia Cearense de 
Letras (1894). Pois bem, esta mulher foi 
Alba Valdez (1874-1962), e é para ela e 
a todas as mulheres silenciadas e avil-
tadas em seus trabalhos, relegadas à 
invisibilidade do esquecimento biblio-
gráfico, a quem dedico este artigo.
Nascida Maria Rodrigues 
Peixe, no sítio Espírito Santo, em São 
Francisco de Uruburetama, atual 
Itapajé, a 12 de dezembro de 1874, ado-
taria mais tarde, com o intuito de que 
os pais não soubessem de seu ofício de 
escritora, o pseudônimo “Alba Valdez”. 
“Alba” em homenagem a sua gran-
de amiga, Alba Pompeu (1878 - 1949), 
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filha de Thomaz Pompeu (1852-1929). 
O sobrenome “Valdez” foi retirado do 
antigo Dicionário Valdez da Língua 
Portuguesa. Em 1877, seus pais passa-
ram a residir em Fortaleza, devido à 
grande seca daquele ano. Em 1889, for-
mou-se professora pela Escola Normal 
e, em 1922, ingressou na Academia 
Cearense de Letras. Infelizmente, em 
1930, a ACL passou por uma reestru-
turação e, nela, o seu nome foi retira-
do da composição da entidade, retor-
nando somente em 1937, quando sob 
nova reestruturação. O triste episódio 
rendeu um dos artigos mais belos es-
crito pela escritora, intitulado “De pé”, 
publicado no Jornal do Comércio, de 
Fortaleza, em 22 de maio de 1930.
Além da ACL, Alba Valdez per-
tenceu ao Centro Literário, Instituto 
do Ceará, Boêmia Literária, Iracema 
Literária e à Ala Feminina da Casa de 
Juvenal Galeno. Seu primeiro livro, 
Em Sonho... Fantasias foi publicado, em 
1901, quando tinha apenas 26 anos. 
A obra marca também o primeiro re-
gistro literário do gênero crônica em 
uma publicação impressa no Ceará e é 
o resultado de uma seleção feita pela 
própria autora dos seus textos publi-
cados no Diário do Ceará. Além de crô-
nicas, a obra contém também contos e 
alguns deles ganharam tradução para 
o sueco, pelo poeta Göran  Björkman 
(1860-1923) e para o francês, sendo o 
seu conto “A Carta” publicado no jor-
nal Le Matin, de Paris. 
Em 2017, o livro ganhou segun-
da edição para a Coleção Clássicos 
Cearenses, publicado pelas Edições 
Demócrito Rocha. Ironicamente, a 
nova edição ganhou prefácio da escri-
tora Ângela Gutiérrez (1945), que se 
tornaria, posteriormente, a primeira 
mulher a presidir a ACL. Seis anos de-
pois da sua estreia na literatura, Alba 
Valdez publicou Dias de Luz, recor-
dações da adolescência, obra até hoje 
ainda não reeditada.
O pioneirismo da escritora não 
foi somente na literatura, mas tam-
bém nas áreas da educação e do jorna-
lismo, nas quais colaborou escrevendo 
para jornais e revistas em Fortaleza e 
em outras cidades do Brasil. 
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É uma das fundadoras e presi-
denta da Liga Feminista Cearense 
(1904), onde lutou pela emancipação 
feminina e pelo direito ao voto, e há 
quem diga que ela serviu até de inspi-
ração ao pintor Raimundo Cela (1890-
1954) para a imagem feminina da 
Liberdade no célebre painel “Abolição 
dos Escravos”, de 1938, fato lembra-
do no discurso de posse de Eduardo 
Campos (1923-2007), na ACL, em 
1963, na cadeira de número 22, antes 
pertencido a Alba Valdez. 
A história surpreendente de Alba 
Valdez, marcada pela luta em defesa 
dos direitos da mulher, nos encoraja a 
seguir adiante, pois onde mais r-exis-
tam “mulheres que, como eu, moure-
jam na seara das letras”2 persistiremos 
na luta, lembrando que ninguém solta 
a mão de ninguém!
2 Trecho do artigo “De pé” de Alba Valdez.
Lílian Martins
l il ianabreu_mar t ins@yahoo.com.br 
Jornalista, tradutora, professora, pes-
quisadora e militante em Literatura 
Cearense. Mestre em Literatura 
Comparada pela UFC com a disser-
tação vencedora do Prêmio Bolsa de 
Fomento à Literatura da Fundação 
Biblioteca Nacional e Ministério da 
Cultura (2015) e do Edital de Incentivo 
às Artes da Secretaria de Cultura de 
Fortaleza (Secultfor) em 2016. Desde 
2008, apresenta e produz o programa 
literário semanal Autores e Ideias da 
Rádio FM Assembleia (96,7 MHz) da 
Assembleia Legislativa do Estado do 
Ceará. Escreve, mensalmente, sobre 
música e literatura para a coluna: “Ao 
pé do ouvido: Baladas para Leitores” 
do Blog Leituras da Bel, vinculado ao 
Portal O POVO Online.
Para conhecer mais 
de Alba Valdez
Em Sonho... Fantasias, de Alba 
Valdez (EDR), Coleção 
Clássicos Cearenses
O livro pode ser adquirido na 
Livraria Dummar
Endereço físico: Av. Aguanambi, 
282, Joaquim Távora 
(sede do jornal O POVO)
Endereço virtual (e-commerce): 
livrariadummar.com.br
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Weaver Lima 
Cearense, iniciou no meio artístico 
criando e integrando o grupo Seres 
Urbanos, responsável pela edição, na 
década de 1990, de uma série de fan-
zines que se tornaram referência no 
meio alternativo brasileiro. Em 2015, 
publicaria Seres Urbanos: antologia 
do quadrinho underground cearense, 
eleito melhor livro de HQ no prê-
mio Miolo(s), organizado pela editora 
Lote 42 e pela Biblioteca Mário de 
Andrade, em São Paulo.
Desde o início dos anos 2000, 
Weaver dedica-se às artes visuais. 
Sua exposição individual “Weaver 
Discos: pop descarado” circulou, 
entre 2012 e 2013, em seis capitais 
brasileiras, além de Itália e Portugal. 
Desde 2011, realiza o projeto de arte 
itinerante “RASTRO”, percorrendo ci-
dades do interior do estado do Ceará 
e realizando intervenções artísticas. 
Em 2016, uma exposição sobre o pro-
jeto foi selecionada no programa na-
cional da CAIXA Cultural.
A ilustração “História Oral III” 
(spray sobre recorte de madei-
ra, 67 x 53cm) integra a série 
RASTRO.
Gente Ilustrada
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Franklin 
Nascimento: 
A
o recebermos a indicação de 
Sânzio de Azevedo e a autori-
zação do, então, secretário da 
Cultura, Auto Filho, para a publi-
cação, como parte integrante da 
série Luz do Ceará, coleção Nossa Cultura, do título O Canto Novo 
da Raça, poesias de Jáder de Carvalho, Franklin Nascimento, 
Mozart Firmeza (Pereira Júnior) e Sidney Netto, obra original-
mente impressa pela tipografia Urânia em 1927, ficamos bastante 
felizes. Sentíamos que estávamos conseguindo trazer à tona, dos 
porões escuros do nosso tradicional esquecimento, obras de rele-
vância que contribuiriam, doravante, para a compreensão da for-
mação artística e literária cearense. 
Vinha-nos sempre a questão: como era possível uma obra, 
que conforme bem nos define o prof. Sânzio, é o livro inaugural 
de uma corrente literária, o Modernismo, no Ceará, ter que es-
perar 84 anos para ter direito a uma segunda edição? Pois bem, 
Cristaleira
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a história de 
uma biografia 
perdida
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Franklin 
Nascimento: 
durante o processo de organização e pu-
blicação de tal livro, teríamos outras ale-
grias que gostaríamos de compartilhar 
agora com, você, leitor.
Quando lemos na apresentação 
de Sânzio de Azevedo, sobre o poeta 
Franklin Nascimento, um dos quatro au-
tores da referida obra, “(...) aquele cujos 
dados biobibliográficos são mais escassos. 
Nascido em Fortaleza no dia 21 de abril 
de 1901, não se sabe onde e quando fale-
ceu (...)”, nos preocupamos. Isto, pois, reco-
nhecido o trabalho incansável, honesto e 
sério de pesquisador, aceitamos tal afir-
mativa como uma provocação que justifi-
caria ainda mais a edição da obra. E assim 
o fizemos. Passamos a buscar na internet 
e conversar com outros pesquisadores 
sobre o possível paradeiro de Franklin. 
Tínhamos sempre a impressão de que 
ele teria saído do Ceará, o que justificaria 
o seu “desaparecimento” e o desconheci-
mento de sua continuidade na literatura.
Um dia, porém, quase por acaso, 
encontramos numa página da web um 
comentário de uma neta de Franklin, 
Karla, residente em Belém do Pará, citan-
do qualquer coisa a respeito do avô que 
era poeta no Ceará. Tentamos rastreá-la e 
conseguimos descobrir o seu filho, Felipe, 
um jovem que tinha um blogue no qual 
postava crônicas. Por meio de uma rede 
social do qual faz parte, escrevemos, fa-
lamos sobre a proposta de publicação 
do livro do bisavô, a sua importância e 
a necessidade de resgatarmos a sua bio-
grafia, ora inconclusa. Com dias, con-
seguimos conversar, por telefone, com 
o filho de Franklin, Túlio, residente em 
Recife, e depois com Tereza, residente em 
Fortaleza, e, desde então, muitos dos mis-
térios sobre o suposto “paradeiro” come-
çaram a ser naturalmente desvendados. 
O primeiro deles foi descobrir que 
o Franklin Nascimento, na realidade, se 
chamava João Abreu do Nascimento. 
“Franklin”, um pseudônimo. Cremos, uma 
homenagem ao seu pai Abdon Franklin 
do Nascimento. Por meio de contatos 
telefônicos ou e-mails, além da única 
foto de Franklin em juventude, a famí-
lia nos apresentou a sua origem, nome 
dos pais, histórias da infância, trajetória 
profissional e familiar e, inclusive, não 
poderia deixar de ser, a data de seu fa-
lecimento, em 24 de janeiro de 1978, e o 
seu local, fato que nos causou maior as-
sombro: em Fortaleza, Ceará! Ou seja, o 
Franklin, ou João, nasceu, viveu e morreu 
aqui, “debaixo de nossas barbas”, como se 
diz. Ou seja, foi “esquecido” ainda em vida.
Estranhou-nos a família — teve 10 
filhos — não ter conhecimento da exis-
tência de O Canto Novo da Raça, nem de 
seus poemas publicados neste livro. “Não 
falava sobre isso (poesias, livros) em casa”, 
nos afirmou o filho. Asseguraram-me 
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não saber de outra publicação qual-
quer de Franklin. Perguntei-lhes sobre 
Nuvem de Gafanhotos, título que encon-
trei na Revista de Antropofagia nº 6, de 
outubro de 1928, dirigido por Antônio 
de Alcântara Machado e gerenciado por 
Raul Bopp, em São Paulo. Na revista, o 
seu poema “Pomo Roído” aparece como 
se extraído de Nuvem de Gafanhotos. 
Provavelmente, supomos, o título provi-
sório de um livro que o poeta pensava em 
publicar e não o fez.
O fato é que Franklin, com pouco, 
desapareceu do circuito literário, sabe-se 
lá por que razão. Depois do lançamento 
de O Canto..., além de pequenas contribui-
ções na revista Movimento e na Revista 
de Antropofagia, foi um dos fundadores 
de Maracajá (1927) e Cipó de Fogo (1931), e 
casou-se, em 1933, com Francisca Aguiar, 
a Francinete. Inclusive, me foi relatada a 
história muito romântica da perseguição 
do jovem e apaixonado João, em bondes, 
à futura esposa.
Pormeio de um recorte de jor-
nal, descobrimos que Franklin, que 
gostava de anedotas e as escrevia, 
participou da fundação da Academia 
Cearense de Humoristas, com sede na 
Associação Cearense de Imprensa, já 
na década de 1960.
Também soubemos que chegara a 
se corresponder com Carlos Drummond 
de Andrade, “poeta amado meu”, como a 
ele se dirigiu em primeira carta, em 1974, 
e que obteve resposta.
Dos filhos, pouco mais conseguimos 
além do que se lê na biografia publicada 
no livro. João, que atuava como conta-
bilista, era simpatizante do comunismo, 
ateu e boêmio, nunca apegado às coisas 
materiais. O filho Túlio se recorda de ter 
crescido vendo na sala de casa, pendu-
rado em local de honra, o retrato de Luís 
Carlos Prestes. Como poeta que era não 
nos surpreende seu comportamento de 
estranhamento e desajuste a este mundo, 
a sua sensação de solidão e uma tal angús-
tia que parecia nunca se acabar.
Na carta a Drummond, felizmente 
mantida em fotocópia — e ainda desco-
nhecida por alguns de seus familiares —, 
todos esses sentimentos são devidamente 
revelados, como se Franklin soubesse que 
a outro poeta ele poderia fazê-lo, e se tra-
tando de Drummond, com certeza o en-
tenderia. Na carta ele fala de sua velhice 
(estava com 73 anos), da sua tristeza por 
não ter “tutu” para publicar um livro com 
seus versos acumulados de uma vida, da 
sua dificuldade de pedir a ajuda de ami-
gos para fazê-lo, da sua intenção de levar 
em seu caixão os versos que nunca iria 
publicar — o que de fato aconteceu, por 
conta da obediência da filha —, e anexou 
alguns deles, além de quadrinhas de sátira 
e humor. De quebra, é claro, arriscou pedir 
a Drummond um livro seu autografado.
Graças ao empenho da família 
de Franklin, que sempre nos atendeu 
prontamente, conseguimos elabo-
rar a nova biografia de João Abreu do 
Nascimento, o Franklin Nascimento, 
um dos autores de O Canto Novo da 
Raça, um pequeno, mas para quem sabe 
bem o que é isso, um grande serviço 
para nossa historiografia literária.
Para mim, particularmente, poucas 
são as emoções que podem ser compara-
das à de se ler, mesmo por telefone, um 
poema desconhecido de um pai a uma 
filha, e ter a certeza de que, após tantos e 
tantos anos, a voz do poeta se fez imortal, 
forte, clara e melódica transcendendo a 
tudo, inclusive à vida, e tudo aquilo que 
ela, pessoalmente, lhe negou.
Raymundo Netto
raymundo.netto@gmail.com
O Canto Novo da Raça, 2ª edição, série Luz 
do Ceará, da Coleção Nossa Cultura da 
Secult (2011), com coordenação editorial, 
capa, projeto gráfico, revisão, digitação e 
apêndice de Raymundo Netto, apresen-
tação de Sânzio de Azevedo, diagramação 
de Elias Saboia e ilustrações de Audifax 
Rios (90 páginas).
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Radiadora
As Almas Penadas 
do Açude Grande
Foi numa noite de chuva forte, com re-
lâmpagos e trovões, que ouvi pela primei-
ra vez ao redor de uma fogueira junto aos 
meus primos a horripilante história das 
almas penadas do açude grande contada 
pelo velho Manuel Rosendo, vaqueiro da 
fazenda Forquilha – propriedade do meu 
avô – e um dos maiores contadores de 
casos de assombração em toda a redon-
deza do vilarejo de Boa Fé.
Manuel Rosendo dizia que o açude 
grande, aquele mundão de água, quando 
nos dias de cheia era atração garantida 
para os pescadores, os banhistas, os ani-
mais, e, claro, para os moradores do vi-
larejo, sobretudo para as crianças que se 
divertiam, apesar dos perigos.
As histórias sobre as almas penadas 
do açude grande eram antigas, reforçava 
o velho narrador. E iniciaram no dia em 
que um casal de crianças, Mariazinha e 
Pedrinho, filhos do bodegueiro Zé Lins, 
sumiram misteriosamente aos olhos da 
mãe zelosa que sempre foi dona Lúcia e 
que entrava agora aflita e aos gritos na 
bodega do marido: 
– Zé me acuda! Me acuda! Não 
consigo achar os meninos. Já procurei 
em tudo que foi canto, não sei onde 
diabos se meteram. Sumiram desde 
manhãzinha, quando fui estender a 
roupa no cercado. E além do mais tô 
com uns pressentimentos.
– Calma, mulher! Calma! Não fale 
em diabo, que isso atrai coisa ruim. Deixe 
de tanta besteira. Devem de está por aí 
nos terreiros, brincando com o menino 
do cumpadre Luís, eles aparecem já. – 
respondeu sem demonstrar muita preo-
cupação Zé Lins, tentado também dessa 
forma acalmar a mulher.
Deu a noite e os meninos não apa-
receram. A mãe caiu nos prantos receosa 
de suas premonições. Zé Lins fechou a 
bodega, foi acima e foi abaixo, e não deu 
vista de nenhum sinal dos dois filhos, 
acabando por reunir todos os homens 
do vilarejo, que solidários ganharam os 
matos com lampiões acesos no caminho 
do açude grande, pois foram informados 
pela preta velha Nastácia que as crianças 
tinham sido vistas brincando na beira 
d’água no fim da tarde.
Os corpos das crianças foram 
encontrados por um pescador, boian-
do perto da parede do açude, naquela 
mesma noite, enganchados numa árvore. 
Os olhos esbugalhados, a face carcomida 
pelos pequenos peixes e as marcas indis-
tintas de machucados espalhadas pelos 
corpos deixou todos atônitos e perplexos. 
Nunca ninguém conseguiu entender o 
que se deu com os filhos de seu Zé Lins. 
Teria alguém matado aquelas crianças 
e jogado os corpos na água? As crianças 
teriam ido nadar e se afogado? Nunca 
ninguém soube responder. E por que tra-
gédia tão sofrida se abatera sobre aquela 
pobre família? Por que criaturas tão pue-
ris teriam sofrido tanta violência? 
O tempo passou e logo surgiram 
as primeiras histórias das aparições das 
almas das crianças à noite, vestidas de 
branco com velas nas mãos, na beira 
d’água do açude grande.
Zé Lins ficou sabendo das supostas 
aparições pelo cochichado de seus clien-
tes na bodega, mas não acreditou naquilo 
até que sua mulher numa noite lhe disse 
na hora do jantar:
– Zé, eu vi nossos filhos. Eu vi nos-
sos filhos mortos! Eles querem te ver. 
O bodegueiro não conseguiu en-
golir mais nada. Insone, perturbado 
com as palavras da mulher ressoando 
na cabeça e a lembrança doída dos fi-
lhos. Ela insistia:
– Zé, eu vi nossos filhos. Eu vi nos-
sos filhos mortos! Eles querem te ver. 
Ele saiu de casa sem que ninguém o 
visse e seguiu no rumo do açude grande. 
No outro dia pela manhã, suas rou-
pas, sua faca e seu rosário, que costuma-
va carregar no pescoço, foram encontra-
dos numa canoa que vagava solitária no 
meio do açude. Porém o seu corpo nunca 
foi encontrado.
Ainda hoje contam alguns pes-
cadores mais antigos que, ao pescar no 
açude grande em noite de lua alta, é pos-
sível esbarrar com a alma do homem 
na canoa a perguntar por seus filhos, 
Mariazinha e Pedrinho.
Bruno Paulino
bruno_enxadrista@hotmail.com
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Cem Vezes Mais
Essa Moça ‘Tá Diferente
Deus é fiel, tá sabendo? Prova disso é que semana passada 
abriu uma igreja evangélica aqui pertinho. Toda noite tem 
culto, uma ruma de carrão importado na frente. Chance boa 
de faturar um troco, ajudar a tia a pagar o aluguel do barraco, 
ela que me cria desde que mamãe morreu. Morreu no corre-
dor do hospital, gosto nem de lembrar, bola pra frente, meu 
irmão. Primeiro, segundo, terceiro dia guardando os carros da 
igreja, faturei nada. Eles não tinham dinheiro, só cartão. Mas 
sempre diziam que eu orasse muito que Deus proveria. Tinha 
um que dizia assim, “Precisa olhar o carro não, moleque, Deus 
tá vigiando”. Era o carrão mais bacana de todos. Olhei no vidro, 
tinha um adesivo, “Foi Deus que me deu”. Uma noite descobri 
que o dono do carro era o pastor da igreja. Descobri porque 
entrei lá acompanhando minha tia, ela queria orar pelo primo 
que os polícia mataram por engano numa batida dia desses. 
O pastor estendeu um bauzinho na nossa frente e disse que 
aquela noite era especial, que Deus estava ali ao lado dele, e 
que a gente receberia cem vezes mais o que a gente botasse 
naquele bauzinho.Minha tia enxugou as lágrimas, abriu a 
bolsa e contou as moedas. Dava uns dez reais, era tudo que ela 
tinha. Ela botou as moedas no bauzinho e rezou. Eu olhei nos 
olhos do pastor. Ele repetiu, sorrindo, “Cem vezes mais, meu 
filho, tenha fé”. Eu acreditei nele, claro. E botei uma nota de 
vinte. No dia seguinte, quando o pastor saiu da igreja, cadê o 
carrão? Tava lá não. O lugar mais vazio do mundo. Eu também 
não tava. Naquela hora eu tava dirigindo o carro dele, o Isaías 
me esperando com dois milzim na mão. Deus é fiel.
Ricardo Kelmer
ricardokelmer@gmail.com
Desde a infância, Alan e eu nos entreolhávamos, com muita 
doçura. Ao completarmos quinze anos, passamos a frequen-
tar a Sociedade Lírica do Belmonte, criada pelo padre Ágio 
Moreira de Deus. Lá, comecei os estudos de flauta transversal 
e Alan tocava violão clássico. 
Os tempos tinham mudado, saímos do Cariri e nos 
mudamos para Fortaleza, o ano era 1969 e o casamento ia 
muito bem. Estudávamos, agora, no Conservatório de Música 
Alberto Nepomuceno. Neste espaço, conheci a holandesa 
Judy. Ela tinha olhos de piscina, usava roupas folgadas e fai-
xas florais na cabeça. 
Alan sentiu que algo estava muito estranho. Com Judy, 
aprendi a renovar os valores dentro de uma casa. Por isso, pas-
sei a reivindicar direitos iguais em relação às tarefas domésti-
cas. Em poucos dias, o café de Alan tinha o sabor mais apurado 
que o meu, deixando o lar inteiro cheirando à baunilha. Pelas 
calçadas, as pessoas comentavam baixinho: “essa moça ‘tá di-
ferente”. Passei a sair de casa sem sutiã, o que era um escânda-
lo e usava uma enorme peruca loira.
Neste mesmo ano, fui convidada pelo pessoal do Ceará 
a me apresentar em alguns festivais. Não parava mais em 
casa, o que fez Alan entrar em total desespero. Às vezes, ele 
preparava alguns jantares românticos, mas quase sempre 
eu estava de pileque, sem muita fome, escutando, no último 
volume, uma velha radiola, os discos dos Mutantes e da Gal 
Costa, saindo a rodopiar pela casa. O ano estava muito frutí-
fero e tinha feito amizades de toda uma vida. Pensei em me 
separar, mas Alan fazia uma boa comida, dividia as tarefas 
de casa, era amoroso e o olhar doce permanecia. Então, resol-
vi dar uma nova chance, com o combinado de que não inter-
ferisse na minha carreira artística.
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O Relicário 
“Vão-se os anéis, ficam os dedos.”
Minha avó repetia estas palavras 
sempre que um objeto que nos era que-
rido se perdia ou acabava em pedaços. 
Dizia para nos irritar, ou assim pare-
cia-nos, em meio à fútil ira da privação 
que, na falta de adequada perspectiva, 
tomava proporções dramáticas. 
Seu sábio e meigo riso de divertida 
compreensão, como o de quem pacien-
temente ouve as fabulosas queixas de 
uma criança frustrada com suas ques-
tões cotidianas, nos soava sarcástico e 
cruel. Aos nossos ouvidos, suas palavras 
de conforto eram descarada afronta. 
A perspectiva, contudo, hora ou 
outra, em catarse ou relutante rendi-
ção, nos arrebata, revoluciona e en-
vergonha, e o faz com distinto talento 
para o drama.  
“Vão-se os dedos, ficam os anéis” 
Reconheci a desenhada letra pre-
enchida de significado no ordinário 
pedaço de papel pardo que encimava a 
pequena caixa azul-marinho de pape-
lão mantida fechada graças a um fino 
elástico prateado preso à sua face infe-
rior,  envolvendo-lhe  precariamente. O 
conteúdo era algo mais curioso. 
Um caderninho em ruínas, de 
miolo nobre não-pautado, estava pre-
enchido de notas sobre tudo e coisa 
nenhuma, palavras que, há muito, per-
deram seu significado. Um passaporte 
surrado narrava, como um romance 
gráfico, contos cuja memória fora varri-
da pelo apressado correr dos anos. Um 
ingresso de cinema, quase completa-
mente apagado, contava de uma ami-
zade morta precocemente.
Não havia fotos, apenas objetos 
que, apartados da alma que os manti-
vera reunidos por tanto tempo, diziam 
muito pouco de seu real valor, como 
que relutantes em revelar os segredos 
de sua falecida curadora. 
No fundo do recipiente, uma joia 
– um relicário dourado onde lia-se, 
gravado em relevo, “tempus fugit”. Ao 
toque, abriu-se, revelando um pedaço 
envelhecido de papel, dobrado incontá-
veis vezes à forma de um pequeno qua-
drilátero intocado por décadas. Inscrita 
em seu interior uma confissão desespe-
rada de uma mente humana corroída 
pelo medo. Medo de ver escorregar por 
entre seus dedos a felicidade que custa-
ra a conquistar e que julgava imerecida. 
Encantada, encarei uma última 
vez o conteúdo, ora devassado, da caixa 
de relíquias anônimas, na certeza de 
que os medos de sua colecionadora ja-
mais escaparam às fronteiras daquele 
débil bilhete. 
João Bosco Ribeiro
joaobosco_neto@yahoo.com.br
Em novembro, criei um grupo de 
rock progressivo, o Apolo Crazy, com-
posto por garotas insubmissas, Judy 
era a baterista. O regime militar pres-
crevia um bom comportamento nas 
apresentações de bandas. O grupo to-
cava apenas um som experimental e 
não tínhamos problemas com a polícia, 
aparentemente. 
Era uma quarta-feira, próxima 
aos festejos natalinos, e a banda foi se 
apresentar na Rádio Dragão do Mar. O 
programa chamava-se “Hoje é dia de 
Rock”, que contava com o apoio popu-
lar e tinha muitos fãs. Judy costumava 
falar em nome de todas nós, mas senti 
uma vontade de pegar o microfone e 
manifestar alguns pontos de vista sobre 
as últimas perseguições e repressões 
aos artistas nordestinos. Não deu outra, 
quando saímos do estúdio da emissora, 
os militares nos atacaram com trucu-
lência e prenderam os radialistas. 
Depois de realizar um depoi-
mento para o Doi-Codi, Judy voltou 
para casa, transtornada. Enquanto eu 
acabei ficando. Duas semanas depois, 
meu marido saiu pelas ruas, entregan-
do panfletos pela cidade, em tempos 
de chumbo, com o seguinte título: “Eu, 
Alan Ferreira, procuro minha esposa.”
Juliana Guedes
guedesbjuliana@gmail.com
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De Pedra
Mesmo não suportando a loucura da mulher, vê-la partir lhe 
seria insuportável.
Uma noite, durante conflituoso jantar, a drogou. 
Tomou-a adormecida nos braços e a levou para o mato, 
quase em frente à lagoa, ainda visível à janela de sua casa. Lá 
chegando, amarrou-a rente a um tronco estreito de árvore, 
onde previamente havia preparado baldes com água, areia 
e cimento.
Desacordada, ela respirava suavemente, balbuciando 
seu nome e deixando que a lua revelasse a ternura no rosto, 
à medida que ele punha e moldava sobre seu corpo a massa 
ainda molhada do cimento. Começou pelos pés. Aos poucos, 
as pernas, o tronco, os seios, os braços, até finalmente cobrir-
lhe toda a cabeça.
Amanheceu. O Sol o encontrou sentado no capim, ainda 
trêmulo, com uma pequena espátula à mão e olheiras mar-
cadas de despedida, enquanto iluminava e aquecia a figura 
tosca daquela mulher. Foi quando teve a impressão de ouvir 
dela um soluço abafado, quase como um estalo. Acordara?
Todos os dias, seria a primeira imagem que veria ao le-
vantar. Horas e horas à janela.
À noite, tinha pesadelos. Ouvia os seus desaforos, as 
suas lamúrias. Imaginava que ela lá não mais estaria, que 
mesmo em pedra pudesse lhe escapar, se lançando nas águas 
lodosas da lagoa. Mas não. Ela permanecia ali, imóvel, como 
encantada, a seu alcance, aquecida para sempre em seu amor 
e zelo. E assim foi durante meses.
A ausência dela era quase despercebida. Trabalhava em 
casa, poucos amigos, filha única de mãe idosa. Quando muito, 
um telefonema — “Ela não está. Quer deixar recado?” — Não 
queria. Sabia que a ingrata não retornaria.
Aos finais de tarde, aguardava a noite ao lado da mulher. 
Falava sobre seu dia, contava-lhe novidades, a presenteava, 
confessava a falta que lhe fazia e, por fim, numa loucura pró-
pria e sincera dos amantes, a cobria em beijos amorosos, se 
agarrando àquele corpo frio, áspero e inerte.
Em uma noite quente, porém, ele acordoue viu ao pé 
de sua cama a mulher de pedra. Em silêncio, e através de 
seus olhos nus e cinzentos, parecia mirá-lo, até jogar-se sobre 
ele, e, com as mãos, tomar-lhe fortemente o pescoço e o ar. 
Valendo-se do vagar desajeitado da estátua, ele conseguiu, 
com esforço, escapar-lhe. Ainda torpe e surpreso, pegou uma 
marreta e a golpeou no abdome. O corpo começou a rachar. 
Abriu-se de meio a meio. “O que foi que eu fiz, meu amor? O 
que foi que eu fiz?”, repetia. A estátua fez-se em pedaços e 
de seu interior apenas um grito moribundo, aterrorizante, de 
uma agonia jamais ouvida igual.
Ele, abalado, jogou-se sobre os escombros, a procurar a 
mulher, qualquer pedaço dela, mas nada encontrou. Saiu gri-
tando, com restos de entulho nas mãos, e jogou-se na lagoa, 
pondo-se no fundo da lama com o peso de sua própria cons-
ciência e da imagem perdida de sua mulher amada.
Raymundo Netto
raymundo.netto@gmail.com
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Para Esquecer
Não comporei para ti poemas,
para que tua imagem se desfaça aos poucos,
a clareza da pele imersa na luz desta terra,
para que tuas linhas se apaguem no ar,
sem delícia, nem memória, nem fantasias,
para que teus gestos – que dançam! – 
venham, com o tempo, a parar.
Henrique Beltrão
beltraohenrique@gmail.com
Dormência
eu não tenho
medo da chuva.
eu tenho medo 
é de não sentir
os pingos caindo
no meu corpo cansado.
Milena Bandeira
milenamaquinadeescrever@gmail.com
Maracaiá
avia, avoa, vaia
azunha, arranha, assanha
ruge, urge, ressurge
abocanha, arreganha, entranha
arenga, assunga, rasga 
afronta, confronta, reconta
enfeita, descatita, empriquita 
cutuca, papoca, provoca 
frondoso, garboso, lustroso
afrontado, espritado, inzabuado
porreta, arrombado, aloprado
alencarino, genuíno, malino
arisco, risco, trisco 
atento, retinto, maracajá 
Marcello Camelo
marcellocamelo@bol.com.br
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2020
Tempo Herança
Cirurgicamente se amputa coração dopado de veado preto.
Proibicionismo inventado para matar pobre e lavar Grana.
Em nome da REAL generosidade: Primeira-Dama, libras
maçônicas, amazonas, etnocídio, fugas brancas.
– Larga meu corpo, Estado do caralho!
diz potiguar enjaulada, cujo CRIME:
monetizar e ingerir cultura natural, mijada
maconha coca crack mec feice;
das redes sociais ela trafica
conversões à Facção Paulista
e inefáveis códigos éticos
hoje picha, seu sangue repentista
corta cabeça de Novos Batistas
Ministros Damares Messias
enquanto, indígena, canta:
– Supremos Corvos Federais,
que se regalam da carniça
sentenciáveis “nunca mais”
ao que só tem em Vossa missa:
bilionários, fraternidade!
“Nunca mais!”, direi eu insubmissa,
petrificada em marginalidade,
“Nunca mais!” dirá a carniça,
torturada em neoliberdade,
ao Espantalho da Justiça.
Daniel Glaydson Ribeiro
danielglaydson@gmail.com
O Poema
O poema é fruto do meu ofício
Está em minha vida
No meu cotidiano
Na minha rotina
Seu tecido veste-me 
Seu nascimento em mim
Renova-me apesar dos árduos combates
Apesar do tempo que pesa nos meus ombros
Curvando-me as costas. 
Inocêncio de Melo Filho
prof.inocencio@gmail.com
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Impressões aos 
Sessenta
A impressão que eu tenho 
é ter me deslocado para dentro  
de uns sonhos duradouros. 
Vivi toda a infância 
sem me importar com ruínas, 
casas mal-pintadas, 
pessoas que mancavam, 
estradas sinuosas. 
Na adolescência, 
continuei dentro deles, 
Também não me ative 
em sempre acordar cedo 
para ler as estrelas derradeiras, 
ver o sol nascer. 
Por essa época, 
estava mesmo era engraçado  
por namorar agarradinho, 
beijar com muito aceite. 
Veio então um sopro 
e cheguei aos sessenta, 
ainda pelejando  
em desfazer rochas 
onde residem alguns poemas.
Gylmar Chaves
gylmarlc@gmail.com
A Resposta para a 
Desumanização
a poesia ocorre, surta, surge, surpreende
assalta, assusta, luta
a poesia não se cala, a poesia
ela insiste, insiste, insiste
ate ser parida, virar palavra, verso, reverso, germinar
ela fala do saqueio, da opressão, do túnel sem luz
do abismo, do abismo, do abismo
ah, mas ela fala da vida também
apesar dos cataclismas, dos holocautos
ela fala da vida
a poesia é a resposta tenaz
para uma terra devastada
para um coração estéril
vantagem sobre a destruição em série
a poesia é a resposta do homem para a desumanização
vou ali, levar minha poesia para passear
vamos indo de braços dados e peito aberto
brincar de ser poema 
Íris Cavalcante
iris@idt.org.br
Pela Caridadede Suas 
Mãos e Dentes
É o mais certo amor 
o que temos pela rudeza das coisas.
O bicho que se milagrou homem
(pela caridade de suas mãos e dentes),
que pariu um deus
com gravetos e pedras
(para depois apedrejá-lo):
 
 esse bicho talha sem descanso
 dentro da coisa milagrada.
Dércio Braúna
derciobrauna@gmail.com
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O Batismo Depois do Outuno
eu não digo o teu nome na febre do vulcão,
na mão de argila, domada de ventania
e alagamento. eu não digo o teu nome
ecoado de pássaros, dentro do ventre,
orçado na miudez. eu não digo o teu nome
com a ajuda de deus, ferido na dimensão
aguda da língua. eu não digo o teu nome
no poema, na asa do caos, na louça e no amargo.
o teu nome, o teu líquido nome, saído do absurdo
e da fé. amor. 
Renato Pessoa
renatopessoa_21@hotmail.com
Estátua
A minha ruga da raiva
risca meu rosto de rusga.
A minha ruga da dúvida
risca meu rosto de busca.
A minha testa é um texto
que escreve e apaga meu susto.
Sim eu tenho esse rosto
que enquanto existe é meu busto.
Carlos Nóbrega
carlosamnobrega@hotmail.com
Não há tempo a perder
com poesia,
inaproveitável
mercadoria
Espaço não há
pra se gastar
com Paul Valéry
Por isso
Alves de Aquino
deaquinoalves@gmail.com
ANUNCIE AQUI
Nasceu o Poema
Atropela um pássaro em voo
Rosto de menino versus bico e penas
Os carros cá embaixo olham de través
Dois corpos que colidem
Na prisão do ar
Acima das cruzes, acima dos topos
Construções, tosca soberba
Livres partilham
na jaula em meu tórax
Este seio azul
Constelado de poemas
Luan Brito de Azevedo
luanbritoda@gmail.com
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23
O Impossível Romance da Franga 
de Granja com o Galo Pé-Duro
Minha querida franguinha, 
Nosso amor é sem futuro...
Peço, não fique abatida:
Entre nós existe um muro!
Você é moça tão fina,
Não sobe em qualquer poleiro...
Vou-me embora, sem destino,
Cantar noutro galinheiro!
Sou rústico como o sertão, 
Sou aço duro de espada!
És frágil como uma rosa
De feição mais delicada...
E, nesse ingrato porvir,
Sofro igual a um aleijado:
Eu sou um filho da plebe!
Tu comes milho importado...
Adeus, adeus, minha amada!
Do meu pai, herdei prudência.
Sou um fruto da natura;
Tu és filha da ciência.
Nasceste em berço de ouro,
Numa linda chocadeira;
Eu sou um frango matuto,
Desses vendidos na feira.
Sou boêmio e o meu cantar
Sempre rompe a madrugada:
Meu corococó saúda
O surgir da alvorada.
Sou um cantador do mato,
Só temo mesmo a raposa.
Ao morrer, quero seu nome
Junto ao meu, na fria lousa...
Não vejo luz no caminho,
Somente o breu do escuro...
Você é franga de granja
E eu sou galo pé-duro.
Klévisson Viana
kleviana@ig.com.br
Mala de Romances
24
Tiragostos
Rafael Limaverde
Nascido em Belém/PA, 1976, natura-
lizado cearense, iniciou sua carreira 
ilustrando para o jornal O POVO. 
Formado em Artes visuais pelo 
Instituto Federal do Ceará (IFCE), é xi-
logravurista, grafiteiro, design e ilus-
trador. Teve sua primeira exposição 
de pinturas e infogravuras intitulada 
“Caos” - Fortaleza (2000) e, depois, a 
segunda, “Xilofagia”. Realizou a expo-
sição individual “Gabinete Místico” 
com 13 aquarelas na Galeria Estoril 
- Fortaleza/CE (2015). É curador da 
exposição Eco Barroco no CCBNB e 
Bestiário Nordestino. 
Pesquisa atualmente desenhos, pin-
turas, gravura e assemblages, tendo 
como referência a cosmovisão reli-
giosa,tanto litúrgica (sacralizada pela 
igreja) como a para-litúrgica (sacrali-
zada pela religiosidade popular), bem 
como o imaginário fantástico, bestial, 
grotesco. Baseia seu trabalho na sim-
bologia, no imaginário, na história, 
nos objetos, templos e rituais que 
compõem a experiência sagrada e 
profana da transcendência humana.
artista 
da capa
24
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