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VOL. 4 | nº 4 Maio de 2019 Suplemento Gratuito ISSN 2596-1373 Realização:Apoio: 2 ARTIGO Alencar e Nabuco: dois polemistas e cavalos Charles Ribeiro Pinheiro FLORES DE AÇUCENA Ode ao Amor do Mar Barros Pinho Minha Terra Caio Porfírio Carneiro Dia da libertação Caetano Ximenes Aragão Invenção Nilto Maciel (in memoriam) GENTE ILUSTRADA Weaver Lima CHAPULETADAS Alba Valdez: em sonho e realidade Lílian Martins RADIADORA Bruno Paulino Ricardo Kelmer Juliana Guedes João Bosco Ribeiro Raymundo Netto Milena Bandeira Marcello Camelo Henrique Beltrão Daniel Glaydson Ribeiro Inocêncio de Melo Filho Íris Cavalcante Dércio Braúna Gylmar Chaves Renato Pessoa Carlos Nóbrega Alves de Aquino Luan Brito de Azevedo CRISTALEIRA Franklin Nascimento: a história de uma biografia perdida Raymundo Netto 04 06 11 07 1512 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA João Dummar Neto presidência André Avelino de Azevedo direção administrativo-financeira Raymundo Netto gerente editorial e de projetos Emanuela Fernandes análise de projetos MARACAJÁ Raymundo Netto curadoria, pesquisa e edição geral Emanuela Fernandes assistência editorial Charles Ribeiro, Lílian Martins, Weaver Lima, Lene Chaves, Daniel Brandão e Raymundo Netto colaboraram nesta edição com textos, cartuns e quadrinhos (exceto os da seção “Radiadora”) Rafael Limaverde ilustrações Amaurício Cortez editor de design Giselle Fernandes projeto gráfico Amaurício Cortez Welton Travassos editoração eletrônica Karlson Gracie tipografia Maracajá revistamaracaja@gmail.com contato Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução sem autorização prévia e escrita. Todas as informações e opiniões são de responsabilidade dos respectivos autores, não refletindo a opinião deste suplemento ou de seus editores. Este suplemento literário mensal é parte integrante do Programa Fortaleza Criativa, em decorrência do Termo de Fomento celebrado entre a Fundação Demócrito Rocha e a Secretaria Municipal da Cultura de Fortaleza, sob o nº 05/2018. ISSN 2596-1373 Fundação Demócrito Rocha Av. Aguanambi, 282/A - Joaquim Távora Cep 60.055-402 - Fortaleza-Ceará Tel.: (85) 3255.6037 - 3255.6148 - Fax (85) 3255.6271 fdr.org.br | fundacao@fdr.org.br Todos os direitos desta edição reservados à: TIRAGOSTOS Raymundo Netto Daniel Brandão Leni Chaves Artista da capa Rafael Limaverde 24 MALA DE ROMANCES O Impossível Romance da Franga de Granja com o Galo Pé-Duro Klévisson Viana 23 Para ler todas as edições da revista Maracajá e assistir a todas as suas videoentrevistas, acesse: fdr.org.br/maracaja 3 Do Alpendre L eitores, amigos e amigas dessas aventuras maracajás, bem-vindos e bem-vindas. Como nas demais edições, trazemos uma parte, apenas, da produção da literatura pintada no cenário cearense. Dela, extraímos contos, poesias e artigos, sempre no esforço de traçar a diversidade e a pluralidade estética e/ou temática, seja de auto- res reconhecidos (vivos ou não), assim como a de iniciantes. A “Mala de Romances” volta nessa edição com Klévisson Viana. Alba Valdez, primeira mulher a ingressar na Academia Cearense de Letras é o tema da “Chapuletadas”, por Lílian Martins. “A História de uma Biografia Perdida” deita na “Cristaleira” Franklin Nascimento, um dos autores de O Canto Novo da Raça, obra inaugural do Modernismo no Ceará, e de Maracajá. “Gente Ilustrada” tem como protagonista do mês, Weaver Lima, artista plástico, quadrinista e fanzineiro. O pesquisador Charles Ribeiro, nos 190 anos de José de Alencar, fala um pouco so- bre o famigerado e polêmico debate jornalístico entre Alencar e Joaquim Nabuco. Na videoentrevista do mês, Daniel Brandão, jornalista, professor e quadrinista, autor de “Os Mundos de Liz”, tiras diárias publicadas em O POVO, e colaborador deste suplemento. A Maracajá é terreno vasto e pertence a todos que dela se apropriarem. Abanquem- se e a devorem! Raymundo Netto Curador e editor de Maracajá O Rio Jaguaribe é uma artéria aberta por onde escorre e se perde o sangue do Ceará. O mar não se tinge de vermelho porque o sangue do Ceará é azul O Rio Jaguaribe é uma artéria aberta (Demócrito Rocha – assinando “Antônio Garrido” – para Maracajá nº 1) 4 Artigo Alencar e Nabuco: dois polemistas e cavalos U ma das mais instigan- tes polêmicas da litera- tura brasileira ocorreu entre José de Alencar e Joaquim Nabuco. O mote da briga foi a repercussão negativa da peça O jesuíta, escrita por Alencar em 1860, somente encenada em 1875. O espetáculo atraiu pouco público ao Teatro São Luís, no Rio de Janeiro, saindo de cartaz após a terceira apresentação. Com esse fracasso, a polêmica se instaurou quando Nabuco, anonimamente, escreveu um texto ácido contra a peça no jornal O Globo. Esse confronto verbal é significativo para ob- servamos a tensão na construção da tradição literária brasi- leira, pois Alencar já era considerado o “chefe da literatura nacional”, segundo Afrânio Coutinho. O desafiador, Joaquim Nabuco, era jovem aristocrata, filho de um senador imperial, que passou uma longa estadia na França e, para se afirmar como novo escritor, imprescindível era demolir o “gigante”. Nabuco iniciou a série de ataques com a coluna “Aos do- mingos”, no dia 3 de outubro de 1875, com o intuito de “fazer um minucioso exame da obra literária de Alencar”. Com a repercussão do texto, revelou sua identidade e escreveu mais sete artigos. Impetuosamente, acusou o autor de Iracema de estar em decadência literária; de ser um escritor de gabinete que “desconhecia” as paisagens brasileiras que pintava; de en- tregar um livro mais falso do que outro e de só ter sucesso na imprensa, pois coagia os jornalistas com seu prestígio político. José de Alencar, aborrecido com as críticas, defendeu a sua peça e, ao descobrir a identidade do seu algoz, seguiu es- crevendo mais artigos irritadiços no mesmo jornal. A troca de desaforos se estendeu por três meses: Nabuco, aos domingos, e Alencar, às quintas. A rt ig o 5 O mais interessante dessa polêmica é a comparação entre escritores e cavalei- ros, por Nabuco. Ele comparou a ativida- de literária a uma corrida e a obra de cada autor a um cavalo, tendo como hipódro- mo principal, o Rio de Janeiro. No concorrido turfe do romantis- mo, cujo prêmio era a “popularidade” entre os leitores, citou vários corredores como Gonçalves de Magalhães, Sales Torres Homem, Porto Alegre, Pereira da Silva, contudo, declarou que o “jo- ckey do Guarani” se encontrava muito adiantado e o único que lhe estava pró- ximo era Joaquim Manuel de Macedo. Na metáfora do crítico, os cavalos de Alencar foram vencedores porque, além do público ser diminuto, os con- correntes fraquíssimos. Em contrapartida, Alencar com a missão de “arrancá-lo do êxtase em que vive como um narciso namorado de si” usou vários epítetos para desqualificá- -lo como escritor, taxando-o de “folheti- nista parisiense”, “tribuno gorado”, “ma- caqueador da língua francesa” e, para ser alvo constante da atenção pública, seus textos nos jornais serviam como um “tônico” ao “orgasmo de vaidade” que impacientemente cultivava. Sobre a metáfora suscitada, Alencar como “jockey” afirma que se sua Carta sobre Confederação dos Tamoios foi uma égua voraz, enquanto o irrelevante “Sr. J. Nabuco” não pas- sava de um dr. Fausto montado em um cabo de vassoura, “a cavalgar por esses ares a fora, levando por pajem um Mefistófeles, bom diabo, fanfar- rão, mas inofensivo”. Anos depois, no livro Minha Formação, Joaquim Nabuco reconhe- ceu ter sido bastante audacioso e ima- turo em tentar demolir José de Alencar, que também tinha uma face prepo- tente. Os dois foram intelectuais que contribuíram inestimavelmentepara a cultura brasileira, porém o embate verbal estampado nos jornais nos reve- la que nem tudo são flores em relação à Literatura, constituindo-se também num minado espaço de concorrência. No afã de vituperar um contra o outro, os escritores se comportaram mais como cavalos do que cavaleiros. Charles Ribeiro Pinheiro zefiro_cr@hotmail.com Professor de Literatura, com douto- rado em Literatura comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com a tese “Rodolfo Teófilo polemista: a crítica polêmica como estratégia de glorificação literária” (Capes). Foi coor- denador do projeto de extensão “O en- tre-lugar na Literatura cearense” (UFC), além de atuar como revisor, redator, roteirista e autor de livros didáticos de literatura. N a m et áf or a d o cr ít ic o, o s ca v al os d e A le n ca r fo ra m v en ce d or es p or qu e, a lé m d o p ú b li co s er d im in u to , o s co n co rr en te s fr aq u ís si m os . 66 Flores de Açucena 6 Dia da libertação pelas vertentes da noite a manhã já se fazia quando Iansã abriu as grades das cadeias da Bahia pra ver Bárbara passar por dentro da luz do dia dia pleno de orixás cavalgando a ventania ogun oxum olorun vento alvo alvenaria de cabelos cor de cal que de seu rosto escorria do corpo dos encantados a noite se fez em dia tocaram todos os sinos das igrejas da Bahia pra ver Bárbara passar por dentro da luz do dia Caetano Ximenes Aragão Invenção De tanto não te ver, aflito o peito, desesperado, resolvi inventar-te. Hoje duvido se eras desse jeito e se de fato és, no todo ou em parte. De tanto não te ver, nunca te ver, ou por sumires tão furtivamente, ou minha sorte bem mesquinha ser, achei por bem criar-te novamente. Quem mais existe? Qual mais delas noto? Talvez a que me fez seu criador, talvez a que me fez versejador. Não sei a quem amor eu mais devoto: se a ti que foges − minha inspiração, se a ti que chegas − minha criação. Nilto Maciel (in memoriam) Minha Terra Minha terra querida com laço de fita eu rimaria sem pressa. A minha terra é áspera é tempo que se prolonga desde avoengos tropéis que o sopro do vento não mata em espaço tão corrido ao embalo desta rede. Meu pé borrando a parede e o ranger dos armadores pra cá pra lá pra lá pra cá marca o tempo presente tic-tac ao correr do tempo que firma o mourão na terra e com ela perpetua currais porteiras campos espelhos de águas tranquilas paredes buscando os céus pé direito oito metros janelas portas rangentes alpendre aberto aos caminhos retratos que fitam austeros esperam muito de mim e me eternizam aqui na argila deste chão. Caio Porfírio Carneiro Ode ao Amor do Mar Gosto do mar pelo absurdo sensual de suas sereias pelo encrespar do vento no ventre de peixes abomináveis pelo lésbico despudor das ondas violentando as águas gosto do mar absorvendo sol na máscara de bronze dos pescadores gosto do mar mistério azul das mulheres-marinhas visivelmente estranguladas gosto do mar concupiscente e paradoxal em seus horrores. Barros Pinho 7 Q uando o assunto é a presen-ça feminina nas academias literárias no país, muito se fala sobre Rachel de Queiroz (1910-2003), a primeira mu- lher a ingressar na Academia Brasileira de Letras (ABL). Mas este aparente pioneirismo não nos deveria ser um motivo de orgulho e, sim, de vergonha! Pensar que somente em 1977 permitiram que uma mulher pudesse ocupar o espaço de poder1 da mais prestigiosa academia literária nacional é, para 1 A expressão vem dos postulados teóricos de Pierre Bourdieu sobre os campos de produção cultural (intelectual, científica e artística) e as suas relações de poder, explícitas ou implícitas, conscientes ou in- conscientes, em que permeiam todas as relações humanas, em toda parte do espaço social. Alba Valdez: em sonho e realidade Chapuletadas C h ap u le ta d as 8 nós brasileiros, um advento tardio frente a todas as demais mulheres escritoras que a antecederam e que muito contribuíram para as letras nacionais, até mesmo para a própria edificação do projeto artístico-literá- rio da ABL como, por exemplo, Júlia Lopes de Almeida (1862 - 1934). Neste sentido, apesar da relevân- cia da romancista de O Quinze, poucos saberiam dizer qualquer fato a mais sobre a presença dela e de quaisquer outras mulheres nas academias e agre- miações literárias no Brasil. Bem pou- cos, ainda, saberiam informar quem teria sido a primeira escritora cearen- se a ingressar na primeira academia de letras no país, a Academia Cearense de Letras (1894). Pois bem, esta mulher foi Alba Valdez (1874-1962), e é para ela e a todas as mulheres silenciadas e avil- tadas em seus trabalhos, relegadas à invisibilidade do esquecimento biblio- gráfico, a quem dedico este artigo. Nascida Maria Rodrigues Peixe, no sítio Espírito Santo, em São Francisco de Uruburetama, atual Itapajé, a 12 de dezembro de 1874, ado- taria mais tarde, com o intuito de que os pais não soubessem de seu ofício de escritora, o pseudônimo “Alba Valdez”. “Alba” em homenagem a sua gran- de amiga, Alba Pompeu (1878 - 1949), N es te s en ti do , a pe sa r da r el ev ân ci a da ro m an ci st a de O Q ui n ze , p ou co s sa be ri am di ze r qu al qu er f at o a m ai s so br e a pr es en ça d el a e de q u ai sq u er ou tr as m u lh er es n as a ca de m ia s e ag re m ia çõ es li te rá ri as n o B ra si l. C h ap u le ta d as 9 filha de Thomaz Pompeu (1852-1929). O sobrenome “Valdez” foi retirado do antigo Dicionário Valdez da Língua Portuguesa. Em 1877, seus pais passa- ram a residir em Fortaleza, devido à grande seca daquele ano. Em 1889, for- mou-se professora pela Escola Normal e, em 1922, ingressou na Academia Cearense de Letras. Infelizmente, em 1930, a ACL passou por uma reestru- turação e, nela, o seu nome foi retira- do da composição da entidade, retor- nando somente em 1937, quando sob nova reestruturação. O triste episódio rendeu um dos artigos mais belos es- crito pela escritora, intitulado “De pé”, publicado no Jornal do Comércio, de Fortaleza, em 22 de maio de 1930. Além da ACL, Alba Valdez per- tenceu ao Centro Literário, Instituto do Ceará, Boêmia Literária, Iracema Literária e à Ala Feminina da Casa de Juvenal Galeno. Seu primeiro livro, Em Sonho... Fantasias foi publicado, em 1901, quando tinha apenas 26 anos. A obra marca também o primeiro re- gistro literário do gênero crônica em uma publicação impressa no Ceará e é o resultado de uma seleção feita pela própria autora dos seus textos publi- cados no Diário do Ceará. Além de crô- nicas, a obra contém também contos e alguns deles ganharam tradução para o sueco, pelo poeta Göran Björkman (1860-1923) e para o francês, sendo o seu conto “A Carta” publicado no jor- nal Le Matin, de Paris. Em 2017, o livro ganhou segun- da edição para a Coleção Clássicos Cearenses, publicado pelas Edições Demócrito Rocha. Ironicamente, a nova edição ganhou prefácio da escri- tora Ângela Gutiérrez (1945), que se tornaria, posteriormente, a primeira mulher a presidir a ACL. Seis anos de- pois da sua estreia na literatura, Alba Valdez publicou Dias de Luz, recor- dações da adolescência, obra até hoje ainda não reeditada. O pioneirismo da escritora não foi somente na literatura, mas tam- bém nas áreas da educação e do jorna- lismo, nas quais colaborou escrevendo para jornais e revistas em Fortaleza e em outras cidades do Brasil. E m 2 0 17 , o li v ro g an h ou s eg u n da ed iç ão p ar a a C ol eç ão C lá ss ic os C ea re n se s, p u bl ic ad o pe la s E diçõ es D em óc ri to R oc h a. C h ap u le ta d as 10 É uma das fundadoras e presi- denta da Liga Feminista Cearense (1904), onde lutou pela emancipação feminina e pelo direito ao voto, e há quem diga que ela serviu até de inspi- ração ao pintor Raimundo Cela (1890- 1954) para a imagem feminina da Liberdade no célebre painel “Abolição dos Escravos”, de 1938, fato lembra- do no discurso de posse de Eduardo Campos (1923-2007), na ACL, em 1963, na cadeira de número 22, antes pertencido a Alba Valdez. A história surpreendente de Alba Valdez, marcada pela luta em defesa dos direitos da mulher, nos encoraja a seguir adiante, pois onde mais r-exis- tam “mulheres que, como eu, moure- jam na seara das letras”2 persistiremos na luta, lembrando que ninguém solta a mão de ninguém! 2 Trecho do artigo “De pé” de Alba Valdez. Lílian Martins l il ianabreu_mar t ins@yahoo.com.br Jornalista, tradutora, professora, pes- quisadora e militante em Literatura Cearense. Mestre em Literatura Comparada pela UFC com a disser- tação vencedora do Prêmio Bolsa de Fomento à Literatura da Fundação Biblioteca Nacional e Ministério da Cultura (2015) e do Edital de Incentivo às Artes da Secretaria de Cultura de Fortaleza (Secultfor) em 2016. Desde 2008, apresenta e produz o programa literário semanal Autores e Ideias da Rádio FM Assembleia (96,7 MHz) da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará. Escreve, mensalmente, sobre música e literatura para a coluna: “Ao pé do ouvido: Baladas para Leitores” do Blog Leituras da Bel, vinculado ao Portal O POVO Online. Para conhecer mais de Alba Valdez Em Sonho... Fantasias, de Alba Valdez (EDR), Coleção Clássicos Cearenses O livro pode ser adquirido na Livraria Dummar Endereço físico: Av. Aguanambi, 282, Joaquim Távora (sede do jornal O POVO) Endereço virtual (e-commerce): livrariadummar.com.br É u m a da s fu n da do ra s e pr es id en ta da L ig a Fe m in is ta C ea re n se (1 90 4 ), on de lu to u p el a em an ci pa çã o fe m in in a e pe lo d ir ei to a o v ot o 11 Weaver Lima Cearense, iniciou no meio artístico criando e integrando o grupo Seres Urbanos, responsável pela edição, na década de 1990, de uma série de fan- zines que se tornaram referência no meio alternativo brasileiro. Em 2015, publicaria Seres Urbanos: antologia do quadrinho underground cearense, eleito melhor livro de HQ no prê- mio Miolo(s), organizado pela editora Lote 42 e pela Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo. Desde o início dos anos 2000, Weaver dedica-se às artes visuais. Sua exposição individual “Weaver Discos: pop descarado” circulou, entre 2012 e 2013, em seis capitais brasileiras, além de Itália e Portugal. Desde 2011, realiza o projeto de arte itinerante “RASTRO”, percorrendo ci- dades do interior do estado do Ceará e realizando intervenções artísticas. Em 2016, uma exposição sobre o pro- jeto foi selecionada no programa na- cional da CAIXA Cultural. A ilustração “História Oral III” (spray sobre recorte de madei- ra, 67 x 53cm) integra a série RASTRO. Gente Ilustrada 11 C ri st al ei ra 12 Franklin Nascimento: A o recebermos a indicação de Sânzio de Azevedo e a autori- zação do, então, secretário da Cultura, Auto Filho, para a publi- cação, como parte integrante da série Luz do Ceará, coleção Nossa Cultura, do título O Canto Novo da Raça, poesias de Jáder de Carvalho, Franklin Nascimento, Mozart Firmeza (Pereira Júnior) e Sidney Netto, obra original- mente impressa pela tipografia Urânia em 1927, ficamos bastante felizes. Sentíamos que estávamos conseguindo trazer à tona, dos porões escuros do nosso tradicional esquecimento, obras de rele- vância que contribuiriam, doravante, para a compreensão da for- mação artística e literária cearense. Vinha-nos sempre a questão: como era possível uma obra, que conforme bem nos define o prof. Sânzio, é o livro inaugural de uma corrente literária, o Modernismo, no Ceará, ter que es- perar 84 anos para ter direito a uma segunda edição? Pois bem, Cristaleira 12 a história de uma biografia perdida C ri st al ei ra 13 Franklin Nascimento: durante o processo de organização e pu- blicação de tal livro, teríamos outras ale- grias que gostaríamos de compartilhar agora com, você, leitor. Quando lemos na apresentação de Sânzio de Azevedo, sobre o poeta Franklin Nascimento, um dos quatro au- tores da referida obra, “(...) aquele cujos dados biobibliográficos são mais escassos. Nascido em Fortaleza no dia 21 de abril de 1901, não se sabe onde e quando fale- ceu (...)”, nos preocupamos. Isto, pois, reco- nhecido o trabalho incansável, honesto e sério de pesquisador, aceitamos tal afir- mativa como uma provocação que justifi- caria ainda mais a edição da obra. E assim o fizemos. Passamos a buscar na internet e conversar com outros pesquisadores sobre o possível paradeiro de Franklin. Tínhamos sempre a impressão de que ele teria saído do Ceará, o que justificaria o seu “desaparecimento” e o desconheci- mento de sua continuidade na literatura. Um dia, porém, quase por acaso, encontramos numa página da web um comentário de uma neta de Franklin, Karla, residente em Belém do Pará, citan- do qualquer coisa a respeito do avô que era poeta no Ceará. Tentamos rastreá-la e conseguimos descobrir o seu filho, Felipe, um jovem que tinha um blogue no qual postava crônicas. Por meio de uma rede social do qual faz parte, escrevemos, fa- lamos sobre a proposta de publicação do livro do bisavô, a sua importância e a necessidade de resgatarmos a sua bio- grafia, ora inconclusa. Com dias, con- seguimos conversar, por telefone, com o filho de Franklin, Túlio, residente em Recife, e depois com Tereza, residente em Fortaleza, e, desde então, muitos dos mis- térios sobre o suposto “paradeiro” come- çaram a ser naturalmente desvendados. O primeiro deles foi descobrir que o Franklin Nascimento, na realidade, se chamava João Abreu do Nascimento. “Franklin”, um pseudônimo. Cremos, uma homenagem ao seu pai Abdon Franklin do Nascimento. Por meio de contatos telefônicos ou e-mails, além da única foto de Franklin em juventude, a famí- lia nos apresentou a sua origem, nome dos pais, histórias da infância, trajetória profissional e familiar e, inclusive, não poderia deixar de ser, a data de seu fa- lecimento, em 24 de janeiro de 1978, e o seu local, fato que nos causou maior as- sombro: em Fortaleza, Ceará! Ou seja, o Franklin, ou João, nasceu, viveu e morreu aqui, “debaixo de nossas barbas”, como se diz. Ou seja, foi “esquecido” ainda em vida. Estranhou-nos a família — teve 10 filhos — não ter conhecimento da exis- tência de O Canto Novo da Raça, nem de seus poemas publicados neste livro. “Não falava sobre isso (poesias, livros) em casa”, nos afirmou o filho. Asseguraram-me C ri st al ei ra 14 não saber de outra publicação qual- quer de Franklin. Perguntei-lhes sobre Nuvem de Gafanhotos, título que encon- trei na Revista de Antropofagia nº 6, de outubro de 1928, dirigido por Antônio de Alcântara Machado e gerenciado por Raul Bopp, em São Paulo. Na revista, o seu poema “Pomo Roído” aparece como se extraído de Nuvem de Gafanhotos. Provavelmente, supomos, o título provi- sório de um livro que o poeta pensava em publicar e não o fez. O fato é que Franklin, com pouco, desapareceu do circuito literário, sabe-se lá por que razão. Depois do lançamento de O Canto..., além de pequenas contribui- ções na revista Movimento e na Revista de Antropofagia, foi um dos fundadores de Maracajá (1927) e Cipó de Fogo (1931), e casou-se, em 1933, com Francisca Aguiar, a Francinete. Inclusive, me foi relatada a história muito romântica da perseguição do jovem e apaixonado João, em bondes, à futura esposa. Pormeio de um recorte de jor- nal, descobrimos que Franklin, que gostava de anedotas e as escrevia, participou da fundação da Academia Cearense de Humoristas, com sede na Associação Cearense de Imprensa, já na década de 1960. Também soubemos que chegara a se corresponder com Carlos Drummond de Andrade, “poeta amado meu”, como a ele se dirigiu em primeira carta, em 1974, e que obteve resposta. Dos filhos, pouco mais conseguimos além do que se lê na biografia publicada no livro. João, que atuava como conta- bilista, era simpatizante do comunismo, ateu e boêmio, nunca apegado às coisas materiais. O filho Túlio se recorda de ter crescido vendo na sala de casa, pendu- rado em local de honra, o retrato de Luís Carlos Prestes. Como poeta que era não nos surpreende seu comportamento de estranhamento e desajuste a este mundo, a sua sensação de solidão e uma tal angús- tia que parecia nunca se acabar. Na carta a Drummond, felizmente mantida em fotocópia — e ainda desco- nhecida por alguns de seus familiares —, todos esses sentimentos são devidamente revelados, como se Franklin soubesse que a outro poeta ele poderia fazê-lo, e se tra- tando de Drummond, com certeza o en- tenderia. Na carta ele fala de sua velhice (estava com 73 anos), da sua tristeza por não ter “tutu” para publicar um livro com seus versos acumulados de uma vida, da sua dificuldade de pedir a ajuda de ami- gos para fazê-lo, da sua intenção de levar em seu caixão os versos que nunca iria publicar — o que de fato aconteceu, por conta da obediência da filha —, e anexou alguns deles, além de quadrinhas de sátira e humor. De quebra, é claro, arriscou pedir a Drummond um livro seu autografado. Graças ao empenho da família de Franklin, que sempre nos atendeu prontamente, conseguimos elabo- rar a nova biografia de João Abreu do Nascimento, o Franklin Nascimento, um dos autores de O Canto Novo da Raça, um pequeno, mas para quem sabe bem o que é isso, um grande serviço para nossa historiografia literária. Para mim, particularmente, poucas são as emoções que podem ser compara- das à de se ler, mesmo por telefone, um poema desconhecido de um pai a uma filha, e ter a certeza de que, após tantos e tantos anos, a voz do poeta se fez imortal, forte, clara e melódica transcendendo a tudo, inclusive à vida, e tudo aquilo que ela, pessoalmente, lhe negou. Raymundo Netto raymundo.netto@gmail.com O Canto Novo da Raça, 2ª edição, série Luz do Ceará, da Coleção Nossa Cultura da Secult (2011), com coordenação editorial, capa, projeto gráfico, revisão, digitação e apêndice de Raymundo Netto, apresen- tação de Sânzio de Azevedo, diagramação de Elias Saboia e ilustrações de Audifax Rios (90 páginas). R ad ia d or a 15 Radiadora As Almas Penadas do Açude Grande Foi numa noite de chuva forte, com re- lâmpagos e trovões, que ouvi pela primei- ra vez ao redor de uma fogueira junto aos meus primos a horripilante história das almas penadas do açude grande contada pelo velho Manuel Rosendo, vaqueiro da fazenda Forquilha – propriedade do meu avô – e um dos maiores contadores de casos de assombração em toda a redon- deza do vilarejo de Boa Fé. Manuel Rosendo dizia que o açude grande, aquele mundão de água, quando nos dias de cheia era atração garantida para os pescadores, os banhistas, os ani- mais, e, claro, para os moradores do vi- larejo, sobretudo para as crianças que se divertiam, apesar dos perigos. As histórias sobre as almas penadas do açude grande eram antigas, reforçava o velho narrador. E iniciaram no dia em que um casal de crianças, Mariazinha e Pedrinho, filhos do bodegueiro Zé Lins, sumiram misteriosamente aos olhos da mãe zelosa que sempre foi dona Lúcia e que entrava agora aflita e aos gritos na bodega do marido: – Zé me acuda! Me acuda! Não consigo achar os meninos. Já procurei em tudo que foi canto, não sei onde diabos se meteram. Sumiram desde manhãzinha, quando fui estender a roupa no cercado. E além do mais tô com uns pressentimentos. – Calma, mulher! Calma! Não fale em diabo, que isso atrai coisa ruim. Deixe de tanta besteira. Devem de está por aí nos terreiros, brincando com o menino do cumpadre Luís, eles aparecem já. – respondeu sem demonstrar muita preo- cupação Zé Lins, tentado também dessa forma acalmar a mulher. Deu a noite e os meninos não apa- receram. A mãe caiu nos prantos receosa de suas premonições. Zé Lins fechou a bodega, foi acima e foi abaixo, e não deu vista de nenhum sinal dos dois filhos, acabando por reunir todos os homens do vilarejo, que solidários ganharam os matos com lampiões acesos no caminho do açude grande, pois foram informados pela preta velha Nastácia que as crianças tinham sido vistas brincando na beira d’água no fim da tarde. Os corpos das crianças foram encontrados por um pescador, boian- do perto da parede do açude, naquela mesma noite, enganchados numa árvore. Os olhos esbugalhados, a face carcomida pelos pequenos peixes e as marcas indis- tintas de machucados espalhadas pelos corpos deixou todos atônitos e perplexos. Nunca ninguém conseguiu entender o que se deu com os filhos de seu Zé Lins. Teria alguém matado aquelas crianças e jogado os corpos na água? As crianças teriam ido nadar e se afogado? Nunca ninguém soube responder. E por que tra- gédia tão sofrida se abatera sobre aquela pobre família? Por que criaturas tão pue- ris teriam sofrido tanta violência? O tempo passou e logo surgiram as primeiras histórias das aparições das almas das crianças à noite, vestidas de branco com velas nas mãos, na beira d’água do açude grande. Zé Lins ficou sabendo das supostas aparições pelo cochichado de seus clien- tes na bodega, mas não acreditou naquilo até que sua mulher numa noite lhe disse na hora do jantar: – Zé, eu vi nossos filhos. Eu vi nos- sos filhos mortos! Eles querem te ver. O bodegueiro não conseguiu en- golir mais nada. Insone, perturbado com as palavras da mulher ressoando na cabeça e a lembrança doída dos fi- lhos. Ela insistia: – Zé, eu vi nossos filhos. Eu vi nos- sos filhos mortos! Eles querem te ver. Ele saiu de casa sem que ninguém o visse e seguiu no rumo do açude grande. No outro dia pela manhã, suas rou- pas, sua faca e seu rosário, que costuma- va carregar no pescoço, foram encontra- dos numa canoa que vagava solitária no meio do açude. Porém o seu corpo nunca foi encontrado. Ainda hoje contam alguns pes- cadores mais antigos que, ao pescar no açude grande em noite de lua alta, é pos- sível esbarrar com a alma do homem na canoa a perguntar por seus filhos, Mariazinha e Pedrinho. Bruno Paulino bruno_enxadrista@hotmail.com R ad ia d or a 16 Cem Vezes Mais Essa Moça ‘Tá Diferente Deus é fiel, tá sabendo? Prova disso é que semana passada abriu uma igreja evangélica aqui pertinho. Toda noite tem culto, uma ruma de carrão importado na frente. Chance boa de faturar um troco, ajudar a tia a pagar o aluguel do barraco, ela que me cria desde que mamãe morreu. Morreu no corre- dor do hospital, gosto nem de lembrar, bola pra frente, meu irmão. Primeiro, segundo, terceiro dia guardando os carros da igreja, faturei nada. Eles não tinham dinheiro, só cartão. Mas sempre diziam que eu orasse muito que Deus proveria. Tinha um que dizia assim, “Precisa olhar o carro não, moleque, Deus tá vigiando”. Era o carrão mais bacana de todos. Olhei no vidro, tinha um adesivo, “Foi Deus que me deu”. Uma noite descobri que o dono do carro era o pastor da igreja. Descobri porque entrei lá acompanhando minha tia, ela queria orar pelo primo que os polícia mataram por engano numa batida dia desses. O pastor estendeu um bauzinho na nossa frente e disse que aquela noite era especial, que Deus estava ali ao lado dele, e que a gente receberia cem vezes mais o que a gente botasse naquele bauzinho.Minha tia enxugou as lágrimas, abriu a bolsa e contou as moedas. Dava uns dez reais, era tudo que ela tinha. Ela botou as moedas no bauzinho e rezou. Eu olhei nos olhos do pastor. Ele repetiu, sorrindo, “Cem vezes mais, meu filho, tenha fé”. Eu acreditei nele, claro. E botei uma nota de vinte. No dia seguinte, quando o pastor saiu da igreja, cadê o carrão? Tava lá não. O lugar mais vazio do mundo. Eu também não tava. Naquela hora eu tava dirigindo o carro dele, o Isaías me esperando com dois milzim na mão. Deus é fiel. Ricardo Kelmer ricardokelmer@gmail.com Desde a infância, Alan e eu nos entreolhávamos, com muita doçura. Ao completarmos quinze anos, passamos a frequen- tar a Sociedade Lírica do Belmonte, criada pelo padre Ágio Moreira de Deus. Lá, comecei os estudos de flauta transversal e Alan tocava violão clássico. Os tempos tinham mudado, saímos do Cariri e nos mudamos para Fortaleza, o ano era 1969 e o casamento ia muito bem. Estudávamos, agora, no Conservatório de Música Alberto Nepomuceno. Neste espaço, conheci a holandesa Judy. Ela tinha olhos de piscina, usava roupas folgadas e fai- xas florais na cabeça. Alan sentiu que algo estava muito estranho. Com Judy, aprendi a renovar os valores dentro de uma casa. Por isso, pas- sei a reivindicar direitos iguais em relação às tarefas domésti- cas. Em poucos dias, o café de Alan tinha o sabor mais apurado que o meu, deixando o lar inteiro cheirando à baunilha. Pelas calçadas, as pessoas comentavam baixinho: “essa moça ‘tá di- ferente”. Passei a sair de casa sem sutiã, o que era um escânda- lo e usava uma enorme peruca loira. Neste mesmo ano, fui convidada pelo pessoal do Ceará a me apresentar em alguns festivais. Não parava mais em casa, o que fez Alan entrar em total desespero. Às vezes, ele preparava alguns jantares românticos, mas quase sempre eu estava de pileque, sem muita fome, escutando, no último volume, uma velha radiola, os discos dos Mutantes e da Gal Costa, saindo a rodopiar pela casa. O ano estava muito frutí- fero e tinha feito amizades de toda uma vida. Pensei em me separar, mas Alan fazia uma boa comida, dividia as tarefas de casa, era amoroso e o olhar doce permanecia. Então, resol- vi dar uma nova chance, com o combinado de que não inter- ferisse na minha carreira artística. R ad ia d or a 17 O Relicário “Vão-se os anéis, ficam os dedos.” Minha avó repetia estas palavras sempre que um objeto que nos era que- rido se perdia ou acabava em pedaços. Dizia para nos irritar, ou assim pare- cia-nos, em meio à fútil ira da privação que, na falta de adequada perspectiva, tomava proporções dramáticas. Seu sábio e meigo riso de divertida compreensão, como o de quem pacien- temente ouve as fabulosas queixas de uma criança frustrada com suas ques- tões cotidianas, nos soava sarcástico e cruel. Aos nossos ouvidos, suas palavras de conforto eram descarada afronta. A perspectiva, contudo, hora ou outra, em catarse ou relutante rendi- ção, nos arrebata, revoluciona e en- vergonha, e o faz com distinto talento para o drama. “Vão-se os dedos, ficam os anéis” Reconheci a desenhada letra pre- enchida de significado no ordinário pedaço de papel pardo que encimava a pequena caixa azul-marinho de pape- lão mantida fechada graças a um fino elástico prateado preso à sua face infe- rior, envolvendo-lhe precariamente. O conteúdo era algo mais curioso. Um caderninho em ruínas, de miolo nobre não-pautado, estava pre- enchido de notas sobre tudo e coisa nenhuma, palavras que, há muito, per- deram seu significado. Um passaporte surrado narrava, como um romance gráfico, contos cuja memória fora varri- da pelo apressado correr dos anos. Um ingresso de cinema, quase completa- mente apagado, contava de uma ami- zade morta precocemente. Não havia fotos, apenas objetos que, apartados da alma que os manti- vera reunidos por tanto tempo, diziam muito pouco de seu real valor, como que relutantes em revelar os segredos de sua falecida curadora. No fundo do recipiente, uma joia – um relicário dourado onde lia-se, gravado em relevo, “tempus fugit”. Ao toque, abriu-se, revelando um pedaço envelhecido de papel, dobrado incontá- veis vezes à forma de um pequeno qua- drilátero intocado por décadas. Inscrita em seu interior uma confissão desespe- rada de uma mente humana corroída pelo medo. Medo de ver escorregar por entre seus dedos a felicidade que custa- ra a conquistar e que julgava imerecida. Encantada, encarei uma última vez o conteúdo, ora devassado, da caixa de relíquias anônimas, na certeza de que os medos de sua colecionadora ja- mais escaparam às fronteiras daquele débil bilhete. João Bosco Ribeiro joaobosco_neto@yahoo.com.br Em novembro, criei um grupo de rock progressivo, o Apolo Crazy, com- posto por garotas insubmissas, Judy era a baterista. O regime militar pres- crevia um bom comportamento nas apresentações de bandas. O grupo to- cava apenas um som experimental e não tínhamos problemas com a polícia, aparentemente. Era uma quarta-feira, próxima aos festejos natalinos, e a banda foi se apresentar na Rádio Dragão do Mar. O programa chamava-se “Hoje é dia de Rock”, que contava com o apoio popu- lar e tinha muitos fãs. Judy costumava falar em nome de todas nós, mas senti uma vontade de pegar o microfone e manifestar alguns pontos de vista sobre as últimas perseguições e repressões aos artistas nordestinos. Não deu outra, quando saímos do estúdio da emissora, os militares nos atacaram com trucu- lência e prenderam os radialistas. Depois de realizar um depoi- mento para o Doi-Codi, Judy voltou para casa, transtornada. Enquanto eu acabei ficando. Duas semanas depois, meu marido saiu pelas ruas, entregan- do panfletos pela cidade, em tempos de chumbo, com o seguinte título: “Eu, Alan Ferreira, procuro minha esposa.” Juliana Guedes guedesbjuliana@gmail.com R ad ia d or a 18 De Pedra Mesmo não suportando a loucura da mulher, vê-la partir lhe seria insuportável. Uma noite, durante conflituoso jantar, a drogou. Tomou-a adormecida nos braços e a levou para o mato, quase em frente à lagoa, ainda visível à janela de sua casa. Lá chegando, amarrou-a rente a um tronco estreito de árvore, onde previamente havia preparado baldes com água, areia e cimento. Desacordada, ela respirava suavemente, balbuciando seu nome e deixando que a lua revelasse a ternura no rosto, à medida que ele punha e moldava sobre seu corpo a massa ainda molhada do cimento. Começou pelos pés. Aos poucos, as pernas, o tronco, os seios, os braços, até finalmente cobrir- lhe toda a cabeça. Amanheceu. O Sol o encontrou sentado no capim, ainda trêmulo, com uma pequena espátula à mão e olheiras mar- cadas de despedida, enquanto iluminava e aquecia a figura tosca daquela mulher. Foi quando teve a impressão de ouvir dela um soluço abafado, quase como um estalo. Acordara? Todos os dias, seria a primeira imagem que veria ao le- vantar. Horas e horas à janela. À noite, tinha pesadelos. Ouvia os seus desaforos, as suas lamúrias. Imaginava que ela lá não mais estaria, que mesmo em pedra pudesse lhe escapar, se lançando nas águas lodosas da lagoa. Mas não. Ela permanecia ali, imóvel, como encantada, a seu alcance, aquecida para sempre em seu amor e zelo. E assim foi durante meses. A ausência dela era quase despercebida. Trabalhava em casa, poucos amigos, filha única de mãe idosa. Quando muito, um telefonema — “Ela não está. Quer deixar recado?” — Não queria. Sabia que a ingrata não retornaria. Aos finais de tarde, aguardava a noite ao lado da mulher. Falava sobre seu dia, contava-lhe novidades, a presenteava, confessava a falta que lhe fazia e, por fim, numa loucura pró- pria e sincera dos amantes, a cobria em beijos amorosos, se agarrando àquele corpo frio, áspero e inerte. Em uma noite quente, porém, ele acordoue viu ao pé de sua cama a mulher de pedra. Em silêncio, e através de seus olhos nus e cinzentos, parecia mirá-lo, até jogar-se sobre ele, e, com as mãos, tomar-lhe fortemente o pescoço e o ar. Valendo-se do vagar desajeitado da estátua, ele conseguiu, com esforço, escapar-lhe. Ainda torpe e surpreso, pegou uma marreta e a golpeou no abdome. O corpo começou a rachar. Abriu-se de meio a meio. “O que foi que eu fiz, meu amor? O que foi que eu fiz?”, repetia. A estátua fez-se em pedaços e de seu interior apenas um grito moribundo, aterrorizante, de uma agonia jamais ouvida igual. Ele, abalado, jogou-se sobre os escombros, a procurar a mulher, qualquer pedaço dela, mas nada encontrou. Saiu gri- tando, com restos de entulho nas mãos, e jogou-se na lagoa, pondo-se no fundo da lama com o peso de sua própria cons- ciência e da imagem perdida de sua mulher amada. Raymundo Netto raymundo.netto@gmail.com R ad ia d or a 19 Para Esquecer Não comporei para ti poemas, para que tua imagem se desfaça aos poucos, a clareza da pele imersa na luz desta terra, para que tuas linhas se apaguem no ar, sem delícia, nem memória, nem fantasias, para que teus gestos – que dançam! – venham, com o tempo, a parar. Henrique Beltrão beltraohenrique@gmail.com Dormência eu não tenho medo da chuva. eu tenho medo é de não sentir os pingos caindo no meu corpo cansado. Milena Bandeira milenamaquinadeescrever@gmail.com Maracaiá avia, avoa, vaia azunha, arranha, assanha ruge, urge, ressurge abocanha, arreganha, entranha arenga, assunga, rasga afronta, confronta, reconta enfeita, descatita, empriquita cutuca, papoca, provoca frondoso, garboso, lustroso afrontado, espritado, inzabuado porreta, arrombado, aloprado alencarino, genuíno, malino arisco, risco, trisco atento, retinto, maracajá Marcello Camelo marcellocamelo@bol.com.br R ad ia d or a 2020 Tempo Herança Cirurgicamente se amputa coração dopado de veado preto. Proibicionismo inventado para matar pobre e lavar Grana. Em nome da REAL generosidade: Primeira-Dama, libras maçônicas, amazonas, etnocídio, fugas brancas. – Larga meu corpo, Estado do caralho! diz potiguar enjaulada, cujo CRIME: monetizar e ingerir cultura natural, mijada maconha coca crack mec feice; das redes sociais ela trafica conversões à Facção Paulista e inefáveis códigos éticos hoje picha, seu sangue repentista corta cabeça de Novos Batistas Ministros Damares Messias enquanto, indígena, canta: – Supremos Corvos Federais, que se regalam da carniça sentenciáveis “nunca mais” ao que só tem em Vossa missa: bilionários, fraternidade! “Nunca mais!”, direi eu insubmissa, petrificada em marginalidade, “Nunca mais!” dirá a carniça, torturada em neoliberdade, ao Espantalho da Justiça. Daniel Glaydson Ribeiro danielglaydson@gmail.com O Poema O poema é fruto do meu ofício Está em minha vida No meu cotidiano Na minha rotina Seu tecido veste-me Seu nascimento em mim Renova-me apesar dos árduos combates Apesar do tempo que pesa nos meus ombros Curvando-me as costas. Inocêncio de Melo Filho prof.inocencio@gmail.com R ad ia d or a 21 Impressões aos Sessenta A impressão que eu tenho é ter me deslocado para dentro de uns sonhos duradouros. Vivi toda a infância sem me importar com ruínas, casas mal-pintadas, pessoas que mancavam, estradas sinuosas. Na adolescência, continuei dentro deles, Também não me ative em sempre acordar cedo para ler as estrelas derradeiras, ver o sol nascer. Por essa época, estava mesmo era engraçado por namorar agarradinho, beijar com muito aceite. Veio então um sopro e cheguei aos sessenta, ainda pelejando em desfazer rochas onde residem alguns poemas. Gylmar Chaves gylmarlc@gmail.com A Resposta para a Desumanização a poesia ocorre, surta, surge, surpreende assalta, assusta, luta a poesia não se cala, a poesia ela insiste, insiste, insiste ate ser parida, virar palavra, verso, reverso, germinar ela fala do saqueio, da opressão, do túnel sem luz do abismo, do abismo, do abismo ah, mas ela fala da vida também apesar dos cataclismas, dos holocautos ela fala da vida a poesia é a resposta tenaz para uma terra devastada para um coração estéril vantagem sobre a destruição em série a poesia é a resposta do homem para a desumanização vou ali, levar minha poesia para passear vamos indo de braços dados e peito aberto brincar de ser poema Íris Cavalcante iris@idt.org.br Pela Caridadede Suas Mãos e Dentes É o mais certo amor o que temos pela rudeza das coisas. O bicho que se milagrou homem (pela caridade de suas mãos e dentes), que pariu um deus com gravetos e pedras (para depois apedrejá-lo): esse bicho talha sem descanso dentro da coisa milagrada. Dércio Braúna derciobrauna@gmail.com R ad ia d or a 22 O Batismo Depois do Outuno eu não digo o teu nome na febre do vulcão, na mão de argila, domada de ventania e alagamento. eu não digo o teu nome ecoado de pássaros, dentro do ventre, orçado na miudez. eu não digo o teu nome com a ajuda de deus, ferido na dimensão aguda da língua. eu não digo o teu nome no poema, na asa do caos, na louça e no amargo. o teu nome, o teu líquido nome, saído do absurdo e da fé. amor. Renato Pessoa renatopessoa_21@hotmail.com Estátua A minha ruga da raiva risca meu rosto de rusga. A minha ruga da dúvida risca meu rosto de busca. A minha testa é um texto que escreve e apaga meu susto. Sim eu tenho esse rosto que enquanto existe é meu busto. Carlos Nóbrega carlosamnobrega@hotmail.com Não há tempo a perder com poesia, inaproveitável mercadoria Espaço não há pra se gastar com Paul Valéry Por isso Alves de Aquino deaquinoalves@gmail.com ANUNCIE AQUI Nasceu o Poema Atropela um pássaro em voo Rosto de menino versus bico e penas Os carros cá embaixo olham de través Dois corpos que colidem Na prisão do ar Acima das cruzes, acima dos topos Construções, tosca soberba Livres partilham na jaula em meu tórax Este seio azul Constelado de poemas Luan Brito de Azevedo luanbritoda@gmail.com M al a d e R om an ce s 23 O Impossível Romance da Franga de Granja com o Galo Pé-Duro Minha querida franguinha, Nosso amor é sem futuro... Peço, não fique abatida: Entre nós existe um muro! Você é moça tão fina, Não sobe em qualquer poleiro... Vou-me embora, sem destino, Cantar noutro galinheiro! Sou rústico como o sertão, Sou aço duro de espada! És frágil como uma rosa De feição mais delicada... E, nesse ingrato porvir, Sofro igual a um aleijado: Eu sou um filho da plebe! Tu comes milho importado... Adeus, adeus, minha amada! Do meu pai, herdei prudência. Sou um fruto da natura; Tu és filha da ciência. Nasceste em berço de ouro, Numa linda chocadeira; Eu sou um frango matuto, Desses vendidos na feira. Sou boêmio e o meu cantar Sempre rompe a madrugada: Meu corococó saúda O surgir da alvorada. Sou um cantador do mato, Só temo mesmo a raposa. Ao morrer, quero seu nome Junto ao meu, na fria lousa... Não vejo luz no caminho, Somente o breu do escuro... Você é franga de granja E eu sou galo pé-duro. Klévisson Viana kleviana@ig.com.br Mala de Romances 24 Tiragostos Rafael Limaverde Nascido em Belém/PA, 1976, natura- lizado cearense, iniciou sua carreira ilustrando para o jornal O POVO. Formado em Artes visuais pelo Instituto Federal do Ceará (IFCE), é xi- logravurista, grafiteiro, design e ilus- trador. Teve sua primeira exposição de pinturas e infogravuras intitulada “Caos” - Fortaleza (2000) e, depois, a segunda, “Xilofagia”. Realizou a expo- sição individual “Gabinete Místico” com 13 aquarelas na Galeria Estoril - Fortaleza/CE (2015). É curador da exposição Eco Barroco no CCBNB e Bestiário Nordestino. Pesquisa atualmente desenhos, pin- turas, gravura e assemblages, tendo como referência a cosmovisão reli- giosa,tanto litúrgica (sacralizada pela igreja) como a para-litúrgica (sacrali- zada pela religiosidade popular), bem como o imaginário fantástico, bestial, grotesco. Baseia seu trabalho na sim- bologia, no imaginário, na história, nos objetos, templos e rituais que compõem a experiência sagrada e profana da transcendência humana. artista da capa 24 Os FitoManos de Raymundo Netto Os mundos de Liz de Daniel Brandão Tira de Lene Chaves
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