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UFF – UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE PPGAU – PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO LUIS GUSTAVO ROSADAS CAMPOS Do Higienismo à gentrificação, as semelhanças e singularidades no processo de exclusão social na cidade do Rio de Janeiro: o bairro da Lapa Niterói 2016 C198 Campos, Luis Gustavo Rosadas Do higienismo à gentrificação, as semelhanças e singularidades no processo de exclusão social na cidade do Rio de Janeiro: o bairro da Lapa / Luis Gustavo Rosadas Campos – Niterói: UFF, 2016. 155f.: il. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade Federal Fluminense, 2016. Orientador: Sônia Maria Taddei Ferraz 1. Política pública. 2. Espaço urbano. 3. Exclusão social. 4. Gentrificação. 5. Lapa (Rio de Janeiro, RJ). 5. Produção intelectual. I. Ferraz, Sônia Maria Taddei. II. Universidade Federal Fluminense, Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, 2016. III. Título. CDD 320.981 UFF – UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE PPGAU – PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO LUIS GUSTAVO ROSADAS CAMPOS DO HIGIENISMO À GENTRIFICAÇÃO, AS SEMELHANÇAS E SINGULARIDADES NO PROCESSO DE EXCLUSÃO SOCIAL NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO: O BAIRRO DA LAPA Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre. Área de Concentração: Arquitetura e Urbanismo ORIENTADORA: Prof.ª Dr.ª Sônia Maria Taddei Ferraz Niterói 2016 LUIS GUSTAVO ROSADAS CAMPOS DO HIGIENISMO À GENTRIFICAÇÃO, AS SEMELHANÇAS E SINGULARIDADES NO PROCESSO DE EXCLUSÃO SOCIAL NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO: O BAIRRO DA LAPA Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre. Aprovada em 8 de março de 2017. BANCA EXAMINADORA ____________________________________________ Prof.ª Dr.ª Sônia Maria Taddei Ferraz (orientadora) UFF - Universidade Federal Fluminense ____________________________________________ Prof.ª Dr.ª Cristina Lontra Nacif UFF - Universidade Federal Fluminense ____________________________________________ Prof.ª Dr.ª Carolina Moreira de Hollanda UNIGRANRIO - Universidade do Grande Rio Dedico esta dissertação aos que perderam o direito de morar, que tiveram as relações com seu lugar reificadas pelas intervenções urbanas gentrificadoras abastecidas pelo capital. Aos que tiveram seus pertences roubados ou destruídos – mesmo que papelões ou cobertores de flanelas – pelos agentes do Estado. Aos que precisam morar de favor na casa de amigos ou parentes. Dedico este trabalho também àqueles que não puderam arcar com os custos da gentrificação e das remodelações, não podendo pagar os preços gananciosos de uma sociedade cínica e conivente com as desigualdades. Ainda, aos que foram marginalizados e sofreram agressões físicas nas ruas por fascistas. E assim, por sua condição racial e social, não puderam se camuflar no espaço, antes público e agora privado. Dedico às vítimas invisibilizadas pela sociedade de consumo e aos que, sem poder simbólico, são jogados para fora dos limites da fronteira da cidade, pela avidez revanchista dos que almejam privilégios e não direitos. A todo aquele que além perder bens materiais, foi desumanizado na sociedade capitalista contemporânea. AGRADECIMENTOS Às mulheres da minha vida: minha mãe Márcia e Caroline Pitta. Aos amigos especiais: Ellen e Paulo; Bernardo (meu guri) e Marcelle Risadas; Cássio André Felipe. À orientadora: Sonia Maria Taddei Ferraz. Em especial: Maria Gabriela Verediano. Às mestras: Cristina Lontra Nacif, Fernanda Sanchez. Ao mestre: Juarez Duayer. Aos amigos: Rosi, Jaime Núñez, Priscila Gonçalves, Leticia, Roberth, Ricardo Pirata. Aos tios Jorge, Sandra, Marilisa e Marcos e aos primos Carol, Felipe, Vinícius e Vanessa. À professora convidada Carolina Moreira de Hollanda. Às Violets!!! Ao MNLM-RJ Ludwig Van Beethoven também ajudou muito. [...] E se todos os outros aceitassem a mentira imposta pelo Partido — se todos os registros contassem a mesma história —, a mentira tornava-se história e virava verdade. “Quem controla o passado controla o futuro; quem controla o presente controla o passado”, rezava o lema do Partido. E com tudo isso o passado, mesmo com sua natureza alterável, jamais fora alterado. Tudo o que fosse verdade agora fora verdade desde sempre, a vida toda. Muito simples. O indivíduo só precisava obter uma série interminável de vitórias sobre a própria memória. “Controle da realidade”, era a designação adotada. Em Novafala: “duplipensamento”. (ORWEL, 2009) RESUMO A dissertação trata da compreensão de semelhanças e singularidades do processo de exclusão social na cidade do Rio de Janeiro, tendo a região da Lapa como estudo de caso. A abordagem faz o recorte temporal a partir do início do discurso de higienismo, datado de 1850, passando pelas demolições das décadas de 1960 e 1970, e o processo de gentrificação a partir da década de 2000. A crítica à produção de cidade e às desigualdades presentes no modo de produção capitalista é o ponto central desta dissertação, sabendo que desde a metade do século XIX, é que se operam as transformações urbanas na cidade do Rio de Janeiro. A análise do processo de exclusão social e de como o sistema capitalista se beneficia dele, se dá pela comparação entre os discursos institucionais e midiáticos, identificando as semelhanças e singularidades dos processos de transformações urbanas que aconteceram na região central do Rio de Janeiro, mais especificamente, na região da Lapa. O processo de produção das cidades está associado à forma e às condições de articulação dos modos de produção. Assim, para que haja a exclusão social, é necessário e fundamental que haja a desigualdade característica do modo de produção capitalista. Essas desigualdades estão expressas na paisagem urbana, onde o movimento de pessoas em situação de fragilidade econômica é fator crucial para este processo de caráter classista. Desta forma, o espaço urbano é objeto fundamental e, sob a mirada da acumulação capitalista, passa a ser reproduzido sob sua lógica excludente. Palavras-chave: exclusão, higienismo, gentrificação, revanchismo, lapa. ABSTRACT The understanding of the similarities and singularities of the process of social exclusion in the city of Rio de Janeiro, with Lapa as a case study. The approach makes the temporal cut from the beginning of the hygienic discourse, dating from 1850, through the demolitions of the 1960s and 1970s, and the process of gentrification from the 2000s to the present day. The criticism of the production of the city and of inequalities present in the capitalist mode of production is the central point of this dissertation, knowing that since the mid-nineteenth century, urban transformations in the city of Rio de Janeiro have been operating. The analysis of the functioning of the process of social exclusion and how the capitalist system benefits is done by analyzing and comparing institutional and media discourses, finding the similarities and singularities of the processes of urban transformation that took place in the central region of Rio de Janeiro , More specifically in the region of Lapa. The process of production of the cities is associated with the form and conditions of articulation of the modes of production. Thus, in order for social exclusion to exist, it is necessary and fundamental that there be the characteristic inequality of the capitalist mode of production. These inequalities are expressed in the urban landscape, where the movement of people in situations ofeconomic fragility is a crucial factor for this process of class. In this way, urban space is a fundamental object and, under the watchful eye of capitalist accumulation, begins to be reproduced under its exclusionary logic. Keywords: exclusion, gentrification, hygienism, revanchism, lapa. SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ....................................................................................................11 INTRODUÇÃO...........................................................................................................13 PARTE 1 - REFERENCIAL TEÓRICO CONCEITUAL: O MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA E A IDEOLOGIA NA PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO ...........17 1. OS PROCESSOS DE PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO ..............................18 1.1 O DESENVOLVIMENTO DESIGUAL ..................................................................20 O espaço urbano .............................................................................................20 O espaço como mercadoria ............................................................................23 Desenvolvimento desigual ..............................................................................28 A mobilidade do capital e a produção do espaço urbano ...............................31 O movimento de capital nas escalas – o “vaivém” da desigualdade ..............37 1.2 A CIDADE REVANCHISTA E A GENTRIFICAÇÃO ............................................41 O que seria a Gentrificação .............................................................................41 Do acaso à estratégia .....................................................................................45 Os excluídos – a cidade revanchista ...............................................................51 As camuflagens sociais ...................................................................................53 1.3 O ESPAÇO PÚBLICO COMO DISCURSO ..........................................................57 1.4 A IDEOLOGIA, PODER SIMBÓLICO E DISCURSO – AS FORMAS DE DOMINAÇÃO .............................................................................................................64 Ideologia ..........................................................................................................65 O poder simbólico ............................................................................................66 Características do discurso .............................................................................69 1.5 PONDERAÇÕES A RESPEITO DOS DISCURSOS, IDEOLOGIA E PODER SIMBÓLICO ...............................................................................................................70 Relação poder simbólico e espaço público ......................................................70 Relação poder simbólico e gentrificação ..........................................................72 PARTE 2 - A PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO: A LAPA COMO ESTUDO DE CASO PARA COMPREENDER OS PROCESSOS DE EXCLUSÃO SOCIAL ........74 2. O DISCURSO DE ÓDIO AOS POBRES DESDE O BRASIL COLÔNIA ..............75 2.1 A ORIGEM DO DISCURSO DE ÓDIO AOS POBRES ........................................75 Feudalismo à brasileira: o colonialismo ...........................................................75 2.2 AS CLASSES PERIGOSAS .................................................................................79 3. HIGIENISMO: UM PROCESSO HISTÓRICO DE REMODELAÇÃO ...................83 Higienismo.......................................................................................................83 3.1 A QUESTÃO DA HABITAÇÃO NO RIO DE JANEIRO: SÉCULO XIX .................85 3.2 AS EPIDEMIAS E A LIMPEZA URBANA NO RIO DE JANEIRO .........................87 3.3 O DISCURSO HIGIENISTA DE PEREIRA REGO COMO GUIA PARA AS INTERVENÇÕES DE PASSOS .................................................................................90 3.4 AS INTERVENÇÕES DE PASSOS .....................................................................93 3.5 CONSIDERAÇÕES SOBRE AS INTERVENÇÕES DE PASSOS ......................101 3.6 O HIGIENISMO E A LAPA: UM ANTECESSOR DO PROCESSO DE GENTRIFICAÇÃO ...................................................................................................103 4. AS DÉCADAS DE 1960 E 1970 E O FIM DO BAIRRO DE DEGENERADOS: DISCURSOS, DEMOLIÇÕES E REMOÇÕES NA LAPA BOÊMIA ........................109 4.1 DA BOEMIA À DECADÊNCIA DA LAPA .......................................................... 109 4.2 O PROCESSO CIVILIZATÓRIO BRASILEIRO: A VIDA URBANA COMO AMEAÇA ..................................................................................................................................110 4.3 OS PLANOS URBANOS E O DISCURSO DA LAPA DECADENTE .…….…....112 4.4 O DISCURSO DO BAIRRO DE DEGENERADOS …………………........……....116 5. A GENTRIFICAÇÃO COMO ESTRATÉGIA DE PLANEJAMENTO: A VOLTA DA BOÊMIA À LAPA ....................................................................................................123 5.1 A GENTRIFICAÇÃO COMO DISCURSO DO PLANEJAMENTO URBANO .....124 5.2 O ESPAÇO PÚBLICO NOS DISCURSOS MIDIÁTICO E INSTITUCIONAL: ESPAÇO DE DISPUTA ............................................................................................131 5.3 QUEM PODE COMPRAR A CIDADE: SOBRE YUPPIES E HYPSTERS .........137 5.4 NÃO POSSUIR UM TETO: SER INTRUSO NUM MUNDO DE STATUS ..........139 6. PONDERAÇÕES A RESPEITO DO PROCESSO DE EXCLUSÃO SOCIAL NA LAPA ............................................................................................................….......145 7. FONTES BIBLIOGRÁFICAS ..............................................................................151 APRESENTAÇÃO Este estudo foi desenvolvido durante os dois anos do mestrado acadêmico do programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense – PPGAU UFF – na linha de pesquisa “Projeto, planejamento e gestão da Arquitetura e da cidade”. As reflexões sobre o processo de gentrificação foram desenvolvidas no primeiro ano e junto ao grupo de pesquisa Arquitetura da Violência, quando coordenei os seminários semanais internos sobre o tema, sendo objeto central da minha pesquisa. Essas reflexões sobre questões que se desdobram em processos de exclusão social tiveram início antes do meu ingresso no mestrado. Sendo eu ex-morador, de longa data, do bairro da Lapa, sou observador e testemunha das mudanças que a região sofreu durante as décadas de 1980, 1990 e 2000. Assim, o aprofundamento teórico e conceitual se tornou obrigatório para melhor compreender o processo de exclusão das classes mais pobres e, principalmente, dos sem-teto que por lá estavam. A análise pessoal passou a contar com o apoio teórico oferecido pelo PPGAU, além da construção de uma bibliografia que tratasse dos processos de gentrificação. Nesse momento, a obra de Neil Smith surgiu revelando que este processo de desigualdade e exclusão social não é uma novidade. À obra de Smith foram somados outros autores que complementam suas ideias, principalmente, Manuel Delgado, quando aborda o espaço público como ideologia. O processo de reflexão durante o mestrado me possibilitou amadurecimento como observador e pesquisador, a fim de fazer as conexões entre a produção de espaço público e o processo de gentrificação, que caminham em consonância. Foi também importante decidir o momento de fazer escolhas, de traçar caminhos, entender que o processo de aprendizagem consiste em priorizar temas centrais em relação aos subjacentes. O mestrado, possibilitou ainda, o conhecimento de autores importantes para a pesquisa e uma possível futura carreira docente. Paulo Freire (2006), ao afirmar que “não basta saber ler que 'Eva viu a uva’. É preciso compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra 11 com esse trabalho”, nos deixa a pista para o aprofundamento de temasa serem pesquisados. Freire ensina ainda que não nascemos prontos, que nos construímos com as experiências do mundo e só assim progredimos. É nesse conjunto de conhecimento que o mestrado acadêmico se torna fundamental para o meu processo de aprendizado, possibilitando um mergulho na origem do processo de exclusão social na cidade do Rio de Janeiro, na compreensão de que o modo de produção capitalista se utiliza da cultura a fim de perpetuar seu processo de acumulação. 12 INTRODUÇÃO O objetivo desta dissertação é compreender as semelhanças e singularidades nos processos históricos de exclusão social na cidade do Rio de Janeiro, usando o bairro da Lapa como estudo de caso. Para isso, questões importantes surgiram a fim de nos guiar durante o processo de pesquisa: na primeira busca compreender como o modo de produção capitalista se apropria do processo de produção de cidades. Em seguida, nos debruçamos sobre quais seriam as semelhanças e singularidades entre três momentos a serem definidos mais adiante. Finalizando com a abordagem da história: quem estaria incluído e quem seria excluído. Dessa maneira, para melhor delimitar nossa abordagem, definimos como recorte temporal o início do discurso de higienismo, datado de 1850, estendendo-se até os dias atuais. Assim, a partir da colocação de Corrêa (1989, p. 6), em que mostra “o espaço urbano, como qualquer outro objeto social, pode ser abordado segundo um paradigma de consenso ou de conflito”, o abordaremos sob o paradigma do conflito no espaço urbano. A crítica ao modo de produção capitalista será o fio condutor desta dissertação. Pelo modo de produção capitalista, desde a metade do século XIX, é que se operam as transformações urbanas na cidade do Rio de Janeiro. A fim de compreender como esse processo de transformação urbana funciona, como opera sua produção e como o sistema capitalista se beneficia, é preciso analisar através de bases conceituais qualificada e da comparação entre discursos – institucional e da mídia –, buscando as semelhanças e singularidades entre as intervenções urbanas nos períodos a serem estudados. Para melhor aprofundamento das questões acima citadas, escolhemos três períodos da história do Rio de Janeiro: o Higienismo de Pereira Rego a Pereira Passos, circunscrito entre 1850 e 1905; a época das demolições na Lapa e o discurso dos degenerados, entre as décadas de 1960 e 1970; a gentrificação como processo global, entre as décadas de 2000 e 2010. O processo de produção das cidades está associado à forma e às condições de articulação dos modos de produção subjacentes. Para haver os processos de 13 exclusão social é necessário e fundamental que haja a desigualdade. O geógrafo escocês Neil Smith (1988) elucida que a desigualdade social está expressa na paisagem urbana, na qual o movimento de pessoas em situação de fragilidade econômica é um dos fatores que configuram o caráter classista desse processo. Assim, o espaço urbano estaria sob a mirada da acumulação capitalista, produzindo um movimento de capital na escala urbana. Além das questões econômicas, é necessário que haja uma forma de se propagar e de reafirmar o processo de produção das cidades, sob a ótica capitalista. Desta maneira, há a necessidade de promover esta forma de cidade repleta de ideologia e símbolos. Assim, o discurso midiático é necessário, e aliado importante, na substituição de uma classe sem poder aquisitivo por uma outra classe capaz de consumir o estilo de vida traçado pelo capital. Na execução dessa forma de cidade, os conflitos entre as classes que vão absorver e consumir o espaço público se evidencia. O conflito se expressará através de uma classe que poderá consumir a área inundada de símbolos, e outra, em contrapartida, que caminhará para fora da área ressignificada. A partir daí o modelo de cidade mascarará os conflitos sociais, naturalizando a condição daqueles que são incapazes de pertencer ao novo lugar, em um processo sócio-econômico-cultural excludente e de caráter desigual. Neil Smith nos fornecerá os elementos para compreensão do movimento de capital entre as escalas global, estado-nação e urbana, nas quais se expressam o caráter desigual do modo de produção capitalista, com a reprodução das desigualdades espaciais na escala urbana. Smith (1988) aponta que esse processo de produção de cidades é revanchista, por agir de maneira violenta contra as classes mais pobres, já que as elites dominantes acreditam num suposto roubo das regiões centrais pelas classes menos favorecidas. Outro autor que também oferece elementos teóricos importantes, e centrais, para nossa abordagem é o sociólogo espanhol Manuel Delgado. O autor trata o espaço público como um modo de viver e de ditar comportamento – e estilo de vida – para as classes que vão consumir as áreas da cidade em processo de revitalização. Delgado aborda a construção de uma ideia de cidadania como forma de controle e de 14 supressão dos conflitos sociais, tornando o cidadão modelo um consumidor e um propagador dessa ideologia. Complementando as ideias de Delgado e Smith, será com Pierre Bourdieu que vamos compreender o poder simbólico como uma característica do indivíduo. Esse indivíduo, ao ignorar voluntariamente a perversidade desse sistema, apropria-se dos símbolos oferecidos pela ideologia, aproveitando-se dos benefícios. Junto à abordagem de Bourdieu, somam-se Michel Lowy e José Luiz Fiorin para compreendermos as questões da produção do discurso e ideologia, fundamentais como suporte ao processo de reprodução das cidades. Além dos autores centrais, os brasileiros Paul Singer, Caio Prado Junior e Celso Furtado, vão complementar a ideia de mercantilização do solo urbano, mostrando que as desigualdades sociais são um processo histórico em nosso país. Os geógrafos – também brasileiros - Milton Santos, Maurício de Abreu, Roberto Lobato Corrêa e Marcelo Lopes de Souza, além de autores como Arlete Moysés Rodrigues, Ana Fani Carlos, mostram como um processo global interfere em nosso país e como ganha um caráter singular e desigual na reprodução dos modelos das nossas cidades. Para a pesquisa prática, sobre o universo da análise bibliográfica, utilizamos a abordagem de autores que se especializaram na análise da cidade do Rio de janeiro. Jayme Larry Benchimol, Robert Moses Pechman, possibilitam um mergulho na história e na origem dos problemas sociais da cidade. Como apoio para compreensão e análise do discurso midiático, pesquisamos periódicos com acervo digital, a fim de entender como o apelo midiático foi relevante na afirmação e fortalecimento da venda de ideologias em todos os períodos supracitados. Sendo um deles o acervo digital atual e passado do jornal O Globo – jornal com maior tiragem na cidade e no Estado do Rio de Janeiro. Além do discurso midiático, pesquisamos o discurso institucional da prefeitura do Rio de Janeiro, buscando analisar se há consonância entre eles. Entretanto, nossa abordagem não é uma análise histórico-econômica. O que a pode tornar peculiar, é o fato de buscarmos localizar o caráter humano que se perde em cada demolição de edifício e em cada remoção forçada. Assim, buscamos evidenciar o subjetivo perdido no tempo, o indivíduo anônimo que se foi junto com as 15 histórias conhecidas, o anônimo que se instala na calçada e como – durante esses períodos – a mídia o tratou como o indesejável a ser odiado. Foi necessário que – durante os dois anos de pesquisa – a orientação nos guiasse com autores que aprofundaram nas questões humanas: os clássicos Karl Marx e Friedrich Engels, David Harvey, o próprio Neil Smith, Zygmundt Baumann, Milton Santos, Paulo Freire, Vladimir Lenin, Loic Wacquant, Richard Sennet, nos mostram que o patético outro, o indesejável, o repugnante, possuem um endereçodiferente do que a grande mídia destaca. Desta forma, os desajustados, desprovidos do senso de humanidade, não são os que se instalam nas ruas ou que seguem os rumos da pobreza, mas os que estão no topo do sistema opressor, desprovidos de humanidade. A ausência de princípios de solidariedade e empatia permeiam os sujeitos que orquestraram, que perpetuaram a mudança e a afirmação da forma capitalista de cidade. A ganância, a exclusão social e a acumulação de capital, são as semelhanças entre os processos de cada período. A financeirização da economia, a fase inicial do Capitalismo, o Imperialismo, são as singularidades do processo de reprodução de cidades em cada período. Para isso, nossa pesquisa se debruçará sobre o caminho em que seguem os excluídos e explorados neste jogo de cartas marcadas, buscando desmistificar a condição de indesejáveis e obstáculos à sociedade louvável e de consumidores, cínica e cega por opção – muitas vezes – conivente com a alienação que o desenvolvimento desigual e a cidade revanchista produzem. 16 PARTE 1 REFERENCIAL TEÓRICO CONCEITUAL: O MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA E A IDEOLOGIA NA PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO […] A problemática urbana se anuncia. O que resultará desse lugar, deste caldeirão de bruxas, desta intensificação dramática das potências criadoras, das violências, dessa mudança generalizada onde você não pode ver o que muda, a não ser quando se vê extremamente bem: Dinheiro, paixões enormes e vulgares, sutileza desesperada? A cidade se afirma, depois explode”. (LEFEBVRE,1976 apud DELGADO, 2015, p.5)1 A partir da comparação entre nomes dados ao processo de produção de cidades, torna-se necessário uma análise do processo e do rótulo que lhes é dado. Para melhor compreender o conceito de gentrificação, da forma como Smith o estuda, buscamos nesta parte inicial compreender as origens de termos e como eles estariam ligados ao modo de produção capitalista. A respeito do processo de gentrificação, não se trata apenas da produção de espaço nas sociedades capitalistas. Entende-se que a questão gira em torno do processo de reprodução desses espaços e das estratégias de dominação de massas, que levam à adoção ou aceitação dos métodos de sua reprodução. Sob essa ótica, entendemos que o poder simbólico, como Bourdieu abordará, é o suporte para a sutil dominação, como elo entre o físico-espaço e o ideológico-alienação, relacionando-se com outros elementos a fim de conferir a assimilação de um modo de viver-consumir. 1 Tradução nossa, do original: La problemática urbana se anuncia. ¿Qué saldrá de ese hogar, de este fogón de brujas, de esta intensificación dramática de las potencias creadoras, de las violencias, de ese cambio generalizado en el que no se ve qué es lo que cambia, excepto cuando se ve excesivamente bien: dinero, pasiones enormes y vulgares, sutilidad desesperada? La ciudad se afirma, después estalla”. (LEFEBVRE,1976, p.114 Apud Delgado, 2015, p.5) 17 1. OS PROCESSOS DE PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO Para melhor compreensão dos processos de produção do espaço urbano, traremos alguns autores – geógrafos, sociólogos e arquitetos urbanistas – a fim de suscitar um diálogo a respeito desta temática. Iniciamos com uma análise bibliográfica pautada na obra do geógrafo Neil Smith e na obra do sociólogo Manuel Delgado como autores centrais da reflexão, além da crítica ao modo de produção capitalista como o elemento central desta reflexão. Iniciamos buscando compreender o processo de gentrificação. Semanticamente gentrificação é uma palavra com significado que pode ir desde o processo global de desenvolvimento das cidades, de enobrecimento dos bairros operários, de movimento de capital, até ferramenta de planejamento estratégico. O debate a respeito desse assunto se dá, grosso modo, pela crítica ao capitalismo como beneficiário no processo de produção e do desenvolvimento das grandes cidades. Gentrificar era o processo de enobrecer dada área da cidade pela eliminação das classes mais pobres. Entretanto, a discussão sobre o real significado da palavra gentrificação (gentry) variava: de um lado os pobres, em suas lutas contra as forças do mercado imobiliário, entendendo a gentrificação como um processo excludente; do outro, os agentes imobiliários dando novo sentido a palavra – gentrificação entendida como algo maravilhoso, inclusive para a classe pobre, além de muita propaganda. Com a generalização do uso dessa palavra, ora como processo excludente e pejorativo, ora como um processo de desenvolvimento para as cidades, a compreensão adequada do processo se tornava complexa. Neil Smith já questionava esse processo desde a década de 1970, observando- o como movimento de capital dentro das cidades e em escala global. O movimento se dava com investimentos e desinvestimentos em determinadas áreas da cidade, principalmente, nos bairros pobres próximos ao centro. O autor ainda falava em uma “retomada”, numa “volta para casa” da classe média alta em relação a esses espaços desocupados e abandonados no pós-guerra, como se pertencessem à classe média por direito, ignorando os moradores substituídos. A partir da retomada era necessário que houvesse um discurso para 18 impulsionar e legitimar o processo. Todavia, algo o transpassava desde o início até a atualidade: a mudança do perfil socioeconômico de um bairro. Esse discurso se tornou importante para a aceitação popular, principalmente sob os rótulos de higienização dos bairros. Mas o discurso não visa apenas uma aceitação, já que é parte de uma estratégia de produção de espaço – não só de habitação – nas grandes cidades. A estratégia tinha por objetivo a negociação de habitação, de comércio de terras, de comércio específico, visando atender à demanda de uma classe específica: a classe média e classe média alta. A nova classe, detentora de um capital simbólico – consumidora de espaços e serviços característicos das grandes cidades globais – e pautada em um estilo de vida fetichizado2 na cidade rica em cultura e símbolos, passa a consumir as áreas produzidas pelo movimento de capital na cidade. Contudo, para que o bairro, rua ou esquina receba essa classe média, é preciso que a estrutura física da cidade ofereça itens de desejo fundamentais para o seu estilo de vida. Como evidencia Paul Singer ao falar da “valorização diferencial do uso do solo”, os serviços oferecidos pelo Estado são “usufruídos apenas por aqueles que podem pagar o seu preço incluído na renda do solo” (1982, p. 36). Junto, o espaço público entra como uma peça fundamental do processo: o elo de valorização entre o comércio e os usuários desse modo de vida. A gentrificação, a partir da década de 1980, havia assumido um papel importante no processo de produção de cidade, entrelaçava-se ao poder público – o provedor das obras de infraestrutura – e juntava-se à mídia pela propaganda de um novo estilo de vida. A gentrificação passa a ser generalizada e não mais ocasional, 2 Marx, Karl. O Capital. p. 206-207. 2013 - O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens os caracteres sociais de seu próprio trabalho como caracteres objetivos dos próprios produtos do trabalho, como propriedades sociais que são naturais a essas coisas e, por isso, reflete também a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social entre os objetos, existente à margem dos produtores. É por meio desse quiproquó que os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas sensíveis-suprassensíveis ou sociais. [...] No ato de ver, porém, a luz de uma coisa, de um objeto externo, é efetivamente lançada sobre outra coisa, o olho. Trata-se de uma relação física entre coisas físicas. Já a forma-mercadoria e a relação de valor dos produtos do trabalho em que ela se representa não tem,ao contrário, absolutamente nada a ver com sua natureza física e com as relações materiais [dinglichen] que dela resultam. É apenas uma relação social determinada entre os próprios homens que aqui assume, para eles, a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Desse modo, para encontrarmos uma analogia, temos de nos refugiar na região nebulosa do mundo religioso. Aqui, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, como figuras independentes que travam relação umas com as outras e com os homens. Assim se apresentam, no mundo das mercadorias, os produtos da mão humana. A isso eu chamo de fetichismo, que se cola aos produtos do trabalho tão logo eles são produzidos como mercadorias e que, por isso, é inseparável da produção de mercadorias. 19 como Ruth Glass descrevia. Com isso, nossa abordagem buscará compreender o movimento de capital entre as escalas urbana, estado nação e global, afim de melhor compreender o processo de produção de cidades. 1.1 O DESENVOLVIMENTO DESIGUAL O espaço urbano A reestruturação do espaço na escala urbana é a base da abordagem de Neil Smith sobre o desenvolvimento desigual. Essa reestruturação tem no “redesenvolvimento, da gentrificação e do crescimento não metropolitano a mais acabada e aparente ilustração do processo” (1988, p. 223) de desenvolvimento desigual. Desse modo, o processo de gentrificação, segundo o autor, é um movimento de capital passageiro e não duradouro que uma área da cidade pode experimentar e “a menos importante a longo prazo” (Ibidem). Além disso, a produção das desigualdades espaciais na escala urbana, dadas também por localização da força de trabalho afastadas das áreas mais valorizadas, expressam o caráter desigual do capitalismo, já que “o subdesenvolvimento de áreas específicas eventualmente conduz precisamente àquelas condições que faz uma área altamente lucrativa e susceptível de rápido desenvolvimento” (SMITH, 1988, p. 213). O uso do solo urbano se transforma de modo a gerar mais acumulação, sendo o que mais evidencia esse processo, sobre o qual o autor afirma: “o capital tenta fazer um vaivém de uma área desenvolvida para uma área subdesenvolvida, para, então, num certo momento posterior voltar à primeira área que agora se encontra subdesenvolvida, e assim sucessivamente” (Ibidem). O caráter desigual também expressa o capital como praga de gafanhotos: “eles se estabelecem em um lugar, devoram-no e então se deslocam para praguejar outro lugar. E, melhor dizendo, no processo de sua recuperação após uma praga, a região ficava pronta para outra” (HARRIS, 1983 apud SMITH, 1988, p. 217). Ainda segundo Smith, são nas características do valor de uso e valor de troca que se evidenciam as tendências para a diferenciação e igualização do espaço geográfico dentro do capitalismo que: 20 [...] assume muitas formas, mas fundamentalmente expressa a diferenciação social que é a verdadeira definição do capital: a relação entre capital e trabalho. À medida em que o desenvolvimento desigual se torna crescente necessidade para se evitar as crises, a diferenciação geográfica se torna cada vez menos um subproduto e mais uma necessidade central para o capital. A história do capitalismo não é simplesmente cíclica, mas é profundamente progressiva e também se expressa na paisagem. Na medida em que as crises cíclicas não purgam o sistema de suas contradições e a taxa decrescente de lucro não é atenuada, o desenvolvimento desigual do capitalismo torna-se mais intenso, à medida em que o processo de acumulação se intensifica e, com ele, as tendências para a diferenciação e igualização. A fragilidade da lógica econômica por trás do desenvolvimento desigual é graficamente revelada na crise, quando a aguda necessidade de reestruturar o espaço geográfico é bloqueada pelos padrões existentes de desenvolvimento desigual. (1988, p. 217-218) O autor mostra a diferenciação do espaço pelo tipo de atividade produtiva, em que “a divisão do trabalho em atividade industrial e atividade agrícola libera parcela do trabalho produtivo das restrições espaciais imediatas, e essa divisão social manifesta-se na separação espacial da cidade e do campo” (1988, p.125). Dessa maneira, no espaço urbano, a localização da força de trabalho e dos locais de produção (próximos ou afastados entre si) estão determinados. Entretanto, não há um congelamento dessas relações e a mudança de uso, ou a ressignificação das cidades, pode acontecer como aponta o mesmo autor, onde: [...] embora as próprias cidades sejam espacialmente fixas, as atividades que ocorrem dentro delas e as regras que comandam tais atividades sociais não são completamente fixas, espacialmente. Elas podem ser generalizadas de uma cidade para outra ou, por outro lado, a mesma cidade em períodos históricos diferentes pode exercer atividades completamente diferentes e operar sob regras sociais completamente distintas. (Ibidem) Essa flexibilidade de usos ganha força a partir do momento em que o Estado “dividiu as pessoas em razão de objetivos públicos, não por grupos de parentesco, mas por lugar comum de residência” (SMITH, 1988, p. 125-126). A partir dessa divisão, as pessoas passaram a ser agrupadas por objetivos públicos em detrimento dos laços familiares que as unia, evidenciando a defesa dos interesses das classes dominantes, apontados por Smith. Assim, o movimento das pessoas pelo espaço urbano pautadas pelo interesse no uso do solo, mostra que "o território permanecera, mas as pessoas haviam-se tornado móveis, necessitando de uma nova divisão da sociedade baseada no controle do território” (Ibidem). Os vínculos familiares entre as pessoas, assim como qualquer outro tipo de vínculo com o espaço, eram eliminados, 21 tornando-as removíveis pela sua fragilidade econômica. Smith complementa dizendo que: Esta organização dos cidadãos do Estado de acordo com o território é comum a todos os Estados […] Somente o domicílio era agora decisivo, não a associação de um grupo de parentesco. Não as pessoas, mas sim o território se tornava dividido: os habitantes tornaram-se um mero apêndice político do território. (Ibidem) Acrescentamos a visão de Roberto Lobato Corrêa, quando trata do espaço urbano capitalista fragmentado e articulado ao mesmo tempo, para melhor entender o controle social. O autor evidencia que essa ideia é reforçada com a desigualdade do espaço – na cidade capitalista – pela forma variada das relações que as unidades espaciais mantêm entre si. Corrêa diz que “por ser reflexo social e porque a sociedade tem sua dinâmica, o espaço urbano é também mutável, dispondo de uma mutabilidade que é complexa, com ritmos e natureza diferenciados” (1989, p.8). Mesmo entendendo a mutabilidade do espaço urbano, para Lefebvre a produção do espaço deveria atender às necessidades da sociedade como um todo, e não apenas a uma parcela. O espaço, segundo ele, é um elemento primordialmente de sociabilização e não um objeto. Assim, para o autor, o espaço não é uma coisa entre coisas, bem como: [...] não é um produto entre outros produtos: em vez disso, concorda com as coisas que são produzidas e abrange suas inter-relações em sua coexistência e simultaneidade – a sua ordem ou seu caos. É o resultado de uma sequência e de um conjunto de operações, e, portanto, não pode ser reduzida à posição de um mero objeto. (LEFEBVRE, 1991, p. 73) No entanto, na cidade capitalista, o espaço adquire valor de troca e se transforma em mercadoria. Além de atender à necessidade da sociedade, Corrêa elucida que o “espaço urbano assume assim dimensão simbólica” (1989, p. 9) e, também, “o cenário e objeto das lutas sociais, pois estas visam [...] o direito à cidade, à cidadania plena e igual a todos” (Ibidem). Além disso, na cidade capitalista, há um afastamento entre as pessoas, explicado por Bauman como mixofobia (o medo da mistura entre diferentes), quecontribui para que o espaço perca o sentido de campo interacional entre elas. O autor explica que, do mesmo modo que existe o desejo em conviver com as diferenças, há assim, de outro lado a mixofobia: Você convive com estrangeiros e tem preconceitos em relação a eles, uma 22 vez que o lixo global é descarregado na rua onde você vive; e você já ouviu falar muitas vezes dos perigos derivados da underclass; e ouviu dizer também que a maioria dos imigrantes é parasita de seu welfare e até terroristas em potencial, e que cedo ou tarde acabarão por mata-lo. Nesse caso, viver com estrangeiros é uma experiência que gera muita ansiedade. Por conseguinte, é melhor evitar essa experiencia, e pessoas resolveram transmitir esse instinto de evitar às gerações futuras, colocando seus filhos em escolas segregadas, em que podem viver imunes a esse mundo horrendo, ao impacto assustador de outras crianças provenientes de famílias do tipo errado. (2009, p. 87). Com isso, o espaço urbano deixa de ser o lugar onde as necessidades da sociedade se expressam, possibilitando novo significado a ele, tornando-o mercadoria. Esse pensamento de Bauman reforça a ideia de Smith quando aponta que o espaço passa a perder importância para as trocas sociais devido aos avanços tecnológicos, políticos, culturais e econômicos, pois à medida em que: [...] as relações econômicas, tecnológicas, políticas e culturais se desenvolvem e se expandem, a base institucional para manipular as relações também torna-se mais complexa e perde, progressivamente, qualquer definição espacial intrínseca. Contudo, quanto mais a sociedade se liberta do espaço, mais o espaço pode ser transformado numa mercadoria, no seu sentido mais estrito. (SMITH, 1988, p. 127) Complementando a ideia da produção do espaço urbano como mercadoria, Corrêa mostra que o espaço urbano é também um local de disputas entre agentes donos dos meios de produção, já que “os grandes proprietários industriais e das grandes empresas comerciais são, em razão da dimensão de suas atividades, grandes consumidores de espaço” (1989, p. 13). O espaço como mercadoria Milton Santos esclarece que “a vida material de algum modo se impunha sobre o resto da vida social, e o valor de cada pedaço de chão lhe era atribuído pelo próprio uso desse pedaço de chão” (1999, p.9). Assim, o espaço urbano se torna mercadoria e passa a ser apropriado seja por grandes proprietários dos meios de produção e por proprietários de grandes parcelas de solo, seja por donos de pequenas parcelas de solo. O autor salienta que “a vida material de algum modo se impunha sobre o resto da vida social, e o valor de cada pedaço de chão lhe era atribuído pelo próprio uso 23 desse pedaço de chão” (Ibidem). Dinheiro e território interagiam numa escala local e ordenados pela necessidade local, onde esta relação de valor de uso era regida pelo território. Para Santos, o papel da troca “começa a ganhar uma enorme mudança na história dos lugares e do mundo, deslocando da primazia o papel do uso, e até mesmo comandando o uso, ao revés do comando anterior da troca pelo uso” (Ibidem). Assim, com o passar do tempo, o uso do chão perde o seu papel e passa a ter mais importância como objeto de troca. Outro autor que trata da valorização do solo urbano é Paul Singer. Ele mostra que o processo de expansão das cidades possibilita “novos focos de valorização do espaço urbano” (1982, p. 29) e que nesse processo de expansão “o crescimento urbano implica necessariamente uma reestruturação do uso das áreas já ocupadas” (Ibidem). O autor põe em evidencia que as necessidades das classes sociais mais altas se mantêm separadas do restante da sociedade, gerando uma “demanda de solo urbano para fins de habitação”, que “também distingue vantagens locacionais determinadas, principalmente, pelo maior ou menor acesso a serviços urbanos” (Ibidem). Esta é, portanto, uma análise indispensável para a compreensão dos processos de higienismo, de gentrificação e da transformação do espaço em mercadoria. A análise de Singer nos ajuda a compreender a formação do valor de troca do solo urbano. Em sua abordagem, o autor aponta que o mercado de terras possui caráter especulativo, incorporando à cidade glebas antes agrícolas, onde o custo de produção: [...] é, nestes casos, equivalente à renda (agrícola) da terra que se deixa de auferir. Mas não há uma relação necessária entre este "custo" e o preço corrente no mercado imobiliário-urbano. Como a demanda por solo urbano muda frequentemente, dependendo, em última análise, do próprio processo de ocupação do espaço pela expansão do tecido urbano, o preço de determinada área deste espaço está sujeito a oscilações violentas, o que torna o mercado imobiliário essencialmente especulativo. Quando um promotor imobiliário resolve agregar determinada área ao espaço urbano, ele visa a um preço que pouco ou nada tem a ver com o custo imediato da operação. (1982, p. 23-24) Desta forma, Singer mostra que a valorização “da gleba é antecipada em função de mudanças na estrutura urbana que ainda estão por acontecer” (Ibidem) denotando a ação especulativa, onde o especulador aguarda o momento em que o 24 Estado promova as condições propícias de melhoramentos da terra. Por isso, o “acesso a serviços urbanos tende a privilegiar determinadas localizações em medida tanto maior quanto mais escassos forem os serviços em relação à demanda” (SINGER, 1982, p. 27). Desse modo, as áreas que recebem as melhorias executadas pelo Estado passam a ter um valor diferenciado. E assim, o mercado imobiliário se apropria dos benefícios da ação do Estado e “faz com que a ocupação dessas áreas seja privilégio das camadas de renda mais elevada, capaz de pagar um preço alto pelo direito de morar” (Ibidem). Resta aos pobres as áreas mais baratas da cidade e com menor, ou nenhum, investimento do Estado. Singer diz que o Estado assume papel determinante na demanda pelo uso e preço do solo urbano, já que sempre que o poder público: [...] dota uma zona qualquer da cidade de um serviço público, água encanada, escola pública ou linha de ônibus, por exemplo, ele desvia para esta zona demandas de empresas e moradores que anteriormente, devido à falta do serviço em questão, davam preferência a outras localizações. Estas novas demandas, deve-se supor, estão preparadas a pagar pelo uso do solo, em termo de compra ou aluguel, um preço maior do que as demandas que se dirigiam à mesma zona quando esta ainda não dispunha do serviço. Daí a valorização do solo nesta zona, em relação às demais. (1982, p. 34) Com relação às empresas que nada investem no solo urbano, o autor diz que “a renda diferencial paga por elas será maior na medida em que o novo serviço lhes permite reduzir seus custos de produção e/ou de circulação” (Ibidem). Além disso, a demanda dos moradores que é possibilitada pelo “novo serviço atrai famílias de renda mais elevada e que se dispõem a pagar um preço maior pelo uso do solo, em comparação com os moradores mais antigos, de renda mais baixa” (Ibidem). Singer evidencia, assim, o movimento de capital nas áreas da cidade e a valorização do solo urbano. Para mostrar a diferenciação das classes em áreas de solo mais valorizado, de acordo com o poder aquisitivo de cada classe, Smith analisa a localização da produção e da mão-de-obra, na cidade, a partir do princípio de “propriedades espaciais como elementos integrantes do valor de uso” (1988, p. 128). Citando Marx, Smith esclarece que: No transporte de pessoas ou de mercadorias, diz ele, "uma mudança material é efetuada no objeto do trabalho — uma mudança espacial, uma mudança 25 de lugar [...] Sua existência espacial é alterada, e com isto ocorre uma mudança no seu valor de uso, desde que seja alterada a localização desse valor de uso. Seu valor de troca aumenta na mesma proporção em que a mudança no valorde uso exige trabalho. (MARX, 1969 apud SMITH, 1988, p. 128) Assim, a mão-de-obra passa a ocupar um lugar determinado no espaço, que é portador de um valor simbólico e um preço. Fortalecendo a ideia do espaço não produzido ocasionalmente, seja na rede urbana ou na intraurbana, Corrêa acrescenta que sua produção “não é resultado da mão invisível do mercado, [...] ou de um capital abstrato que emerge de fora das relações sociais” (2016, p. 43). A produção do espaço é consequência de agentes “sociais concretos, históricos, dotados de interesses, estratégias e práticas espaciais próprias, portadores de contradições e geradores de conflitos entre eles mesmos e com outros segmentos da sociedade” (Ibidem). A partir do momento em que há o emprego de trabalho em melhorias – infraestrutura – o espaço passa a possuir sentido e valor. David Harvey elucida a forma de funcionamento da dinâmica do mercado de terras, como os agentes deste sistema participam na produção do espaço urbano e como seu lucro e renda se reproduzem: Os proprietários de terra recebem renda, os empresários recebem aumentos na renda baseados nas melhorias, os construtores ganham o lucro do empreendimento, os financistas proporcionam capital monetário em troca dos juros, ao mesmo tempo que podem capitalizar qualquer forma de receita acumulada pelo uso do ambiente construído em um capital fictício (preço da propriedade) e o Estado pode usar os impostos (atuais ou antecipados) como suporte para investimentos que o capital não pode ou não vai realizar, mas que não obstante expande a base para a circulação local do capital. Esses papéis existem, não importa quem os desempenha. Quando os capitalistas compram terra, viabilizam-na e constroem sobre ela usando seu próprio dinheiro; então eles assumem papéis múltiplos. Mas quanto mais capital eles adiantam nesse tipo de atividade, menos eles terão para investir diretamente na produção. Por essa razão, a produção e a manutenção dos ambientes construídos com frequência se cristalizam em um sistema extremamente especializado, vinculando os agentes econômicos que desempenham cada papel separadamente ou em combinações limitadas (2013b, p. 389) Essa relação econômica da produção de espaço se cristaliza nas cidades e se torna uma oportunidade de ganhos para os capitalistas. Além disso, Singer aponta que “a elevação do preço dos imóveis”, e também dos terrenos, “pode deslocar os moradores mais antigos e pobres, que vendem suas casas, quando proprietários, ou simplesmente saem quando inquilinos, de modo que 26 o novo serviço”, a cidade preparada pelo Estado, “vai servir aos novos moradores e não aos que supostamente deveria beneficiar” (1982, p. 34). Voltando às reflexões de Smith, temos que as relações espaciais complementam a compreensão do valor do espaço. O autor mostra que com o aumento do poder produtivo, “torna-se cada vez mais necessário que um número progressivamente maior de trabalhadores esteja concentrado espacialmente nas proximidades do lugar de trabalho” (1988, p. 132). A produção de espaço se torna fundamental no modo capitalista de produção, seja espaço para os trabalhadores, seja espaço para as classes mais ricas. O espaço passa a ter um valor financeiro, relativizado pela oferta de serviços e infraestrutura que nele foram inseridos. O autor ainda esclarece que o espaço geográfico como um todo seria a totalidade: [...] das relações espaciais organizadas, num grau maior ou menor dentro de padrões identificáveis, que adequadamente constituem a expressão da estrutura e do desenvolvimento do modo de produção. Como tal, o espaço geográfico é mais do que simplesmente a soma das relações separadas compreendidas em suas partes. Assim, a divisão mundial em mundos subdesenvolvido e desenvolvido, embora inexata, somente pode ser compreendida em termos de espaço geográfico com um todo. Ele envolve a padronização do espaço geográfico como uma expressão da relação entre o capital e o trabalho. Do mesmo modo, a integração do espaço pode ser entendida como expressão da universalidade do valor, se olharmos não para as relações espaciais específicas, mas para o espaço geográfico como um todo. (1988, p.130) Ele ainda afirma que pelas ações “a sociedade não mais aceita o espaço como um receptáculo, mas sim o produz; nós não vivemos, atuamos ou trabalhamos no espaço, mas, sim, produzimos o espaço, vivendo, atuando e trabalhando” (1988, p. 132). O papel de mercadoria que assume o espaço, como já apontado anteriormente, expressa o caráter dessa sociedade que o produz através do seu trabalho. A ideia de espaço como mercadoria ganha enfoque ideológico para o processo de reprodução do modo de vida capitalista. Desta maneira, Smith explicita que esse enfoque visa: [...] menos ao processo de produção, e mais à reprodução das relações sociais de produção que, diz ele, "constitui o processo central e oculto" da sociedade capitalista, e este processo é essencialmente espacial. A produção das relações sociais de produção não ocorre somente na fábrica, nem tampouco numa sociedade como um todo, de acordo com Lefebvre, "mas no espaço como um todo"; "o espaço como um todo tornou-se o lugar em que a reprodução das relações de produção se localiza". As relações espaciais são geradas "logicamente", mas tornam-se "dialeticizadas” através da atividade humana no espaço e sobre ele. É este espaço "dialeticizado" e de conflito […] que produz a reprodução, introduzindo nele suas múltiplas contradições." (1988, p. 140) 27 Assim, a produção do espaço é parte de um modo de produção. Vai além de um lugar de relações afetivas entre o indivíduo e o espaço. Deixa de ser abstrato, isolado na escala urbana ou somente uma expressão da sociedade, não podendo ser entendido apenas como local de enclausuramento de corpos. É produzido e negociado como mercadoria dentro do modo de produção capitalista. Desenvolvimento desigual A produção de espaço no capitalismo é parte fundamental na análise de Smith, no que tange o desenvolvimento desigual. É importante pensar como a produção do espaço público e a produção desigual de partes da cidade compõem com o movimento de capital a dinâmica urbana. Smith encaminha para uma abordagem econômica a fim de compreender a essência do desenvolvimento desigual do capital. Em sua concepção do desenvolvimento desigual, o autor mostra que “o desenvolvimento social não ocorre em todas as partes nem com a mesma velocidade nem na mesma direção3” (2012, p. 140). Smith continua afirmando que: [...] o desenvolvimento desigual deveria ser concebido como um processo bastante específico que possui lugar exclusivamente nas sociedades capitalistas e que se encontra diretamente enraizado às relações sociais fundamentais desse modo de produção. Sem sombra de dúvida, o desenvolvimento social em outros modos de produção também pode ser desigual, mas por razoes muito diferentes, possui uma transcendência social distinta e tem como resultado paisagens geográficas também diferentes. [...] No capitalismo, a relação entre áreas desenvolvidas e subdesenvolvidas constitui a manifestação mais óbvia e importante de desenvolvimento desigual, acontecendo não apenas na escala internacional mas também na escala regional e urbana [...] (Ibidem)4. Para ao desenvolvimento desigual, as ideologias burguesas universalizam “as formas e as relações sociais específicas do modo de produção capitalista em relações permanentes, naturais” (SMITH, 1988, p. 151), da mesma forma que acontece no 3 Tradução nossa, do roiginal: “[...] el desarrollo social no ocurre en todas partes ni con la misma velocidad ni en la misma dirección.” (SMITH, 2012, p. 140) 4 Tradução nossa, do original: “el desarrollo desigual debería ser concebido como un proceso bastante específico que tiene lugar exclusivamente en las sociedades capitalistas y que se encuentra directamente enraizado en lasrelaciones sociales fundamentales de este modo de producción. Sin lugar a dudas, el desarrollo social en otros modos de producción también puede ser desigual, pero lo es por razones muy diferentes, tiene una trascendencia social distinta y da como resultado paisajes geográficos también diferentes. [...] En el capitalismo, la relación entre zonas desarrolladas y subdesarrolladas constituye la manifestación más obvia e importante del desarrollo desigual, y esto ocurre no sólo a escala internacional sino también a escala regional y urbana [...]” (Ibidem). 28 desenvolvimento desigual. Pela ideologia, controla-se e se propagam as formas de produção de espaço. Acrescentando a visão de Marcelo Lopes de Souza, que compreende o espaço social como produto condicionador das relações sociais, temos que: [...] não é só o espaço em seu sentido material que condiciona as relações sociais! Também as relações de poder projetadas no espaço (espaço enquanto território) e os valores e símbolos culturais inscritos no espaço (espaço como espaço vivido e sentido, dotado de significado pelos que nele vivem), tudo isso serve de referência para as relações sociais: barreiras e fronteiras físicas ou imaginárias; espaços naturais ou construídos que, por razões econômicas, políticas ou culturais, resistem ao tempo e às investidas modernizantes; imagens positivas ou negativas associadas a certos locais [...] (2005, p. 99-100) A visão de Sousa mostra o espaço como um elemento modelador da sociedade, pelos símbolos e sentidos de que é dotado. Entretanto, o desenvolvimento desigual tem como principal fator, segundo Smith, a localização da força de trabalho no espaço urbano e a divisão do trabalho. Segundo o autor (1998, p. 164) a separação entre cidade e campo é a base histórica para a divisão social do trabalho, e assim, “somente com a libertação dos camponeses da terra e com sua migração para a cidade é que se consuma a separação final entre a cidade e o campo e, então, “somente quando o proletariado estivesse livre da necessidade e da responsabilidade de produzir seus próprios meios de subsistência é que essa divisão do trabalho poderia progredir como o fez”. Apesar desta separação ser também a base para a divisão do trabalho, seria ainda a base para a produção excedente, e “numa economia mais desenvolvida, a apropriação das vantagens naturais deixa de ser acidental” (SMITH, 1988, p. 152), não sendo o desenvolvimento desigual um acaso, mas um projeto de desigualdade saudável para a economia capitalista. Outro ponto relevante na teoria de Smith é a produção de cidades dentro do desenvolvimento desigual. Assim, é preciso saber que o “investimento de capital no ambiente construído está em sincronia com o ritmo cíclico mais geral de acumulação do capital” (1998, p. 181). O autor assinala que o capital investido no ambiente físico é de suma importância para o capitalismo, devido ao longo período de fixação do capital na paisagem urbana. Desvaloriza parcial ou inteiramente o ambiente urbano – com porte de investimentos distintos – deixando em evidência a ausência de 29 casualidade, na qual “o ritmo histórico do investimento no ambiente construído forja padrões geográficos específicos que, por sua vez, influenciam fortemente o programa de acumulação do capital” (Ibidem). Dessa forma, as crises de superacumulação podem gerar desvalorização de áreas inteiras onde o capital fixo é vulnerável, inclusive no espaço urbano. Para isso, Smith explica que: [...] a desvalorização é localmente específica e isto cria a possibilidade de que áreas inteiras do ambiente construído sofram uma desvalorização rápida e ampla. Harvey distingue três tipos de crises que eventualmente resultam desse processo: parciais, que são localizadas (por setor ou por área) em seu efeito, crises de transferência, nas quais o capital devia setores ou áreas inteiras em favor de outras e crises globais, nas quais todo o sistema capitalista fica até certo ponto afetado. (Ibidem) As crises fazem o movimento de capital e vice-versa. Nas cidades, ou no planejamento da produção de espaços, as épocas de grande investimento antecedem as épocas de crise. Como aponta o mesmo autor, após os períodos de superacumulação, seguem os períodos de desvalorização. E com o apoio de Marx, Smith aponta: Marx sugeriu uma explicação para esta relação entre novos setores de produção e as crises, em sua discussão sobre o capital fixo. Embora diferentes capitais tenham diferentes períodos de movimentação e sejam investidos em diferentes pontos, "o ciclo de movimentações inter- relacionadas que se realiza em alguns anos, no qual o capital é mantido seguro por sua parte constituinte fixa, fornece uma base material para as crises periódicas". É por esta razão, diz ele, que a crise sempre forma o ponto de partida de grandes e novos investimentos. (1988. p. 186) Se o solo e o capital fixo se desvalorizam com as crises, passariam a ser absorvidos e, posteriormente, entrariam na dinâmica de movimento de capital? Smith evidencia que “a obsolescência de velhas tecnologias e o surgimento de novas, tão vital para o capitalismo, é simultaneamente a transformação de velhas estruturas espaciais em novas” (1988, p.187). Quando o capital fixo se torna desvalorizado, ele passa a representar uma possibilidade de volta do capital circulante para um espaço determinado desse projeto de cidade. Dessa maneira, as crises capitalistas favorecem os projetos de planejamento estratégico, onde a cidade – espaço urbano – passará a representar uma forma de acumulação de capital. Segundo o Smith, nesse período de expansão: 30 [...] o capital circulante meramente facilita o investimento em capital fixo que agora assume sua missão histórica, como a alavanca da acumulação; cria- se uma nova e harmoniosa paisagem para a produção. Mas essas condições idílicas para o capital (e para a teoria da localização) são sempre e somente temporárias. (1988, p. 189) É nesse momento que se evidencia o movimento de capital dentro da cidade. Smith, ao analisar Harvey, deixa claro que "o equilíbrio espacial, no sentido burguês (igualização), é impossível sob as relações sociais do capitalismo, por razões profundamente estruturais” (1988, p. 192). Seja com o nome de higienismo, seja como a gentrificação, ou de qualquer outro termo inundado de ideologia, o capital precisa dessas roupagens a fim de mascarar o seu real caráter desigual. A mobilidade do capital e a produção do espaço urbano Ainda sobre a análise de Smith a respeito do desenvolvimento desigual, é interessante observar o movimento que percorre o capital pelas escalas variadas. A articulação entre as escalas é relevante para melhor compreender a expressão do modo de produção capitalista na produção do espaço urbano. Maria Encarnação Sposito traz nova reflexão a respeito da articulação entre essas escalas, afirmando que: Toda a compreensão requer a articulação entre as escalas, ou seja, a avaliação dos modos, intensidades e arranjos, segundo os quais os movimentos se realizam e as dinâmicas e os processos se desenvolvem, combinando interesses e administrando conflitos que não se restringem a uma parcela do espaço, mesmo quando os sujeitos sociais, que têm menor poder aquisitivo, parecem atados a territórios relativamente restritos. (2016, p. 130) Da mesma forma, Smith entende que as escalas são fundamentais para a saúde do modo de produção capitalista, já que “o capital produz escalas espaciais distintas [...] dentro dos quais o impulso para igualização está concentrado” (1998, p. 211). O autor elucida que a oscilação entre elas acontece porque “não são impermeáveis; as escalas urbanas e nacionais são produtos do capital internacional e continuam a ser moldadas por ele. Mas a necessidade de escalas separadas e de sua diferenciação interna é fixa” (Ibidem). Escolhemos explicar, em primeirolugar, a escala global, que estaria ligada à mundialização da economia, como mostra o mesmo autor, onde: “o que o capital herda 31 de uma forma ele se põe a reproduzir em outra” (1988, p. 201). Com “uma certa acumulação primitiva do espaço [...], começando no campo, oferece a condição essencial para se transformar a geografia do feudalismo em geografia do capitalismo” (Ibidem). Segundo o autor, a alteração específica da geografia pelo modo de produção capitalista transformou o mercado mundial baseado na troca “numa economia mundial baseada na produção e na universalidade do trabalho assalariado” (Ibidem). A partir da escala global, a produção do espaço estaria ligada “a diferenciação geográfica do globo, de acordo com o valor da força de trabalho” (SMITH, 1988, p. 203), no qual há “uma acentuada divisão internacional do trabalho e uma diferenciação sistemática entre a composição orgânica do capital em áreas desenvolvidas e subdesenvolvidas” (Ibidem). O desenvolvimento desigual na escala global necessita da desigualdade produzida em determinados pontos do mundo, sendo desigual porque produz avanços e integração onde convém. A precarização do trabalho e o empobrecimento da força de trabalho são características importantes no processo de desigualdade do modo de produção capitalista. Como aponta Smith, é expresso na economia e se materializa nas cidades quando a “geografia global do capitalismo” representa a vulgarização do “desenvolvimento do subdesenvolvimento” (1988, p. 202), ou seja, um modo uniforme de produzir as desigualdades. O autor evidencia que: Quanto mais a força de trabalho é mercadorizada na economia mundial, mais o valor da força de trabalho se torna um instrumento de ruptura de tendência para a integração espacial. Ele se torna, assim, tão aparente que o fundamento político do capital mundial é a principal barreira ao maior desenvolvimento social. (1988, p. 204) Além dessa abordagem da escala global, a internacionalização do capitalismo contribui para o fortalecimento do estado-nação capitalista, sendo esta mais uma escala de análise. O conjunto de leis que fazem a gestão do Estado, possibilita e protege as formas de reprodução do capitalismo, como as “leis comerciais, a regulamentação da reprodução de força de trabalho e apoio para o dinheiro local, os quais são todos necessários no nível do capitalista coletivo mais do que no do individual” (SMITH, 1988, p. 204). Dessa maneira, o Estado passa a oferecer as condições ideais para a manutenção do modo de produção capitalista, oferecendo não só leis, mas, também, os elementos que protegerão o capital contra os interesses 32 da classe trabalhadora. Smith elucida que a existência do Estado “se desenvolve para realizar essas tarefas, assim como para defender o capital militarmente, onde seja necessário” (1988, p. 205). Tais tarefas seriam as “várias bases infraestruturais e de leis comerciais, a regulamentação da reprodução de força de trabalho e apoio para o dinheiro local” (Ibidem). A partir de então, é determinado “um conjunto de jurisdições territoriais que são colocadas na paisagem, com arame farpado e postos alfandegários, cercas e guardas de fronteiras” (Ibidem), loteando o mundo em diversas nações. Com relação à divisão do trabalho, esta é garantida internacionalmente pela demarcação de fronteiras dos Estados, possibilitando a defesa das regiões mais desenvolvidas do fluxo de mão-de-obra de regiões menos desenvolvidas. Assim, interno ao Estado, a colonização de certas áreas mais desenvolvidas sobre as menos desenvolvidas garante a divisão interna do trabalho, territorializando-o inclusive nos centros urbanos. A divisão do trabalho, e sua distribuição no território do Estado, se torna relevante para nós quando Smith mostra a sua expressão espacial nesta escala. O autor põe em evidencia os diferentes setores da economia nacional e internacional, já que: [...] estão concentrados e centralizados em certas regiões. Isto é o que geralmente chamamos de divisão territorial do trabalho. Ela opera numa escala maior do que a urbana, que é um único mercado de trabalho geográfico, mas abaixo da divisão internacional do trabalho, onde a mobilidade do trabalho entre diferentes nações-Estados é severamente restringida. Apesar desta última diferença, a cristalização de regiões geográficas distintas na escala nacional tem a mesma função que a divisão global entre o mundo desenvolvido e o mundo subdesenvolvido. Ambos constituem fontes geograficamente fixas (relativamente) de trabalho assalariado, um na escala internacional e o outro sob o controle mais direto do capital nacional. (1988, p. 207-208) Quanto mais centralizado é o capital “mais importante se torna o nível de diferenciação geográfica, uma vez que maiores capitais estão operando na escala nacional e internacional” (SMITH, 1988, p. 209). Conforme se subdivide em corporações “pode acentuar mais ainda a divisão territorial” (Ibidem) do Estado- Nação. Assim, como exemplo dessa repartição interna dos Estados, regiões recebem 33 mais recursos para pesquisa e desenvolvimento científico devido à especialização e ao nível de instrução da população da mão-de-obra. Em contrapartida, as linhas de produção podem ser localizadas em regiões “com grande disponibilidade de trabalhadores não-especializados” (Ibidem), criando diferenças sócias devido a essa localização geográfica dos investimentos em educação dentro do mesmo Estado- nação. Eis aqui a desigualdade no Estado: garantir os mecanismos do capital e sua movimentação dentro da nação, possibilitando a criação da exploração de áreas mais pobres do Estado-Nação por ele mesmo. Na análise da escala mais próxima a nós, a produção do espaço urbano acontece com a centralização da atividade produtiva no modo de produção capitalista. Smith mostra que o capitalismo herda estruturas do espaço urbano presentes em sociedades pré-capitalistas como a divisão entre cidade e campo, mas evidencia que “a riqueza econômica centralizada e a atividade representada pela cidade pré- capitalista resultaram primordialmente da necessidade de um sistema organizado de mercado de trocas ou ainda das funções religiosas ou de defesa” (1988, p. 197). De centro comercial a uma nova forma urbana, onde o mercado de trabalho passa a exercer o controle geográfico da escala urbana, o autor mostra que unicamente com: [...] o desenvolvimento e a expansão do capital industrial é que a centralização da atividade produtiva veio superar a função de mercado como a determinante do desenvolvimento urbano. Se a escala urbana enquanto tal é a expressão necessária da centralização do capital produtivo, os limites geográficos à escala urbana [...] são determinados, em primeiro lugar, pelo mercado de trabalho local e pelos limites ao deslocamento diário para o trabalho. Com o desenvolvimento da cidade capitalista, há uma diferenciação sistemática entre o local de trabalho e o local de residência, entre o espaço da produção e o espaço da reprodução. (Ibidem) Para o capitalismo há a necessidade de concentração da mão-de-obra próximo aos lugares de produção, já que “a importância do deslocamento para o trabalho e dos limites à transferência em massa da força de trabalho não é simplesmente uma questão física” (SMITH, 1988, p. 198). Assim, nesse sistema “o custo do deslocamento para o trabalho é um componente – do valor da força de trabalho e um componente que assume importância – crítica na expressão geográfica do valor da força de trabalho” (Ibidem). O deslocamento desse trabalho abstrato5 é necessário para que o 5 Segundo Marx: “O produto não é mais uma mesa, uma casa, um fio ou qualquer outra coisa útil. Todas as suas qualidades sensíveis foram apagadas. E também já não é mais o produto do carpinteiro, do pedreiro, do fiandeiro ou de qualquer outro 34 espaço urbano tenha caráter de produção e de reproduçãoda força de trabalho, afirmando-se, assim, como mercado de trabalho. O autor aponta que: [...] os limites geográficos aos mercados de trabalho diários expressam os limites à integração espacial na escala urbana: onde os limites urbanos se tornaram super-estendidos, surge a ameaça de fragmentação e desequilíbrio na universalização do trabalho abstrato; onde são por demais restritos geograficamente, a força de trabalho urbana é comparativamente limitada e a oportunidade surge da estagnação prematura no desenvolvimento das forças produtivas. A expansão do espaço urbano não é somente uma questão de aumento na centralização das forças produtivas ou da escala na qual ocorre o sistema diário de trabalho concreto. Ele deveria ser antes interpretado como a expansão da esfera geográfica diária do trabalho abstrato. (Ibidem) A partir da ideia do espaço urbano como mercado de trabalho, o uso do solo assume o papel central na valorização do espaço. A mudança do valor de uso pelo valor de troca fez do solo mercadoria6, assumindo valores variados e correspondentes à demanda da economia. O solo passa a atender a demanda da sociedade, estrategicamente moldada pela ideologia, gerando renda. Assim, Smith mostra na medida em que: [...] o uso residencial, industrial, de lazer e outros usos do solo são diferenciados e coordenados no nível intra-urbano, a coesão do espaço urbano resulta da cooperação de uma função diferente do capital. Por mais que o fenômeno do desenvolvimento urbano resulte da centralização do capital de produção, sua diferenciação interna resulta da divisão entre este e outros usos do solo, sendo dirigido através do sistema de renda do solo. (1988, p. 199) O autor deixa em evidencia o movimento de capital como resultado “direto do funcionamento da renda do solo, um eixo binário – desde baixas rendas do solo na periferia até altas rendas no centro – é organizado através dos padrões mais complexos de diferenciação urbana” (Ibidem). Entretanto, o solo não se valoriza por si só e não é uma mercadoria, em princípio, fruto de uma linha de produção. Smith aponta a unidade básica do espaço urbano como “o espaço absoluto individual da propriedade privada e cada um desses espaços tem preço na forma de renda do solo” (1988, p. 200). Essa renda do solo trabalho produtivo determinado. Com o caráter útil dos produtos do trabalho desaparece o caráter útil dos trabalhos neles representados e, portanto, também as diferentes formas concretas desses trabalhos, que não mais se distinguem uns dos outros, sendo todos reduzidos a trabalho humano igual, a trabalho humano abstrato”. MARX, Karl. O capital: Crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013 6 Como visto anteriormente no item 2.1, subitem O espaço como mercadoria. 35 acontece por fatores como “tamanho, forma de superfície, utilização atual, [...] e sua relação com outros melhoramentos e lugares (centro da cidade, transporte, rede de esgotos)” (Ibidem). Este sistema, segundo ele, deveria nivelar: [...] o espaço urbano à dimensão de valor de troca, mas o faz como um meio de então coordenar e integrar o uso dos espaços individuais dentro do espaço urbano como um todo. A igualização do espaço urbano na estrutura de renda do solo torna-se o meio para sua diferenciação. Os usos competitivos são geograficamente selecionados, em primeiro lugar, através do sistema de renda do solo. Entretanto, não há certamente garantia alguma de integração efetiva. (Ibidem). Além disso, os ganhos financeiros pelas características geográficas são potencializados a partir do momento em que o governo promove a infraestrutura urbana, a fim de “manter as condições para um desenvolvimento ordenado do espaço urbano, o Estado (no âmbito local ou nacional) geralmente intervém, desde que seja capaz de mudar os rumos do mercado imobiliário” (Ibidem). A partir de então, passa a alterar os interesses do mercado imobiliário e com o planejamento urbano, cria as diferenças na geografia da cidade. Assim, “a ordem do mercado imobiliário é modificada em nome de uma ordem coletiva para o capital, mas o resultado efetivo poderia bem ser a desordem” (Ibidem). Passando para valor de troca, o solo urbano é uma mercadoria para o mercado imobiliário. O solo urbano passa a ter definitiva importância no sistema capitalista como um todo, perdendo, assim, a função de atender necessidades das classes mais pobres. Essa última, passa a sofrer com os preços altos praticados nos centros (e não só nos centros), sendo empurradas para a periferia das grandes cidades, onde o solo é menos valorizado – o que não implica prejuízo para os proprietários da terra – dificultando o acesso dessas classes mais pobres às partes mais enobrecidas da cidade. A renda do solo, não é comprometida, somente deslocada para as escalas estado-nação e global, como aponta Smith: Na medida que a renda do solo se torna expressão da taxa de juros com o desenvolvimento histórico do capital, a estrutura da renda imobiliária se interliga à determinação do valor no sistema como um todo. Apesar disto, e na medida em que a própria terra se torna objeto de troca e desenvolvimento especulativo, a função integradora da renda do solo é perturbada. Reagindo ao estímulo da especulação, a renda do solo é sistematicamente impedida de integrar e coordenar o desenvolvimento urbano de uma forma condizente com as exigências da universalização do trabalho abstrato. As contradições se deslocam para cima e para fora. (1988, p. 200) 36 Como já apontado, o movimento de capital entre as escalas acontece de maneira dinâmica, o que nos faz perceber que tais escalas não representam barreiras ou limites para o modo de produção capitalista. Pelo contrário, são favoráveis à sua saúde. Além disso, apontamos também que a mobilidade do capital entre as escalas, não confere acesso às classes mais pobres, ao contrário, cria mais barreiras e desigualdades. O movimento de capital nas escalas – o “vaivém” da desigualdade Smith apresenta a ideia do movimento em vaivém do capital, como a acumulação em poucas mãos, em um lugar, e a retirada de capital de muitas outras mãos, de outros lugares. Portanto, a desigualdade é explicada por ele da seguinte maneira: Se a acumulação do capital acarreta o desenvolvimento geográfico e se a direção desse desenvolvimento é guiada pela taxa de lucro, então podemos pensar no mundo como uma "superfície de lucro" produzida pelo próprio capital, em três escalas separadas. O capital se move para onde a taxa de lucro é máxima (ou, pelo menos, alta), e os seus movimentos são sincronizados com o ritmo de acumulação e crise. A mobilidade do capital acarreta o desenvolvimento de áreas com alta taxa de lucro e o subdesenvolvimento daquelas áreas onde se verifica baixa taxa de lucro. Mas o próprio processo de desenvolvimento leva à diminuição dessa taxa de lucro mais alta. (1988, p. 212). O autor emprega o termo superfície de lucro para o espaço urbano. Já havíamos apontado anteriormente que o espaço possibilita lucro e, ao nos localizar no espaço, tornamo-nos parte dessa valorização como indivíduos que consomem e vendem a força de trabalho, garantindo ou influenciando (pelas lutas por direitos) a variação da taxa de lucro. Esse vaivém de capital se move “para onde a taxa de lucro é máxima (ou, pelo menos, alta), e os seus movimentos são sincronizados com o ritmo de acumulação e crise” (Ibidem). Assim, em todas as escalas, expressa a necessidade de desigualdade para a saúde do modo de produção capitalista. Os investimentos em áreas outrora degradadas nada mais são do que oportunidades esperadas de aumento das taxas de lucro. Smith explica o vaivém de capital da seguinte maneira: O subdesenvolvimento, como o desenvolvimento, ocorre em todas as escalas espaciais e o capital tenta se movimentar geograficamente de tal maneira que
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