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TEORIA DA LITERATURA Marta Morais da Costa E d u ca çã o T E O R IA D A L IT E R A T U R A M ar ta M or ai s d a C os ta O estudo teórico da literatura implica conhecer os modelos que orienta- ram, explícita ou implicitamente, a criação de textos literários ao longo da histó- ria da cultura. Assim, uma disciplina que se proponha a investigar os gêneros literários, como esta que ora apresentamos, procura trazer informações que esclareçam a origem de termos e conceitos, os textos mais importantes dos diferentes gêneros e subgêneros, bem como a classificação e as diferenças e semelhanças estabelecidas entre os textos, na medida em que eles foram se espelhando e interagindo uns com os outros. Marta Morais da Costa IESDE BRASIL S/A Curitiba 2016 Teoria da Literatura CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ C874t Costa, Marta Morais da Teoria da literatura / Marta Morais da Costa. - 1. ed. - Curitiba, PR : IESDE BRASIL S/A, 2016. 296 p. : il. ; 21 cm. ISBN 978-85-387-6217-1 1. Literatura - Filosofia. 2. Estruturalismo (Análise literária). I. Título. 16-35140 CDD: 801 CDU: 82.0 Direitos desta edição reservados à Fael. É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Fael. © 2016 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais. Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br Produção FAEL Direção Acadêmica Francisco Carlos Sardo Coordenação Editorial Raquel Andrade Lorenz Revisão IESDE BRASIL S/A Projeto Gráfico Sandro Niemicz Capa Evelyn Caroline dos Santos Betim Imagem Capa Elena Schweitzer/Shutterstock.com Arte-Final Evelyn Caroline dos Santos Betim Sumário Carta ao aluno | 5 1. Natureza do fenômeno literário | 7 2. Gêneros literários: conceituação histórica | 25 3. Gêneros literários: o lírico | 43 4. Gêneros literários: o épico ou narrativo | 65 5. Gêneros literários: o dramático | 83 6. Gêneros literários: o ensaístico | 109 7. A linguagem poética: poema X poesia | 125 8. A linguagem poética: o ritmo e a rima | 151 9. A estrutura da narrativa: romance | 181 10. A estrutura da narrativa: elementos do romance | 205 11. A estrutura da narrativa: conto e novela | 227 12. A estrutura da narrativa: crônica e ensaio | 247 Gabarito | 267 Referências | 285 Carta ao aluno O estudo teórico da literatura implica conhecer os mode- los que orientaram, explícita ou implicitamente, a criação de textos literários ao longo da história da cultura. Assim, uma disciplina que se proponha a investigar os gêneros literários, como esta que ora apresentamos, procura trazer informações que esclareçam a origem de termos e conceitos, os textos mais importantes dos diferentes gêneros e subgêneros, bem como a classificação e as diferenças e semelhanças estabelecidas entre os textos, na medida em que eles foram se espelhando e interagindo uns com os outros. O primeiro objetivo da disciplina é apresentar as linhas gerais que definem os três gêneros literários clássicos: o lírico, o épico e o dramático. Ao mesmo tempo, os conteúdos mostram que essa clas- sificação não é definitiva e permanente, em especial na atualidade, momento em que a cultura e a literatura passam por alterações pro- fundas dos paradigmas da ciência e da arte. Um segundo objetivo é o de tratar em forma mais minuciosa as principais características desses três gêneros, e as possíveis classifi- cações de subgêneros que eles contêm. Para atender a esse objetivo, – 6 – Teoria da Literatura também são tratados tópicos teóricos que abordam os aspectos de identidade de cada gênero, seja os relativos aos conteúdos e à contextualização histórica, seja aqueles que dizem respeito aos aspectos discursivos. Um terceiro objetivo é o de apresentar as ideias manifestas em textos literários, com sua transcrição parcial, acompanhada de comentários sintéti- cos e objetivos. Privilegia-se, portanto, o estudo do texto literário como base para melhor compreensão das ideias teóricas expostas. Afinal, a literatura é composta pelos textos literários; a teoria lhes é posterior e explicativa. Um último objetivo é o de expandir o sentido da leitura da literatura para outras expressões artísticas, criando relações entre literatura e artes, como a música, o teatro, as artes plásticas e o cinema. A intenção é favorecer a ampliação do sentido da literatura para integrá-la à cultura humana e ao momento histórico. A tarefa de atingir a esses objetivos permite que, em cada assunto tra- tado, as informações trazidas favoreçam a reflexão do leitor e o desejo de conhecer melhor as obras citadas. Estas constituem uma biblioteca mínima para o aprofundamento dos tópicos desenvolvidos, dado que a aprendizagem integral se faz também com a continuidade dos estudos, fora dos limites da orientação do profissional docente, quando o estudante se lança, por desejo e vontade próprios, à leitura e à pesquisa complementares. Por fim, a teoria da literatura que trata dos gêneros literários auxilia fortemente na compreensão do fato literário e nas razões que orientaram os escritores a criar poemas, narrativas e peças de teatro filiados de alguma maneira a textos anteriores e a concepções discursivas que foram se repetindo ao longo dos tempos. É a permanência da algumas características que, guar- dadas as devidas proporções e contextualizações, continuam a direcionar o pensamento criativo ou a serem combatidas por esse pensamento, na busca de novas formas de expressão escrita. A leitura de poemas, peças teatrais ou narrativas, realizada com o emba- samento teórico correspondente e atualizado, cresce e se dinamiza, capaci- tando o leitor a se comunicar com qualidade com os textos literários, priorita- riamente, e depois com o mundo que esses textos apresentam, representam e presentificam. Porque, teoria e prática são os fundamentos da aprendizagem, do conhecimento e do refinamento da sensibilidade e do senso estético. Natureza do fenômeno literário Para tratar da natureza do fenômeno literário, convém lem- brar que ele é uma criação histórica, ideológica e mutante. Isso se deve a vários fatores: o primeiro deles diz respeito à ideia que se faz sobre a constituição do que seja um texto literário, que resulta em uma unidade completa e polissêmica. Para tanto, convém analisar a natureza do texto literário para que seja possível estabelecer alguns parâmetros de avaliação e julgamento. 1 – 8 – Teoria da Literatura 1.1 Os conceitos do discurso literário Os sentidos atribuídos ao termo literatura variaram ao longo da história e apresentam variáveis em cada leitor. As diferentes acepções do termo não se referem apenas ao caráter singular de cada indivíduo ou de cada época histó- rica. São inerentes à natureza do objeto que estudamos. O texto literário se qualifica muito mais pelas diferenças que apresenta quando comparado aos não literários do que por seu próprio e mutável modo de ser. Portanto, tratar de textos literários implica conhecer as infinitas nuan- ces que eles vão assumindo na obra de um mesmo autor, nos autores de uma mesma geração, na sucessão de autores, obras e épocas literárias e artísticas. Apesar da dificuldade decorrente dessa mutabilidade, é possível verificar que algumas características permanecem ao longo do tempo. É sobre essas qualidades permanentes que este capítulo vai discorrer. Manuel Bandeira (1886-1968), poeta brasileiro, escreveu no poema Testamento a seguinte estrofe: (BANDEIRA,1970) [...] Vi terras da minha terra, Por outras terras andei. Mas o que ficou marcado No meu olhar fatigado, Foram terras que inventei. [...] É possível encontrar nesses poucos versos uma das razões da existência da literatura: ver terras, andar por espaços reais deixam marcas no ser humano viajante, mas o que realmente tem importância é a invenção, aquilo que, se não existe em algum lugar, existe no desejo do escritor. E é o fato mais importante, mais real do que a própria realidade. Essa condição de criação de – 9 – Natureza do fenômeno literário realidades, a partir de estímulos do concreto, do referencial, do observável, é a condição básica da literatura. Mesmo que esteja lastreada no real, é pela capacidade de recriação, de refeitura, de tradução em palavras que o mundo ganha existência. Mais concretamente, a literatura se apoia necessariamente em cinco elementos indispensáveis: um autor, um leitor, um texto, uma língua e um referente (COMPAGNON, 1999). Essa associação é a base de qualquer reflexão teórica, que pode tratar do todo ou de partes específicas de cada um desses elementos. Do ponto de vista da autoria, é cada vez mais frequente a separação entre a biografia do autor e o texto literário que escreveu. Roland Barthes, em artigo de 1968, intitulado La mort de l’auteur (A morte do autor), trata o produtor do texto como um “personagem moderno”, encarnação do indiví- duo burguês, contaminado pela ideologia do capitalismo, o proprietário do texto (COMPAGNON, 1999). Para Barthes, deve-se levar em consideração a linguagem, impessoal e anônima, portanto valorizando mais a transformação do escritor em discurso, isto é, numa organização textual histórica e ideolo- gicamente marcada na linguagem. É com linguagem que o leitor conhece o autor. Portanto, o que ele viveu e pensou na sua realidade pessoal pode não ter originado ou aparecer na íntegra naquilo que escreveu e no assunto ou tema de que tratou. Cabe ao leitor compreender no texto o que ele diz, indepen- dentemente das intenções do autor. O new cristicism norte-americano consi- derava a relação texto-intenção do autor como intentional fallacy, ou “ilusão intencional” ou “erro intencional”. Em 1969, o filósofo Michel Foucault na conferência Qu’est-ce qu’un auteur? (O que é um autor?) também tratou dessa questão e concluiu que a atividade do leitor pode acontecer mesmo que ele nada saiba sobre o autor e suas intenções. O foco principal da literatura é o texto: dele sairão os sentidos, as relações do interior do texto e do texto com os demais textos da realidade. Quanto ao leitor, seu lugar é o da compreensão e da interpretação do discurso literário. A evolução histórica da importância atribuída ao papel do leitor demonstra que houve, a partir da segunda metade do século XX, a valorização cada vez mais intensa de sua atividade. Surge em 1967, no dis- curso de Hans Robert Jauss, na abertura do ano letivo da Universidade de – 10 – Teoria da Literatura Constança, na Alemanha, a estética da recepção, uma corrente da teoria que reavalia a história da literatura a partir dos modos de ler e do desempenho interpretativo do leitor. O aspecto mais significativo dessa teoria é o de que o texto já contém, na sua organização verbal, a pressuposição do trabalho do leitor. Em outras palavras, ao escrever a obra o autor já visualiza sua recepção, já compõe no próprio texto literário uma figura de leitor, prevê as reações dele no modo como descreve, por exemplo, uma cena român- tica, ou de suspense, ou de humor. Há, quando se considera a organização verbal da obra, um certo controle sobre o modo como o leitor entenderá o texto e reagirá a ele. Esses componentes de previsão da recepção do texto, outro teórico da estética da recepção, Wolfgang Iser (1996), denominará lei- tor implícito, (ISER, 1996). 1.1.1 A linguagem como distinção entre discurso literário e não literário Quanto ao componente língua de uma obra literária, Compagnon explica que, mesmo em se tratando de neologismos, o texto literário somente será compreensível se houver um conhecimento linguístico mais ou menos comum aos dois sujeitos do diálogo literário: o autor e o leitor. Mais do que uma compreensão linguística do texto (sintaxe, léxico, morfologia, semân- tica), o discurso literário fará uso subversivo das normas da língua, buscando a expressão que melhor se ajuste à rede de sentidos que o texto quer criar. Rede que terá como objetivo a recriação da língua cotidiana, o estabeleci- mento de patamares poéticos, que criam uma camada mais densa de signifi- cados e, principalmente, coloca esses significados em uma proposital rede de relações semânticas hiperssignificativa. (CRUZ E SOUSA, 1981) Ah! toda alma num cárcere anda presa, Soluçando nas trevas, entre as grades Do calabouço olhando imensidades, Mares, estrelas, tardes, natureza. – 11 – Natureza do fenômeno literário Nesse fragmento de poema de Cruz e Sousa, pode-se observar como a descrição da natureza física (trevas, mares, estrelas, tardes) não se referem à sua forma concreta, mas devem ser entendidas como metáforas, figuras que apontam para modos de ser íntimos, da alma. Entre as palavras ali apresen- tadas, também se observa uma relação de correspondência de sentidos: as trevas da noite são as trevas da alma (a dor, o sofrimento, a angústia e outros). O calabouço é mais a prisão do corpo, que evita que a alma possa subir às imensidades do espírito. A linguagem cotidiana visa mais a ação e a informação, para atingir o nível da compreensão, mas dificilmente pede atitude interpretativa, como o faz sempre a literatura. Vejamos como isso ocorre em textos concretos. A mesma engenharia que encurtou assombrosamente as distâncias entulhou o mundo com automóveis que atravancam as vias expressas e cuja fumaça promete esturricar o planeta. Na tentativa de com- preender os mistérios que permeiam uma estranha economia na qual mais e menos não se anulam, muitos se puseram a analisar seus eventos capitais – especialmente a Segunda Guerra Mundial, aquele que talvez seja o mais importante dos acontecimentos do século XX. (CASTRO, 2007) As informações fornecidas são o objetivo principal do texto: as conse- quências negativas do avanço tecnológico, a existência de pesquisadores que tentam compreender o fenômeno, a Segunda Guerra Mundial, como aconte- cimento histórico importante. Outra é a intenção de Carlos Drummond de Andrade ao enfocar o mesmo momento histórico quando escreve Carta a Stalingrado, sobre um dos episódios épicos, heroicos da Segunda Grande Guerra: a resistência extrema, até a total destruição da cidade de Stalingrado (hoje Volgogrado), para não se render ao exército alemão nazista. (DRUMMOND, 1971, p. 130) Stalingrado... Depois de Madri e de Londres, ainda há grandes cidades! O mundo não acabou, pois que entre as ruínas – 12 – Teoria da Literatura Outros homens surgem, a face negra de pó e de pólvora, E o hálito selvagem da liberdade Dilata os seus peitos que estalam e caem Enquanto outros, vingadores, se elevam. A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais. Os telegramas de Moscou repetem Homero. Mas Homero é velho. Os telegramas cantam um mundo novo Que nós, na escuridão, ignorávamos. Mais do que o assunto, o que sobressai é a sequência de imagens com intenção de exaltar o foco de resistência (“homens, a face negra de pó e de pólvora”), a poética metáfora (“o hálito selvagem da liberdade”), o conflito em imagens de morte e vida, contraditórias e humanas (“seus peitos que estalam e caem” opostos a “outros, vingadores, se elevam”), a sonoridade do jogo de palavras (pó e pólvora) e a sequência de verbos que dinamiza o verso (estalam, caem, elevam). Esses procedimentos comprovam que o texto busca outros efeitos que não sãoapenas os de informar o leitor. Além dessas qualidades, a percepção de que a literatura de teor lírico e estético recua ante o horror da guerra, substituída pelo texto não literário do jornal, mais objetivo e informativo. Vemos, portanto, na comparação entre os dois textos, aparecerem carac- terísticas e funções diferentes que permitem compreender que a literatura tem uma natureza própria e uma função que ultrapassa a notícia ou fato, obrigando o leitor a interpretar o que lê, não apenas a conhecer o assunto de que o texto trata. Essa diferença exemplifica bem a afirmação de que a “lite- ratura é tradicionalmente uma arte verbal”. É exatamente nas palavras – no verbal – que podemos encontrar e valo- rizar o caráter estético da literatura. A linguagem entendida como “todo sis- tema de comunicação que utiliza signos organizados de modo particular” no dizer do linguista Iuri Lotman ( apud PROENÇA FILHO, 1986). A lín- gua é um sistema de signos e a linguagem é uma atividade produzida pelo – 13 – Natureza do fenômeno literário falante-escritor sobre esse sistema. Portanto, a investigação sobre a natureza da literatura não pode, em hipótese alguma, ignorar a atividade do escri- tor sobre o sistema da língua. É na linguagem que se revela a qualidade do texto literário. É dessa atividade, exercida de modo pessoal e particular, que se forma o estilo individual de cada escritor. Pode-se concluir que uma das distinções entre o discurso literário e o não literário é que o primeiro, enquanto objeto linguístico, está apoiado na cono- tação, na plurissignificação (em que os sentidos se multiplicam pela força da interpretação do leitor), enquanto o texto não literário é monossignificativo, de sentido mais fixo e comum a todos os leitores. 1.1.2 A literatura enquanto criação: o autor e o leitor A partir do século XIX, o critério de valoração do texto literário recebeu impulso com a defesa da ideia de que a busca do novo era um padrão indis- pensável aos textos denominados literários. As noções de criatividade, indivi- dualidade e subjetividade introduzem o pensamento de que o texto literário somente mereceria valor se apresentasse qualidades de inovação. O autor O caráter criativo do texto literário decorre do exercício de liberdade do artista, seja na questão da linguagem e da multiplicação dos sentidos, seja porque, por estar inserida em uma cultura, a literatura realiza um movimento duplo de respeito à tradição cultural dos povos e a busca de romper com essa tradição, instaurando o novo, o diferente, o incomum. Essa perspectiva dialética pode ser conferida na sucessão dos estilos de época – ou períodos literários ou tendências estéticas – ao longo da história. Eles correspondem às respostas que a arte literária foi atribuindo ao modo diferente de interpretar o mundo, próprio de cada época histórica. Esse movi- mento contínuo e motivado pela necessidade e pela urgência de dar respostas aos desafios do cotidiano, às manifestações do pensamento e aos impulsos do inconsciente e do imaginário, produz o aparecimento de diferentes gêneros literários, de diferentes modos de expressão narrativa e poética, de diferente entendimento das funções da literatura, de alterações substanciais dos modos de escrita e organização dos textos literários. – 14 – Teoria da Literatura A criação literária não é, portanto, apenas um desejo individual do escri- tor, mas está relacionada à ideologia, às condições de produção, às mudanças nas expectativas do público leitor, ao papel do escritor na cultura, às necessi- dades humanas de expressão, à capacidade reflexiva dos criadores. No início do século XIX, o movimento artístico do Romantismo opôs-se ao Neoclassicismo do período anterior, não pela necessidade de renovação sim- plesmente, mas porque o Neoclassicismo não conseguiu mais responder aos anseios da sociedade industrial nascente, à nova percepção da natureza – seja física, seja emocional – da sociedade burguesa, que ascendia ao poder. A lin- guagem literária romântica manifesta o desejo de liberdade dessa outra visão de mundo (cosmovisão), exigindo a quebra dos padrões da língua e da lin- guagem figurada, almejando uma sintonia maior com a emergência das novas nacionalidades políticas, da curiosidade por outras terras, culturas e épocas históricas. O Romantismo não apenas reage a essas alterações externas, como também cria uma nova sensibilidade, mais emotiva, mais questionadora, menos acomodada à tradição, como ficou comprovado na influência exercida pelo romance As aventuras do jovem Werther, de Goethe (1785), que incenti- vou, sem o querer, uma sequência trágica de suicídio de jovens, identificados e se reconhecendo no personagem Werther. O Romantismo criou uma lite- ratura que, por força da repetição de padrões ao longo dos anos em que teve vigência, formou a sensibilidade emotiva e rebelde que passou a identificar artistas, leitores e escritores no século XIX. Tome-se o exemplo de Byron, Victor Hugo, Musset, Álvares de Azevedo e Castro Alves. O leitor A literatura considerada fenômeno artístico de criação não afeta exclusi- vamente o artista criador, mas estabelece exigências também quanto ao pro- cesso de sua recepção pelo leitor. Devido à associação necessária entre autor e leitor (é o leitor que dá vida à obra literária, pois um livro não lido existe somente enquanto um objeto), qualquer alteração inovadora nos padrões tra- dicionais da escrita literária acaba se refletindo na mudança de sua forma de recepção. A quebras das normas da tragédia clássica francesa do século XVII com a representação do Le Cid (1636), de Pierre Corneille, deu origem à longa Querela dos Antigos e dos Modernos (1653-1715), uma polêmica travada entre os intelectuais franceses partidários da escrita clássica e os que acredita- vam na alteração dos padrões dessa escrita, defendendo a modernidade. – 15 – Natureza do fenômeno literário Da mesma maneira, o século XX foi pródigo em manifestos e expli- cações sobre novas maneiras de escrever e ler a literatura; entre eles, o Futurismo (1910), o Cubismo (1924), a Poesia Pau-Brasil (1924), a Poesia Concreta (1956). A quebra dos padrões tradicionais da leitura afeta o que a estética da recepção (1967), corrente da Teoria Literária que estuda a leitura e os modos de ler, denomina “horizonte de expectativas”, isto é, modos de ler apren- didos ao longo de experiências anteriores de leitura de textos formam um modo pessoal de ler. O leitor compreende romances, por exemplo, a partir da aprendizagem construída em experiências de leituras anteriores de textos semelhantes. Em cada novo texto, o leitor pretende aplicar seus conhecimen- tos e ser bem-sucedido na tarefa, aplicando padrões de leitura conhecidos. Quando o texto é inovador, o leitor reage com desconfiança, insegurança, curiosidade ou recusa. Há, portanto, da parte do leitor, a necessidade de ajustes do “horizonte de expectativas” diante dos textos criativos. Uma obra de criação que propõe um estranhamento, termo com que caracterizavam a literariedade os Formalistas Russos no início do século XX, também tem que ser entendida como estranha pelo leitor. Assim, o ciclo da criação se completa e se efetiva. 1.2 O discurso literário: características Depois das explanações sobre a conceituação de literatura como uma arte que se desenvolve na linguagem e das preocupações do autor com a pre- cisão dos termos e a escolha dos efeitos que possam vir a ser provocados no leitor, convém estudarmos de modo aproximativo como se verificam na lin- guagem os procedimentos que formam a literariedade de um texto. 1.2.1 Características do discurso literário Para Domício Proença Filho (1986), a distinção entre discurso literário e não literário passa por um conjunto de características interdependentes. Para esse pesquisador, a literaturase manifesta como tal por agregar complexidade, multissignificação, predomínio da conotação, liberdade na criação, ênfase no significante e variabilidade. – 16 – Teoria da Literatura 2 A complexidade – por complexidade, Proença Filho entende a capacidade da literatura ultrapassar a reprodução da realidade e atingir espaços de universalidade. Para tal, a literatura obedece a um duplo movimento: debruça-se sobre si mesma, pensando e expres- sando seu modo de fazer e criando essencialmente um puro objeto de linguagem. Nesse caso, o mundo e sua realidade são traduzidos em forma de palavras e papel, formando uma outra realidade com leis e regulamentos próprios, os da poética. O segundo movimento se relaciona com a capacidade da litera- tura expressar e questionar o mundo exterior. Esse poder de repre- sentação, denominado mimese1, demonstra a ligação do artista- -escritor com a realidade do mundo exterior e da interioridade das pessoas. Essa ligação tende a ser representada pelo discurso literário, que funciona como resposta às grandes questões, dúvi- das e perturbações da vida. 2 Multissignificação – também denominada em alguns outros estu- dos como plurissignificação. Domício Proença quer entender como tal a força da literatura para criar e amplificar tanto os significantes (por exemplo, a palavra enquanto letras e sons) e os significados (isto é, as ideias que as palavras expressam). A literatura propor- ciona desvios “mais ou menos acentuados em relação ao uso lin- guístico comum”. Para a potencialização do caráter multissignificativo do discurso literário contribuem as relações estabelecidas pelo texto com o âmbito sociocultural, o momento histórico, a relação com espaços míticos e arquetípicos da tradição da língua e da arte. Essa interven- ção no status da língua produz uma desacomodação dos sentidos e permite que sejam várias e múltiplas as interpretações para um mesmo texto. 2 Predomínio da conotação – quanto ao predomínio da conota- ção, a reflexão de Proença Filho se detém a expor o quanto a lin- guagem literária transcende o sentido informativo para atingir o nível poético e estético da linguagem, sem que a informação ou 1 Termo utilizado por Aristóteles na obra “Poética”, do V a.C., com o significado de “imitação”. – 17 – Natureza do fenômeno literário a poeticidade existam separadamente. O escritor simultaneamente trata da realidade e a ultrapassa para mostrar o quanto a linguagem pode criar sentidos superiores de significação e beleza. 2 A liberdade de criação – essa qualidade diz respeito à ruptura de normas historicamente estabelecidas pelo discurso literário. A inserção de novas formas de dizer, muito mais do que a introdução de novos assuntos, desloca os marcos da história da literatura. Cada escritor que renova a literatura, faz com que o todo do sistema seja repensado e realocado. O novo também desacomoda o leitor e traz a possibilidade de alte- rações posteriores na literatura de uma época, quando os seguidores do criador original se põem a imitar, no todo ou em partes, a arte do mestre. 2 A ênfase no significante – novamente, retorna a discussão sobre a importância da linguagem no texto literário. A criação verbal está relacionada diretamente à potencialização dos recursos linguísticos colocados à disposição do escritor: o som, o desenho da letra, a musicalidade da frase, a ambiguidade e multissignificação de pala- vras e frases, as relações semânticas estabelecidas pela rede de pala- vras em correspondência e entre partes diferentes do texto, a explo- ração semântica de alterações sintáticas e outros mais. A poesia, mais do que as narrativas, explora esses recursos linguísticos. “Pálida à luz da lâmpada sombria” é um verso de um dos sonetos sem título do poeta brasileiro Álvares de Azevedo. Nele, a repetição da letra e do som do grafema/fonema “l” acentua a cor tênue do rosto e da luz artificial, ajudando a criar um clima fantasmagórico e de sonho, de realidade atenuada, que será fundamental para o entendimento de todo o poema. Recai, portanto, sobre o som e a letra o reforço semântico do verso: o significante torna-se ainda mais material e importante. 2 Variabilidade – a noção de variabilidade integra indissociavelmente o modo de ser da literatura e diz respeito às mutações que o discurso literário e seu entendimento sofreram e sofrem em diferentes cultu- ras e épocas, e na mesma cultura em diferentes épocas da história. – 18 – Teoria da Literatura A noção de literatura como discurso com características específicas e próprias somente surge no século XIX. Até essa época, poesias e narrativas integravam os escritos culturais, indistintamente. Antes de 1800, literatura e termos análogos em outras línguas euro- peias significavam “textos escritos” ou “conhecimento de livros”. [...] Eram exemplos de uma categoria mais ampla de práticas exemplares de escrita e pensamento, que incluía discursos, sermões, história e filosofia. (CULLER, 1999). A variação do conceito de literatura se apoia tanto nas mudanças formais quanto na sua representatividade dentro da(s) cultura(s). Vimos, portanto, neste capítulo, como a literatura se apresenta enquanto construção linguística e discursiva diferenciada dos demais textos da cultura, a sua relação com a ideia de criação e receptividade e quais as características apresentadas pelo discurso literário para se tornar distinto dos não literários. Ampliando seus conhecimentos O livro, seu valor e a análise literária Beleza, estilo, modernidade, relação com a vida... A que deve se apegar o crítico? (TEIXEIRA, 2006) Há muitos critérios pelos quais o leitor produz o sentido de um texto. A história da crítica literária, nessa acepção, será o conjunto de transformações dos métodos e técnicas para a construção do sentido. Por livro pode-se entender o objeto que o autor escreveu; por trabalho de arte, o movimento das imagens desencadeadas pelo ato de leitura. Ler é formular hipóteses sobre o modo correto de transformar o livro em obra de arte. Assim, o conhecimento do livro arremata a produ- ção iniciada pelo artista. As obras de arte não existem sem enquadramento num sistema de referência interpretativa. Falar – 19 – Natureza do fenômeno literário de uma obra não é falar apenas dela, mas dos sentidos que se agregaram a ela ao longo de sua existência como artefato verbal e como evento cultural. A história de um livro é a tradição de sua leitura. Nesse sentido, toda obra apresenta-se como palimpsesto. Dom Casmurro não foi escrito exclusivamente por Machado de Assis, mas por todos aqueles que procuraram discutir seu sentido a partir da estrutura oferecida pelo autor para que a história a fecundasse com as diversas hipóteses de inclusão ou exclusão semântica. O valor de um livro será diretamente proporcional à força da obra liberada por ele, a qual decorrerá das imprevisíveis operações que constituem os atos de assimilação e interpretação. A intenção do autor não se comunica senão como índice abstraído das configurações do texto, que poderá produzir maior ou menor número de imagens no universo mental do leitor. Como fenômeno de comunicação, o sentido, apenas latente na face muda do livro sem leitura, depende do leitor, que promoverá as necessárias associações daquele objeto com as imagens e os conceitos de sua experiência intelectual e existencial. Conhecer a crítica é dominar o repertório das relações impostas ao leitor, as quais, obedecendo à configuração retórica do texto, oscilam con- forme as convicções de cada momento. Assim, um só livro poderia, em princípio, conter toda a história da literatura, posto que muitas poderão ser as alterações de seu significado ao longo dos tempos. A percepção crítica de um livro não foge, teoricamente, à esfera de conhecimentode qualquer objeto, enquadrando-se, portanto, no horizonte da física e da gnosio- logia. Se a percepção artística consiste na transformação de estí- mulos físicos em noções abstratas e se é difícil caracterizar com precisão o valor da mesma coisa em diferentes sociedades, mais difícil será, por certo, determinar as razões da estima de objetos polissêmicos, seja um texto literário, um filme, uma pin- tura ou uma música. Tradicionalmente, a produção do sentido artístico de um texto decorre da aproximação dele com a ideia de beleza, donde resulta a dimensão de seu valor. Segundo – 20 – Teoria da Literatura uma visão consagrada, as coisas apresentam qualidades primá- rias e secundárias. As qualidades primárias não sofrem variação no processo de seu conhecimento, mesmo que se alterem as condições de percepção. As secundárias sofrem alteração de acordo com a mudança das circunstâncias em que são percebi- das. No escuro, não se alcança a cor de uma folha verde. O valor artístico de um objeto será, então, entendido como qua- lidade secundária, pois depende intrinsecamente da situação de conhecimento e de juízo. Se a própria física tende a con- siderar o cérebro humano como componente necessário ao conceito de cor, o mesmo deve ser pensado sobre o conceito de belo e de valor artístico, que, pela perspectiva interativa, serão sempre noções relativas e dependentes de repertórios e de padrões histórico-sociais que integram a poética cultural dos diversos períodos. Existem críticos que valorizam o livro a partir da observação de traços de estilo e de recorrências temáticas que se deixam interpretar como projeção da persona- lidade do autor. Conhecido como método psicológico, esse procedimento associa biografia e arte, concebendo, não raro, o artista como um ser doentio, para quem a atividade criadora funciona como sublimação de distúrbios pessoais. Atenuando a função da imaginação no processo criativo, tal pressuposto oferece o risco de descaracterizar o poder de escolha na arte, pois conduz a atenção do crítico para aspectos inconscien- tes da criação. Vinculado a este seria o critério daqueles que, no livro, procuram marcas da alma coletiva, concebida como essência da nacionalidade. Denominada romântica ou naciona- lista, tal hipótese notabilizou-se pela sistematização tradicional do estudo da Literatura Brasileira, que passou a ser dividida em Período Colonial e Nacional. Pode ser considerada variante do mesmo princípio a linha de investigação conhecida como crítica ideológica, que examina possíveis vestígios de classe social na configuração do texto artístico. Por não levar muito em conta a história das formas literárias e suas dimensões intrín- secas, essa diretriz expõe-se ao risco de atribuir à ideologia – 21 – Natureza do fenômeno literário de classe o que pode pertencer ao gênero artístico. Tal seria, por exemplo, o caso de uma análise que interpretasse o estilo digressivo do narrador de um romance do Segundo Reinado brasileiro como traço da elite escravista do período. Há também os críticos que procuram a identidade do texto com certo espírito geral da humanidade. Segundo eles, existi- riam algumas constantes universais que independem de lugar e tempo, captadas somente por grandes artistas. Uma das difi- culdades desse tipo de crítica consiste em que ela interpreta as assimilações de uma cultura por outra como manifestação da onipresença da natureza humana, que desconhece a noção de geografia e de história e que, portanto, surge com igual força tanto em comunidades primitivas quanto em comunida- des desenvolvidas. Ao eleger tal noção como categoria de valor, essa abordagem procura, na prática, aproximar literaturas tidas como menores daquelas que estabelecem o padrão de qualidade europeu. O adjetivo universal tornou-se tão previsí- vel nessa área, que, em vez de descrever qualquer qualidade objetiva do livro, indica, antes, carência de vocabulário crítico. Outra hipótese valorativa muito difundida é a que se detém no grau de realismo das obras, procurando nelas a fidelidade com que se retratam os homens em sua circunstância social e existencial. Essa posição encontra obstáculo na suposição de que a ideia de realidade, não importa a forma que possa assumir, impõe-se como principal objetivo de todos os artis- tas e tendências. Mesmo aqueles que valorizam o tema da interioridade, da fantasia e do sonho fazem-no em nome de presumíveis verdades essenciais do indivíduo. O brutalismo de Graciliano Ramos também se justifica como apego à noção de existência, entendida tanto em dimensão social quanto psi- cológica. Assim, o princípio da veracidade, sendo comum à vasta maioria dos artistas e períodos, pode mostrar-se ineficaz na análise valorativa de obras particulares. – 22 – Teoria da Literatura Existe ainda a leitura que valoriza a arte pelo critério de atuali- dade. De acordo com ela, há artistas dotados de poder divina- tório, no sentido de fazer em seu tempo o que será consagrado em tempos futuros, propriedade algo metafísica que os torna antecipadores de formas e temas tidos como ótimos na história da arte. Assim, o melhor escritor seria aquele que, superando o diálogo com os contemporâneos, adiantasse possíveis códi- gos futuros. É corrente o princípio de que certos autores ou tendências preparam a constituição de outras tendências e autores, o que se patenteia pela adoção do prefixo pré, rela- cionado a nomes de escolas ou indivíduos. Adota-se, nesses casos, o princípio de que uma unidade menos importante existe em função de outra de maior relevo, como se observa na designação pré-modernista aplicada a autores como Lima Barreto ou Monteiro Lobato, cuja principal função seria prepa- rar as conquistas da arte associada a 1922. Conforme os princípios interpretativos sumariamente apresen- tados acima, a obra de arte terá tanto mais valor quanto mais convincentemente exprima o ideal de perfeição, a psicolo- gia individual, o espírito de um povo, os interesses de uma classe, a natureza humana, o homem em suas relações com a vida ou a ideia de modernidade. Apesar de desgastadas, tais hipóteses valorativas ainda se apresentam como modelos possíveis no Brasil. Em perspectiva atual, talvez fosse conve- niente entender o núcleo de suas respectivas matérias como construções culturais associadas ao Estado, à escola, à igreja, à política ou à ciência, instituições que estabelecem (e fazem correr como verdades mais ou menos naturais) o conceito de beleza, de eu, de nacionalidade, de ideologia, de humani- dade, de sociedade e de atualidade, entre outros. Segundo a visão aqui proposta, a obra de arte literária, sendo fato de linguagem ou ocorrência semiótica, será considerada como manifestação do discurso social de seu tempo, desde que entendido como categoria conceitual. Assim, a crítica deveria – 23 – Natureza do fenômeno literário saber relacionar o discurso singular de um texto com a matriz discursiva de que ele extrai sua fala, estabelecendo homologias entre a configuração específica do livro e a generalidade dos enunciados que ela incorpora, seja para corroborar, ratificar, recusar ou criticar. O crítico atual não deveria, portanto, limitar- -se à procura da possível identidade de um poema com o ideal de beleza, de uma imagem com seu autor, de um romance com seu povo, de um conto com a classe que o compôs, de um verso com a humanidade, de uma descrição com o objeto des- crito ou de um autor com a antecipação de outro. Em vez de estabelecer esse tipo de relação, o crítico deverá, sobretudo, reconhecer na obra as estruturas artísticas externas de que ela se apropria ou com as quais dialoga, tais como a noção de gênero literário, de estilo, de formas, espécies, procedimentos, tradi- ções e tópicas. Ao lado de inúmeros outros exemplos como esses,deve-se ter em conta, ainda, o debate cultural de que a obra participa e o conceito de ponto de vista do emissor, que determina o tom da elocução e de cuja percepção depende a correta classificação da modalidade de imitação operada. Nesse sentido, seria igualmente desejável que o crítico conhecesse as doutrinas poéticas e os manifestos de escola, em que se siste- matizam os diversos conceitos de arte, que, inevitavelmente, se alteram com o tempo. Oswald de Andrade, a partir de certo momento, deixou de gostar de Olavo Bilac; em compensação, o segundo negaria o estatuto de poeta ao primeiro. Atividades 1. Em grupo, selecione um tema (amizade, cultura, morte, amor, am- bição etc.) e selecione três textos literários e três textos de revistas ou jornais ou científicos. Compare o modo como tratam o tema. Discu- ta com seu grupo. Escreva as conclusões. – 24 – Teoria da Literatura 2. Pesquise em livros de Teoria da Literatura, História Cultural, Artes e dicionários existentes na biblioteca e em textos da internet diferentes conceitos para o termo literatura. Compare esses conceitos. Selecione os que lhe parecerem mais apropriados e faça um quadro, ou gráfico das ocorrências mais frequentes. Comente os resultados em texto escrito. 3. Entreviste cinco pessoas sobre o sentido e a função que conferem à lite- ratura. Reproduza as respostas por escrito. Compare com as ideias ex- postas neste capítulo. Comente o resultado com seu grupo e por escrito 4. A apresentação ao grupo permite nova discussão e a escrita com as conclusões renova a importância do conhecimento da linguagem e da atenção às nuances da conceituação. Gêneros literários: conceituação histórica O estudo dos gêneros literários é fonte de permanente refle- xão porque implica o convívio com diferentes formas de escrever a literatura e de compreender as nuances dos diferentes gêneros ao longo da história, bem como com a mudança e transformação da escrita literária. Na contemporaneidade, a questão dos gêneros lite- rários desperta muita polêmica, porque, após as sucessivas alterações e experimentos, a literatura, hoje, admite uma pluralidade de for- mas e, sobretudo, uma intensa e múltipla mescla de gêneros, que resulta em mudanças profundas na clássica divisão em três gêneros (o lírico, o épico ou narrativo, e o dramático). Procuraremos, por essa razão, apresentar a evolução dos gêneros, a partir da visão clás- sica da Antiguidade, chegando até a conceituação contemporânea. 2 – 26 – Teoria da Literatura 2.1 O que é gênero literário? As obras literárias apresentam semelhanças no modo como se apresen- tam discursivamente ou em suas estruturas ou em suas finalidades ou nos efeitos pretendidos na sua leitura. Esses quatro aspectos (discurso, estrutura, finalidade e efeitos no leitor) concorrem para que os textos literários per- tençam a agrupamentos distintos que os explicam e, simultaneamente, os normatizam e restringem. Assim, pode-se verificar como os poemas se asse- melham formalmente, seja por conter rimas, por se dividir em estrofes, ou por sua extensão. Também os textos corridos, em prosa, podem ser agrupados por suas qualidades formais evidentes, como a extensão, o modo de narrar, a construção dos diálogos. São características observáveis de imediato. No entanto, outras podem ser de mais difícil localização. O estudo que verifica e classifica essas diferenças é o dos gêneros literários. Em 1962, Wellek & Warren defendiam que uma definição de gênero poderia ser [...] um agrupamento de obras literárias, teoricamente baseado tanto na forma exterior (metro e estrutura específicos), como também na forma interior (atitude, tom, finalidade – mais grosseiramente, sujeito e público). (1971, p. 293) Existiriam, para eles, três gêneros: o lírico, o épico e o dramático. Cada um deles seria dividido em formas fixas, como a ode, o romance, a crônica, o soneto e outros mais. A etimologia do termo nasce no latim generu(m) que, segundo Massaud Moisés (1997), significa família, raça. Já para Angélica Soares (1989) a palavra proveniente da mesma língua latina genus, -eris, significa tempo de nascimento, origem, classe, espécie, geração. Em qualquer das duas origens, pode-se perceber a ideia de agrupamento, de coletividade. Cremos ser esta a marca mais importante a ser considerada. Ao se tratar dos gêneros literários, será dado relevo ao conjunto de textos que apresenta caracterís- ticas semelhantes. Outro aspecto diz respeito ao caráter histórico desses agrupamentos. Isto quer dizer que, ao longo dos séculos, houve alteração na composição dos gêneros, nasceram novos e desapareceram alguns deles. O que indica uma natureza ligada à evolução do homem e da sociedade. E. Deschamps afirmava que – 27 – Gêneros literários: conceituação histórica [...] para julgar a prosa, é preciso espírito, razão e erudição [...]; enquanto que, para julgar a poesia é preciso o sentimento das artes e da imaginação e são duas qualidades raras entre leitores e romancistas. [...] (CHASSANG; SENNINGER, 1958). Essa concepção de exigências diferentes para formas diferentes de expres- são literária – a prosa e a poesia – já indica que há diferenças de natureza entre elas: a primeira propõe um texto com maior racionalidade e a segunda usa preferencialmente a imaginação. No entanto, vamos encontrar exceções a essa visão generalista. Os estudos críticos e também os valorativos servem-se dessas categorias ou espécies da literatura para avaliar e distinguir os textos. Um escritor, ao escrever, também se reporta (embora nem sempre com conhecimento acadê- mico e teórico profundo) a essas espécies no momento de compor e as nor- mas que as regem funcionam como balizas, como marcas de direcionamento para o texto que está sendo criado. Há escritores e obras que, ao contrário, conhecendo as diferentes espécies, procuram desfazê-las, contradizê-las, reno- vá-las ou rejeitá-las. É o caso, por exemplo, da criação do drama romântico, quando Victor Hugo, no “Prefácio” da peça Cromwell, em 1827, recusa os modelos da drama- turgia dos períodos históricos anteriores (neoclassicismo e barroco) e propõe uma reformulação da tragédia clássica, defendendo o surgimento do drama, uma peça teatral autônoma que incluiria elementos da tragédia e da comédia, em atendimento à nova sociedade, ao homem renovado do Romantismo e à necessidade de uma forma de expressão diferenciada.Também é o caso da estética pós-moderna, a partir dos anos 1950, que defende a maior autono- mia das formas literárias, podendo haver, inclusive, em uma mesma obra a existência de dois ou mais gêneros. Assim, a narrativa (gênero épico) tem condições de incluir poemas (gênero lírico) e trechos dialogados, sem a pre- sença do narrador (gênero dramático), além de outros gêneros textuais não literários como o jornal, a publicidade, verbetes de dicionário e até mesmo textos de outras linguagens, como o cinema, a fotografia, o desenho e outros. Os gêneros literários são, portanto, formas textuais que se agrupam por similaridade e que, partindo de um núcleo comum, sofrem alterações, ao longo do tempo, em atendimento às necessidades de expressão dos escritores de diferentes gerações. – 28 – Teoria da Literatura Para averiguar sua permanência, ou não, vamos verificar como se desen- volveu a história dos gêneros literários. 2.2 O conceito na antiguidade clássica e medieval A primeira informação sobre a existência de gêneros literários vem do filósofo grego Platão (428 a.C-347 a.C), que registrou no livro II da obra República (394 a.C.) a diferença entre o modo de construir a comédia e a tragédia – por imitação; os ditirambos1 pela exposição do poeta e a poesia épica e textos afins, que apresentaria uma mistura das duas composições ante- riores. Dessa tripartição, surgiriammais tarde, respectivamente, o gênero dra- mático, o lírico e o épico, assim apresentados provavelmente no período do Romantismo no século XIX. No entender de Angélica Soares: Como Platão atribuísse às artes uma função moralizante, a classifica- ção das obras literárias através de seu conceito de imitação (o poeta, como o pintor, operava um terceiro grau de imitação, pois imitava a obra do artesão que, por sua vez, já era imitação das formas singula- res, imperecíveis e imutáveis, que compunham o Mundo das Ideias) serviria de base à condenação que faz aos poetas que, ao concederem autonomia à voz das personagens, em nada contribuíam para o pro- jeto político de edificação de uma polis ideal. (SOARES, 1989) Observamos nessa avaliação platônica sobre a função do poeta o quanto a poesia – e por extensão a literatura – atua na sociedade como uma atividade à margem dos procedimentos e finalidades utilitárias, servindo a uma outra concepção de papel social. Ao mesmo tempo, essa perspectiva desmerecedora da arte poética acaba contaminando a criação literária, como até hoje pode- mos verificar quando costuma se opor às ditas ciências exatas (engenharia, arquitetura, matemática, economia) e às ciências do homem e à arte. Os diferentes tipos e modos de representar a realidade por meio da arte nascem, portanto, sob o signo da exclusão e da marginalização social. Os gêneros literários nesse momento da história da humanidade são vistos 1 O ditirambo era uma canto de louvor a Dioniso, o deus do teatro, do vinho e da dança. – 29 – Gêneros literários: conceituação histórica apenas como critérios formais, já que a expressão artística é de pouco valor e fica reduzida a um exercício de imitação em terceiro grau, sem qualidade artística ou expressiva. Um pouco desse preconceito foi combatido por Aristóteles (384 a.C.- 322 a.C.) que procurou atender a critérios mais apropriados ao objeto artístico e sistematizou melhor as formas literárias. Em sua obra Poética (que não chegou a concluir) ele se refere às seguintes formas: a epopeia, a tragédia, a comédia, o ditirambo, a aulética2 e a citarística3, privilegiando, porém, as três primeiras. Aristóteles retoma a ideia de que a arte consiste na imitação (mimesis ou mimese) e o prazer do leitor e do espectador está em reconhecer como o artista consegue representar bem até mesmo o feio, o repugnante, o horrível. A ênfase na diferença entre o mundo empírico e a realidade da arte leva o filósofo [Aristóteles] a valorizar o trabalho poético e a se voltar para o estudo de seus modos de constituição, a fim de detectar as diferentes modalidades ou gêneros da poesia. (SOARES, 1989, p.10). Aristóteles estabeleceu a diferença entre os gêneros baseadas nos meios com que imitam, nos objetos que imitam e na maneira com a qual imi- tam a realidade. Em relação aos meios, aponta o ritmo, o metro e o canto, empregados isolada ou conjuntamente. O teatro pode contê-los todos, mas não a epopeia ou a narrativa. Nesta, predomina o metro e o ritmo. Em relação ao objeto imitado, a comédia “propõe-se imitar os homens, representando-os piores, a outra [a tragédia] melhores do que são na reali- dade.” Para o filósofo, a comédia se preocupa em apresentar os vícios, e a tragédia, as virtudes. Quanto à maneira de imitar, afirma que [...] é possível imitar os mesmos objetos nas mesmas situações, numa simples narrativa ou pela introdução de um terceiro [o narrador], como faz Homero, ou insinuando-se a própria pessoa sem que inter- venha outra personagem, ou ainda apresentando a imitação com a ajuda de personagens que vemos agirem e executarem elas próprias. (ARISTÓTELES, 1964). 2 A aulética, entre gregos e romanos, era a arte de tocar aulo, uma espécie de flauta. 3 Gênero de música ou poesia destinada a ter acompanhamento de cítara, instrumento de cordas, derivado da lira. – 30 – Teoria da Literatura Vemos aí descrita a classificação que atualmente fazemos em narrador de terceira pessoa, narrador em primeira pessoa e texto dramático dialogado. Esse filósofo grego estudou a extensão da ação dramática: “a tragédia é a imitação de uma ação completa formando um todo e de certa exten- são” (ARISTÓTELES, 1964). Para constituir um todo, é necessário que a peça tenha começo, meio e fim. O que determina a extensão é a natureza do assunto e o grau de atenção de que o espectador é suscetível. Isto significa a indeterminação do tempo ou do volume do texto, substituídos pela atenção do leitor e o tipo de assunto escolhido. Essa compreensão terá vigor na histó- ria da literatura até o século XX. Entre os elementos que compõem uma ação complexa, Aristóteles (1964) trata da peripécia4 e o reconhecimento como o fato que [...] faz passar da ignorância ao conhecimento, mudando a amizade em ódio ou inversa- mente nas pessoas [...] ou ficar sabendo que uma pessoa fez ou não fez deter- minada coisa” (ARISTÓTELES, 1964). Também tratou da unidade da ação e da diferença entre ação simples – “aquela cujo desenvolvimento permanece uno e contínuo e na qual a mudança não resulta nem de peripécia, nem de reconhecimento” (ARISTÓTELES, 1964) – e complexa – a que tem na peripécia e no reconhecimento a alteração no destino do protagonista. Também tratou da relação entre o gênero literário e o personagem, afirmando que os Princípios estruturais das narrativas e das peças de teatro conservam até hoje a conceituação estabelecida por Aristóteles no quarto século antes da era cristã. Para o escritor latino Horácio (65 a.C.-8 a.C.), na Carta aos Pisões, é importante que os poetas (palavra empregada indistintamente para poesia, narrativa ou teatro, à época todos escritos em versos) respeitem “o domínio e o tom de cada gênero literário” e que “guarde cada gênero o lugar que lhe coube e lhe assenta” (HORÁCIO, 1981). Também é nesta carta que Horácio admite a possibilidade de transposição dos gêneros ao afirmar que “É difícil dar tratamento original a argumentos cediços, mas, a ser o primeiro a ence- nar temas desconhecidos, ainda não explorados, é preferível transpor para a cena uma passagem da Ilíada”. (HORÁCIO, 1981). Há, portanto, nesse 4 Mudança de ação no sentido contrário ao que foi indicado e sempre em conformidade com o verossímil e necessário. – 31 – Gêneros literários: conceituação histórica argumento mais do que a recusa de assuntos novos: a possibilidade de trans- por do gênero épico (Ilíada) para o teatro abre a possibilidade de alterações significativas na concepção normativa de gênero literário. Também é dele a concepção da função específica da literatura: “Os poetas desejam ou ser úteis, ou deleitar, ou dizer coisas ao mesmo tempo agradáveis e proveitosas para a vida.” (HORÁCIO, 1981). A visão utilitária da arte – que fizera Platão recu- sar a presença de poetas em seu projeto de uma nova República – soma-se à de entreter (deleitar) e até a possibilidade de fundir as duas, com resultados importantes para o leitor. A herança clássica na Idade Média recebe poucas complementações de relevância, à exceção de Dante Alighieri, que, “na Epistola a can grande della scala, classifica o estilo em nobre, médio e humilde, situando-se no primeiro a epopeia e a tragédia, no segundo a comédia e no último a elegia.” (SOARES, 1989). Percebe-se a permanência da epopeia e da tragédia em nível elevado, como em Aristóteles. A elegia, entretanto, faz sua entrada entre os gêneros literários, anunciando a inclusão futura do gênero lírico, não necessariamente acompanhado de música (como a lira, a flauta e a cítara), mas como texto verbal. Massaud Moisés, ao comentar a pequena quantidade de estudos sobre os gêneros na Idade Média, informa que, na prática literária, há um surto criativo de “variedades formais novas”: na poesia lírica, novas organizações das estrofes, a rima e a metrificação ganhamem variedade, surge o romance em prosa e o teatro se moderniza. (MOISÉS, 1997). Esse movimento criador desmente antigas interpretações do período histórico medieval como uma idade de trevas, sem avanços ou alterações. 2.3 O conceito no Renascimento O Renascimento, a partir do século XVI, ao contrário do período medieval, trouxe contribuições muito relevantes à consolidação dos gêneros literários e, sobretudo, à quantidade e qualidade dos estudos teóricos. Seus representantes, denominados humanistas, foram pródigos em normatizar as ideias da Antiguidade Clássica, retomando e reafirmando os conceitos expres- sos principalmente por Aristóteles e Horácio. Não ficaram, porém, apenas nos aspectos reprodutivos da teoria, agregando reflexões próprias e as novida- des criadas na Idade Média. “No geral, entendiam os gêneros como fórmulas – 32 – Teoria da Literatura fixas, sustentadas por doutrinas e regras inflexíveis, às quais os criadores de arte deveriam obedecer cegamente” (MOISÉS, 1997, p. 242). Esses teóricos adotaram estritamente o conceito de mímesis e passaram a legislar a produção literária, considerando que a imitação da natureza é o objeto da arte, e não a sua reapresentação por meio da recriação em lingua- gem artística. Estabeleceram um critério de valoração em que, quanto mais a obra se aproximasse dessa cópia da natureza, mais perfeita ela seria. É de se imaginar, portanto, que a criação literária se submete a normas que garantam essa reprodução fiel. Em relação aos gêneros literários, o resultado foi a retomada da divisão tripartite de Platão e os valores a ela atribuídos por Aristóteles: tragédia e epo- peia como gêneros elevados e a comédia como gênero inferior: entendiam os gêneros como fórmulas fixas, sustentadas por doutrinas e regras inflexíveis, às quais os criadores de arte deveriam obedecer cegamente. Entretanto, deve-se às teorias poéticas italianas a inclusão da lírica como o terceiro gênero ao lado da épica e do teatro” (MOISÉS, 1997, p. 42). A lírica, substituindo o ditirambo, apresenta algumas formas fixas, como o soneto, a ode, a canzone, o rondó e a balada. Um dos nomes mais importantes nesse momento da história dos gêneros literários é Nicolas Boileau (1636-1711), que, em 1674, escreve Arte Poética, espécie de compêndio de normas do pensamento neoclássico a respeito dos gêneros. Ele “localiza [...] o valor da arte na razão, pela qual acreditava que se alcançassem o bom-senso, o equilíbrio, a adequação e a clareza: condições necessárias à poesia” (SOARES, 1989, p.13). Em 1693, esses postulados nor- mativos são questionados pela Querela dos antigos e dos modernos (Querelle des anciens et des modernes), em que escritores ditos modernos defendem sua maior liberdade de criação, fugindo às regras e normas. 2.4 O conceito no Romantismo A reação ao período racional e normativo do Renascimento se consoli- dou a partir do século XVIII com os pré-românticos alemães do movimento de Tempestade e Ímpeto (Sturm und Drang), que, insistindo no caráter mutá- vel dos gêneros nos sucessivos períodos históricos e no desaparecimento dos – 33 – Gêneros literários: conceituação histórica “esquemas estruturais repetitivos” (WELLEK; WARREN, 1971), defenderão a necessidade de inovação nas obras literárias. A mudança dos públicos leitores, a valorização da individualidade e as rápidas modificações na preferência de formas literárias levam à elastici- dade das classificações e ao rápido aparecimento de novas espécies de textos. Sobretudo, verifica-se o desenvolvimento e multiplicação de narrativas, em especial do romance, que mantém as características básicas do antigo gênero épico e o substitui. O Romantismo favorecerá o aparecimento do romance histórico (devido ao forte acento nacionalista que pode conter) e do romance gótico, como um conjunto de estereótipos (descritivo-acessórios e narrativos, por exemplo, castelos em ruínas, horrores católico-romanos, retratos mis- teriosos, passagens secretas a que conduzem painéis que deslizam, raptos, emparedamentos, perseguições através de florestas sombrias) (WELLEK; WARREN, 1971, p. 294). No gênero dramático, a principal contribuição é o aparecimento do drama, conforme foi anunciado e caracterizado pelo escritor francês Victor Hugo no prefácio de Cromwell, de 1827. Nesse texto, o dramaturgo fran- cês defende o hibridismo do gênero dramático, justificando sua posição pela comparação com a vida real, que é feita de riso e pranto, belo e feio, grotesco e sublime. O drama vem a ser, portanto, a expressão no teatro da nova classe burguesa, com personagens saídas da realidade presente, com linguagem coloquial e com a liberdade de apresentação de situações dramáticas, muito ao gosto do período estético do Romantismo. A moderna teoria dos gêneros é claramente descritiva. Não limita o número das espécies possíveis e não prescreve regras aos autores. Admite que as espécies tradicionais possam “misturar-se” e produzir uma espé- cie nova (como a tragicomédia). Reconhece que os gêneros podem ser construídos tanto numa base de englobamento ou “enriquecimento” como de “pureza” (isto é, gênero tanto por acréscimo como por redu- ção). Em lugar de sublinhar a distinção entre as várias espécies, inte- ressa-se – à maneira da preocupação romântica pelo caráter único de cada “gênio original” e de cada obra de arte – em descobrir o deno- minador comum de uma espécie, os seus processos e objetivos literá- rios. [...] O prazer que uma obra de arte literária instila no homem é composto por uma sensação de novidade e por uma sensação de reconhecimento”. (WELLEK; WARREN, 1971, p. 297) – 34 – Teoria da Literatura Esse foi um importante passo para a discussão a respeito da concepção e das classificações dos gêneros literários porque instaurou a possibilidade de revisão dos conceitos, da introdução no painel das diferentes espécies literá- rias de novas formas e de questionamento de classificações dogmáticas, já que o princípio da individualidade estabelecia a liberdade de criação e de escolhas. O espírito romântico na criação literária espalha-se, portanto, para o estudo e crítica dos gêneros literários. 2.5 Conceitos ao longo dos séculos XIX e XX Destaca-se após o período romântico a contribuição do crítico francês Ferdinand Brunetière (1849-1906), quem procurou relacionar os gêneros literários e a teoria evolucionista de Spencer: o resultado foi o conceito de que os gêneros se assemelhavam aos seres vivos, ou seja, nasciam, se desenvolviam e morriam, sujeitos ao ciclo vital que rege qualquer ser vivo. Dava-se, assim, uma explicação científica para o aparecimento e desaparecimento de espécies e gêneros. Essa visão evolucionista encontrou forte reação no filósofo italiano Benedetto Croce (1886-1952), que concebia [...] todo conhecimento ou é intuitivo ou lógico, produzindo respec- tivamente imagens ou conceitos. Ao conhecimento intuitivo se liga a ideia de expressão. Intuir era expressar ações que nos libertariam da submissão intelectualista, que nos subordina ao tempo e ao espaço da realidade (SOARES, 1989, p. 15). Há, portanto, nesse entendimento da criação literária, por imagens, um desligamento da realidade empírica, o que resulta na supervalorização do indivíduo criador. Como consequência, a literatura se vincula muito mais ao imaginário do que às leis físicas da natureza. Essa aproximação com a criação subjetiva contraria as classificações de gêneros e de espécies literárias. Dessa discussão a respeito das relações da literatura com a realidade empírica ou com o imaginário levam à duas direções diferentes na interpreta- ção dos gêneros literários: 1. realista, pressupõe que os gêneros à semelhança das Ideias platôni- cas, constituem realidade única, perene e pré-existente; 2. nominalista, encara as Ideias e os gêneroscomo simples denomi- nações da verdadeira realidade, as obras literárias. [...] Wladislaw – 35 – Gêneros literários: conceituação histórica Folkierski [indagou] [...]: “os gêneros literários são preexistentes às obras ou , ao contrário, abstrações extraídas de algumas obras-pri- mas mais geralmente imitadas? Se não são preexistentes, terão todavia influência direta nas obras, nos autores, na crítica? Constituem um código suscetível de constranger a liberdade do escritor?” (MOISÉS, 1997, p. 245) Estava instalada a discussão e os partidários de um e outro lado foram se apresentando ao longo do final do século XIX e ao longo do século seguinte. Com o surgimento das pesquisas e reflexões teóricas dos formalistas russos, no começo do século XX, aprofundou-se o conceito de que as obras literá- rias têm vida e leis próprias, que permitem reconhecer e classificar os textos por sua literariedade, isto é, pela natureza própria e específica da literatura. Parte dessa natureza pode ser localizada no conceito de estranhamento, de Chklovski. Isto é, a obra literária propriamente considerada é aquela que, em relação às demais, consegue distinguir-se como um corpo estranho, novo, diferente das expectativas e da história tradicionais da evolução da literatura. Esse destaque é um dos ingredientes da obra que causa estranhamento ao leitor e à série literária em que se localiza. Outro formalista, Tomachevski, consideraria como traços dos gêneros um grupamento em torno de procedimentos perceptíveis. Esses traços seriam dominantes na obra, embora houvesse outros procedimentos necessários à criação do con- junto artístico (SOARES, 1989, p. 17). Entre esses procedimentos estariam a temática, os motivos e a linguagem poética figurada. O que valerá para a significação e abrangência dos gêneros literários se localiza na dimensão histórica. Em consequência, sempre estará presente no conceito de gênero a dimensão histórica. Outra contribuição importante para a teoria dos gêneros vem de Mikhail Bakhtin, linguista e teórico russo, que salienta o papel da percepção, isto é, das expectativas do leitor na relação com a obra literária e com o modo com que ela filtra a realidade empírica. O agrupamento de obras que tivessem pro- cedimento semelhante as incluiria em gênero semelhante, do mesmo modo que a percepção do leitor seria alterada ao longo do tempo pelas mudanças que o contexto em que vivia poderia atuar sobre ele, e manter ou modificar sua percepção de cada gênero. “Assim, os gêneros apresentariam mudanças, – 36 – Teoria da Literatura em sintonia com o sistema da literatura, a conjuntura social e os valores de cada cultura” (SOARES, 1989, p. 18). O francês André Jolles trabalhou com formas literárias orais e primitivas, a que chamou fundamentais ou formas simples. Entre elas, a legenda, a saga, o ditado, o mito, a adivinha, o caso, o memorável, o conto, o chiste. Essas nove categorias, pouco valorizadas até o aparecimento de sua pesquisa, descrita no livro As formas simples, ganharam a partir de seus estudos um lugar na classifi- cação dos gêneros e espécies e motivaram muita discussão sobre o valor dessas novas formas narrativas. Outro estudioso com valiosa colaboração para a discussão e definição dos gêneros literários foi Emil Staiger, que, na obra Conceitos fundamentais da poética, em 1946, vai defender a ideia de uma base tripartite: lírica, épica e dramática, mas com a possibilidade de que as marcas estilísticas de cada gênero pudessem existir em quaisquer textos, sem a restrição deste ou daquele gênero. Assim, os termos e os procedimentos de escrita épicos, dramáticos ou líricos podem ser considerados adjetivos, ou seja, é possível encontrarmos na história da literatura obras que, embora pertencentes a um gênero maior, apresentam característica dos outros dois. Assim, podem-se descobrir em epopeias (narrativas) momentos líricos, ou em poemas categorias das narrati- vas, ou em peças de teatro procedimentos da poesia e das narrativas. Houve, assim, uma ampliação do conceito de gênero, alargando as possibilidades de escrita e de valorização do literário. Outra contribuição marcante para os estudos a respeito dos gêneros literários veio de Northrop Frye, na obra Anatomia da crítica, de 1957. A primeira modificação foi a criação de um quarto gênero; além da lírica, da épica (epos) e da literatura dramática, haveria a ficção, diferente da épica por ser contínua, enquanto esta seria episódica, ou seja, construída pela união de quadros mais ou menos independentes. Segundo Angélica Soares: Cada um dos quatro gêneros se liga a uma forma própria de míme- sis: o epos é apresentado pela mímesis da escrita assertiva, o drama pela mímesis externa ou da convenção, a lírica pela mímesis interna. Quatro também são as modalidades da ficção: o romanesco (romance), o romance (novel), a forma confessional e a sátira menipéia ou ana- tomia. Enquanto o romanesco não busca a criação de “gente real”, o romance (novel) apresenta personagens que trazem suas máscaras – 37 – Gêneros literários: conceituação histórica sociais. A forma confessional, por sua vez, não pode se confundida com autobiografia. O romancista ocupa-se da análise exaustiva das relações humanas, enquanto o satirista menipeu, voltado para termos e atitudes intelectuais, prende-se às suas peculiaridades. (SOARES, 1989) Embora a base da teoria de Frye tenha sido a crítica mítica, isto é, dos mitos fundadores da narrativa, seu trabalho aprofunda a questão do gênero textual. A base de sua reflexão, de um ponto histórico, defende a ideia de que a história da literatura é um movimento que vai do mito à literatura moderna. Da mesma forma, o desdobramento dos gêneros (a ficção se multipli- cando em modalidades) conduz a uma dupla compreensão: em primeiro lugar, a análise dos textos ganha em profundidade e em complexidade, ampliando a compreensão dos críticos e dos leitores para o fato literário; em segundo lugar, mostra como a literatura materializa-se enquanto texto ficcional, diferente da realidade (“gente real”, biografia, rostos e corpos), manifestando-se em más- caras, relações e atitudes. Assim, o conhecimento dos gêneros faz com que a linguagem da literatura ganhe mais autonomia e amplie sua esfera de ação. Não são mais fatos, mas valores, relações e desvendamentos. 2.6 A perspectiva da atualidade A teoria e a crítica literária recentes discutem a questão dos gêneros sob perspectivas diferentes do que a tradição havia considerado em séculos anteriores. Várias são as causas dessa nova perspectiva. Em primeiro lugar, a partir do século XX, em especial desde os anos 1950, a arte libertou-se de regras e limites, o que deu origem à explosão de formas novas com o advento do pós-moderno ou do hipermoderno. A produção artística em geral – e da literatura em particular – precede ou acompanha as mudanças que se dão na sociedade (nos costumes, nos regimes político e econômicos (como o comunismo e o capitalismo), nas ideias a respeito do mundo - que têm na filosofia e na psicanálise uma de suas explicações mais revolucionárias. Em segundo lugar, a tecnologia traz para a arte recursos inimagináveis nos séculos anteriores: a produção de imagens, a linguagem digital e a comu- nicação em tempo real passam a ser incorporadas aos produtos artísticos, inclusive ao livro. A arte da impressão ganha em qualidade, em quantidade, – 38 – Teoria da Literatura em invenção. A imagem e os recursos visuais ilustram obras e misturam-se como formas de traduzir o ser humano e seus contextos. O cinema, por exemplo, incorpora a literatura e, por sua vez, a influencia e lhe dá formas. Em terceiro lugar, os estudos a respeito da recepção de textos literá- rios, as teorias sobre a leitura e sobre os procedimentos realizados pelos leitores parachegar à compreensão de textos leva a literatura a incluir com maior frequência e intensidade o leitor, tomado como personagem ou como objetivo explícito da literatura. O conhecimento dos gêneros literários adquirido pelo leitor passa a ser a base para se compreender as novas composições textuais, as finalidades de suas inovações, os aspectos de vanguarda – ou conservadores – da literatura apresentada. A estética da recepção - nome que receberam os estudos sobre leitura – é uma teoria que valoriza a participação do leitor como construtor dos sentidos do texto e que tem em Hans-Robert Jauss um de seus fundadores ao proferir uma conferência na Universidade de Constança, na Alemanha, em 1967. Essa tendência crítica trata os gêneros literários como uma das possibilidades de estabelecimento de marcos históricos da literatura, ou seja, com reflexos na própria localização dos autores na história da literatura. Também valoriza o modo variável com que o leitor reconhece e administra essas características no momento de interpretação e valorização da obra que lê. É importante ressaltar que o gênero textual é usado, muitas vezes, com tantos formalismos e regras que apenas geram confusão. Mas, de todo modo, seu conhecimento é útil para orientar a compreensão dos leitores em relação a uma obra determinada. Mesmo quando as expectativas dos leitores são frustradas – por exemplo, a mistura de poesia e prosa em um mesmo texto – o resultado da leitura pode ser um fracasso ou um ponto de partida interessante para superar os modelos da tradição. Em cada caso, as normas de gênero permanecem como base para o julgamento do texto. Por outro lado, ao longo da história da literatura, grandes escrito- res procuraram ampliar os limites da definição de gênero ou redefini-los. Shakespeare, no século XVII, com frequência incorporava comédias nas tragédias ou tornava sérias as comédias, incluindo personagens e situações sombrias ou com profundos questionamentos morais e filosóficos. – 39 – Gêneros literários: conceituação histórica James Joyce, em Retrato do artista quando jovem em 1916, tomou como parâmetro para marcar o desenvolvimento de um escritor a tripartição dos gêneros literários. Assim, um escritor evoluiria do lírico e da autoex- pressão para o narrativo em que o artista é o mediador entre o narrado e o público leitor. Na terceira fase, o dramático, seria o estágio em que o escritor se torna invisível, pois os personagens assumem o protagonismo da escrita. Os grandes escritores com frequência questionam os gêneros literários quando compõem suas obras. A invenção artística e a própria linguagem literária influenciam modos de escrita inovadores que desafiam as normas de gênero tradicionais. O final do século XX e o início do século XXI trouxeram para a lite- ratura gêneros novos, resultantes de mistura entre textos ficcionais e não ficcionais, como, por exemplo, o romance não ficcional e o docudrama, em que a realidade documental se torna base da estrutura do texto. Alguns críticos apontam como causa dessas novas formas o reflexo da influência da televisão. Este meio de comunicação mistura fato e ficção, notícias e entretenimento, comerciais e narrativas, em uma massa homogênea. Qualquer que seja a posição adotada, o estudo dos gêneros literários permite uma melhor compreensão do texto e, sobretudo, permite distin- guir o quanto o autor se aproxima ou afasta dos modelos, obedecendo ou inovando as formas tradicionais, tirando proveito das contradições e dos debates que contextualizam o próprio texto literário que escreve. Ampliando seus conhecimentos Teoria do romance (KUNDERA,2006, p.14-16) Fielding foi um dos primeiros romancistas capazes de pensar uma poética do romance; cada uma das dezoito partes de Tom Jones abre com um capítulo dedicado a uma espécie de teoria do romance (teoria leve e agradável, porque é assim que um romancista teoriza: conservando com ciúme sua própria lingua- gem, e fugindo como da peste do jargão dos eruditos). – 40 – Teoria da Literatura Fielding escreveu seu romance em 1749, portanto dois sécu- los depois de Gargântua e Pantagruel, um século e meio depois de Dom Quixote; e, mesmo se valendo de Rabelais e de Cervantes, o romance é para ele sempre uma arte nova, tanto que ele próprio se designa como “o fundador de uma nova província literária”. Essa “nova província” é tão nova que ainda não tem nome! Mais precisamente, tem, em inglês, dois nomes – novel e romance – mas Fielding se pro- íbe de usá-los, pois a “nova província” mal foi descoberta e já é invadida por “um enxame de romances estúpidos e monstruosos” (a swarm of foolish novels and monstruous romances) . Para não ser colocado no mesmo saco dos que ele despreza, “evita cuidadosamente o termo romance” e designa essa nova arte com uma fórmula bastante compli- cada, mas extremamente exata: um relato prosai-comi-épico” (prosai-comi-epic writing). Ele tenta definir essa arte, isto é, determinar sua razão de ser, delimitar o domínio da realidade que ela quer esclare- cer, explorar, perceber: “O alimento que propomos aqui a nosso leitor não é outro senão a natureza humana.” A bana- lidade dessa informação é apenas aparente; viam-se então, no romance, histórias engraçadas, edificantes, distraídas, mas nada mais; ninguém lhe atribuiria uma finalidade tão gene- ralizada, portanto tão exigente, tão séria como o exame da “natureza humana”; ninguém elevaria o romance à categoria de uma reflexão sobre o homem como tal. Em Tom Jones, no meio da narrativa, Fielding para de repente para declarar que um dos personagens o assusta; seu comportamento lhe parece “o mais inexplicável de todos os absurdos que já entraram na cabeça dessa estranha e prodi- giosa criatura que é o homem”; na verdade, o espanto diante daquilo que é “inexplicável” nessa “estranha criatura que é o homem” é para Fielding o primeiro estímulo para escrever um romance, a razão para inventá-lo. “Invenção” (em inglês – 41 – Gêneros literários: conceituação histórica diz-se também invention [como em francês]) é a palavra- -chave para Fielding; ele se refere à origem latina inventio, que quer dizer “descoberta” (discovery, finding out); ao inventar seu romance, o romancista descobre um aspecto até então desconhecido, oculto, da “natureza humana”; uma invenção romanesca é, assim, um ato de conhecimento que Fielding define como “uma rápida e sagaz penetração da verdadeira essência de tudo aquilo que é objeto de nossa contemplação” (a quick and sagacious penetration into the true essence of all objects of our contemplation). (Frase notável; o adjetivo “rápido” – quick – dá a entender que se trata de um ato de conhecimento específico no qual a intuição desempenha um papel fundamental.) E a forma desse “relato prosai-comi-épico”? “Sendo funda- dor de uma nova província literária, tenho toda a liberdade de ditar as leis dentro dessa jurisdição”, proclama Fielding; e ele se defende antecipadamente contra todas as normas que queriam lhe impor esses “funcionários da literatura” que são para ele os críticos; o romance é definido, para ele – e isso me parece capital – por sua razão de ser, pelo domínio da realidade que ele tem de “descobrir”; sua forma em contra- partida, apresenta uma liberdade que ninguém pode limitar e cuja evolução será uma perpétua surpresa. KUNDERA, Milan. A cortina: ensaio em sete partes. Tradução de Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p.14-16. Atividades 1. Em visita a uma locadora de filmes, verifique como foram organiza- dos os DVDs em gêneros e espécies: drama, comédia, arte etc. Sele- cione um dos gêneros (categorias) e procure assistir a alguns filmes da mesma categoria. Verifique quais são os componentes que se repetem – 42 – Teoria da
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