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IDENTIDADE, ETNIA E RAÇA: CONCEITUAÇÃO E PROBLEMATIZAÇÃO Caro(a) aluno(a), A Universidade Candido Mendes (UCAM), tem o interesse contínuo em proporcionar um ensino de qualidade, com estratégias de acesso aos saberes que conduzem ao conhecimento. Todos os projetos são fortemente comprometidos com o progresso educacional para o desempenho do aluno-profissional permissivo à busca do crescimento intelectual. Através do conhecimento, homens e mulheres se comunicam, têm acesso à informação, expressam opiniões, constroem visão de mundo, produzem cultura, é desejo desta Instituição, garantir a todos os alunos, o direito às informações necessárias para o exercício de suas variadas funções. Expressamos nossa satisfação em apresentar o seu novo material de estudo, totalmente reformulado e empenhado na facilitação de um construto melhor para os respaldos teóricos e práticos exigidos ao longo do curso. Dispensem tempo específico para a leitura deste material, produzido com muita dedicação pelos Doutores, Mestres e Especialistas que compõem a equipe docente da Universidade Candido Mendes (UCAM). Leia com atenção os conteúdos aqui abordados, pois eles nortearão o princípio de suas ideias, que se iniciam com um intenso processo de reflexão, análise e síntese dos saberes. Desejamos sucesso nesta caminhada e esperamos, mais uma vez, alcançar o equilíbrio e contribuição profícua no processo de conhecimento de todos! Atenciosamente, Setor Pedagógico Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 3 SUMÁRIO CAPÍTULO 1 - ENTRE A NAÇÃO HOMOGÊNEA E A MULTIPLICIDADE ÉTNICA ...4 CAPÍTULO 2 – RAÇA E CONHECIMENTO ...........................................................................8 CAPÍTULO 3 – REAPRENDENDO OS CONCEITOS ..........................................................15 CAPÍTULO 4 – RAÇA versus ETNIA: A CONSTRUÇÃO DE UMA IDENTIDADE RACIAL .......................................................................................................................................27 CAPÍTULO 5 – RAÇA, RACISMO, IDENTIDADE E ETNIA: CRUZANDO CONCEITOS E NOÇÕES ..........................................................................................................38 REFERÊNCIAS ...........................................................................................................................56 Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 4 CAPÍTULO 1 ENTRE A NAÇÃO HOMOGÊNEA E A MULTIPLICIDADE ÉTNICA Entender os contornos identitários produzidos pelo processo da conquista é tarefa árdua para dirimir situações extremas que levam ao racismo muitas vezes expressos através dos confrontos entre “nós” e os “outros”. Desta forma, o Estado brasileiro, a exemplo dos outros estados modernos, construiu-se como um estado nacional e permanece afirmando-se como tal. Esse cenário configura a relação do Brasil com os vários povos que vivem no espaço geopoliticamente definido como território brasileiro. Trata-se de “uma nação”, a brasileira, que se relaciona com várias outras, definidas como etnias, dentre elas, as indígenas, no âmbito do estado, que também é brasileiro. A nação é percebida como uma forma de organização política mais completa, superior. Na relação com a nação, a etnia seria um classificador politicamente inferior. Essa hierarquização reflete a lógica da colonialidade do poder (Mignolo,2002) A construção da noção de etnia, em relação à ideia de nação, reproduz, em termos epistemológicos, a lógica da dominação política. Classificar como etnia povos que possuem organizações sociais próprias, sistemas políticos elaborados, territórios delimitados, implica alijá-los da categoria nação. Esta poderia ser aplicada somente aos povos que exercem domínio político sobre outros, como é o caso dos Estados-nação “modernos. O declínio do princípio de cidadania e a incapacidade do Estado-nação em federar os indivíduos – fenômenos que se manifestam no desinteresse pela vida cívica e pela participação política, na perda de credibilidade dos partidos políticos – devem-se, em parte, ao surgimento dos comunitarismos e das reivindicações étnicas. De fato, a base da vida em sociedade já não é a agregação e a assimilação de indivíduos ou cidadãos iguais, conscientes, voluntários, racionais que partilham valores democráticos comuns, mas antes uma “socialidade” viscosa, ou seja, uma fusão de pessoas, de ordem sentimental, passional e emocional, dentro de comunidades fechadas sobre si mesmas, que se opõem umas às outras, que promovem modos de pensar exclusivos e exclusivistas, que ditam as suas regras dentro de territórios reais e simbólicos, desafiando assim as conquistas seculares do Estado-nação. Perante a questão da integração de grupos radicalmente diferentes no seio de sociedades globalizadas foram avançadas e experimentadas várias Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 5 propostas, cujas lacunas evidenciaremos: a do modelo liberal (Kymlicka); a do modelo dos "comunitários" (Sandel, Taylor, Walzer); a do modelo do republicanismo de obediência universal (Habermas). Talvez seja necessário compreender que a estruturação social já não opera a partir de princípios abstratos e universais que ignoram por completo a questão o multiculturalismo. Talvez seja necessário conceber os comunitarismos e as aspirações identitárias dos grupos étnicos, como a causa e o efeito de uma harmonia vivida de forma diferencial, assim como um potente antídoto ao racismo. A necessidade de estudos sistemáticos sobre as relações étnico raciais no Brasil urge no contexto socio-historico atual, visto que o país abrange uma diversidade imersa na crença e absorção da exclusão social e discriminação racial, que repercutem negativamente na vida cotidiana das populações negra e indígena, principalmente quando o tema em questão é a cidadania. Desde os primórdios humanos, a desqualificação de um indivíduo sobre o outro esteve presente nas relações sociais. Segundo Borges: ...ainda na Antiguidade Heródoto (século V a.C.) escrevia textos sobre os não-gregos, chamando-os de bárbaros, baseando essa denominação na superioridade dos gregos e na inferioridade dos estrangeiros, determinando a superioridade de sua cultura como justificativa das relações de dominação política, militar, econômica e cultural a qual foram submetidos os povos estrangeiros conquistados pela Grécia... (BORGES, 2002). Tal discussão ao ser inserida na Europa Moderna e mercantilista demonstra que o discurso da dominação dos africanos também foi justificado pelo ideologismo das concepções racistas de inferioridade e superioridade quando se utilizou do argumento das raças infectas e assim dominou os povos africanos e sua suposta culpa pelo pecado original dos descendentes de Cam. A invenção da raça encontrou durante toda a história da humanidade pressupostos ideológicos que se enraizaram no terreno fértil da incipiente ciência moderna que durante muito tempo abriu discussões sobre a existência de raças humanas e o valor de cada uma delas sendo acrescidas da teoria de que a presença culturas híbridas causa a decadência social. Conforme afirma Kenski: o conde francês Joseph Arthur de Gobineau, que quase 100 anos depois de Linnaeus, concluiu que a miscigenação causa a decadência dos povos e que os alemães eram uma raça superior às outras, contrariando amplamente o juízo social e antropológico criado por cientistas sérios de que a miscigenação conduz a sociedade a um maior potencial de desenvolvimento em virtude da associação culturale genética. (KENSKI, 2003). Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 6 Contrariando o discurso nacional de democracia racial, a sobreposição das raças no contexto social é uma realidade brasileira que tanto corrobora com a teoria do branqueamento racial como instrui indivíduos que também agem em consonância com o preconceito e a segregação. Kenski lembra que: o resultado da crença de que não temos racismo foi, de acordo com muitos cientistas, um dos piores tipos de racismos que se conhece. A forma mais eficiente de reforçar o preconceito é achar que ele não existe, que é natural (KENSKI, 2003, P.49) O prodigioso desprestígio social e econômico ainda se refletiu nos trâmites legais quando em 1859, o decreto nº 1.331 legitimou a não admissão de escravos nas escolas públicas, e mais adiante em 1878 – decreto nº 7.031-A – houve a determinação de que os negros só poderiam estudar à noite. O divisor étnico-racial nos sistemas escolares brasileiros expandiu-se para todas as dimensões da sociedade, tornando o processo de desqualificação deste sistema armado sobre dormentes segregacionistas sem a intervenção estatal, uma tarefa árdua aos postos às margens, agravando as desigualdades e injustiças. Fortalecendo este sistema excludente, ainda reverbera o discurso regido por critérios de exclusão, fundado em darwinismo social e manutenção da sobreposição de raças. Fato este perceptível no Caderno de Folclore, do Ministério da Educação e Cultura em que publicou-se: a entrada do negro no Brasil foi simultânea com a descoberta do País. Ele conhecia a escravidão, cultivava-a, e praticava-a como um sistema político. A escravidão era praticada na própria África. Os próprios africanos transplantaram-na para a América. (MEC, Caderno de Folclore, nº 7, op. Cit. Chiavenato, 1999). Assim, a naturalização da escravidão numa sociedade marcada por desigualdades muito visíveis, com uso do plural num sentido pejorativo, ainda tenta livrar as elites do envolvimento com as práticas racistas. O Brasil historicamente alicerçou-se num comportamento ideológico social em que o sucesso de uns tem o preço da marginalização imposta a outros. Urge uma educação das relações étnico-raciais que imponha aprendizagens entre brancos e negros, trocas de conhecimento, quebra de desconfianças e projeto conjunto para construção de uma sociedade equânime. Conforme Silva: A educação para as Relações Etnico-Raciais celebra a diferença afirmando que o reconhecimento da importância de uma educação pluricultural, pluriracial e não- eurocêntrica constituiu-se em um dos pilares de uma sociedade brasileira verdadeiramente democrática (SILVA, 2001). Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 7 Porém, as iniciativas para incutir a temática étnica na esfera só foi possível com a abertura forçada de espaços de discussão que em muito constroem concepções conceituais de mestiços e iguais, democracia racial e de hierarquização dos padrões sociais e raciais, resultando na diferença pejorativa. Romper uma ideologia tão fortemente construída, é tarefa difícil mas não impossível, e que necessita da coibição à disseminação de teorias que neguem a coexistência de diferentes culturas, que deturpem a realidade da riqueza pluricultural do País, para assim construir uma Nação sem lacunas no campo ideológico que há muito fomenta a crise sócio-racial, como afirma Oliveira: Precisamos garantir a vez e a voz dos marginalizados da cultura dominante, aprendendo a compreender a diferença e a diversidade como fator de acréscimo e não de exclusão. (OLIVEIRA, 2003) Desta forma, é preciso despertar negros e brancos para a consciência negra em que a noção de identidade se dá por meio do reconhecimento de suas diferenças, sem atribuir a estas juízos de valor, atividades estas presentes desde a história da colonização brasileira pautada na concepção mercantil racista de superioridade e inferioridade. Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 8 CAPÍTULO 2 – RAÇA E CONHECIMENTO1 O livro Raça, ciência e sociedade, organizado por Marcos Chor Maio e Ricardo Ventura Santos, usa uma abordagem diacrônica e multidisciplinar para estudar o cenário racial contemporâneo. Sua origem foi um bem-sucedido seminário, realizado em maio de 1995 no Centro Cultural Banco do Brasil (Rio de Janeiro). A maior parte dos textos integrou O seminário. Apenas quatro textos foram posteriormente incorporados para "suprir lacunas" percebidas pelos organizadores. A ideia de raça fornece o eixo central em tomo do qual se articulam os quinze artigos distribuídos em quatro seções: raça, ciência e nação na virada do século; deslocamentos no conceito de raça nas décadas de 1930 e 1940; a produção das ciências sociais nas décadas de 1940 a 1960; e as perspectivas contemporâneas acerca da questão racial. Os artigos apresentam uma ampla gama de enfoques sobre o vasto universo de questões sugerido pelo trinômio raça, ciência e sociedade que figura no título da coletânea. Compõem uma polifortia muito bem organizada de vozes, pois o seu conjunto acompanha com felicidade uma proposição central, que eu expressaria da seguinte maneira: a ciência (aqui temos o Brasil dos séculos XIX e XX dialogando com o pensamento científico) propõe a ideia de raça (em que consiste essa ideia? quais conceitos a substituem com o passar do tempo?) para pensar diferenças existentes entre os homens. Ora, todo conhecimento é parte de uma cultura, e assim também o pensamento científico, malgrado sua aspiração à universalidade. De tal modo que pensar os instrumentos conceituais por ele propostos significa também refletir sobre a sociedade que os utiliza. Esse é o tom comum da reflexão que embasa os diferentes artigos. Em sua motivação central, a coletânea integra, portanto, o debate contemporâneo sobre a tradição do pensamento social brasileiro: pois, através da múltipla abordagem da "questão racial", trata-se também de pensar o seu imbricamento com a construção simbólica da nacionalidade e com a própria trajetória das ciências sociais no país. Há, desse modelo, uma "questão da nacionalidade" implícita na discussão articulada em torno da ideia de raça. A ela se associa o interesse muito genuíno por alguns autores importantes na conformação da reflexão sociológica e antropológica 1 CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. RAÇA E CONHECIMENTO, Raça, Ciência e Sociedade, organizado por Marcos Chor Maio e Ricardo Ventura Santos. Rio de Janeiro, Editora da Fundação Oswaldo Cruz, 1996. Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 9 no Brasil, sempre lidos e relidos a partir da ótica atual. Para além do expressivo conjunto de artigos reunidos, esse enquadramento do tema é em si mesmo uma valiosa contribuição para sua compreensão. Nessa perspectiva, a coletânea realiza plenamente sua ambição: não exaurir, mas esclarecer, mapear e matizar o vasto horizonte de questões propostas. Como todos os textos dialogam entre si, há muitos caminhos de leitura possíveis, que atravessam a ordenação sequencial das seções propostas pelos organizadores. Sugiro que a leitura comece com o tão esclarecedor quanto interessante artigo de Ricardo Ventura dos Santos - "Da morfologia às moléculas, de raça à população: trajetórias conceituais em antropologia física no século XX" - que vai direto ao ponto central: analisar a trajetória doconceito de raça na antropologia física ou biológica. Na antropologia social e cultural, o conceito de raça foi substituído pelo de cultura - sobre esse ponto, por sinal, versa todo o artigo de Lourdes Martínez-Echazábal, "O culturalismo dos anos 30 no Brasil e na América Latina: deslocamento retórico ou mudança conceitual?". Na antropologia biológica, foi a noção de população que veio substituí-la. Se raça trazia consigo uma ênfase tipológica e descritiva, população vem enfatizar a variabilidade e o dinamismo, no contexto do evolucionismo neoclarwinista, que traz em sua ótica explicativa justamente as noções de mudança e instabilidade. Apesar de enfatizar justamente o oposto - a fixidez, o essencialismo e a estabilidade -a ideia de raça não foi simplesmente abandonada. Foi antes reformulada, de modo a adequar-se ao novo paradigma, que só se estabelece realmente na biologia moderna na década de 1940. Acompanhando o deslocamento da perspectiva científica da superfície exterior e visível do corpo humano ao interior e microscópico, passando da cor da pele às moléculas, novos parâmetros biológicos revitalizaram a noção de raça. Raça, nos diz o autor, é nada mais, nada menos, do que ·'uma população em isolamento reprodutivo", um tipo-ideal jamais encontrável na realidade. É um conceito probabilístico, válido apenas à luz da genética, aplicável a um conjunto de indivíduos, e nunca a indivíduos tomados isoladamente. Entretanto, no senso comum, o exterior e o visível continuam a exercer particular fascínio, transformando-se em critérios para organizar e classificar diferenças humanas. O interessante artigo de Maggie, "Aqueles a quem foi negada a cor do dia: as categorias cor e raça na cultura brasileira", aborda um sistema de classificação social brasileiro expresso com enorme Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 10 vigor na linguagem cotidiana da ampla maioria da população. Nele, a cor em múltiplas gradações é um critério classificador de pessoas. Negro, negrinho, escuro, escurinho, preto, alvo, alvacento, mulato, pardo, claro, amorenado, branquelo são apenas alguns dos teimas resultantes. O sistema se esmera em valorar e distinguir nuances. As pessoas comuns, nos diz sensivelmente a autora, evitam os termos preferidos pelos movimentos negros, e mesmo por algumas vertentes, do discurso acadêmico. E preciso que o analista encare seriamente a perspectiva nativa, pois esse sistema classificatório, certamente também discriminatório, revela a preferência cultural pela complementaridade ao invés da oposição. Inadvertidamente, porém, parecemos ter caído numa armadilha. Tendemos a identificar, num bias bem brasileiro, "questão racial" e "questão do negro" (aquele conjunto de indagações alusivo ao passado escravista e às questões da cidadania dos ex-escravos no contexto de uma abolição quase concomitante à proclamação da república). A coletânea é um tanto ambivalente quanto a esse ponto, sobretudo se a vemos a partir de sua última seção, que aborda as perspectivas contemporâneas sobre a "questão racial". Nela estão, além de Maggie, os bons artigos de Sansone, Joel Rufmo dos Santos e Carlos Hasenbalg. O primeiro, "As relações raciais em 'Casa-Grande & Senzala' revisitadas 11 luz do processo de internacionalização e globalização", é urna interessante releitura de Gilberto Freyre a partir de pesquisa recente realizada pelo autor na Bahia. O segundo, "O negro como lugar", assumidamente populista, e certamente o texto mais político de toda coletânea, toca com perspicácia em pontos críticos do "debate racial". Nele nos enredamos todos, inclusive c de modo muito peculiar os movimentos negros antirracistas, fundando nossa fala numa noção que designa uma realidade inexistente: a raça. Seguindo os passos de Guerreiro Ramos, a proposta do autor é a valorização da negritude como um lugar relativo flexível a partir do qual se fala. O terceiro, "Entre o mito e os fatos: racismo e relações raciais no Brasil", insere a discussão brasileira no contexto latino-americano e traz a contribuição de estudos demográficos e estatísticos que nos revelam "fatos": os "principais mecanismos que levam a sociedade brasileira a produzir resultados desiguais para brancos, negros e mestiços". Quanto aos "mitos", a democracia racial que não existe na realidade opera na ideologia, produzindo um desafio: "existe um problema racial e ele demanda ação coletiva para ser corrigido. Por outra parte, existe o valor ou ideal de convivência harmônica entre grupos raciais, e esse ideal é comum a brancos e não-brancos" (p.245). Não resisto a lembrar que autores como Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 11 Oracy Nogueira se pronunciaram com relação a isso no passado. Os artigos são excelentes e instigantes. Todos versam entretanto sobre as "relações entre negros e brancos". A ordenação histórica das seções, no entanto, nos prega aqui uma pequena peça, pois justamente na abordagem da contemporaneidade estreita-se o escopo da discussão tão amplamente proposto pela coletânea, especialmente em sua primeira seção. "As raças indígenas no pensamento brasileiro do Império", de John Monteiro, que abre o livro, é uma interessante incursão sobre o terceiro polo da mitologia racial brasileira: o índio. Enquanto vigorou no país a escravidão, o debate em tomo das ideias de raça e civilização fixou-se prioritariamente no índio. Num primeiro momento, a noção vigente era sobretudo a de ·'nação". A mentalidade da época dilacerava-se entre a valorização do tupi, o índio histórico, que mesclado à população teria contribuído para a gênese da nacionalidade brasileira, e o temor do tapuia, o índio contemporâneo que, errando nos sertões incultos em hordas selvagens, seria uma espécie de inimigo nacional. No debate então corrente sobre as possibilidades de acesso do país às fOllnas vistas como mais elevadas de civilização, os distintos agentes coloniais dividiam-se e debatiam políticas assimilacionistas ou repressivas, compondo um discurso multifacetado relativo ao índio. O elenco de personagens do debate alarga-se ainda mais. Com Nísia Trindade Lima e Gilberto Hochman, em "Condenado pela raça, absolvido pela medicina: o Brasil descoberto pelo Movimento Sanitarista da Primeira República" chega o caboclo, representando a população do interior do país, e integrando a construção simbólica da nacionalidade. Diante da triste realidade de um Brasil doente, descoberta pelo movimento sanitarista nas primeiras décadas do século XX, abala-se a imagem da vitalidade do caboclo veiculada pela literatura romântica e forja-se a doença como metáfora para exprimir O Brasil e seu povo. A campanha de saneamento analisada pelos autores opôs-se duplamente ao ufanismo e ao detellninismo racial fatalista, vendo a ciência como um instrumento de superação de sérios problemas e deixando como legado institucional a reorganização dos serviços sanitários federais. "Construindo a nação: hierarquias raciais e o papel do racismo na política de imigração e colonização", de Giralda Seyferth, aborda de modo muito pertinente outro ponto crucial. Há ainda mais outros, além de índios, negros e caboclos. Os imigrantes vêm trazer com particular nitidez a necessidade de relativização da noção de nação que tantas vezes nos turva o olhar. O ponto de partida é Marcel Mauss: "uma nação acredita na sua civilização, nos seus costumes C.') Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 12 tem o fetichismo da sua literatura, da sua plástica, da sua ciência, da sua técnica, da sua moral, dasua tradição e do seu caráter" Cp. 41). Valores nacionais não devem suplantar outros valores universais, pois a nacionalidade não é um dado natural, como tendem a fazer crer todos os nacionalismos. O texto caminha dissecando a associação entre nacionalismo e racismo, e aporta nas primeiras décadas do período republicano, "quando as ideologias raciais tiveram influência preponderante em segmentos da elite brasileira voltados para a análise da política migratória" Cp. 44). Segue-se a análise dos debates travados em tomo da imigração europeia, dominados pelo valor da unidade nacional: tratava-se de garantir o povoamento do território por imigrantes brancos supostamente "encarregados de civilizar uma população considerada inferior, sem destruir aquela outra base da nacionalidade que é a cultura latina e a língua portuguesa. Tudo o que pode ameaçar essa unidade e a formação do tipo nacional especificamente brasileiro é criticado: a homogeneidade das colônias alemães, a imigração asiática, a exclusividade da imigração portuguesa" Cp. 55). O artigo subsequente é "Dos males que vêm com o sangue: as representações raciais e a categoria do imigrante indesejável nas concepções sobre imigração da década de 20", de Jair de Souza Ramos. A análise da fracassada negociação entre um "grupo de afro-americanos" (negros norte-americanos de Chicago) e o presidente do Estado do Mato Grosso, na década de 1920, para fundar uma colônia nessas terras, cai como uma luva na sequência da discussão proposta por Seifert. O belíssimo "Do saber colonial ao luso-tropicalismo: 'raça' e 'nação' nas primeiras décadas do salazarismo", de Ornar Ribeiro Thomaz, que abre a segunda seção da coletânea, rompe fronteiras e nos leva a um périplo por terras pouco navegadas. "Como transformar uma entidade política hierárquica -o Império - na representação homogeneizadora que supõe a ideia de 'nação'? É sobre a concepção de 'nação' a partir dos discursos produzidos em tomo do Império, das suas gentes, da sua história e o seu destino que se debruça esse texto" Cp. 86). O autor o faz de modo fascinante, analisando o discurso de intelectuais vinculados ao projeto imperial português a partir das Conferências de Alta Cultura Colonial de 1936, um de vários encontros destinados à produção de um "saber colonial". Não se trata, nos diz Thomaz, da descoberta da produção de um discurso "hegemônico", mas, mais simplesmente, de desvendar uma face pouco conhecida da história intelectual portuguesa. Raça, nação, tempo e história são assim categorias elaboradas de modo sofisticado no interior das diversas soluções discursivas Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 13 que problematizam a continuidade do Império português e de sua missão. O espírito que anima a coletânea é, portanto amplo e arejado. Para além do fato histórico da escravidão e de suas consequências na confinação da sociedade brasileira, creio que uma das razões da identificação tão corrente da "questão racial" com a temática do negro, consagrada de certo modo pela quarta seção, pode ser percebida através do exame da terceira seção do livro: "O Brasil como laboratório racial...”. As relações entre brancos e negros foram o centro de importante discussão no processo de consolidação das ciências sociais no país ao longo das décadas de 1940 a 1960. A importância desse momento o torna um ponto de referência, não só desejável, como de certo modo inevitável, para todos os cientistas sociais. Seis participantes do debate então travado estão presentes nesse novo cenário. Em "Cor, classes e status nos estudos de Pierson, Azevedo e Harris na Bahia", Antônio Sérgio Guimarães persegue acurada mente o significado teórico das noções de cor, classe e status nesses estudos e os deslocamentos conceituais neles operados. "Roger Bastide, paisagista", de Maria Lúcia Santana Braga, examina as contribuições desse autor. "A questão racial no pensamento de Guerreiro Hamos", de Marcos Chor, é uma excelente biografia intelectual traçada a partir do envolvimento afetivo e conceitual de Guerreiro Hamos com a questão racial. Guerreiro fala na necessidade de reeducação dos brancos e brancóides, lembra muito acertadamente que o nosso branco é um mestiço, discorda de si mesmo ao longo de sua carreira profissional, produz sínteses contraditórias, inesperadas e sempre interessantes. A passionalidade do temperamento desse autor e a autenticidade de sua relação com o tema racial que acompanha todas as etapas de sua vida institucional emergem de modo muito vivo na análise sóbria e cuidadosa de Choro Finalmente, Maria Arrninda do Nascimento Arruda, com "Dilemas do Brasil moderno: a questão racial na obra de Florestan Fernandes" faz o competente exame das formulações do dilema racial brasileiro que marcaram época, configurando uma abordagem de certa forma hegemônica do tema pelo menos até a década de 1970. A coletânea é excelente, traz pesquisas originais e recentes, numa clara indicação da vitalidade da reflexão nesse campo. Deixa-nos inúmeras indagações e algumas clarezas. Entre elas, a necessidade de, sem deixar de discutir a questão do negro com a força que ela merece, prosseguir no movimento de ampliação do horizonte de referências conceituais, tal como sugerido pelo conjunto da reflexão presente no livro. Talvez esse movimento nos pem1ita evitar, Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 14 ou ao menos entender melhor, os muitos processos de retificação com os quais nos deparamos ao problematizar a construção de identidades coletivas. Não são, portanto, os tempo que são melhores ou piores para abordar o assunto: brasileiro, estrangeiro, afro-americano, afro- brasileiro, imigrante, índio, caboclo, negro, mulato, pardo ou branco, são inevitavelmente categorias culturais, prenhes de valores dentro de instâncias discursivas amplas. Não são também os rótulos classificatórios - culturalismo versus funcionalismo versus estruturalismo versus marxismo, entre tantos outros - que, por oposição ou adesão, garantem o acesso à melhor verdade. Quanto mais ampla a postura de conhecimento, mais profunda e matizada a percepção do problema, mais abertura para os desafios da resposta. Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 15 CAPÍTULO 3 – REAPRENDENDO OS CONCEITOS2 Atualmente, é muito comum, ao falarmos em raça, sermos acusados de racistas, como se a simples menção ao conceito significasse uma aceitação do que ele historicamente significou (e ainda significa). Fugir ao debate não resolve o problema, pois o racismo e os seus efeitos podem ser percebidos no nosso cotidiano, na escola e fora dela. Nesta Unidade, rediscutiremos os conceitos de raça, etnia, preconceito, discriminação, identidade a fim de compreender de que forma eles orientam determinadas práticas sociais. Os conceitos de raça e etnia ainda hoje são bastante controversos, especialmente quando utilizados como sinônimos. É necessário desvendar a história e os fundamentos políticos destes conceitos para que as dúvidas possam ser dirimidas. Praticamente descartado pela Biologia e por alguns cientistas sociais (GUILLAUMIN, 1972; BANTON, 1977 e 1983; WADE, 1993; GILROY, 2001), o conceito de raça ainda persiste no vocabulário de muitas pessoas – que a ele se referem quando tratam das diferenças fenotípicas entre os indivíduos, e também entre aqueles cientistas que o destacam como uma construção social (GUIMARÃES, 1995; ANTHIAS & YUVAL-DAVIS, 1993; REX, 1988). Como um substituto para o conceitode raça, em decorrência das suas implicações, é correntemente utilizado o conceito de etnia. Tópico 1 – Entendendo conceitos fundamentais Até o século XVIII, o conceito de raça foi um termo referente a grupos com ancestrais comuns, não sendo utilizado para designar a natureza dos indivíduos pertencentes a esses grupos. A explicação das diferenças físicas entre os homens era apoiada no paradigma cristão. Nesta visão, algumas sociedades não seriam destinadas ao desenvolvimento e ao progresso pelo fato de seus habitantes serem classificados como “pagãos, hereges”. Outro aspecto importante dessa visão é a dedução de que europeus, asiáticos e africanos deveriam possuir ancestrais distintos uma vez que as diferenças entre eles se repetiam em sucessivas gerações. Na Antiguidade, gregos e romanos notavam diferenças de cor entre os indivíduos, mas essas diferenças eram atribuídas ao clima. Os negros seriam escuros porque o sol havia bronzeado as suas peles e frisado os seus cabelos. Os brancos seriam claros por falta de sol. A 2 Texto baseado no Manual Educação e Relações Étnico-racial/ Curso de Formação para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileiras (CEAO/UFBA) Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 16 cor dos membros de um grupo, até então, não era destacada como o indicativo de sua superioridade ou inferioridade. O que realmente importava não era a cor da pele dos povos e, sim, se eles eram “civilizados” ou “bárbaros”, diferenciação ligada à cultura, linguagem ou religião. Na região Mediterrânea, havia “civilizados” e “bárbaros” de todas as cores. Nestas sociedades, a escravidão não se organizava em torno da ideia de raça. Prisioneiros de guerra, criminosos e pobres foram escravizados, embora, com o passar do tempo, pudessem obter a liberdade e até mesmo se tornar pessoas muito importantes. O escravo de uma pessoa poderosa possuía status superior ao de alguém livre, mas pobre (MCCASKEL, 1994). A escravidão adquiriu maior relevância, e contornos distintos, somente a partir da expansão do domínio europeu. Com a elevação do poder europeu no século XVI, o status de escravo começou a ser associado aos africanos de pele preta. Em meados do Iluminismo, ainda persistia o paradigma cristão de explicação das diferenças entre os homens, mas este havia sofrido algumas adaptações. Neste momento, surgia a crença na “grande cadeia do ser”, que consistia em acreditar que Deus tinha criado todas as plantas e todos os animais numa cadeia que ia do elemento inferior ao superior. Os inferiores teriam como destino servir aos superiores. Com o advento do Romantismo (1760-1870), em meados do século XVIII, podemos observar uma mudança na maneira como as diferenças vinham sendo analisadas. A ênfase kantiana sobre a ideia de uma forma de pensamento intuitiva e não racional e a nova consideração da lealdade do grupo permitiram aos românticos formular a noção de uma essência imutável dos seres humanos, uma essência além do alcance da história ou sociedade. A ideia de uma essência comum proporcionou o significado de sujeição à comunidade por conter um sentido de pertencimento, que poderia superar os efeitos fragmentários da sociedade capitalista e, além disso, transcender a história. Esta essência achou expressão através do sentido de raça (MALIK, 1996). Malik (op. cit.) enfatiza a importância de entender a gênese do moderno discurso de raça como parte de uma tentativa de articular diferenças internas à sociedade europeia, onde Até o século XVIII, predominava o paradigma monogenista de interpretação das diferenças entre os homens. Com Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), temos a afirmação da Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 17 igualdade natural entre os homens e criação do mito do “bom selvagem”, ideia segundo a qual os povos “selvagens” são naturalmente bons, não corrompidos pela vida em sociedade. Predomina a crença na perfectibilidade humana, capacidade que os homens têm de progredir de um estágio menos avançado a um mais avançado. As dissimilitudes entre os homens eram consideradas provas dos diferentes estágios em que se encontravam no seu processo evolutivo. Gottried von Herder (1744-1803) pode ser considerado um personagem central na transformação do entendimento iluminista de universalismo e no desenvolvimento da noção romântica de raça. Ele rejeitava a ideia de que a realidade era ordenada em termos de leis universais, eternas, objetivas e inalteráveis e afirmava que cada situação, período histórico ou civilização possuía características próprias e valores incomensuráveis. Para ele, cada povo é único, os valores de um não devem ser comparados aos do outro. Herder acreditava que o indivíduo não poderia se auto-realizar no isolamento, pois seus valores surgiam do relacionamento com a sociedade. Ele afirmava também que o pertencimento a uma cultura determinaria a existência dos indivíduos. A natureza de um povo se expressaria através de seu volksgeist. A crença de que a diferença, e não a igualdade entre os humanos, é o motor da história serviu para minar a tendência iluminista de eternizar os fenômenos históricos sob a aparência de lei universal, mas também descartou qualquer padrão comum para avaliar a humanidade, pois o universalismo passou a ser considerado contrário às leis da natureza. A partir de Herder, as diferenças entre as pessoas, e não somente entre grupos, começaram a ser vistas como raciais (MALIK, op. cit.). Em seu Sistema Geral da Natureza (1740), Charles Linnaeus (1701-1778) estabeleceu quatro tipos básicos em ordem descendente: europeus brancos, americanos vermelhos, asiáticos amarelos e africanos pretos. Na 10ª edição de seu trabalho, Linnaeus atribuiu características de caráter a cada raça. Entre outras coisas, ele afirmava que europeus e americanos brancos eram suaves e inventivos, vermelhos americanos eram obstinados, asiáticos amarelos eram melancólicos, cobiçosos e os africanos pretos indolentes e negligentes. Também no século XVIII Georges Cuvier (1769-1832), anatomista comparativo francês que se apropriou do método de Linnaeus no estudo do homem, introduziu a ideia da existência de heranças físicas permanentes entre os vários grupos humanos. Seu método de classificação Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 18 baseava-se na noção de tipo. Ao contrário das teorias que contemplavam a possibilidade de mudança, na noção de tipo predomina a ideia de imutabilidade, pois os tipos se mantêm apesar da miscigenação, do clima, da invasão de estrangeiros, do progresso etc. Temos, na concepção de Cuvier, uma visão hierárquica das raças (com os brancos no topo), e uma convicção de que diferenças de cultura e de qualidade mental podem ser produzidas por diferenças físicas. A partir do século XVIII, os comportamentos humanos deixaram de ter uma explicação t eológica para adquirirem uma explicação científica, que os via como sendo regidos por leis biológicas e naturais. Surge então o paradigma poligenista, que interpreta as diferentes raças não como “subespécies”, mas como “espécies” distintas, não redutíveis a uma única humanidade. Assim como os monogenistas, os poligenistas também admitiam a existência de ancestrais comuns na pré-história, mas, para eles, os homens se dividiram em espécies que configuraram heranças e aptidões diversas. O cruzamento de raças distintas resultaria em degeneração. A perfectibilidade, que era considerada uma característica humana pelos monogenistas,para os poligenistas somente seria encontrada em “raças puras”. No século XIX, as interpretações poligenistas passaram a predominar e, neste momento, adquiriram um cunho científico através do racismo científico ou tipologia racial. Esta doutrina ajudou a gerar uma hierarquia baseada em forças além do alcance da humanidade, o que justificou a superioridade da classe governante, tanto na própria sociedade como em outras. O racismo científico proclamou a aptidão da classe capitalista para reger a classe trabalhadora e a da raça branca para reger a negra. Algumas características da doutrina da tipologia racial: Algumas características da doutrina da tipologia racial: • “...as variações na constituição e no comportamento dos indivíduos devem ser explicadas como a expressão de diferentes tipos biológicos subjacentes de natureza relativamente permanente”, • “as diferenças entre estes tipos explicam as variações nas culturas das populações humanas”, • “a natureza distinta dos tipos explica a superioridade dos europeus em geral e dos arianos em particular”, • “a fricção entre as nações e os indivíduos de diferente tipo tem a sua origem em caracteres inatos” (BANTON, 1983, p. 60). Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 19 Segundo Banton (1977), é no livro de Robert Knox, intitulado The races of men (1850) que a teoria da tipologia racial se tornou compreensível. A influência da teoria de Darwin, contudo, derrubou esta teoria ao mostrar que as espécies não são permanentes e que estão sujeitas à evolução através da adaptação e da seleção. Muito influente, a teoria de Darwin foi adaptada à sociedade de uma forma tal que o centro de sua proposta foi descaracterizado. A seleção que fundamentava o processo de evolução das espécies postulava uma variação casual dentro das populações e fornecia a base para a adaptação às mudanças. A teoria racial enfatizava a fixidez das características, sendo que raça somente teria significado se os caracteres que definem um grupo racial permanecessem constantes através do tempo. Ao contrário dos darwinistas sociais, Darwin nunca propôs a eliminação dos inaptos, dos impuros, pois achava absurda a ideia da existência de um tipo ideal de espécie. A argumentação em torno da pressão populacional sobre a evolução era outro ponto que diferenciava Darwin dos darwinistas sociais. Para os darwinistas, o impacto do crescimento populacional era visto como uma força conservadora negativa para a sociedade. Para Darwin, a pressão populacional era não somente um forte impulso em direção à mudança evolucionária como o resultado de um processo seletivo. As considerações a respeito de aptidão de Darwin e dos darwinistas também eram diferentes. Para Darwin, a aptidão era avaliada pelo número de descendentes de um indivíduo; para os darwinistas, o problema era que os “inaptos” pareciam ser mais férteis do que os “aptos”. No contexto da ciência racial, entretanto, estas diferenças importavam pouco. A partir da obra A origem das espécies (1859), de Charles Darwin (1809-1882), vários ramos do conhecimento p assaram a adotar uma perspectiva evolucionista: a linguística, a pedagogia, a sociologia, a filosofia, a política. Na política, o imperialismo europeu se valeu da ideia de sobrevivência dos mais aptos para justificar o avanço da colonização. Uma teoria sob re raças foi sistematizada a partir do darwinismo social, preconizado por Herbert Spencer. A luta pela existência foi usada como um mecanismo através do qual a hierarquia social e natural foi preservada. A ideia de aptidão inspirou as noções de desejável e de preciosidade. Na apropriação do conceito de evolução pela seleção natural, a ciência racial uniu a ideia de uma hierarquia fixa com a de progresso (MALIK, 1996). Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 20 O determinismo racial ou darwinismo social validou a perspectiva biológica do Positivismo. Nele, as raças são vistas como imutáveis e a miscigenação é tida como sinônimo de degeneração. Suas proposições básicas são: a) entre as raças existe a mesma distância que entre o cavalo e o asno, o que desautoriza o cruzamento entre elas; b) há uma correspondência entre caracteres físicos e morais; c) o que prepondera no comportamento dos indivíduos é o fato de pertencerem a determinado grupo racial, o que retira a importância do livre arbítrio. Para pôr em prática os postulados do darwinismo social, Francis Galton (1822-1911), naturalista e geógrafo britânico, criou, em 1883, a eugenia, doutrina que propunha o melhoramento da humanidade a partir do incentivo à reprodução das “raças puras”, que diziam respeito não apenas à “raça branca”, mas a toda aquela que guardasse as características específicas do tipo. O texto fundador desta doutrina foi Hereditary genius, publicado em 1869. O casamento inter-racial era condenado por ser considerado um obstáculo ao “aprimoramento” das populações. Pode -se dizer que não há limites para a cegueira advinda do interesse e de hábitos egoístas. Posso mencionar um caso sem nenhuma importância que, na ocasião, impressionou-me mais vividamente do que qualquer história de crueldade. Estava fazendo uma travessia de balsa em companhia de um negro, que era incrivelmente estúpido. Tentando fazer-me entender, comecei a falar alto, a gesticular e, ao fazer isso, passei a mão perto de seu rosto. Ele, suponho, pensou que eu estava com raiva e ia bater nele, pois, imediatamente, com um olhar amedrontado e os olhos semicerrados, baixou os braços. Nunca esquecerei do meu sentimento de surpresa, desagrado e vergonha, ao ver um homem grande e forte com medo até mesmo de desviar-se de um golpe dirigido, como pensou ele, para seu rosto. Esse homem havia sido treinado para suportar uma degradação mais abjeta do que a escravidão do animal mais indefeso. (Charles Darwin, O Beagle na América do Sul, 1996 [1832], p. 22) Segundo o que preconizava o darwinismo social, um negro inteligente e um branco menos inteligente seriam exceções à regra que definia o grupo. Assim, ser negro era sinônimo de ser intelectualmente inferior e ser branco sinônimo de ser intelectualmente superior. O Brasil foi o primeiro país da América do Sul a ter um movimento eugênico organizado. A Sociedade Eugênica de São Paulo foi criada em 1918. O movimento eugênico no Brasil foi bastante heterogêneo, trabalhando com a saúde pública e com a saúde psiquiátrica. Uma parte, que pode ser chamada de ingênua ou menos radical do movimento eugenista no Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 21 nosso país, se dedicou a áreas como saneamento e higiene, sendo esses esforços sempre aplicados em relação ao movimento racial. O século XIX também assiste ao surgimento da Escola de Antropossociologia, representada na Alemanha por Otto Ammon (1890-1915), na França por Georges Vacher de Lapouge (1854-1936), na Inglaterra por John Beddoe (1826-1911) e nos EUA por G. C. Closson. O estudo da raça era abordado a partir dos princípios da Antropologia Física, na qual as diferenças físicas eram vistas como determinantes do caráter dos seres humanos e o antagonismo racial era tido como inato. Um ramo da Antropologia Física era a Antropologia Criminal, cujo principal expoente, Cesare Lombroso (1835-1909), afirmava ser a criminalidade um fenômeno físico e hereditário. O conceito de etnia Com o surgimento dos regimes totalitários no século XX, a aplicação das doutrinas racistas teve seu momento de maior apogeu. O principal exemplo da nocividadedestas teorias pode ser verificado na Alemanha de Hitler, quando milhares de judeus foram dizimados com base na suposta superioridade ariana dos alemães. Devido às implicações do uso das teorias racistas, a validade delas passou a ser questionada. Na década de 30 do século XX, o conceito de tipo racial foi substituído pelo de população, que em vez de ser estudada tipologicamente, era estatisticamente estudada. Neste momento, observa-se a recusa ao conceito de raça e às suas referências ao fenótipo e um a maior ênfase é dada ao conceito de cultura. Ruth Benedict, antropóloga estadunidense, mostrou que “...as mudanças mais radicais no comportamento psicológico aconteceram em grupos cuja constituição biológica não tem sido apreciavelmente alterada” (MCCASKEL, doc. www, 1994). Benedict, Margaret Mead e outros antropólogos da escola de Franz Boas também descartaram as noções racistas de cultura produzida biologicamente, demonstrando o papel determinante da história e do ambiente na cultura (MCCASKEL, op. cit.). A noção de etnia, criada no início do século XIX pelo antropólogo Vacher de Lapouge (1886), esteve intimamente associada às noções de povo, raça e nação. Defensor da escola selecionista, Vacher de Lapouge considera a etnia o fator fundamental da história, pois o homem tem como característica básica estar submetido mais à seleção social do que à seleção natural. Seria a seleção social que, ao fazer com que os elementos antropológicos superiores e inferiores se combinassem em determinadas populações, Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 22 determinaria o crescimento e o declínio das nações. Ele inventou o vocábulo etnia justamente para evitar a confusão deste conceito com o de raça, que estaria ligado à associação de características morfológicas e qualidades psicológicas. Para Renan (1823-1892), laços biológicos e laços intelectuais se opõem, mas a ênfase que ele dá é distinta da de Lapouge. Para ele, o fator subjetivo tem grande importância na formação das nações, pois ela se origina da adesão voluntária, em vez de ser dado como algo imposto ou herdado. Os fatores objetivos de pertença nacional – etnográfico, geográfico ou linguístico – são refutados a favor dos fatores subjetivos: o desejo, a vontade e o consentimento. A força que inspiraria este sentimento de pertença à nação seria a memória coletiva Grupos étnicos, para Lapouge, seriam os “...agrupamentos que resultam da reunião de elementos de raças distintas que se encontram submissos, sob o efeito de acontecimentos históricos, a instituições, a uma organização política, a costumes ou ideias comuns. (...) a solidariedade assim constituída subsiste para além da fragmentação do grupo que a produziu. Uma vez que este desaparece como entidade sociopolítica, permanece sempre 'uma certa atração entre as partes disjuntas e uma antipatia particular para com os grupos sociais de outras origens'.” (PHOUTIGNAT & STREIFF-FENART, 1998, p. 34). Renan opõe etnia à nação, dado que a primeira está do lado objetivo e da fatalidade e a segunda do lado subjetivo e voluntarista. Assim, nação difere de etnia ou raça, porque para existir como entidade política ela necessita da afirmação de um passado comum, que não se refere à pertença a um grupo racial ou étnico específico. “A memória fundadora da unidade nacional é, ao mesmo tempo, e necessariamente, esquecimento das condições de produção desta unidade: a violência e o arbitrário originais e a multiplicidade das origens étnicas” (PHOUTIGNAT & STREIFF-FENART, 1998, p. 36). Não se justifica, portanto, associar uma etnia a uma nação, como se uma correspondesse à outra (uma nação = uma etnia). Em Economia e sociedade (1921), Weber (1864-1920) distingue os três conceitos: raça, nação e etnia. Enquanto raça está objetivamente baseada na comunidade de origem, etnia baseia-se na crença subjetiva na comunidade de origem. Nação também está baseada na comunidade de origem, mas, diferentemente do grupo étnico, reivindica poderio político. Para Weber, tanto etnia como nação estão no lado da crença subjetiva e da representação coletiva. Em Weber, raça está do lado do parentesco biológico efetivo. Ele define Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 23 como ‘étnicos’ “....aqueles grupos humanos que, em virtude de semelhanças no habitus externo ou nos costumes, ou em ambos, ou em virtude de lembranças de colonização e migração, nutrem mera crença subjetiva na procedência comum, de tal modo que esta se torna importante para a propagação de relações comunitárias, sendo indiferente se existe ou não uma comunidade de sangue efetiva. A ‘comunhão étnica’ distingue-se da ‘comunidade de clã’ pelo fato de aquela ser apenas um elemento que facilita relações comunitárias.” (WEBER, [1921] 1994, p. 270). Para Weber, raça – definida como aparência externa transmitida hereditariamente, não importa em si mesma; ela somente teria importância sociológica se operasse como um dos elementos capazes d e criar um grupo étnico. Dessa forma, etnia não se reduz a diferenças físicas. Outros elementos que seriam responsáveis pela formação de um grupo étnico seriam a língua e a religião, mas também existe a presença da crença num parentesco comum, que pode ocorrer mesmo quando não existe a efetiva semelhança de raça, língua e costumes, como acontece com império e colônia. O fator mais relevante que atua na formação de um grupo étnico, no entanto, é a comunidade política. A mais importante fonte de etnicidade, para Weber, é a atividade de produção, manutenção e de aprofundamento das diferenças, não a posse de traços físicos ou de quaisquer outros. Para ele, não é o isolamento que cria a consciência étnica e sim a comunicação das diferenças, pois a partir dela se cria a atração entre os iguais e a repulsa pelos diferentes. Na década de 50 do século XX, a UNESCO produziu uma série de pesquisas sobre relações raciais como uma forma de evitar as consequências políticas nocivas do uso incorreto do termo raça. Assim, o conceito utilizado pelos biólogos indica que “...as chamadas raças da humanidade eram estatisticamente apenas grupos distinguíveis” (REX, 1988, p. 38), não sendo essa uma justificativa plausível para as diferenças políticas entre os indivíduos, nem para a explicação das diferenças comportamentais. A resposta encontrada pelos sociólogos empenhados na pesquisa da UNESCO foi dada de três maneiras: 1) Os problemas raciais passaram a ser denominados problemas étnicos; 2) houve o reconhecimento de que há diferenças raciais e de que estas atuam no estabelecimento de desigualdades políticas; 3) o termo situações de relações raciais passou a ser usado para indicar contextos marcados pelo racismo. Os sociólogos passaram a atribuir importância à historicidade do conceito de raça, dando ao fenótipo um caráter de matéria-prima física da raça, que somente Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 24 teria sentido social através de crenças, valores e atitudes. Bastante confundidos no século XIX, os termos raça e etnia, ainda não estão livres desta confusão. Guimarães (1999) defende a utilização do conceito de raça, em oposição àqueles que o consideram inadequado, por entender que há “...em primeiro lugar, a necessidade de demonstrar o caráter específico de um subconjunto de práticas e crenças discriminatórias e, em segundo, o fato de que, para aqueles que sofrem ou sofreram os efeitos do racismo, não há outra alternativa senão reconstruir, de modo crítico, as noções dessa mesma ideologia(GUIMARÃES, op. cit., p. 20). O autor afirma que a rejeição do termo raça em favor de etnia não resolve as dificuldades analíticas, mas reconhece que o conceito de etnia é mais amplo que o de raça, podendo os grupos étnicos abarcar os grupos raciais, fazendo dos últimos um tipo particular dos primeiros. Raça é definida por ele como “...conceito taxionômico fartamente utilizado pelas pessoas no mundo real com propósitos e consequências diversos.” (GUIMARÃES, op. cit., p. 48) Um aspecto importante a ser considerado ao lidarmos com raça como um conceito classificatório é o fato de que este não é unicamente assumido pela pessoa ou grupo que se percebe racializado; ele é, antes de tudo, imposto também àqueles que não se consideram membros de raça alguma. As tentativas de descartar raça como categoria classificatória ocorrem numa sociedade em que tal forma de classificação ainda possui importância significativa, o que faz com que esta deixe de ser uma questão de mera escolha individual. Os distintos significados atribuídos ao conceito devem ser considerados, sem o temor de que venhamos a incorrer no reforço da ideia de raça formulada no século XIX. Para saber mais sobre o Projeto UNESCO, acesse o site do Colóquio Internacional “O Projeto UNESCO no Brasil” http://www.ceao.ufba.br/unesco/welcome.htm ...em sua acepção contemporânea, o termo 'raça' (ou o qualificativo 'racial’) não mais denota a hereditariedade biossomática, mas a percepção das diferenças físicas, no fato de elas terem uma incidência sobre os estatutos dos grupos e dos indivíduos e das relações sociais. (...) Não é, então, a raça enquanto tal, mas as relações raciais que constituem um objeto para a sociologia. (PHOUTIGNAT & STREIFF- FENART, 1998, p. 41) Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 25 A rejeição ao conceito biológico de raça se justifica, mas uma dúvida persiste: se descartarmos o conceito de raça, como poderemos explicar a existência do racismo? Como o racismo se mantém? Vimos que, apesar de não ter validade como conceito científico, raça ainda tem validade social, pois é a ideia que fundamenta o racismo existente em nossa sociedade. Raça é, portanto, um conceito classificatório. Se tomamos a sociedade baiana como exemplo, veremos que mesmo que uma pessoa não se identifique como sendo da raça negra, o seu cabelo ainda é considerado “ruim” por ser crespo, o que é uma expressão racializada, pois afirma a existência de um outro tipo de cabelo que é melhor ou “bom”, o cabelo liso, do “branco”. Ou então, a pessoa é considerada “negra, mas inteligente” ou “negra, mas bonita”, como se inteligência e beleza não fossem atributos que também pudessem ser normalmente encontrados nos negros. Toda pessoa que utiliza o termo raça é racista? Os(as) ativistas antirracistas que usam este termo também são racistas? O termo raça somente pode ser corretamente utilizado em referência à ideia que fundamenta o racismo e não como uma categoria útil à classificação dos distintos grupos humanos. Devemos acrescentar que nem todo aquele que utiliza a noção de raça é racista, pois racista é somente aquele que, além de acreditar na existência de raças, hierarquiza estas raças em superiores e inferiores. Assim, quando quem é contrário(a) ao racismo utiliza a expressão raça é para se fazer entender e buscar alternativas de superação do racismo, não para reforçar a falsa ideia de raça (vide a distinção entre racismo e racialismo, na Unidade 1, Módulo I – História da África). Operando em conjunto com os conceitos raça e etnia, temos outros conceitos que são também cruciais para refletirmos sobre a exclusão da população negra: identidade, preconceito e discriminação. O trabalho não termina aqui, apenas estamos começando. É importante considerar, de acordo com o que propõe Edgar Morin na citação que inicia esta Unidade, que apenas explicar como o racismo se constituiu ao longo da história não é suficiente para a transformação do modelo de educação que desconsidera as contribuições dos distintos grupos que constituem nossa sociedade. É preciso mudar atitudes e comportamentos. A real compreensão da Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 26 humanidade que faz de negras e negros sujeitos de sua própria história é o que fará com que o grande salto qualitativo seja dado. Identidade “A identidade não é algo inato. Ela se refere a um modo de ser no mundo e com os outros. É um fator importante na criação das redes de relações e de referências culturais dos grupos sociais. Indica traços culturais que se expressam através de práticas linguísticas, festivas, rituais, comportamentos alimentares e tradições populares referências civilizatórias que marcam a condição humana.” (GOMES, 2007, p. 41) Preconceito “O preconceito é um julgamento negativo e prévio dos membros de um grupo racial de pertença, de uma etnia ou de uma religião ou de pessoas que ocupam outro papel social significativo. Esse julgamento prévio apresenta como característica principal a inflexibilidade pois tende a ser mantido sem levar em conta os fatos que o contestem. Trata-se do conceito ou opinião formados antecipadamente, sem maior ponderação ou conhecimento dos fatos. O preconceito inclui a relação entre pessoas e grupos humanos. Ele inclui a concepção que o indivíduo tem de si mesmo e também do outro.” (GOMES, 2007, p. 54) Discriminação “A palavra discriminar significa “distinguir”, “diferençar”, “discernir”. A discriminação racial pode ser considerada como a prática do racismo e a efetivação do preconceito. Enquanto o racismo e o preconceito encontram-se no âmbito das doutrinas e dos julgamentos, das concepções de mundo e das crenças, a discriminação é a adoção de práticas que os efetivam.” (GOMES, 2007, p. 55) Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 27 CAPÍTULO 4 – RAÇA VERSUS ETNIA: A CONSTRUÇÃO DE UMA IDENTIDADE RACIAL3 Há uma massa de produção sobre relações raciais no Brasil que aponta para as históricas dificuldades que os indivíduos da população negra enfrentam, e enfrentaram, para a construção de uma identidade racial negra. Uma revisão exaustiva desta literatura, ainda que interessante, fugiria aos interesses centrais deste trabalho. As razões para estas dificuldades são, naturalmente, de muitas ordens, mas aquela que me parece mais contundente tem a ver com o habitus cultural de nossa sociedade, que é fortemente marcado pelo ideal de branqueamento e pelo mito da “democracia racial” historicamente construído. Este último é entendido como uma construção ideológica que aponta para a existência de uma relação concreta na dinâmica da nossa sociedade, na qual, “pretos e brancos convivem harmoniosamente, desfrutando iguais oportunidades de existência, sem nenhuma interferência, nesse jogo de paridade social, das respectivas origens raciais ou étnicas” (Nascimento, 2002, p. 79-80). A propósito dos conteúdos desta suposta “democracia racial”, Abdias do Nascimento é enfático: Uma “democracia” cuja artificialidade se expõe para quem quiser ver; só um dos elementos que a constituíram detém todo o poder em todos os níveis político- econômico: o branco. Os brancos controlam os meios de disseminar as informações; o aparelho educacional; eles formulam os conceitos, as armas e os valores do país. Não está patente que neste exclusivismo se radica o domínio quase absoluto desfrutado por algo tão falso quanto essa espécie de “democracia racial” (Nascimento, 2002, p. 86). Refletindo tambémsobre a “democracia racial”, agora com ênfase no ideal de “branqueamento” que está presente na sociedade brasileira, Neusa Santos Souza (1983) revela o terrível dilema que constitui construir uma identidade racial baseada nos atributos positivos da população negra brasileira. Souza analisou a história de vida de dez indivíduos da população negra que compartilhavam o fato de estarem vivendo um processo de ascensão social, à semelhança do que ocorre com os indivíduos estudados neste trabalho. Analisando as dificuldades vividas pelos seus entrevistados, a autora aponta para o fato de que vivemos em uma “sociedade multirracial, racista e de hegemonia branca que, paradoxalmente, veicula a 3 Texto composto por partes da obra “Da construção à afirmação das identidades raciais”. Disponível em: www2.dbd.puc-rio.br/pergamum/.../0310450_07_cap_02. Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 28 ideologia de democracia racial, em contradição com a existência de práticas discriminatórias racistas” (Souza, 1983, p. 70). Souza afirma que esta dificuldade é principalmente atribuída ao preço que a população negra paga pelo “massacre mais ou menos dramático da sua identidade racial” (Souza, 1983, p. 18). Para a autora, esse “massacre” nasce do desejo de ascender socialmente, permanecendo as identificações desta população com referentes na escravidão e afastados dos valores originais e próprios da população negra — especialmente sua herança religiosa —, lançando mão de uma identidade calcada em símbolos brancos, na tentativa de ultrapassar os obstáculos advindos do fato de ter nascido negro. Em função disto: Essa identidade [pseudo-branca] é contraditória; ao tempo em que serve de aval para o ingresso nos lugares de prestígio e poder, o coloca em conflito com sua historicidade, dado que se vê obrigado a negar o passado e o presente: o passado, no que concerne à tradição e cultura negras e o presente, no que tange à experiência da discriminação racial (Souza, 1983, p. 73). A superação desta dificuldade demanda alguns processos pelos quais o indivíduo precisaria passar para se sentir plenamente estabelecido em uma sociedade que, como argumenta Souza, tem negado aos indivíduos da população negra o reconhecimento da sua identidade racial como um fator fundamental para sua “integração”. Compreendo construção de identidade racial como um processo social, cultural e político, implicada em relações de poder, a partir de uma dinâmica de identificações construídas através de um vasto conjunto de significações e de práticas discursivas. Estas últimas são derivadas da posição que o indivíduo se atribui no mundo, implicando sentimentos de pertença e de autoestima, através dos quais o indivíduo vai se construindo a partir de suas referências culturais e de suas representações, complementando-se em suas relações com os outros nas suas ligações interrelacionais na sociedade. Assim, como sustenta Tadeu Thomaz da Silva (2004), pode- se dizer que: A identidade é uma construção, um efeito, um processo de produção, uma relação, um ato performativo. A identidade é instável, contraditória, fragmentada, inconsistente, inacabada. A identidade está ligada a estruturas discursivas e narrativas. A identidade está ligada a sistemas de representação. A identidade tem conexões com relações de poder (Silva, 2004, p. 96-97). Para Stuart Hall (2004), a identidade corresponde a um processo de identificações, constituído por dois aspectos fundamentais: por um lado, é construída na linguagem do senso comum a partir do reconhecimento de alguma origem comum, ou de características que são partilhadas com outros grupos ou pessoas, ou ainda a partir de um mesmo ideal. Por outro, é Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 29 vista pela abordagem discursiva, como uma construção, como um processo nunca complementado, como algo sempre “em processo”. Desta maneira, para o autor: A identificação é, pois, um processo de articulação, uma suturação, uma sobredeterminação, e não uma subsunção. Há sempre “demasiado” ou “muito pouco” – uma sobredeterminação ou uma falta, mas nunca um ajuste completo, uma totalidade. Como todas as práticas de significação, ela está sujeita ao “jogo da différance. Ela obedece à lógica do mais-que-um. E uma vez que, como num processo, a identificação opera por meio da différance, ela envolve um trabalho discursivo, o fechamento e a marcação de fronteiras simbólicas, a produção de “efeitos de fronteiras”. Para consolidar o processo, ela requer aquilo que é deixado de fora –o exterior que a constitui (Hall, 2004, p. 106). O processo de construção da identidade pode ser entendido também como uma “metamorfose” que “representa a pessoa e a engendra”, e não simplesmente como uma representação da pessoa; uma formulação de um centro estático da dinâmica entre o meio social, a cultura e a subjetividade individual (Ciampa, 1987, citado em: Nascimento, 2003, p. 35). Ainda sobre este processo de construção, Elisa Larkin Nascimento (2003) fala de uma dinâmica de “identificações” na construção da identidade, utilizando como referência os estudos da psicanálise contemporânea a partir do trabalho de Erik H. Erikson (1963). Aquele autor aproxima a psicanálise do meio social e neste contexto ele trabalha a ideia de “identificação”, afirmando que a construção da identidade nunca é estabelecida de forma estática ou imutável, pois suas raízes estão plantadas no tecido social em transformação. Por este aspecto, o desenvolvimento pessoal não se separa da transformação comunitária, assim como a crise de identidade na vida individual e as crises contemporâneas no desenvolvimento histórico se definem e se influenciam mutuamente. Para Ricardo Franklin Ferreira (2000) a identidade é vista como uma categoria, além de pessoal, fundamentalmente social e política, considerada como uma referência em torno da qual o indivíduo se auto-reconhece e se constitui, estando em constante transformação e construída a partir de sua relação com o outro. Portanto, para o autor, a construção da identidade não é uma simples representação do indivíduo, mas “uma dialética sem síntese”, sempre submetida à dinâmica do processo de viver (Ferreira, 2000, p. 47). Neste processo de construção da identidade fundamentada em uma dinâmica de identificações através da qual o indivíduo se Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 30 referencia e constrói a si e a seu mundo, o autor afirma que o indivíduo desenvolve uma identidade com um “sentido de autoria”. Desta maneira: Identidade tem relação com individualidade –referência em torno da qual o indivíduo se constrói; com concretude– não uma abstração ou mera representação do indivíduo, articulando-se com a vida concreta, vivida por um personagem concreto, alicerce de uma sociedade igualmente concreta e constituída ao longo do tempo; com socialidade – só pode existir em contexto social; com historicidade– vista como configuração localizada historicamente, inserida dentro de um projeto e que permite ao indivíduo alcançar um sentido de autoria na sua forma particular de existir (Ferreira, 2000, p. 48). A partir deste “sentido de autoria” o autor sugere que o desenvolvimento da identidade afrodescendente brasileira se dá em quatro estágios fundamentais: submissão, impacto, militância e articulação (Ferreira, 2000, p. 69-84). No estágio de “submissão” o referencial através do qual o afrodescendente constrói sua identidadesão as crenças e os valores da cultura branca, vista como superior. Neste estágio, o indivíduo se submete a ideologia da visão dominante do mundo, concebendo sua inferioridade racial, desvalorizando e fugindo de sua identificação com o mundo negro. Ainda neste estágio os problemas etno-raciais são explicados pelo prisma da “culpabilidade da vítima”, cujas condições sociais e econômicas são encaradas como fruto da inépcia e da falta de capacidade pessoal dos indivíduos negros. Em síntese: As pessoas brancas acreditam ser seu status vantajoso devido a qualidade de seu esforço pessoal e as pessoas afrodescendentes, deste estágio, encaram suas dificuldades justificadas pelo fato de não realizarem o esforço equivalente ao esperado delas. Dessa forma, estas pessoas deixam de incluir, na construção de sua identidade, matrizes culturais africanas que, historicamente, são referências participantes da cultura de todo brasileiro (Ferreira, 2000, p. 73). No estágio de “impacto” a identidade referenciada pelos valores brancos, modelada e sedimentada a partir do processo de socialização, que deixa a pessoa centrada e articulada nas situações da vida, começa a desestabilizar, através de experiências nas quais torna-se impossível negar a não-aceitação por parte do mundo branco, sugerindo nova direção no sentido de transformação ou ressocialização. Utilizando Helms (1993), o autor propõe três fases nesta transformação: (1) a primeira é caracterizada pelo momento de impacto que ocorre com a tomada de consciência da discriminação, da não-funcionalidade da visão do branco como referência para a construção da estrutura pessoal e da necessidade do desenvolvimento de uma “nova identidade” racial; (2) a segunda fase, caracteriza-se pela luta para o desenvolvimento desta nova identidade, pelo abandono da identidade que vinha sendo construída no estágio anterior —de submissão—, com o reconhecimento da importância das qualidades etno-raciais, e (3) na terceira fase, a pessoa passa a agir como se existisse Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 31 uma “identidade negra” já definida externamente e que deve ser encontrada. Enfim, o estágio de “impacto” é uma fase intermediária que determina a morte do estágio de “submissão” e o afrodescendente, ou a pessoa “afrocentrada”, começa a emergir. O reconhecimento de uma identidade racial referenciada em valores africanos, a ser desenvolvida, sinaliza a entrada da pessoa no estágio da “militância” (Ferreira, 2000, p. 77-78 ). A fase da “militância” é caracterizada pelo processo de intensa mudança na subjetividade do negro, no qual vão sendo demolidas velhas perspectivas e, ao mesmo tempo, passa a se desenvolver uma nova estrutura pessoal, referenciada em valores etno-raciais de matrizes africanas. Até esta fase o negro estava submetido a uma “visão do negro” determinada pela cultura branca. Como decorrência, sua maneira de agir era estereotipada, sendo a referência da pessoa negra uma referência “de grupo” definida externamente, levando-a a pensar, sentir e comportar-se de acordo com padrões idealizados por outros. Portanto, o estágio da “militância” é importante para o desenvolvimento da identidade, porque a participação do militante favorece a recuperação dos valores da cultura e da história do negro para, mediante um processo de socialização, levá-lo a desenvolver uma identidade e uma autoestima mais positivas (Ferreira, 2000, pp. 79 - 83). Por fim, todos estes estágios definidos pelo autor, levam o indivíduo a desenvolver uma perspectiva afrocentrada não-estereotipada, com atitudes voltadas para a valorização das qualidades referentes à negritude, mais expansivas, mais abertas e menos defensivas. Neste último estágio, definido por Ferreira como o da “articulação”, há o desenvolvimento de um novo processo de identificação, em que as matrizes africanas são salientadas. A população negra torna-se o principal grupo de referência ao qual o indivíduo pertence, sendo seu vínculo com esse grupo determinado por qualidades do próprio grupo e, não mais, exclusivamente, por fatores externos a ele. Ferreira destaca que esta nova identidade é construída a partir de três dinâmicas: (1) defender e proteger a pessoa de agressões psicológicas; (2) prover um sentido de pertença e ancoradouro social e (3) prover uma fundação, ou ponto de partida, para as transações com pessoas de culturas diferentes daquelas referenciadas em matrizes africanas (Cross, 1991 citado em: Ferreira, 2000, p. 83 - 84). Essa “nova” identidade, com a qualidade africana como uma de suas importantes dimensões, passa a ter uma função protetora. O indivíduo tem consciência de que o “racismo” ainda faz parte da experiência brasileira e de, provavelmente, ainda ser alvo de atitudes racistas, porém, a partir deste estágio, já desenvolveu recursos de defesa, um sistema de censura e uma Este módulo deverá ser utilizado apenas como base para estudos. Os créditos da autoria dos conteúdos aqui apresentados são dados aos seus respectivos autores. 32 orientação de eficácia pessoal que o predispõe a atribuir a culpa de circunstâncias adversas a outros fatores e não mais a si próprio. Desenvolve- se, assim, a consciência da importância das matrizes africanas na construção de sua identidade. O afrodescendente passa a sentir-se aceito, com propósito de vida, a estar profundamente enraizado na cultura negra, sem deixar de perceber as condições às quais está submetido em um mundo que o vê com preconceito. As matrizes africanas passam a ser efetivamente afirmadas (Ferreira, 2000, p. 84). De acordo com Nascimento, 2003, p. 96-97, esta ideia de construção de uma identidade afrocentrada deriva da “teoria do centro”, que postula a necessidade de explicar a localização do sujeito, que não está referida a um lugar geográfico especifico, mas a uma condição e reconhecimento de pertencimento a determinado grupo social, que possibilita desenvolver uma postura própria a cada grupo social e fundamental na sua experiência histórica e cultural. A partir dessa localização teórica, o grupo se define como sujeito de sua própria identidade, em vez de ser definido pelo outro a partir de postulados pretensamente universais, porém elaborados desde um posicionamento específico, alheio e dominante. Nesta abordagem o conceito de “lugar” é fundamental porque dispensa o enfoque sobre a condição racial do sujeito, ou seja, “quem se localiza no ‘lugar’ da abordagem afrocentrada não precisa ser afrodescendente, assim como nem todo afrodescendente se posiciona nesse lugar”. Ainda para a autora, a construção da identidade afrocentrada é o que possibilita o conceito de “agência”, que denota protagonismo: o exercício da capacidade de pensar, criar, agir, participar e transformar a sociedade por força própria. A construção da identidade afrocentrada é o que possibilita essa “agência”, pois “o âmago do ‘racismo’ está numa sociedade hierárquica que se recusa a reconhecer a agência africana” (Asante, 1998, p. 8 citado em: Nascimento, 2003, p. 98). Finalmente, nesta discussão sobre construção de identidade como uma das mais relevantes formas de expressão dos movimentos sociais contemporâneos, cabe uma aproximação da discussão proposta por Manuel Castells (1999). Ao assumir que toda identidade é uma construção e que toda construção de identidade implica relações de poder, este autor propõe três formas de construção de identidade: a) “Identidade legitimadora”: introduzida pelas instituições dominantes da sociedade no sentido de expandir e racionalizar sua dominação em relação aos atores sociais. É este tipo específico de identidade que tem legitimado e esvaziado o sentido
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