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Fátima Garcia Chaves Francis Silva de Almeida Neusa Abadia Gomes Andrade Tiago Zanquêta de Souza Educação de Jovens e Adultos (EJA) Catalogação elaborada pelo Setor de Referência da Biblioteca Central Uniube E83 Educação de jovens e adultos - EJA / Fátima Garcia Chaves ... [et al.]. – Uberaba: Universidade de Uberaba, 2018. 192 p. : il. Programa de Educação a Distância – Universidade de Uberaba. Inclui bibliografia ISBN 978-85-7777-857-7 1. Educação. 2. Educação de jovens. 3. Educação – Adultos. 4. Educação – Brasil. I. Chaves, Fátima Garcia. II. Universidade de Uberaba. Programa de Educação a Distância. III. Título. CDD 370 © 2019 by Universidade de Uberaba Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida ou transmitida de qualquer modo ou por qualquer outro meio, eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia, gravação ou qualquer outro tipo de sistema de armazenamento e transmissão de informação, sem prévia autorização, por escrito, da Universidade de Uberaba. Universidade de Uberaba Reitor Marcelo Palmério Pró-Reitor de Educação a Distância Fernando César Marra e Silva Coordenação de Graduação a Distância Sílvia Denise dos Santos Bisinotto Editoração e Arte Produção de Materiais Didáticos-Uniube Editoração Márcia Regina Pires Revisão textual Erlane Silva Nunes Diagramação Andrezza de Cássia Santos Projeto da capa Agência Experimental Portfólio Edição Universidade de Uberaba Av. Nenê Sabino, 1801 – Bairro Universitário Fátima Garcia Chaves Mestre em Educação – pela Universidade de Uberaba (Uniube). Especialista em Planejamento Educacional pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU); em Educação Escolar – Português, pela Faculdade Politécnica de Uberlândia (UFU); em Educação a Distância – EAD pela Uniube. Licenciatura Plena em Letras – Português/Inglês por esta universidade e em Pedagogia – Licenciatura Plena pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ituverava (FFCL). Atua no Departamento de Formação Profissional da Secretaria Municipal de Educação de Uberaba. É docente nos cursos de Pedagogia e Educação Física desta universidade. Francis Silva de Almeida Mestre em Educação pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). Pós-graduado em Docência, nos Ensinos Médio, Técnico e Superior pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci (Uniasselvi/Instituto Passo1). Graduado em Filosofia – Licenciatura Plena pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC). É docente do curso de Pedagogia (EAD) da Universidade de Uberaba (Uniube). Neusa Abadia Gomes Andrade Mestre em Educação pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). Especialista em Administração Escolar pelas Faculdades Integradas de Jacarepaguá (FIJ). Graduada em Pedagogia pela Universidade de Uberaba (Uniube). É docente na Universidade de Uberaba, no curso de Pedagogia. Sobre os autores Tiago Zanquêta de Souza Doutor em Educação, pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Mestre em Educação, pela Universidade de Uberaba (Uniube). Especialista em Gestão Ambiental e em Docência do Ensino Superior, pelas Faculdades Integradas de Jacarepaguá (FIJ). Licenciatura Plena em Ciências Biológicas pela Uniube. Atua como docente na Uniube nos cursos de Engenharia; Licenciatura e no Programa de Pós-Graduação em Educação da Uniube. Sumário Apresentação ..................................................................................... VII Capítulo 1 Fundamentos da Educação de Jovens e Adultos ...............1 1.1 Epistemologia da Educação de Jovens e Adultos ..................................................3 1.1.1 Concepções de educação e educação escolar ...........................................10 1.1.2 Educação de Jovens e Adultos: por que e para quem? ..............................23 1.1.3 Pedagogia, andragogia e heutagogia ..........................................................31 1.2 Como abordar o processo de aprendizagem na educação de jovens e adultos .36 1.2.1 O contínuo pedagógico-andragógico da aprendizagem .............................42 1.3 Trabalho e cultura: aspectos da emancipação intelectual no contexto da Educação de Jovens e Adultos..............................................................................47 1.3 Considerações finais..............................................................................................51 Capítulo 2 História da Educação de Jovens e Adultos no Brasil ...............................57 2.1 Educação de Jovens e Adultos: considerações iniciais ........................................59 2.2 A trajetória histórica da EJA no Brasil: alguns apontamentos essenciais .............64 2.3 Considerações finais............................................................................................101 Capítulo 3 Uma abordagem metodológica para a Educação de Jovens e Adultos .....................................................................................................109 3.1 A Educação de Jovens e Adultos (EJA) e o direito à educação ......................... 111 3.2 Proposta pedagógico-curricular para o público da EJA ......................................114 3.2.1 Conteúdos que estruturam a proposta curricular da EJA ..........................115 3.3 O processo de ensino-aprendizagem .................................................................117 3.3.1 E o que é aprendizagem? ..........................................................................117 3.4 Aspectos metodológicos ......................................................................................122 3.4.1 E como fazer isto metodologicamente?.....................................................123 3.5 O desenvolvimento de projetos ...........................................................................125 3.6 Conhecendo um plano de aula ............................................................................128 3.7 Considerações finais............................................................................................132 Capítulo 4 Identidade e subjetividade na Educação de Jovens e Adultos ..............135 4.1 Territórios e subjetividade na EJA ........................................................................137 4.2 Alunos e professores da EJA – o humano – e a subjetividade ...........................139 4.3 A EJA e as especificidades de seus protagonistas .............................................141 4.3.1 O aluno da EJA ..........................................................................................141 4.3.2 O professor da EJA ....................................................................................144 4.4 A EJA e o ensino nas instituições prisionais ........................................................151 4.4.1 A educação escolar dentro da prisão .........................................................153 4.4.2 A escola na instituição prisional na visão de professores e alunos ...........156 4.4.3 O trabalho dos professores na escola prisional ........................................157 4.4.4 A escola prisional na visão dos detentos ...................................................159 4.5 A EJA e o adolescente infrator – limites e possibilidades ...................................164 4.5.1 ECA – O Estatuto da Criança e do Adolescente e o adolescente infrator .....166 4.5.2 O Serviço de Proteção Social a Adolescentes em Cumprimento de Medida Socioeducativa ..........................................................................................167 4.5.3 A escolarização nas instituições para adolescentes privados de liberdade ...169 4.6 Considerações finais............................................................................................172 Prezado(a) aluno(a). Vários de nós conhecemos pessoas que não tiveram acesso à escola ou à continuidade de estudos no Ensino Fundamental e Médio e também pessoas que não tiveram acesso à alfabetização na idadeadequada, muitas aprenderam a ler e a escrever na EJA – quanta alegria e satisfação! A nossa intenção é motivar você, futuro profissional da educação, a pensar a EJA e sua trajetória no Brasil. Para tal, ao longo deste livro, abordaremos as seguintes temáticas: Apresentação Capítulo 1 Fundamentos da Educação de Jovens e Adultos Capítulo 3 Uma abordagem metodológica para a Educação de Jovens e Adultos Capítulo 2 História da Educação de Jovens e Adultos no Brasil Capítulo 4 Identidade e subjetividade na Educação de Jovens e Adultos VIII UNIUBE No primeiro capítulo, levaremos você a compreender os fundamentos da Educação de Jovens e Adultos, tendo em conta a demarcação das formas teóricas que fazem dessa modalidade de ensino um campo de pesquisa e construção de conhecimentos. Abordaremos os elementos históricos, sociais, políticos e culturais que implicam seus processos de ensino e aprendizagem. Além disso, veremos a maneira pela qual o fluxo pedagógico-andragógico reorienta os binários teoria/prática, conteúdo/método e saber/fazer, sinalizando um modelo de educação comprometido com a relação pensamento-prática: prática social e ato político – dimensões fundamentais à construção da consciência crítica como condição de (re)escrita da realidade. As discussões realizadas no capítulo destacam o aluno adulto como sujeito de experiências, capaz de situar a aprendizagem escolar no contexto de suas intenções, e, por isso mesmo, participante dos processos dialógicos que identificam a aprendizagem como movimentos contínuos de reflexão, construção e descoberta que lhe permite interpretar o mundo: lugar em que se entretecem memórias e identidades, experiência e produção de sentidos. O segundo capítulo, “História da Educação de Jovens e Adultos no Brasil”, tem por objetivo apresentar uma reflexão crítica em torno da trajetória histórica da Educação de Jovens e Adultos (EJA), no país, elucidando seus avanços e retrocessos, encontros e desencontros com a Educação Popular. Para isso, está estruturado da seguinte forma: em um primeiro momento, trazemos apontamentos em torno do campo conceitual da EJA, com a finalidade de mostrar suas aproximações e seus distanciamentos com a Educação Popular. Em seguida, retomamos a sua trajetória histórica, criticamente, a fim de discuti-la a partir da abordagem de diferentes autores e autoras que contribuem para uma análise significativa dos programas vinculados a essa modalidade de ensino, e, ainda, para que você compreenda a tensão que existe entre as diferentes concepções de EJA que foram surgindo ao longo do século XX e que persistem ao longo do século XXI. UNIUBE IX Entendemos que a inclusão da EJA na legislação nacional é uma opção política que deve ser legitimada pela prática pedagógica fundamentada na Educação Popular, na sala de aula, no atendimento às necessidades reais, de demandas concretas, uma vez que a legislação prevê, como forma de oferta, cursos e exames. Por isso, reside, na base da organização e da orientação do trabalho pedagógico na EJA, o desafio de desenvolver processos de formação humana que estejam articulados a contextos sócio-históricos, com a finalidade de se reverter a exclusão e de se garantir aos jovens e adultos o acesso, a permanência e o sucesso no início ou no retorno à escolarização básica, como direito fundamental. Iniciamos o capítulo três, buscando subsídios teórico-metodológicos em alguns documentos legais acerca da modalidade Educação de Jovens e Adultos (EJA). Trazemos as propostas pedagógico-curriculares dos dois segmentos: 1º segmento (anos iniciais do Ensino Fundamental), 2º segmento (anos finais do Ensino Fundamental) e os conteúdos que as estruturam com possibilidade de reflexões sobre o processo ensino- aprendizagem, dando destaque aos aspectos metodológicos. Também são apresentados os princípios teórico-metodológicos dos Círculos de Cultura, por estarem fundamentados em uma proposta pedagógica, de caráter democrático, libertador, propondo uma aprendizagem integral e não fragmentada. Para finalizar o módulo, no quarto capítulo, vamos dialogar sobre alguns assuntos intrigantes e desafiadores para nós, educadores, acerca da Educação de Jovens e Adultos (EJA). Dentre eles, aspectos sobre os domínios da subjetividade de jovens e adultos; a identidade do aluno da EJA; a identidade do professor da EJA; a EJA e a educação prisional; a EJA e o Serviço de Proteção Social a Adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de liberdade assistida (LA) e prestação de serviços. X UNIUBE Assim, traremos elementos relevantes para que você possa ter mais segurança em sua atuação educativa, objetivando dar uma diretriz coerente à sua prática. Isto porque queremos, acreditamos e pensamos ser possível sim, assegurar a todos os jovens e adultos – a quem um dia foi lhes negado – o direito a uma educação crítica!!! Bons estudos! Francis Silva de Almeida Introdução Fundamentos da Educação de Jovens e Adultos Capítulo 1 A alegria não chega apenas no encontro do achado, mas faz parte do processo da busca. E ensinar e aprender não pode dar-se fora da procura, fora da boniteza e da alegria. (Paulo Freire) A educação de jovens e adultos diz respeito à modalidade de ensino regulamentada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional-LDB 9.394/96, pelo Parecer CNE/CEB nº11/2000, pela Resolução CNE/CEB nº01/2000, pelo Plano Nacional de Educação (Lei 10.172/01) e pelo Plano de Desenvolvimento da Educação. Seu propósito reitera a garantia do direito de acesso, permanência e conclusão da educação básica àqueles que não ingressaram ou deram continuidade aos estudos na idade regular, espelhando o compromisso histórico da sociedade brasileira na construção da igualdade de oportunidades, inclusão e justiça social. A política de educação de jovens e adultos encontra fundamentos no princípio constitucional da educação como bem social, e suas diretrizes reforçam a premissa da educação como espaço de pleno desenvolvimento da pessoa humana. Especialmente a partir de sua regulamentação, as discussões que cercam a educação de jovens e adultos encontram-se tencionadas de diferentes modos: se por um lado tomam corpo as questões de 2 UNIUBE natureza pedagógica como busca pela definição de métodos que respondam à demanda de um conteúdo mínimo a ser ensinado; por outro, destacam-se as questões didáticas como incursões sobre o fazer pedagógico. Em todo caso, o que se indica é uma preocupação constante com o fato de que o currículo e as práticas de ensino fomentem o desenvolvimento e a formação de uma identidade social de jovens e adultos, mais do que se prestem a contribuir de forma elementar com a construção de uma experiência de aprendizagem baseada no reconhecimento da cultura enquanto movimento contínuo de reflexão, construção e descoberta do mundo letrado. Por seu lado, as discussões que se constituem no campo da epistemologia ganham especial destaque na medida em que permitem a crítica dos saberes e práticas escolares como espaço de legitimação das relações de saber e poder. Trata-se, portanto, de um movimento que envolve e reorganiza os binários teoria/prática, conteúdo/método, saber/ fazer, e, por isso mesmo, coloca a questão sobre o uso do saber escolar no contexto da educação de jovens e adultos. Ao assumirmos a epistemologia como fundamento das reflexões que se desenham neste capítulo, buscamos compreender não só a demarcação das formas teóricas que fazem dessa modalidade de ensino um campo de pesquisa e construção de conhecimentos, mas a forma como os elementos históricos, políticos, sociais e culturais implicam os processos de ensino e aprendizagem que aí se inscrevem. Admitir esse ponto de partida significa colocar em questão o modo como concebemos a educação e a educação escolar, seus sujeitos e papeis sociais, os princípios e desafios da educação de jovens e adultos, a aprendizagem como um contínuoformativo: discussões fundamentais quando o objeto posto em evidência não é outro senão o direito universal e inalienável à educação. UNIUBE 3 Ao final deste capítulo, esperamos que você seja capaz de: • discutir as formas teóricas que particularizam a educação de jovens e adultos como campo de pesquisa e construção do conhecimento; • analisar o modo como os elementos sócio-históricos, políticos e culturais implicam os processos de ensino e aprendizagem na educação de jovens e adultos; • enfatizar o contínuo pedagógico-andragógico como fluxo que reorienta os binários teoria/prática, conteúdo/método e saber/ fazer no contexto de uma educação emancipatória. 1.1 Epistemologia da Educação de Jovens e Adultos 1.1.1 Concepções de educação e educação escolar 1.1.2 Educação de Jovens e Adultos: por que e para quem? 1.1.3 Pedagogia, andragogia e heutagogia 1.2 Como abordar o processo de aprendizagem na educação de jovens e adultos 1.2.1 O contínuo pedagógico-andragógico da aprendizagem 1.3 Trabalho e cultura: aspectos da emancipação intelectual através da Educação de Jovens e Adultos 1.4 Considerações finais Objetivos Esquema Epistemologia da Educação de Jovens e Adultos1.1 A epistemologia, também conhecida como teoria do conhecimento, diz respeito ao estudo das racionalidades que encaminham a verdade como crença justificada. Em outras palavras: trata-se do estudo dos postulados, métodos e paradigmas que legitimam a produção do conhecimento como saber científico. 4 UNIUBE Mas você se lembra o que são postulados, métodos e paradigmas? Veja essas definições conforme o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa: • Postulado: “o que se considera como fato reconhecido e ponto de partida, implícito ou explícito de uma argumentação; premissa”. (HOUAISS; VILLAR, 2009, p. 1532). • Métodos: “ordem, lógica ou sistema que regula uma determinada atividade”. (HOUAISS; VILLAR, 2009, p.1284). • Paradigmas: “um exemplo que serve como modelo, padrão”. (HOUAISS, VILLAR, 2009, p. 1429). Platão (428/427 – 348/347 a.C.) foi quem primeiro empregou a palavra paradigma para referir-se ao mundo sensível como modelo do mundo das ideias. Com Thomas Kuhn (1922-1996), filósofo da ciência, o conceito de paradigma foi aplicado ao campo do conhecimento científico, significando o conjunto das crenças, valores e teorias pertencentes a um determinado grupo e que fornecem explicações sobre a realidade. Nesse sentido, todas as perguntas e respostas são fornecidas no interior do paradigma. Dizemos, então, que a epistemologia é o estudo acerca das premissas, da lógica e do modelo usado para construir um conhecimento e, também, para atestá-lo como ciência. Sendo assim, a epistemologia estuda as singularidades dos elementos que constroem, de fato, o caminho científico que explica uma crença. Como essa crença é explicada, a partir de um processo criterioso (rigor científico), ela é considerada válida, verdadeira. EXPLICANDO MELHOR UNIUBE 5 A propósito dessas primeiras demarcações conceituais, uma questão bastante comum se destaca: por que o conhecimento é uma construção que envolve o rigor do método científico e não uma simples descoberta? Para formular uma resposta que se apresente minimamente elucidativa, faz-se necessário colocar a questão do paradoxo do conhecimento científico. Partimos do princípio de que a primeira forma do conhecimento humano é o senso comum, que, como sabemos, é herdado da tradição e expressa o desejo que temos de conferir sentido ao mundo. A ciência nasce do senso comum enquanto problematização desse saber que herdamos da cultura, da tradição e dos valores dos nossos antepassados, de nossas experiências cotidianas. Diferente do senso comum – marcado pelas dimensões afetiva e emocional e, muitas vezes carregado de preconceitos –, o conhecimento científico é construído sobre a busca de leis gerais e hipóteses explicativas. Nesse sentido, a ciência caracteriza a busca disciplinada e metódica pelo conhecimento, que, por seu lado, designa a construção de explicações que atendam ao princípio da universalidade. É justamente o princípio da universalidade que confere os sentidos de ordem, rigor, objetividade e validade necessários para que um determinado conhecimento seja considerado científico. Portanto, quando falamos de conhecimento científico não nos referimos a um processo de simples descoberta, mas de construção de explicações (o que envolve um método: observação, questionamento, enunciar do problema, elaboração de hipóteses, experimentação, analise e, por fim, teorizaração) para tudo quanto desperte o interesse e a curiosidade do homem. Enquanto ramo de investigação filosófica, a epistemologia surge, ainda na Antiguidade Grega, enquanto problema do conhecimento – considerando a forma, a natureza e validade do saber como tema central do Teeteto, de Platão (427 – 347 a. C.). Contudo, é na modernidade, cenário da revolução científica do século XVII, que o problema do conhecimento (Figura 1) adquire importância particular para a filosofia. Singularidade Diz-se daquilo que é singular, especial, raro, ímpar, distinto. Paradoxo Expressão grega que significa o que está contrário à opinião comum. Logo, é a afirmação ou proposição que contraria a opinião comum geralmente admitida. 6 UNIUBE Figura 1: Conhecimento. Fonte: Depositphotos. Nesse contexto, à tradicional questão da epistemologia clássica – o que é conhecimento? –, são agregadas questões do tipo: • como podemos conhecer?; • o que podemos conhecer?; • quais as origens do conhecimento?; • quais os limites do conhecimento?; • o que é a ciência? Teeteto é um diálogo escrito por Platão cuja temática é a natureza do conhecimento. O texto é considerado o primeiro em que a filosofia se ocupa do confronto entre a verdade e o relativismo. Os personagens do diálogo são: Sócrates, Teodoro de Cirene e Teeteto (um matemático que teria estudado com Teodoro na cidade de Cirene). Os personagens Terpsião e Euclides participam apenas do início do diálogo. Nesse diálogo, Sócrates esclarece a Teeteto o motivo de sua arte se chamar maiêutica. EXPLICANDO MELHOR UNIUBE 7 Você conhece o termo maiêutica? O termo maiêutica tem sua origem na palavra grega maieutike, que significa “arte de partejar”; daí, o sentido figurado de “dar à luz ideias”. Diz respeito ao método criado pelo filósofo Sócrates (470/469 – 399 a.C.) para que seus aprendizes vivenciassem o processo de descoberta da verdade. Filho de uma parteira, Sócrates acreditava que a vida humana só tem sentido se referida à dimensão de interioridade presente em cada homem. Para ele, o homem é a sua alma, e esta, por sua vez, é identificada pela razão – a famosa expressão zoón logikón (animal racional) encontra aqui sua origem. Nesse sentido, a razão deve ser conduzida na busca do que há de mais nobre: a contemplação da verdadeira realidade – o bem supremo, do qual derivam toda justiça, beleza e verdade. Sócrates entende que é preciso partejar a verdade gestada na razão humana, e, para tanto, utilizava perguntas que eram recriadas a cada resposta para que seus interlocutores fossem respondendo-as pouco a pouco, revelando, assim, cadenciadamente, o objeto ou conceito investigado. SAIBA MAIS Ao destacar-se como objeto da epistemologia, o conhecimento se expressa como uma proposição em razão da partícula “que” que se torna objeto do verbo “saber”. Enquanto proposição, o conhecimento reflete a ação por meio da qual os objetos cognoscíveis são adjetivados, sendo-lhes acrescentados uma qualidade, uma extensão ou uma quantidade. Cognoscível que se consegue conhecer, conhecível. Diz respeito aos objetos que podem ser reconhecidos pela mente. qualidade Objeto cognoscível qualidadeextensão 8 UNIUBE Nesse sentido, o conhecimento designa a forma do ‘saber que’ (proposições), distinguindo-o do ‘saber como’ (capacidades). Trata-se, em última análise, de realizar a crítica sistemáticados métodos e das condições de validade dos juízos, afirmando, por fim, que algo ou é verdadeiro ou é falso” (FUMERTON, 2014). Mas o que seria a crítica sistemática dos métodos e condições de validade dos juízos que fazemos acerca de algo? Para entendermos essa perspectiva, destacamos algumas reflexões. Será que a forma de olharmos algo contribui para a percepção que temos desse algo? Se olharmos um viaduto de cima para baixo, teríamos a mesma imagem deste mesmo viaduto de baixo para cima? Qualquer uma das imagens traria a realidade em sua forma plena? Ou apenas parte desta realidade? Será que para resolver um problema matemático, seria importante identificarmos todas as variáveis que influenciam a questão? Se faltar alguma variável, é possível resolver o problema de forma efetiva, completa? Quais condições e métodos seriam válidos para entendermos o objeto de estudo alcançando sua inteireza? Conseguiríamos alcançar a compreensão desse objeto entendendo-os inteiramente? Ou isso não é possível? EXEMPLIFICANDO! Ao assumir o caráter cientificista que marca a modernidade, a epistemologia legou aos diferentes campos de produção do conhecimento a premissa de que o mundo se expressa por meio de uma ampla e complexa totalidade que não pode ser completamente apreendida pelo espírito UNIUBE 9 humano. Resultado disso, afirma Deleuze (2006), é que tanto a episteme clássica, fundada sobre o caráter da semelhança, quanto sua forma moderna, baseada no postulado da representação, demandaram uma racionalidade analítica que impôs ao saber a delimitação de campos específicos como disciplinas particulares (Figura 2). Figura 2: Racionalidade analítica e delimitação de campos de saber. Fonte: Acervo Depositphotos. O rigor da quantificação, da classificação e do ordenamento, comuns à construção do conhecimento nas ciências naturais, passou, a partir da modernidade, a subsidiar o fundamento da cientificidade e conferir o status quo que define os territórios do saber científico como exclusividade daquilo que pode ser posto à prova e, consequentemente, como critério absoluto da verdade. Com a educação não é diferente. Lidamos com um campo de pesquisa e construção de conhecimento cujos objetos são definidos no interior de modelos teóricos já consolidados. Nesse sentido, empreender uma 10 UNIUBE discussão epistemológica da educação tem por finalidade colocar em questão os postulados, métodos e paradigmas que justificam e conferem valor e legitimidade às suas crenças. O recurso à epistemologia como expediente de reconhecimento dos fundamentos da educação de jovens e adultos clarifica, então, nosso esforço em compreender as formas teóricas que particularizam e definem relações que se encontram profundamente centradas sobre as interações do sujeito (jovem/adulto) e do objeto (aprendizagem). 1.1.1 Concepções de educação e educação escolar Qualquer discussão de natureza teórico-metodológica em educação implica uma concepção de homem, sociedade e educação. Essa ocorrência se deve precisamente ao fato de que, quando discutimos educação, o fazemos em conta da complexidade das ciências sociais e humanas e das disciplinas que aí se inscrevem. Contudo, antes de nos adiantarmos às primeiras discussões sobre as concepções de educação e educação escolar, compreendemos que seja importante caracterizar suas diferenças. Enquanto reconhecemos que a educação, fenômeno tipicamente humano, se caracterize pelo conjunto das ações e influências intencionais e mutuamente exercidas entre pessoas, cujo propósito concorre a construção dos contextos sociais, econômicos, culturais e políticos de uma sociedade, a educação escolar diz respeito aos processos formais de escolarização, de construção e aquisição de conhecimentos em âmbito escolar. Você saberia dizer o que são processos formais de escolarização? Saberia dizer qual a diferença entre a educação informal e formal? COMPARANDO UNIUBE 11 Figura 3: Educação informal. Fonte: Depositphotos. Figura 4: Educação formal. Fonte: Depositphotos. A educação informal é aquela possibilitada por nossos pais e, também, com todos com quem convivemos, como nossos tios, parentes, amigos, isto é, ocorre quando aprendemos e desenvolvemos habilidades uns com os outros, ao longo da vida, sem nos matricularmos em algum curso para isso. No senso comum, muitos chamam a educação informal de “educação de berço”! Já ouviu essa expressão? Já a educação formal ou escolar é aquela possibilitada por algum sistema de ensino, ou seja, em que há uma intencionalidade educativa com objetivos claros e um processo de ensino-aprendizagem propostos por profissionais desta área. Essa distinção fica ainda mais clara quando buscamos os radicais da palavra educação. De origem latina, a palavra educação resulta da transliteração de dois vocábulos: “educere”, de “ex-ducere”; e “educare”. Enquanto no primeiro termo o prefixo “ex” indica o ato de conduzir (à força) para fora; o segundo se remete ao sentido de alimentar. Nesse sentido, conduzir e alimentar são acepções que lançam luz à ideia de uma prática que é, em última análise, movimento de passagem: do mundo animal ao mundo humano, do mundo instintivo ao mundo consciente, do mundo concreto ao mundo representado; passagem viva do não saber ao saber. É, portanto, processo de humanização. 12 UNIUBE Aprendemos a ser humanos por meio da cultura e da relações mediadas pela linguagem. O primeiro espaço dessa aprendizagem é construído na relação entre o bebê e seus pais. Mundo humano ao mundo animal Mediação Eu-Outro, meio pelo qual conhecemos e tomamos consciência das coisas, das pessoas, do mundo e das relações que estabelecemos entre essas instâncias. Mundo institivo e mundo consciente Partimos de nossas experiências imediatas e concretas, para, depois, representá-las simbolicamente, exercitando gradativamente o desenvolvimento de nossa abstração. Mundo concreto ao mundo representado Todos esses processos evidenciam a passagem vivencial do não saber ao saber, natural ao processo de humanização! A rigor, podemos afirmar: a educação é o espaço de construção do humano como sentido que não se esgota e que, por essa razão, evidencia o aspecto fundador do conhecimento como o que conduz a compreensão da existência humana no mundo. UNIUBE 13 O ato intencional em que se sustenta a educação como prática de humanização se desdobra sobre os complexos processos de subjetivação e construção de sentidos. Constitui um espaço de relações concretas, onde diferentes sujeitos, com distintas percepções de seus papéis sociais, revelam um exercício subjetivo que traz à tona a dinâmica de interação Eu-Outro: no interior da educação os indivíduos elaboram as suas visões de mundo e se elaboram no mundo, pelo Outro. Subjetivação é o processo de tonar-se sujeito. Ao nos referimos aos processos de subjetivação, dizemos das diferentes formas pelas quais, em nossa cultura, os seres humanos tornam-se sujeitos. Esses processos são realizados num plano histórico-político a partir do qual a forma do sujeito emerge como efeito. Dito de outro modo: os processos de subjetivação dizem respeito à produção de modos de existências, ou seja, dos diferentes modos de agir, de sentir e de dizer o mundo. EXPLICANDO MELHOR Logo, compreendemos que a educação é aquilo que se constitui nas mais variadas formas da ação humana como intensidade que marca a própria vida enquanto processos híbridos, múltiplos e heterogêneos. Encontrando-se histórico, social, cultural e politicamente situado, o fenômeno educativo traz consigo a força plástica daquilo que é imanente, ou seja, que se define como o que não está nem para o sujeito nem para o objeto; como o que é pré-reflexivo, a-subjetivo e se forma na anterioridade e na exterioridade da relação sujeito-objeto enquanto movimento que não começa nem termina (DELEUZE, 2002). Híbrido Que ou que é compostode elementos diferentes. (HOUAISS; VILLAR, 2009, p. 1018). Múltiplo O que apresenta grande número ou variedade de algo. (HOUAISS; VILLAR, 2009, p. 1329). Heterogêneo Que possui natureza desigual e/ ou apresenta diferença de estrutura, função, distribuição etc. (HOUAISS; VILLAR, 2009, p. 1016). Plástico Aquilo que pode ser moldado (HOUAISS; VILLAR, 2009, p. 1507). Imanente Que está inseparavelmente contido na natureza de um ser ou de um objeto (HOUAISS; VILLAR, 2009, p. 1048). 14 UNIUBE Essa perspectiva nos leva a reconhecer a educação escolar como uma dimensão que se encontra contida na educação, ou seja, como a fração de um fenômeno que “se atualiza em um estado de coisas e em um estado vivido que fazem com que ele aconteça” (DELEUZE, 2002, p. 16). Assim, ao pensarmos a escola como instituição social, o fazemos pelo viés de uma concepção que temos de educação, o que, por seu lado, implicará diretamente as relações humanas e de aprendizagem. Para esclarecer e exemplificar essa perspectiva, sugerimos a aproximação com duas diferentes concepções de educação: o cognitivismo e o materialismo histórico-dialético. Materialismo é toda concepção filosófica que aponta a matéria como forma primeira e última de qualquer ser, coisa ou fenômeno do universo. Para os materialistas, a única realidade é a matéria em movimento. O materialismo contrapõe-se ao idealismo, cujo elemento primordial é a ideia, o pensamento. Materialismo histórico-dialético é a teoria elaborada pelo filósofo alemão Karl Marx (1818-1883) sobre toda e qualquer forma produtiva criada pelo homem de acordo com seu ambiente ao longo da história. Nela se evidencia que os acontecimentos históricos são determinados pelas condições materiais econômicas da sociedade. Dentre os conceitos básicos do materialismo histórico encontram-se as questões dialéticas relacionadas às forças produtivas, relações, modos e meios de produção, infraestrutura, superestrutura, classes sociais e luta de classes. EXPLICANDO MELHOR A concepção cognitivista de educação pressupõe uma compreensão do indivíduo como um sistema aberto, tendo em conta a capacidade e a potencialidade que lhe são inerentes para processar e constituir novos conhecimentos, integrando-os ao seu repertório individual e reconstruindo-os de modo singular e subjetivo. Sob essa perspectiva, o fenômeno educativo assume UNIUBE 15 como ponto central de seus processos o aprimoramento das estruturas mentais, tornando-as cada vez mais complexas e hábeis à superação das situações problema que são propostas ao indivíduo. Nesse contexto, o professor exerce a função mediadora entre o aluno e os objetos do conhecimento, operando a problematização dos conteúdos de ensino e criando condições favoráveis à aprendizagem que, em última análise, ilustra o desdobramento de um processo investigativo, cujo fim se completa na elaboração de soluções e apropriação da realidade externa. Ainda que autores como Jean Piaget (1974) e Jerome Bruner (1998) atribuam maior ou menor influência aos diferentes eventos que permeiam o desenvolvimento da aprendizagem, Deleuze (2006) nos chama atenção para as formas reducionistas de uma perspectiva que tende a valorizar o que ele chama de modalidade das soluções. Isso porque, do ponto de vista do cognitivismo, as competências de aprendizagem são reafirmadas na medida em que o indivíduo se torna capaz de propor soluções para os problemas criados no âmbito da representação objetiva da realidade. Nesse contexto, afirma o filósofo, situa-se a dificuldade de que as questões sejam colocadas em função das respostas e considera-se que a produção dos sentidos tenha a ver mais com as soluções do que, propriamente, com a construção de problemas. Por seu lado, ao inserir os contextos político, econômico, social e cultural no centro do processo de ensino e aprendizagem, a concepção materialista-histórico-dialética da educação destaca a ação educativa como expediente de construção e dilação da consciência do homem e, por isso, meio para sua emancipação político-intelectual e instrumento de transformação da realidade. Emancipação Ato ou efeito de tornar-se livre, independente. 16 UNIUBE Em Pensamento e Linguagem (1989), Lev Vygotsky observa a relação entre a linguagem, a consciência e a constituição da identidade como estrutura fundamental da aprendizagem. Segundo o autor, há uma íntima articulação da aprendizagem com os esquemas de significação da realidade. Esse processo, por sua vez, sinaliza o atravessamento de quatro planos de desenvolvimento: • o filogenético, que resgata a história da espécie; • o ontogenético, que evidencia o desenvolvimento histórico do indivíduo; • o sociogenético, que coloca em destaque a história da cultura; e, por fim, • o microgenético, concernente à história de cada fenômeno psicológico (VYGOTSKY, 1989). Partindo da dialética histórico-cultural marxista, Vygotsky evidencia o papel social que a linguagem possui como instrumento de representação simbólica e a forma direta com que ela opera, a partir dos processos de aprendizagem, a construção da consciência individual e coletiva dos indivíduos. Nesse sentido, o fenômeno educativo se revela como espaço de comunicação da experiência histórica do homem, e, precisamente por isso, como a condição mais importante do desenvolvimento da consciência do sujeito social. Filogenético Sociogenético Ontogenético Microgenético UNIUBE 17 Nessa perspectiva, o indivíduo não pode ser compreendido fora do seu contexto, uma vez que ele mesmo é o sujeito de sua formação e se desenvolve nos desdobramentos contínuos da reflexão sobre seu lugar no mundo. Desse modo, a educação não só assume o caráter da formação humana como prática social, como evidencia a relação pensamento-prática: educação como práxis. Por isso, optamos pela fenomenologia como via possível para a construção de uma epistemologia da educação de jovens e adultos, fundamento das discussões que nos interessam neste capítulo. Ao passo que a cognitivismo postula um processo de equilibrações sucessivas que tendem ao aprimoramento das estruturas mentais e à assimilação dos dados do mundo concreto no âmbito da solução dos problemas, o materialismo histórico-dialético concebe a prática educativa como a construção da consciência crítica, transcendência desse nível de assimilação imediata dos dados externos à mente, para o nível de percepção subjetiva, complexa e flexível da realidade. PONTO-CHAVE Você sabe o que é fenomenologia? A fenomenologia é o estudo descritivo de um fenômeno tal como ele se manifesta no espaço/tempo da existência. É, portanto, uma matéria que consiste em estudar as essências, as significações ideais das coisas e como elas são percebidas no mundo. Fenômeno: do grego phainomenon, o que é observável; o que aparece, que se manifesta à consciência. O fenômeno não é uma ideia; é, antes, a existencialização do sentido. SAIBA MAIS 18 UNIUBE Enquanto método, a fenomenologia nasce dos estudos do filósofo alemão Edmund Husserl (1859-1938) sobre a intencionalidade da consciência humana, e trata da compreensão, descrição e interpretação dos fenômenos que se apresentam à percepção, ou seja, que aparece à consciência como objeto intencional. Importa destacar que a fenomenologia não é materialista, ao menos no mesmo sentido que o marxismo; que a fenomenologia recusa o dogmatismo em todas as suas formas: no nível da consciência perceptiva, cognitiva e prática. Buscamos em Rezende (1990, p. 59) compreender a educação como “processo-projeto de aprendizagem humano-significativa da cultura”. Essa acepção se exprime nas proposições que, resumidamente, apresentamos a seguir: a) o sentido da condição corpórea, dado pela apreensão da realidade externa: “há na educação todo um trabalho de educar os sentidos e a partir deles: aprende-se a ouvir, a ver, a cheirar, a degustar, a sentir, como também se aprende a lidar com a imaginação”(REZENDE, 1990, p. 52). b) o sentido da cognição, dado pela capacidade de compreender as relações semânticas por meio da linguagem: “a educação da inteligência diz respeito não apenas ao conhecimento, mas ao pensamento, isto é, à capacidade de refletir, meditar e acrescentar sentido” (REZENDE, 1990, p. 53). c) o sentido sócio-histórico e político, dado pela postura crítica e problematizadora ante o mundo e a si mesmo: “as intenções humanas, dos indivíduos e dos grupos, entram realmente em cena, na forma de conflitos subjetivos, no sentido forte deste termo” (REZENDE, 1990, p. 55, grifo do autor). UNIUBE 19 EXPLICANDO MELHOR Parece-nos claro que a concepção fenomenológica de educação evidencia não só o papel da cognição nos processos subjacentes às práticas educativas, como articula o sentido do materialismo histórico- dialético, estendo-o, ainda, de forma polissêmica, dados os múltiplos significados produzidos pela “presença dos sujeitos humanos no seio mesmo da dialética histórica” (REZENDE, 1990, p. 55). Desse modo, ao assumirmos a expressão de um discurso compreensivo, lançamos mão de um importante instrumento de arguição dos problemas que nos orientam no decurso deste capítulo, posto que a abordagem fenomenológica “descreve um espiral em torno do núcleo central que é a existência, de sorte que se torna indispensável completar ao menos uma volta, percorrendo os diversos lugares de manifestação do sentido” (REZENDE, 1990, p. 26). No que diz respeito à educação escolar, a despeito dos sentidos que lhe foram atribuídos após a revolução industrial e do modo como esses sentidos legaram um projeto socioeducacional hegemônico, a formação Polissêmica Que tem vários significados. • Quando o professor pede ao aluno que ouça o barulho das águas de uma fonte, ou quando pede que observe o voo de um beija-flor. Condição corpórea Cognição sócio-histórico e político • Quando o professor solicita ao aluno que interprete um problema matemático, identifique as variáveis e a equação que irá solucioná-lo. • Quando o professor possibilita a conversa, mediando a discussão, entre dois colegas que acabaram de se desentender. 20 UNIUBE humana e integral não só subjaz o papel central da instituição escolar, como reafi rma que a apropriação do conhecimento constitui apenas uma parte dos seus fazeres. A expressão “formação humana integral” diz respeito a uma formação que atenda a todas as dimensões humanas: SAIBA MAIS Acerca desse caráter emancipador que se revela na formação humana integral, apoiamos em Oliveira (2009) o sentido da escola como espaço de apreensão dos conhecimentos historicamente produzidos, de apropriação do saber social e de socialização da cultura, processos fundamentais não só à transformação da sociedade e superação das desigualdades, como à construção de uma consciência histórica e política capaz de revelar o intolerável da barbárie. Corroboramos, assim, a tese de que o sentido da instituição escolar implica a complexidade das práticas inerentes ao próprio processo de humanização. Como se vê, há clara inversão da ordem pragmática que atribui à escola o papel de formar competências cognitivas pela razão de que todo conhecimento ora assimilado deva possibilitar o desenvolvimento de pensamentos sistêmicos, sensíveis, criativos e transformadores. Emocional Espiritual Física Intelectual UNIUBE 21 Quando alinhada à perspectiva de apreensão dos conhecimentos historicamente produzidos, de apropriação do saber social e de socialização da cultura, as práticas pedagógicas terminam por circunstanciar questionamentos, reflexões e ideias que evocam hipóteses e ações, clareiam significados, reelaboram conceitos, interpretam situações e, bem frequentemente, inspiram e despertam uma relação intrínseca entre os sentidos e o intelecto. Gadotti (2010) corrobora essas reflexões indiciando importantes questionamentos acerca do papel da escola e do professor no contexto de uma pedagogia libertadora: a pedagogia da práxis. Para o autor, a escola ocupa um lugar de fundamental relevância na formação do cidadão, pois, uma vez que ela se constitui um elemento fundamental às relações sociais, políticas e culturais, torna evidente que a construção dos sentidos de ensinar se desdobram de um complexo processo permeado pela dialética. Você sabe o que é dialética? É o processo de construção do conhecimento, evidenciado pelo confronto entre a tese e a antítese, para que, em conjunto, os sujeitos de aprendizagem, por meio de discussões, construam uma síntese. Isso ocorre na sala de aula, por exemplo, quando o aprendiz discorda do professor apresentando um outro ponto de vista, uma outra forma de compreender o que está sendo dito. Assim, quando o discente apresenta e defende uma ideia diversa daquela que está sendo exposta pelo professor, eles podem discutir, comparar cada perspectiva, analisá-las, até que encontram, enfim, uma síntese, ou seja a melhor compreensão para o assunto em questão. SAIBA MAIS 22 UNIUBE Ao resgatar a pedagogia dialógica, ressaltando a sala de aula como espaço de construção de intersecções criativas entre os seus sujeitos, a escola assume o papel de agenciar diálogos e apurar, por meio da comunicação, práticas de uma participação democrática e política (GADOTTI, 2010). Contudo, há que adiantar essa itinerância dialógica no sentido de ampliar esse espaço e intentar uma pedagogia dialética, ancorada no movimento das formas educativas como conflito intrínseco de ideias. A dialética, assim destacada, coloca professor e aluno em posições antagônicas, como antíteses interlocutoras capazes de fazer emergir novos sentidos para os objetos da ciência e para as relações de ensino-aprendizagem. Trata-se, desse modo, de pensarmos a educação de jovens e adultos e, de modo especial, sua sala de aula, como domínio próprio dos sujeitos que ensinam e aprendem. Desse modo, a práxis assume a forma imanente por meio da qual podemos pensar um movimento contínuo de reflexão, pesquisa, ação, descoberta, organização, fundamentação, revisão e construção teórica dos saberes, metodologias de ensino e desenvolvimento de projetos pedagógicos e de vida que abalizem a educação como processo de emancipação humana. A educação como processo de emancipação humana retrata a articulação de movimentos cuja intensidade se desloca em diferentes direções: diz respeito àquele que emancipa, que liberta o outro; àquele que conquista a sua emancipação; e, por fim, à síntese dos movimentos anteriores como produto da emancipação – princípio valorativo da dignidade humana. São movimentos que se desenham como condição de ruptura com a linearidade, com os processos de conformação e dominação; ruptura com os lugares- comuns que massificam a subjetividade. São movimentos transversais que promovem a emancipação de quem ensina e de quem aprende. Educar para a emancipação é, ao que entendemos, fundamental numa sociedade que se queira verdadeiramente democrática. SAIBA MAIS UNIUBE 23 1.1.2 Educação de Jovens e Adultos: por que e para quem? Embora as políticas públicas de garantia do direito de acesso, permanência e conclusão da educação escolar para os jovens e adultos sejam parte da história recente da educação brasileira, os primeiros direcionamentos a respeito da escolarização de adultos ocorreram no período colônia. De acordo com Saviani (2010), a chegada dos Padres da Companhia de Jesus em 1549 nas terras da colônia não aspirava outro propósito senão a doutrinação dos nativos em consonância com a fé cristã católica. Ao catolicismo da Contrarreforma incumbia-se a revitalização da doutrina, a moralização do clero e a confirmação das tradições em um tempo marcado pela ascensão do racionalismo e da ciência, e pelo enfraquecimento da hegemonia política e espiritual da Igreja Católica. O surgimento da atitude científica que caracteriza o pensamento moderno está intimamenterelacionado com o desejo e a curiosidade do homem renascentista de conhecer o mundo: espírito de uma época marcada.... No âmbito do conhecimento, a modernidade realiza uma verdadeira revolução espiritual. Nasce uma nova visão de mundo, de Universo, de ciência, de método. A natureza revolucionária do pensamento científico moderno pode ser percebida na racionalidade das mudanças. Se, anteriormente, havia uma perspectiva especulativa, dogmática, e religiosa de compreensão da realidade, agora a perspectiva é física, empírica, experimental, marcada pela dúvida e pela incerteza. Dessa forma, a ciência moderna se desvincula da fé e caminha com um método que permite progressos e avanços nas ciências e no conhecimento das leis que regem o Universo. EXPLICANDO MELHOR Hegemonia supremacia, influência preponderante exercida, por cidade, povo, país, etc., sobre os outros. (HOUAIS; VILLAR, 2009, p. 1008). 24 UNIUBE A criação das primeiras escolas e a instalação dos primeiros colégios e seminários, como cumprimento da demanda política fixada por Dom João III, lançaram as bases da história da educação brasileira, cujo movimento se revela na forma intrínseca em que se articulam os processos de expansão e consolidação da colônia, da educação e da catequese. Nesse contexto, a educação dos adultos não respondia senão aos interesses da Coroa Portuguesa que, associada à Igreja, reproduzia a conformação intelectual e disciplinar necessárias à criação de uma sociedade religiosa e moralmente abancada sobre os princípios e valores do conservadorismo político europeu (SAVIANI, 2010). Desse período, destacamos o fato de que nem mesmo as reformas pombalinas foram capazes de modificar o cenário de analfabetismo em que se encontrava a colônia. Mais de um século depois de Pombal, o porcentual da população escolarizada no Brasil não ultrapassava 1,8% (BRASIL, 2003). Ainda que o ideário pombalino tivesse legado, ao tempo das primeiras reformas, o desejo de uma sociedade moderna e alinhada ao pensamento ilustrado do século XVIII, no âmbito de uma sociedade rural, cuja predominância de uma economia agrária subsidiava a concentração de riquezas e o fortalecimento dos latifúndios, a extinção das escolas populares e a transferência da responsabilidade sobre a instrução dos pobres e adultos aos párocos refletia com a clareza as “contradições entre o projeto civilizatório burguês e as lições do capital” (LINS, 2003 apud SAVIANI, 2010, p. 103). Da instalação da colônia ao declínio do império, à educação escolar não se atribuíram outros sentidos que não fossem a substantivação da ordem política e das bases ideológicas que sustentavam as relações sociais de dominação. Assim, enquanto a educação básica era oferecida em escolas instaladas nas cidades e grandes vilas, o que a tornava, de certo modo, acessível a um número maior de pessoas, o ensino superior restrito tinha como objetivo a manutenção dos privilégios da elite, da monarquia e das oligarquias rurais. UNIUBE 25 Por seu lado, o advento da República em 1889 e as grandes transformações que se seguiram no campo político, econômico e, consequentemente, nos campos social e cultural, deslocaram a educação para o centro das questões de primeira ordem. Assim, as primeiras décadas do século XX marcaram um modelo de educação que, sob a égide das demandas de expansão e consolidação do capital financeiro e da forte influência da elite industrial paulista, tinha como objetivo não apenas a formação de mão-de-obra qualificada aos ofícios mecânicos, mas, com isso, a conformação de uma classe de homens proletarizados, cujo distanciamento das questões de natureza política favorecia a unificação do discurso e interesses da burguesia industrial. Hegemônica nos anos de 1960 e 1970, a concepção instrumental da educação de adultos refletia o quadro ideológico do regime militar e destacava a proibição da utilização da proposta pedagógica de Paulo Freire. Conforme Moura (1999), os fatores políticos, econômicos e ideológicos que caracterizam esse período elucidam esse processo de exclusão. O modelo de sociedade radicado pelo regime ditatorial de 1964 encontrava-se fixado sobre a chamada Doutrina de Segurança Nacional que, sob o pretexto das garantias políticas, econômicas e sociais, legitimavam as ações militares providas pelo Estado como instrumento de manutenção dos objetivos nacionais. No cenário de um regime totalitário, parece-nos claro não haver modo mais adequado ao enfraquecimento do conceito de subversão – atribuído à pedagogia de Freire –, que não pelo controle sobre a educação dos adultos. Para o filósofo e educador Paulo Freire, a escola é, por excelência, o lugar de trabalho, labor intelectual configurado nos processos de ensino e aprendizagem. Por isso, inclusive, deve revelar-se como espaço de uma convivência que permita aos sujeitos uma experiência de pensamento como movimento crítico-criativo. Entre as questões centrais que desenham seu SAIBA MAIS 26 UNIUBE projeto educativo, reconhecemos o papel político e social da escola na vida de homens e mulheres, mas, sobremaneira, a crítica de que, por si só, a instituição escolar não pode ser a única responsável pelas transformações da sociedade, pois, muitas vezes, encontra-se orientada para a manutenção das estruturas sociais e econômicas dominantes. Nesse sentido, reinvindica a pedagogia como prática que não se limita ao nível da escolarização, o que significa, em outras palavras, fazer da educação escolar o espaço democrático de promoção e valorização da cultura e experiência cotidiana dos sujeitos como forma de inseração e transformação social. A reforma da educação e o caráter tecnicista que lhe foi impresso retratam as propriedades políticas e ideológicas do pós-1964: a estabilização do discurso nacionalista, cujas estruturas de poder centravam-se sobre a ideia de comunidade indivisa e a conformação de uma classe proletária capaz de levar a termo o processo de acumulação de capital através da internacionalização da economia; a ação extenuante dos espaços de caráter humanista, dentro e fora da educação, que tinha como foco a extinção das ações contra ideológicas e o treinamento de uma força de trabalho especializada para atender às necessidades do processo produtivo. Considerando-se, assim, a tendência tecnicista sobre a qual se encontrava alicerçada a reforma educacional proposta na nova legislação, as questões pedagógicas orientaram-se no sentido de responder às novas exigências de formação imbuídas dos ideais de racionalidade, organização, objetividade, eficiência e produtividade, tendo em vista as demandas da sociedade industrial, tecnológica e econômica da época. O concurso dessas ações se orientava no sentido de que a organização racional da educação escolar fosse capaz de minimizar as interferências subjetivas que pudessem pôr em risco sua eficiência do modelo políticoeconômico radicado com o regime militar (SAVIANI, 2010). UNIUBE 27 Os arranjos políticos e econômicos que destacaram a educação de jovens e adultos como parte fundamental das reformas educacionais nas décadas ocorridas de 1960, 1970 e 1990 fizeram emergir importantes indicadores: se por um lado, a taxa de analfabetismo na população de 15 anos ou mais caiu de modo ininterrupto ao longo do século passado, saindo de um patamar de 65,3% em 1900 para 13,6% em 2000 (BRASIL, 2003); por outro, destaca-se o desafio de alfabetizar 12,9 milhões de analfabetos (IBGE, 2016). PONTO-CHAVE Com efeito, é este o quadro que contextualiza e situa nossa pergunta: educação de Jovens e adultos – por que e para quem? Trata-se de uma pergunta desconcertante, pelo menos enquanto assumimos a premissa da educação como bem universal e inalienável. A necessidade de justificar por que e para quem nos coloca diante de uma exigência: a de compreender o sujeito da educação de jovens e adultos em sua inteireza, como sujeito que toma forma humana num cenáriode intensas contradições sociais, políticas e econômicas. A esse respeito, afirma Arroyo (apud SOARES; GIONANETTI; GOMES, 2005, p. 29), “desde que a EJA é EJA esses jovens e adultos são os mesmos: pobres, desempregados, na economia informal, negros, nos limites da sobrevivência. [...] Fazem parte dos mesmos coletivos sociais, raciais, étnicos, culturais”. Com efeito, colocar a questão por que e para quem, passa, imperativo, pelo reconhecimento das identidades coletivas que integram esse contingente de 12,9 milhões de pessoas. Quem são esses brasileiros? Quais os contextos por trás desse cenário de analfabetismo? 28 UNIUBE O esboço de uma resposta nos leva ao primeiro aspecto a ser considerado: as desigualdades regionais. A região nordeste do país concentra o maior número de analfabetos com idade igual ou superior aos 15 anos: 16,2%. Esse número é seguido pela região norte, 9,1%; pela região centro-oeste: 5,7%; pela região sudeste: 4,3% e pela região sul: 4,1% (IBGE, 2016). Veja Figura 5: 0,00% 2,00% 4,00% 6,00% 8,00% 10,00% 12,00% 14,00% 16,00% 18,00% Analfabetos no Brasil por região 16,10% Nordeste Norte Centro-oeste Sudeste 9,30% 5,70% 4,30% Analfabetização no Brasil por região Figura 5: Percentual de analfabetos no Brasil, por região. Fonte: Adaptado de IBGE (2016). As desigualdades regionais que marcam os indicadores do analfabetismo encontram-se diretamente relacionadas com o desenvolvimento econômico e com a diversificação da economia. Conservadorismo econômico, concentração de riqueza, renda e poder: características de desenvolvimento de uma economia que excluiu pessoas, privando-as do acesso à educação e do exercício pleno de sua cidadania. Em seguida, são considerados os aspectos que dizem respeito à idade, ao gênero e à raça/cor. Quanto à idade, o analfabetismo atinge praticamente todas as faixas etárias. Nesse aspecto, chama-nos atenção o percentual dos analfabetos com 15 anos ou mais: 8%; e dos analfabetos UNIUBE 29 com 60 anos ou mais: 22,3% (IBGE, 2016). Esses dados ganham ainda mais expressividade porque traz à baila o fracasso do sistema educacional brasileiro; um sistema historicamente dualista, excludente e que continua, à despeito do direito constitucional à educação, a produzir analfabetos e deixá-los à margem do caminho. Em relação ao gênero, o analfabetismo é praticamente o mesmo: 8,3% entre homens e 7,7% entre mulheres. Quanto à cor/raça há maior número de analfabetos entre pretos e pardos: 9,9%; entre brancos o percentual de analfabetos é de 4,2% (IBGE, 2016). Não são questões isoladas, mas que encontram implicação na relação analfabetismo/renda. Ora, em um país que apresenta uma concentração de renda em que uma minoria mais rica, formada por 10% dos brasileiros, detém 43,3% da renda total do país (IBGE, 2016), a distribuição da educação e do analfabetismo não poderia ser diferente. Fato é que todos esses dados revelam populações com perfis e expectativas diferentes, o que nos leva a afirmar que, por isso mesmo, o analfabetismo deve ser combatido com diferentes estratégias. Para aprofundar essas reflexões realizadas até aqui, sugerimos o curta-metragem “Vida Maria”, disponível em https://www.youtube.com/ watch?v=yFpoG_htum4. Produzido em 2006 pelo animador gráfico Márcio Ramos, “Vida Maria” narra a história da personagem Maria José, uma menina de cinco anos que se diverte aprendendo a escrever o nome, mas que, por força das circunstâncias sociais em que vive, é obrigada pela mãe a abandonar os estudos para cuidar dos afazeres domésticos e trabalhar na roça. O curta-metragem chama atenção para os ciclos de reprodução da pobreza e do analfabetismo. PESQUISANDO NA WEB 30 UNIUBE A respeito dessas questões, notamos as funções da educação de jovens e adultos conforme a LDB 9.394/96. Sua primeira função, caracterizada como reparadora, diz respeito, em primeiro plano, à restauração de um direito que, sendo historicamente negado aos mais pobres, condenou à margem social 1/3 de sua população; em segundo plano, ao reconhecimento da igualdade como fundamento do Estado democrático de direitos. A segunda função, denominada equalizadora, tem como objetivo igualar o direito de acesso, permanência e conclusão dos estudos aos jovens e adultos que, ou tiveram acesso, ou viveram a interrupção forçada da vida escolar – seja pela repetência ou pela evasão motivadas pela desigualdade de oportunidades ou, ainda, por tantas outras condições adversas. Por fim, sua função qualificadora, tem como base o caráter incompleto do ser humano, cujo potencial de desenvolvimento e de adequação pode se atualizar em quadros escolares ou não escolares. Trata-se, portanto, de tencionar movimentos que coloquem em questão as particularidades que marcam o sujeito da educação de jovens e adultos, corroborando a crença na educação como espaço-tempo da construção de saberes e vínculos de humanização. Nesse ponto, insistimos no fato de que a garantia do direito à educação não se limita à garantia do acesso à escola, mas que o acesso à escola permita ao sujeito aprendente vivenciar os processos de escolarização como movimentos contínuos de: reflexão, construção e descoberta, “lugar de aprender a interpretar o mundo para poder transformá-lo a partir do Reparadora • Restauração dos direitos Equalizadora • Igualar o direito de acesso Qualificadora • Possibilitar o desenvolvimento UNIUBE 31 domínio das categorias de método e de conteúdo que inspirem e que se transformem em práticas de emancipação humana em uma sociedade cada vez mais mediada pelo conhecimento” (OLIVEIRA, 2009, p. 237). 1.1.3 Pedagogia, andragogia e heutagogia A escola de adultos é essencialmente diferente da escola de crianças e adolescentes. Essas diferenças perpassam não só o domínio dos conceitos e técnicas de ensino-aprendizagem como atravessam as subjetividades que constituem o grupo educativo. Ao realizar esse movimento, a epistemologia da educação de jovens e adultos situa questões de diferentes ordens: biologia, psicologia e sociologia, passam, então, a entretecer o campo sobre o qual o adulto se torna objeto do saber. Com efeito, o que se coloca em tela é a compreensão dos elementos que fundamentam as discussões sobre a andragogia. O termo andragogia foi criado em 1833 pelo professor alemão Alexander Kapp para descrever o método de ensino utilizado por Platão, em seus diálogos. De origem grega, a palavra recorda os termos andros, que significa adulto e agogos, que significa conduzir. Na antiguidade clássica, a perspectiva socrático-platônica qualificava a filosofia como a única abertura possível para uma libertação espiritual, revelando uma imagem do pensamento como contemplação. Sob esse viés, a educação assume um caráter fundamentalmente libertador que SAIBA MAIS Reflexão, construção, descoberta. Domínio de métodos e conteúdos. Emancipação Humana 32 UNIUBE passa, necessariamente, pela experiência dialética do mestre e do discípulo. É na escuta atenta e na contemplação do saber anunciado pelo mestre que o discípulo se insere numa atividade do pensamento que ilustra um processo de “relações de confiança e vulnerabilidade, de fusão orgânica entre responsabilidade e troca” (STEINER, 2005, p. 31). O ato de receber a palavra do mestre e de, por meio dela, ascender ao plano do saber, revela uma dimensão em que “a contenção e o florescimento do eros no interior do homem político, no interior de cada alma, as concordâncias e os conflitos entre o amor e a busca filosófica das verdades fundamentais [constituem o] tema central do Sócrates de Platão” (STEINER, 2005, p. 39-40). Eros Na mitologia grega, eros é considerado o deus do amor. Descrito nas narrativas como filho de Afrodite e Ares, era considerado um deus primordial. Na antiguidade grega, o termo era utilizado para descrever as diferentes formas do amor. Enquanto forma primordial, eros significaa tentativa de unir aquilo que se encontra separado, o desejo de retornar à natureza primeira. Por essa razão, eros significa a falta, a lacuna e a insatisfação da espécie humana que deseja unir aquilo que está dividido. Entretanto, foi somente em 1921, com a tese de que a educação dirigida a adultos exigia bases filosóficas e metodológicas distintas da educação de crianças, que o vocábulo andragogia foi inserido ao campo da pesquisa em educação. Para DeAquino (2007), o que diferencia os processos educativos entre adultos e crianças é precisamente o repertório de experiências do sujeito aprendente. O que não quer dizer que a criança não seja um sujeito de experiências, mas que tanto o conjunto de suas vivências como a autonomia que o adulto possui em relação às formas da aprendizagem denotam contornos pedagógicos muito diferentes. UNIUBE 33 Essa perspectiva se torna um tanto mais clara quando compreendemos o conceito de experiência. Para Benjamin (1994), a experiência é algo que se passa entre pessoas: lugar da construção dos sentidos; ciclos abertos, possibilidade de construção intercambiada que promove no homem uma profunda capacidade de comunicação, de aproximação com o Outro (Figura 6). Figura 6: Eu-Outro: a capacidade de comunicação. Fonte: Depositphotos. Logo, a experiência é algo que se constitui no campo dialético: Eu-Outro. Por isso, inclusive, a relação de correspondência que aí se implica não ocorre na similaridade, mas na diferença, no modo como cada sujeito elabora o mundo e se elabora no mundo, por meio do Outro: atravessamento das memórias e suas narrativas, das experiências estéticas e de aprendizagens; ato intencional e complexo marcado por inúmeros desdobramentos e permeado de desejo e singularidade. A experiência nos remete ao conhecimento construído num intenso fluxo de correspondências alimentado pela memória; algo que se passa como acúmulo e prolongamento. Precisamente por isso, a experiência permite que o sujeito se integre no universo das linguagens e práticas que se sedimentam no tempo e associam a vida particular à vida coletiva: é a condição de um encontro que se impõe ao sujeito e já não lhe permite mais ser o mesmo. E isto não ocorre no tempo do acontecimento. Pelo contrário, supõe uma tradição retomada e compartilhada na transmissão da palavra como condição de continuidade (BENJAMIN, 1994). 34 UNIUBE Como sujeito de experiências, o adulto dispõe de importantes recursos para o desenvolvimento da sua aprendizagem. Por isso, enquanto que na pedagogia – ciência da educação das crianças –, o professor assume a responsabilidade pela determinação dos objetos e métodos da aprendizagem, na andragogia – arte e ciência de ajudar os adultos a aprender –, professor e aluno compartilham essa responsabilidade: ao professor cabe apontar o que aprender; ao aluno, como aprender. PONTO-CHAVE A aceitação de responsabilidades, o predomínio da razão e o equilíbrio da personalidade justificam o alcance da maturidade psíquico-emocional que fazem do adulto um sujeito particular da aprendizagem. O desenvolvimento da capacidade de aprender diz respeito ao aprimoramento da autonomia intelectual, dos processos de busca alinhados ao desejo pelo saber e pela capacidade de posicionar-se crítica e criativamente ante as mais diferentes questões que atravessam o cotidiano. Por isso, contrapondo-se à pedagogia clássica, a andragogia é descrita mais como um modelo de aprendizagem centrado sobre a autonomia do sujeito aprendente, do que, propriamente, uma teoria (DEAQUINO, 2007). É precisamente nesse sentido que a heutagogia se expõe como um dos princípios da andragogia. Do grego heuta, que significa próprio; e agogos, que significa conduzir, o termo heutagogia foi criado por Hase e Kenyon (2000 apud DEAQUINO, 2007) para designar os processos de autoaprendizagem e o conhecimento compartilhado. PONTO-CHAVE Conforme a heutagogia, sujeitos de diferentes idades possuem as mesmas condições de aprendizagem em qualquer área do conhecimento. Trata-se, por assim dizer, de um movimento que tenciona o acesso autodirecionado e a partilha de conhecimentos produzidos individualmente ou em pequenos grupos, de forma síncrona ou assíncrona, mas, sempre, por meio de um diálogo concreto. UNIUBE 35 Para Canário (1999) e Osório (2003), a andragogia associa alguns pressupostos básicos: a necessidade do saber, o autoconceito, a experiência, a prontidão para aprender, a orientação para aprender e a motivação. Para compreendermos com maior clareza esses pressupostos, apresentamos, a seguir, a síntese da hipótese andragógica. NECESSIDADE DO SABER AUTOCONCEITO EXPERIÊNCIA PRONTIDÃO PARA APRENDER ORIENTAÇÃO PARA APRENDER MOTIVAÇÃO Ao chegar à escola, o adulto traz consigo a necessidade de conhecer os motivos pelos quais deve aprender. A necessidade do saber como dado concreto leva o adulto a comprometer-se com a aprendizagem O amadurecimento social, emocional e psicológico permite ao adulto reconhecer-se como sujeito capaz de realizar escolhas e assumir responsabilidades. O adulto é sujeito de experiências. O acúmulo de suas vivências se exprime como conjunto de saberes que devem, sobremaneira, orientar os processos de aprendizagem. Diferente da criança que é levada à escola, o adulto se engaja nos processos de aprendizagem. Trata-se da busca intencional por aquilo que poderá ajudá-lo a solucionar problemas concretos e desempenhar seus papéis sociais. O engajamento nos processos de aprendizagem encontra foco nas condições reais de sua experiência social e profissional: resolução de problemas e tarefas da vida cotidiana. Relaciona-se aos fatores externos (promoção profissional, melhor salário...) e internos (autoestima, satisfação pessoal, realização de desejos...) que despertam no adulto o interesse pela aprendizagem. Enquanto sujeito maduro e socialmente ativo, o adulto é portador de um conjunto de experiências pessoais, profissionais e de aprendizagem que lhe permitem decidir sobre sua aprendizagem. Quanto a isso, é fundamental considerar: o homem é, ao mesmo tempo, sujeito que aprende e que ensina. Esse duplo movimento emprega um processo repleto de significação em quaisquer direções em que se observe o seu deslocamento. Ensinar e aprender são, essencialmente, acontecimento; 36 UNIUBE é devir e, enquanto devir, ilustra um movimento em que o ensino e a aprendizagem constituem-se como pontos indissociáveis. Ensinar é estimular o pensamento crítico, o respeito às diferentes ideias e a criação de sentidos políticos, éticos e estéticos; aprender é um processo que pressupõe a reflexão e a busca pela compreensão desses sentidos de forma crítica e criativa. Por esse motivo a centralização da aprendizagem sinaliza uma das práticas mais fundamentais à educação de jovens e adultos. Ora, se a realidade é um fenômeno subjetivo, e o conhecimento resulta do modo como cada sujeito vivencia e interpreta a realidade, centralizar os processos escolares no sujeito aprendente significa criar as condições de possibilidade necessárias ao crescimento pessoal, interpessoal e intergrupal. 1.2 Como abordar o processo de aprendizagem na educação de jovens e adultos Os alunos da educação de jovens e adultos não se distinguem entre si somente em função de sua realidade regional, ou pelas diferenças qualificadas pelas categorias idade, sexo e raça/cor. Embora essas diferenças sejam fundamentais à compreensão desse aluno como sujeito social e historicamente situado, há que considerar as singularidades que o constituem como pessoa portadora de uma história de vida, de uma trajetória marcada de experiências, e, portanto, como resultado das vivências que se somaram ao longo de sua caminhada. Cada pessoa é, em essência, singularidade. Diferenças regionais, de idade, sexo e cor/raça não são categorias abstratas. Muito pelo contrário, elas definem a materialidade das relações a partirdas quais os sujeitos interpretam o mundo atribuindo-lhe sentido. O que há, e isso nos parece Devir Do latim devenire, chegar. Trata-se de um conceito filosófico que significa as mudanças pelas quais passam as coisas. Designa, portanto, a potência daquilo que vem a ser como força criativa. UNIUBE 37 claro, são diferentes modos de produção de uma identidade que é, ao mesmo tempo, histórica, social e cultural, e que, por isso mesmo, revela diferentes compreensões do mundo como experiência vivida. Essa perspectiva, que se aplica também ao professor, deve abalizar todas as formas de interação que se desenham na escola de adultos. Ora, se as formas singulares de interpretação e atribuição de sentido definem as ideias que fazemos de tudo o que atravessa o mundo como experiência vivida, também o modo como compreendemos a escola e definimos suas finalidades exprime essa singularidade. No caso do adulto não alfabetizado ocorre o mesmo: o fato de não ter frenquentado a escola não significa que esse sujeito não tenha ideias a seu respeito. Diferente da criança que é levada à instituição escolar para ser alfabetizada, a busca que o adulto realiza pela escola é motivada por questões pessoais. Para Carlos e Barreto (2008, p. 63), “sabendo por que busca a escola, o adulto elege também seu conteúdo”. Essa realidade se repete independente do nível de ensino buscado pelo adulto: alfabetização, ensino fundamental e médio. Muito além de aprender a ler e escrever, o sujeito da educação de jovens e adultos espera encontrar na escola o contato com um mundo até então distante do seu, marcado por um conjunto de conhecimentos que ele considera importantes. Abordar o processo de aprendizagem na educação de jovens e adultos requer certo cuidado. Com já dissemos, o adulto é um sujeito de experiências, e, como tal, é capaz de situar a aprendizagem escolar no contexto de suas intenções – o que não se faz de outro modo que não seja palavra. A este respeito, corroboramos em Bondía a definição aristotélica zôon lógon échon – expressão grega que significa “vivente (animal) com palavra”. Para o pensador espanhol, o sentido do “vivente com palavra” não quer dizer que o homem tenha domínio da palavra como um instrumento, ou uma faculdade da razão, mas, antes, “[...] 38 UNIUBE que o homem é palavra, que o homem é enquanto palavra, que todo humano tem a ver com a palavra, se dá em palavra, está tecido de palavras (Figura 7), que o modo de viver próprio desse vivente, que é o homem, se dá na palavra e como palavra” (BONDÍA, 2002, p. 21). A palavra é, portanto, condição que encarna a experiência como o que é compartilhado: sempre uma outra experiência à medida que recobra algo que interessa, que se passa com pessoas, entre as pessoas e, precisamente por isso, cria relações de aprendizagem. Figura 7: Palavras: dos Outros e nossas. Fonte: Depositphotos. Ensinar e aprender na educação de jovens e adultos ilustra, portanto, um processo de narratividades: dar vida à palavra na voz do sujeito a quem interessa aprender. Quando possível, um importante ponto de partida desse processo é a construção coletiva do plano de ensino (Figura 8). Partir das experiências de vida e dos interesses que mobilizam o sujeito da aprendizagem para eleger os conteúdos de ensino. Na impossibilidade de que o plano de ensino seja coletivamente construído com os alunos, é importante que seus objetivos sejam discutidos com o grupo. A compreenensão dos conteúdos e os objetivos da aprendizagem encontram-se diretamente ligados à construção dos sentidos atribuídos à educação escolar por parte do sujeito aprendente. UNIUBE 39 Figura 8: Construção coletiva do plano de ensino. Fonte: Depositphotos. Definidos os conteúdos, outro importante ponto de partida é a sensibilização, processo oposto ao da motivação. Enquanto a motivação é interna e depende do aluno, a sensibilização destaca a influência externa que parte do professor e da atenção que ele direciona aos contextos e situações potencialmente geradores de aprendizagens. A sensibilização é o momento em que o aluno se sente afetado pelo objeto do conhecimento – o que, conforme a metodologia proposta por Freire (1983) designa o contato com as palavras-geradoras. Trata-se da intrusão do signo que força e introduz o pensamento no ato de pensar. Concorre reiterar que o signo é sempre o efeito de uma contração que se faz no intelecto e que mobiliza as estruturas do pensamento. A sensibilização resulta, portanto, das diferentes formas de experimentação do signo como corpo impregnado de sentido. Desse modo, a sensibilização principia o movimento crítico-criativo da aprendizagem, posto que “o signo é sem dúvida mais profundo do que o sujeito que o interpreta, mas ainda se liga a esse sujeito, se encarna pela metade em uma série de associações subjetivas” (DELEUZE, 2010, p. 34). 40 UNIUBE O universo vocabular do aluno como ponto de partida da aprendizagem (FREIRE, 1983) reitera a elaboração de problemas como aspecto de fundamental importância na educação de jovens e adultos. A elaboração de problemas estimula o sentido crítico-questionador do aluno, evidenciando o estranhamento diante das condições objetivas de vida em que se encontra inserido. Esse processo reforça a importância da autonomia como forma particular de colocar as questões que lhe cercam e motivam sua aprendizagem. Sujeito de experiência e singularidade, cada jovem e adulto exprime o mundo de um certo ponto de vista absolutamente diferente e, sem dúvida, o mundo expresso não existe fora do sujeito que o exprime. Apoiado em Vygotsky (1989), Freire (1983) afirmava que as mudanças na organização do pensamento estavam relacionadas às mudanças do contexto histórico e social em que o sujeito se encontra inserido. Desse modo, a aprendizagem dos conteúdos escolares estaria diretamente vinculada aos sentidos que lhe são anteriormente produzidos. Esse movimento, tal como descrito por Freire (1987 apud MOURA, 1999), exprime o deslocamento que vai do mundo como experiência vivida à palavra como existencialização do sentido: ler o mundo para ler a palavra. Nesse sentido, compreender as diferenças cotidianamente manifestadas pelos sujeitos reforçam para o professor de jovens e adultos o sentido da singularidade como marca da experiência humana, processos de singularização como atos intrínsecos de criação: inserir-se no mundo através da educação escolar é produzir movimentos criativos; criar outros modos de vida, outros modos de existência. Conforme notamos em Freire (1983), a aprendizagem de jovens e adultos passa, necessariamente, pela ênfase dos processos dialógicos: estabelecer, entre professor e aluno, relações que considerem as experiências e as múltiplas referências culturais que ambos levam à sala de aula. Construir interesses: despertar virtualidades, relações UNIUBE 41 intensas que ligam pontos, criam conexões entre-pessoas, entre-coisas, entre-problemas; assumir os riscos dessa travessia e provocar o que está entre como o que evidencia a relação pensamento-prática: formação humana como prática social, educação como práxis: atos de uma micropolítica que se opõe aos mecanismos de enquadramento da vida e, por isso mesmo, capazes de produzir uma relação pedagógica, afetiva e empática. O mesmo deve ocorrer com os processos de avaliação. É fundamental que o aluno adulto compreenda por que e como será avaliado. Na educação de jovens e adultos a avaliação deve refletir uma prática substantiva e não arbitrária; deve ter como foco a resolução de problemas concretos e diretamente associados ao cotidiano dos sujeitos. Dito de outro modo: a avaliação deixa de ser um instrumento de controle e passa a ter conotação formativa e autorreflexiva. São esses os processos que, conforme destacam Carlos e Barreto (2008, p. 67), evitam a frustração do aluno, adulto permitindo que ele “reconheça na escola que está entrando, a escola que
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