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INSTITUIÇÃO ESCOLAR e normalização

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INSTITUIÇÃO ESCOLAR
E NORMALIZAÇÃO EM
FOUCAULT E CANGUILHEM
Vera Portocarrero
RESUMO – Instituição escolar e normalização em Foucault e Canguilhem. Este
artigo apresenta um estudo sobre a noção de normalização e sua função de objetivação do
sujeito na modernidade através de elementos da genealogia de Michel Foucault e de seu
enraizamento na epistemologia de Georges Canguilhem. A hipótese que guia este estudo
é a de que normalização é um conceito operatório que permite circunscrever acontecimen-
tos singulares referentes à instituição escolar – bem como relações de poder específicas –,
tornando visíveis certas circunstâncias atuais e ajudando a pensar o que estamos fazendo
hoje em nossa sociedade. O objetivo deste artigo é fornecer subsídios para uma reflexão
sobre a questão do sujeito e sua relação com o par normal/anormal na instituição escolar.
Palavras-chave: objetivação do sujeito, normal/anormal, genealogia, epistemologia.
ABSTRACT – School institution and normalization in Foucault and Canguilhem.
This article presents a study about the concept of normalization and its function of
objectifying the subject in modernity through Michel Foucault’s genealogy and its roots
in Georges Canguilhem’s epistemological thought. The hypothesis which guides this
study is that normalization is an operative concept which allows circumscribing particu-
lar events related to school institution and specific power relationships as well, making
certain up to date circumstances visible and helping to think in terms of what we are
doing today. The aim of this article is to provide subsidies to a reflection about the
question of subject and its relationship to the pair normal/abnormal in school institution.
Keywords: objectification of the subject, normal/abnormal, genealogy, epistemology.
29(1):169-185
jan/jun 2004
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Introdução
A delimitação dos objetos tratados por Michel Foucault – como a loucura, a
doença, a criminalidade, as instituições médicas, judiciais e pedagógicas, o po-
der disciplinar e normalizador – pode ser compreendida, em seu conjunto, como
uma insurreição contra os poderes da normalização. O pensamento de Foucault
permite tomar as noções de norma e de normalização como conceitos operatórios
para pensar e ver de outras maneiras, para pensar historicamente e circunscre-
ver acontecimentos singulares – referentes à instituição escolar e relações de
poder específicas – ao mesmo tempo que ajuda a tornar visíveis certas circuns-
tâncias atuais e a pensar, também, o que estamos fazendo hoje em nossa socie-
dade1.
Ao pesquisar, em sua genealogia desenvolvida nos anos 70, as condições
externas de possibilidade da existência e da formação do saber das ciências do
homem na modernidade – como a educação, a psicologia, a psiquiatria, a psica-
nálise, a sociologia –, Foucault indaga as formas de poder que têm por alvo o
sujeito, considerando esse saber como um dispositivo de natureza essencial-
mente estratégica. Essa pesquisa histórica objetiva mostrar de que maneira as
práticas sociais podem constituir domínios de saber, que fazem aparecer formas
totalmente novas de sujeitos e de sujeitos de conhecimento; a proposta é espe-
cificar como pode se formar, no século XIX, um certo saber do homem, da indi-
vidualidade, do indivíduo normal ou anormal, dentro ou fora da regra, a partir de
práticas sociais do controle, da vigilância e do exame, que se relacionam com a
formação e estabilização da sociedade capitalista2.
Em Vigiar e punir (Foucault, 2003) e em História da sexualidade: a vontade
de saber (Foucault, 2001), são apontadas relações entre estas ciências e as
relações de poder, para explicar o surgimento de uma nova forma de dominação
constituída com o capitalismo, cujo exercício não se reduz à violência nem à
repressão, mas é produtivo, transformador, educativo e se exerce em toda socie-
dade através de uma rede de micropoderes. É esta forma de dominação que
Foucault torna visível, apontando seus perigos.
Foucault estuda a constituição, a partir do século XVIII, de saberes e práti-
cas que ordenam as multiplicidades humanas e objetivam o sujeito, individuali-
zando-o e homogeneizando as diferenças através da disciplina e da normaliza-
ção – práticas de divisão do sujeito em seu interior e em relação aos outros.
Trata-se de saberes e práticas que atingem a realidade mais concreta do indiví-
duo, seu corpo, e que, devido à sua estratégia de expansão por toda a popula-
ção, funcionam como procedimentos abrangentes de inclusão e exclusão social,
que constituem um processo de dominação com base no binômio normal e
anormal. “Esse processo o objetiva. Exemplos: o louco e o são, o doente e o
sadio, os criminosos e os bons meninos” (Foucault, 1995, p. 231).
A questão dos saberes e dos poderes que objetivam o sujeito foi levantada
e criticada por Foucault do ponto de vista da teoria do sujeito3, bem como da
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teoria do poder. O que importa a Foucault, na época em que desenvolve essa
crítica, é tentar ver como se constitui um sujeito não é dado definitivamente, a
partir do qual a verdade se daria na história, mas que se constitui no interior
mesmo da história, como efeito de um conjunto de estratégias que fazem parte
das práticas sociais.
Ele explica: nas sociedades capitalistas, o poder é negativo e repressivo,
porém possui uma eficácia produtiva; possui a positividade4 da gestão da vida
dos indivíduos e das populações, para a qual produz uma série de estratégias,
técnicas e saberes específicos. Sua positividade consiste, do ponto de vista do
conhecimento, na produção de saberes que geram poderes, e de estratégias de
poder que geram saberes para assegurar seu exercício; do ponto de vista da
ação, consiste na produção de indivíduos e populações politicamente dóceis,
economicamente úteis, saudáveis e normais, através de uma série de mecanis-
mos como os da disciplina e da normalização.
O projeto genealógico desembaraça-se de uma interpretação jurídica e ne-
gativa do poder – caso em que poder significa lei, interdição, soberania e nega-
ção de liberdade –, para trabalhar com outra chave de interpretação histórica do
poder, em que este significa norma, produção e afirmação das resistências como
forças imanentes e não exclusivamente repressão e não saber ou ideologia5. A
genealogia foucaultiana evidencia o caráter peculiar às formas de exercício do
poder em nossa sociedade: nas sociedades contemporâneas ocidentais, o po-
der assume formas regionais e concretas extremamente eficientes, com o objeti-
vo de fazer do indivíduo e da população entidades normais e saudáveis.
A estratégia dessa forma de poder que se exerce em nossa sociedade a partir
do século XVIII – a constituição de uma sociedade sadia e de uma economia
social –, liga-se ao projeto de prevenção e de transformação do anormal em
indivíduo normal, através de saberes, como o da pedagogia, criados para este
fim6.
Foucault estuda esse projeto social como tendo se desenvolvido a partir do
século XVII em duas formas principais, dois pólos interligados. O primeiro pólo
– por ele denominado de anátomo-política do corpo – formou-se tendo por alvo
o corpo compreendido como máquina, como algo a ser adestrado, a ter suas
aptidões ampliadas, suas forças extorquidas, sua utilidade e docilidade aumen-
tadas, a ser integrado em sistemas de controle eficazes e econômicos – tudo isso
assegurado por procedimentos do poder que caracterizam a disciplina. O segun-
do pólo, formado na segunda metade do século XVIII, centrou-se no corpo
compreendido como espécie biológica, corpo vivo perpassado por processos
biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a
duração da vida, a longevidade, processos a serem assumidos através de inter-
venções e controles reguladores de uma biopolítica das populações (Foucault,
2001, p. 131).
O problema que essa concepção de poder levanta é que, se o poder tem
mesmo uma capacidade de controle e uma eficácia produtiva tão penetrantes e
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abrangentes quanto Foucault demonstra em suas análises dadisciplina e da
normalização, torna-se muito difícil localizar regiões de resistência e de inovação
que possibilitem a constituição de sujeitos autônomos, comprometendo sobre-
maneira os projetos institucionais de uma inclusão social ampliada e eficaz do
normal – bem como do anormal – através de novas práticas escolares. As práti-
cas de inclusão institucional precisarão, através da resistência, das lutas pontuais
e da criação, situar-se às margens das formas políticas instauradas para não
terminarem por reproduzir e reforçar, sob a ilusão da mudança, os procedimentos
de normalização e objetivação do sujeito – que barram a subjetivação – e os
quais Foucault e Canguilhem tornam visíveis.
Disciplina, normalização, instituição pedagógica e fabricação
de individualidade
Em Vigiar e punir (Foucault, 2003), Foucault faz ver que diversos procedi-
mentos disciplinares já existiam há muito tempo nos conventos, nas forças ar-
madas, nas oficinas. Mas, a partir do século XVII, as disciplinas foram se tornan-
do fórmulas gerais de dominação. Foucault especifica historicamente o exercício
do poder capitalista através da análise da disciplina em diversas instituições,
como a prisão e a escola.
A disciplina organiza o espaço através de uma repartição dos indivíduos;
controla a atividade através do controle do tempo; especifica o indivíduo gene-
ralizando-o através de uma vigilância hierárquica; organiza as diferenças atra-
vés de uma sanção normalizadora e reproduz e produz saber através do exame.
A idéia de espaço educativo corresponde à instauração de internatos –,
quando se considerava que para educar era preciso isolar a criança num espaço
ele mesmo transformador. Mesmo abandonando-se, mais tarde, o princípio de
que era necessário o isolamento num espaço educativo para transformar as
crianças, mantém-se, na escola, essa noção de espaço transformador, devido a
suas divisões internas e à ordem por ele criada, através de seu caráter celular e
serial.
As disciplinas, organizando as “celas”, os “lugares” e as “fileiras” criam
espaços complexos: ao mesmo tempo arquiteturais, funcionais e hierárquicos.
São espaços que realizam a fixação e permitem a circulação; recortam seg-
mentos individuais e estabelecem ligações operatórias; marcam lugares e indi-
cam valores; garantem a obediência dos indivíduos, mas também uma melhor
economia do tempo e dos gestos. São espaços mistos: reais pois que regem a
disposição de edifícios, de salas, de móveis, mas ideais, pois projetam-se sobre
essa organização caracterizações, estimativas, hierarquias (Foucault, 2003,
p. 126).
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Os conventos forneceram o modelo da célula que esquadrinha o espaço,
tornando-o analítico, permitindo correlacionar o indivíduo e o lugar a ser ocupa-
do por ele. A série reparte os indivíduos na ordem escolar, criando uma hierar-
quia entre as classes nas salas de aula, no recreio, nas tarefas, nas disciplinas,
nas idades.
A organização de um espaço celular e serial, afirma Foucault, funcionou
como condição de possibilidade do controle simultâneo de um grande número
de alunos, através da classificação de cada um, que individualiza o conjunto
heterogêneo de alunos. Na modernidade, o espaço celular e serial resolveu, na
prática, o problema da falta de controle do conjunto dos alunos que ficavam às
soltas, enquanto uma lição individual estava sendo ministrada. A série permite a
repartição dos indivíduos na ordem escolar, hierarquizando-os em classes em
que o trabalho simultâneo é realizado por todos que a ela pertencem, ordenando
e especificando as multiplicidades.
A disciplina opera um controle da própria atividade – o capitalismo foi o
primeiro sistema político e econômico a ter como alvo não somente o produto,
mas a própria atividade de produção –, através do controle do tempo, da preci-
são da decomposição dos gestos e dos movimentos, ajustando o corpo a impe-
rativos temporais. Trata-se de construir um tempo integralmente útil, para pro-
duzir uma atividade desejada, garantindo a qualidade do tempo empregado:
“controle ininterrupto, pressão dos fiscais, anulação de tudo o que possa per-
turbar e distrair” (Foucault, 2003, p. 128).
Gesto e corpo são postos em relação. O controle disciplinar não consiste
simplesmente em ensinar ou impor uma série de gestos definidos, mas impõe a
melhor relação entre um gesto e a atitude global do corpo, que é sua condição de
eficácia e de rapidez. “Um corpo bem disciplinado forma o contexto de realização
do mínimo gesto. Uma boa caligrafia, por exemplo, supõe uma ginástica – uma
rotina cujo rigoroso código abrange o corpo por inteiro, da ponta do pé à extre-
midade do indicador” (Foucault, 2003, p. 130). A disciplina decompõe o ato em
elementos, correlaciona o corpo com o gesto, articula o corpo com o objeto que
manipula, e exercita os corpos com tarefas repetitivas, diferentes e graduais,
através de uma utilização sempre crescente do tempo. A vigilância hierárquica é
uma técnica fundamental para o exercício da disciplina, que opera através do
olhar indiscreto, do princípio da total visibilidade.
Ao lado da grande tecnologia dos óculos, das lentes, dos feixes luminosos,
unida à fundação da física e da cosmologia novas, houve as pequenas técnicas
das vigilâncias múltiplas e entrecruzadas, dos olhares que devem ver sem ser
vistos; uma arte obscura da luz e do invisível preparou em surdina um saber
novo sobre o homem, através de técnicas para sujeitá-lo e processos para
utilizá-lo (Foucault, 2003, p. 144).
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Trata-se de uma tecnologia para ocupar todos os espaços numa vigilância
contínua das salas de aula, dos dormitórios, dos banheiros, exercida por fiscais
perpetuamente fiscalizados – mestres, monitores, inspetores. “E se é verdade
que sua organização piramidal lhe dá um chefe, é o aparelho inteiro que produz
poder e distribui os indivíduos nesse campo permanente e contínuo. O que
permite ao poder disciplinar ser absolutamente indiscreto, pois está em toda
parte e sempre alerta (...)” (Foucault, 2003, p. 148).
O poder disciplinar age através da sanção normalizadora, que é o caráter da
disciplina analisado por Foucault para mostrar como as instituições constituem
seus próprios mecanismos de julgamento, pequenos julgamentos. A escola, por
exemplo, funciona como um pequeno tribunal, com leis e infrações próprias para
organizar as diferenças entre os indivíduos, atribuindo pequenas penalidades,
bem como prêmios por merecimento. A sanção é normalizadora porque impõe a
regra a todos os que dela se afastam, impõe “toda uma micropenalidade do
tempo (atrasos, ausências, interrupções das tarefas), da atividade (desatenção,
negligência, falta de zelo), dos discursos (tagarelice, insolência), do corpo (ati-
tudes incorretas, gestos não conformes, sujeira), da sexualidade (imodéstia,
indecência)” (Foucault, 2003, p. 149).
A sanção é normalizadora porque faz funcionar a disciplina através do esta-
belecimento da norma, da medida que permite avaliar e julgar, normalizando por
meio da comparação, da diferenciação, da hierarquização, da homogeneização e
da exclusão. A partir do século XVIII, o normal se estabelece como princípio de
coerção no ensino com a instauração de uma educação padronizada e a criação
das escolas normais.
A sanção normalizadora é combinada com as técnicas da vigilância
hierarquizada através do exame. O exame é um controle normalizador, uma vigi-
lância que permite qualificar, classificar e punir. Como elemento dos dispositivos
de disciplina, o exame é altamente ritualizado. Ele supõe um mecanismo que
relaciona a formação de saber a uma certa forma de exercício de poder.
 A escola é uma espécie de aparelho de exame ininterrupto que acompanha
em todo o seu comprimento a operação do ensino. O exame permite que o mes-
tre, ao mesmo tempo em que transmite seu saber, forme um campo de conheci-
mentos sobre seus alunos: “o exame é na escola uma verdadeira e constante
troca de saberes: garante a passagem dos conhecimentos do mestre ao aluno,
mas retira do aluno um saber destinado e reservado ao mestre.A escola torna-se
o local de elaboração da pedagogia” (Foucault, 2003, p. 155).
O exame é uma técnica tanto de poder como de saber; por esta razão, orienta
a hipótese de Foucault segundo a qual o saber é diferente da ideologia e o poder
é diferente da repressão, pois ambos seriam puramente negativos e o que
Foucault mostra é a positividade do poder. Foucault aponta três características
do exame que convém notar. Primeiramente, o exame inverte a economia da
visibilidade no exercício do poder:
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(...) tradicionalmente, o poder é o que se vê, se mostra, se manifesta e, de
maneira paradoxal, encontra o princípio de sua força no movimento com o
qual a exibe. (...) O poder disciplinar, ao contrário, se exerce tornando-se
invisível: em compensação impõe aos que submete um princípio de visibilidade
obrigatória (Foucault, 2003, p. 156).
Em segundo lugar, o exame faz a individualidade entrar num campo
documentário: “(...) seu resultado é um arquivo inteiro com detalhes e minúcias
que se constitui ao nível dos corpos e dos dias. O exame que coloca os indivíduos
num campo de vigilância situa-os igualmente uma rede de anotações escritas”
(Foucault, 2003, p. 157). Em terceiro lugar, o exame faz de cada indivíduo um caso
que constitui um objeto para o conhecimento e uma tomada para o poder:
O caso não é mais, como na casuística ou na jurisprudência, um conjunto de
circunstâncias que qualificam um ato e podem modificar a aplicação de uma
regra, é o indivíduo tal como pode ser descrito, mensurado, medido, compara-
do a touros e isso em sua própria individualidade; e é também o indivíduo que
tem que ser treinado ou retreinado (...) (Foucault, 2003, p. 158).
Essa transcrição das existências reais de cada um funciona como um pro-
cesso de objetivação e de sujeição, portanto de fabricação da individualidade
celular, orgânica, genética e combinatória, que têm a norma e os desvios como
referência. Foucault observa que, num sistema de disciplina, a criança é mais
individualizada do que o adulto, o doente mais do que o homem são, o louco e o
delinqüente mais do que o normal.
Através da disciplina surge o poder da norma. O normal se estabelece, em
vários campos, como princípio de coerção: no ensino, com a instauração de uma
educação padronizada e a criação de escolas normais; no esforço para organizar
um corpo médico e um quadro hospitalar da nação capazes de fazer funcionar
normas gerais de saúde e na regularização dos processos e dos produtos indus-
triais, por exemplo.
Do mesmo modo que a vigilância disciplinar, a normalização torna-se um
dos grandes instrumentos de poder, a partir do final da época clássica. Ela
substitui ou acrescenta graus de normalidade, que são signos de pertença a um
corpo social homogêneo, mas que se divide por meio de uma distribuição em
classes. A normalização, para Foucault como para Georges Canguilhem, cons-
trange para homogeneizar as multiplicidades, ao mesmo tempo que individuali-
za, porque permite as distâncias entre os indivíduos, determina níveis, fixa espe-
cialidades e torna úteis as diferenças.
As normas visam integrar todos os aspectos de nossas práticas num todo
coerente, para que diversas experiências sejam isoladas e anexadas como domí-
nios apropriados de estudo teórico e de intervenção. No interior desses domínios,
as normas não são estáticas, mas se ramificam a fim de colonizar, nos seus
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mínimos detalhes, as micropráticas, de modo que nenhuma ação considerada
importante delas escape: “Compreende-se que o poder da norma funcione facil-
mente dentro de um sistema de igualdade formal, pois dentro de uma
homogeneidade que é a regra, ela introduz, como um imperativo útil e resultado
de uma medida, toda a gradação das diferenças individuais” (Foucault, 2003, p.
154).
O que caracteriza a biopolítica das populações, o biopoder, é a crescente
importância da norma, que distribui os vivos num campo de valor e utilidade. A
própria lei funciona como norma devido a suas funções reguladoras. Uma socie-
dade normalizadora é o efeito histórico de técnicas de poder centradas na vida.
A principal característica das técnicas de normalização consiste no fato de inte-
grarem no corpo social a criação, a classificação e o controle sistemático das
anormalidades7.
Em Vigiar e punir e em A vontade de saber, Foucault aponta não só o modo
peculiar de funcionamento das normas modernas, impondo uma rede uniforme
de normalidade, como também o mal-estar que esta causa. Dentre as técnicas, as
práticas, os saberes e discursos por ele analisados, a normalização constitui um
alvo bastante importante, pois todas as sociedades têm normas de acordo com
as quais socializam os indivíduos. O problema apontado por Foucault é que, em
nossa sociedade, as normas são especificamente perigosas, já que funcionam,
de modo muito sutil, como estratégias sem estrategista.
A questão desenvolvida por Foucault – a respeito das formas de ação do
poder investidas na sociedade moderna ocidental – deve ser analisada em seu
enraizamento nas reflexões de Georges Canguilhem acerca da norma e de seu
caráter relacional8. Tal enraizamento deve ser levado a suas últimas conseqüên-
cias. considerando que Foucault está relacionando suas reflexões com as de
Canguilhem, desenvolvidas no livro O normal e o patológico, no capítulo “Do
social ao vital” (Canguilhem, 2002).
Normalização e princípio de inversão e polaridade da norma
segundo Canguilhem
Ao estudar o caráter de sanção normalizadora da disciplina, Foucault toma
como ponto de partida a afirmação de Canguilhem, de que o termo normal desig-
na, a partir do século XIX, o protótipo escolar e o estado de saúde orgânica. Sua
utilização é correlata da reforma pedagógica e da teoria médica, estreitamente
ligadas à reforma das práticas pedagógica, médica e hospitalar. Essas reformas
exprimem uma exigência de racionalização que também aparece na política e na
economia, alcançando o que é chamado mais tarde de normalização.
Em “Novas reflexões referentes ao normal e ao patológico” – texto privilegiado
por Foucault em Vigiar e punir –, Canguilhem (2002, p. 209-229) especifica o
177
normal social, distinguindo-o do normal vital. Enquanto a exigência das normas
do organismo é interna e imanente à própria possibilidade de vida, a normaliza-
ção que se estabelece na sociedade deve-se a uma escolha e a uma decisão
exteriores ao objeto normalizado, mesmo que não haja consciência – por parte
dos indivíduos –, de que se trata da expressão de exigências coletivas, estabe-
lecidas a partir do modo de relação de uma dada estrutura social e histórica, com
aquilo que se considera como sendo seu bem particular.
Em O normal e o patológico (Canguilhem, 2002), pode-se depreender uma
relação estabelecida por Canguilhem entre a vida, a norma, o corpo, a saúde e o
sujeito. Para ele, o que caracteriza a especificidade da norma – imanente ao
fenômeno vital – é a plasticidade da vida; a necessidade própria da vida de
criação e instauração de novas normas vitais e seu caráter de luta, seu caráter
dinâmico e inventivo, que serve como princípio de avaliação do estado de saúde
do indivíduo. Nesse sentido, pode-se dizer que, para Canguilhem, o vivente é
instituidor de normas e torna-se sujeito por sua capacidade como ser vivo de
confrontá-las e ultrapassá-las sempre que o meio exigir. Ao colocar a questão do
organismo como ser vivo que não mantém uma relação de harmonia pré-
estabelecida com o meio, e o sofrimento, não a mensuração normativa ou o
desvio padrão, que estabelece o estado de doença, Canguilhem faz um ataque
frontal ao edifício da normalização, essencial para o desenvolvimento de uma
ciência e de uma medicina positivistas, invertendo o pensamento sobre a saúde.
Canguilhem critica, assim, não só o ensino médico – que privilegia o normal
e a normalidade e considera a doença um desvio de normas fixas, que seriam as
constantes –, mas a prática médica que busca estabelecer cientificamente essas
normas, para seguir a teoria e trazer o organismo de volta ao estado de saúde, de
normalidade,através do restabelecimento da norma, da qual o organismo havia
se afastado, pois a norma anterior não pode ser restabelecida, pois uma nova
norma se instaura, visto que o organismo é normativo.
Sendo a normatividade própria do ser vivo, a normalidade consiste na capa-
cidade de adaptação, de variação do organismo às mudanças circunstanciais do
meio externo ou interno, que, por sua vez, é variável. A doença, ao contrário da
saúde, é que se trata de uma redução a constantes. Essa inversão realizada por
Canguilhem faz com que aquilo que caracterizava a normalidade – normas está-
veis, valores imutáveis, constantes – caracterize a doença. O que caracteriza a
saúde é, portanto, a possibilidade de transcender a norma que define a normali-
dade momentânea; é a possibilidade de tolerar as infrações da norma habitual e
instituir novas normas em situações novas.
A necessidade vital da regulação normativa imanente ao objeto normatizado
– por exemplo, para o fisiologista, o peso normal do homem, levando em conta o
sexo, a idade e a estatura, é o peso que corresponde à maior longevidade previ-
sível – desaparece diante do arbitrário social da decisão normativa. Assim, uma
escola normal, que é uma escola onde se ensina a ensinar, é onde se instituem
178
experimentalmente métodos pedagógicos normalizados e normalizadores. A nor-
malização dos meios técnicos da educação – como dos da saúde, do transporte
de pessoas e de mercadorias – é a expressão de exigências coletivas. Só há
normalização social porque a sociedade se define como um conjunto de exigên-
cias coletivas articuladas em torno de uma estrutura diretriz que define seu bem
singular.
O importante no pensamento de Canguilhem é que, no social, a norma deixa
de valer como regulação interna e passa a valer como prescrição e valoração. A
transformação de um objeto em norma supõe uma decisão normalizadora, mas
essa decisão só se efetiva relativamente a uma intenção normativa, que confere
ao objeto dignidade e valor. A atividade assim regulada é uma tarefa dinâmica,
incerta, arbitrária e conflituosa. O conflito das normas no campo social liga-se
não a seu caráter de contradição, mas ao caráter de luta e transformação que o
constitui. Nesse sentido, a guerra social é pensada primeiramente como uma
guerra das normas, devendo ser compreendida como uma guerra de valores que
subentende as normas, inscrevendo-se no campo da existência e entrando ou
não em conflito com as normas já existentes.
Em “Do social ao vital”, Canguilhem (2002, p. 209-229) explica: a valoração
que caracteriza um objeto ou um fato considerado normal é sua função de refe-
rência. O normal é ao mesmo tempo a extensão e a exibição da norma. O normal
multiplica a regra ao mesmo tempo que a indica. Requer, portanto, fora dele, a
seu lado e contra ele, tudo aquilo que ainda lhe escapa.
O autor considera, com Gaston Bachelard, que o normal não é um conceito
estático ou pacífico, mas dinâmico e polêmico; ele ressalta o interesse de
Bachelard pelos valores cosmológicos e populares e – pela valoração que se
estabelece a partir da imaginação –, bem como sua percepção de que todo valor
tem que ser obtido em oposição a um anti-valor: “Uma norma, uma regra, é aquilo
que serve para retificar, pôr de pé, endireitar. Normar, normalizar é impor uma
exigência a uma existência, a um dado, cuja variedade e disparidade se apresen-
tam, em relação à exigência, como um indeterminado hostil, mais ainda do que
estranho” (Canguilhem, 2002, p. 211). Para Canguilhem, a origem latina da pala-
vra norma é esclarecedora:
Quando se sabe que norma é a palavra latina que quer dizer esquadro e que
normalis significa perpendicular, sabe-se praticamente tudo o que é preciso
saber sobre o terreno de origem do sentido dos termos norma e normal trazi-
dos para uma grande variedade de outros campos (Canguilhem, 2002, p. 211).
O conceito de norma é necessariamente relacional: normal/anormal. Trata-
se de uma relação de polaridade e de inversão dos pólos, não uma relação de
contradição nem de exterioridade, já que a norma é um conceito que qualifica
negativamente o setor do dado que não se inclui em sua extensão, ao mesmo
tempo que depende dele para sua própria compreensão.
179
Tal polaridade da experiência de normalização (experiência especificamente
antropológica e cultural) funda, na relação da norma com seu domínio de aplica-
ção, a prioridade da infração – pois, a regra só começa a ser regra ao constituir-
se como regra e como tendo uma função de correção que surge da própria
infração. Sem infração não há regra.
O sonho de uma regularidade sem regra, como a idade de ouro, o paraíso,
são figurações míticas de uma existência inicialmente adequada à sua exigência,
de um modo de vida cuja regularidade nada deve à determinação de uma regra,
de um estado de não-culpabilidade com a inexistência de proibição que ninguém
devesse ignorar, explica Canguilhem. “Estes dois mitos procedem de uma ilusão
de retroatividade segundo a qual o bem original é o mal ulterior contido. (...) O
homem da idade do ouro e o homem paradisíaco gozam espontaneamente dos
frutos de uma natureza inculta, não solicitada, não corrigida” (Canguilhem, 2002,
p. 213). Trata-se de um sonho ingênuo, em que a formulação, em termos negati-
vos, de uma experiência conforme à norma, sem que a norma tivesse que se
manifestar na sua função normalizadora, significa que o próprio conceito de
norma é normativo.
A definição do anormal é a negação lógica do normal. Contudo, é a anterio-
ridade histórica do futuro anormal que suscita uma intenção normativa. Não há,
portanto, de acordo com Canguilhem, nenhum paradoxo em afirmar que o anor-
mal é logicamente o segundo, mas o primeiro, do ponto de vista da existência.
Ao depreciar tudo aquilo que a referência à norma proíbe de ser considera-
do normal, a norma cria a possibilidade de uma inversão dos termos. Uma norma
corresponde a uma proposta de unificação do diverso, que não tem nenhum
sentido isoladamente. Sua possibilidade mesma de ser referência e regulação
contém sempre, por se tratar apenas de uma possibilidade, uma outra possibili-
dade que só pode ser inversa.
Com efeito, uma norma só pode ser referência se ela foi instituída ou escolhi-
da como expressão de uma preferência e como instrumento da vontade de subs-
tituição de um estado de coisas, pelo qual se tem aversão, por um outro conside-
rado preferível.
Ressalte-se que a conformidade à norma requer a experiência prévia de um
certo vazio normativo, em que as multiplicidades das distâncias pré-existem à
unidade da série normativa, sendo a alteridade à norma tida como a variedade
social que escapa à normalização. A proposta de uma norma é um modo possível
de unificação de um diverso, de reabsorção e de regulação de uma diferença.
Numa organização social, (...) as regras devem ser representadas, aprendi-
das, rememoradas, aplicadas. Ao passo que, num organismo vivo, as regras
de ajustamento das partes entre si são imanentes, presentes sem ser represen-
tadas, atuantes sem deliberação nem cálculo. Não há, neste caso, desvio, dis-
tância, nem intervalo de tempo entre a regra e a regulação. A ordem social é um
conjunto de regras com quais seus servidores ou seus beneficiários têm que se
180
preocupar. A ordem vital é constituída por um conjunto de regras vividas sem
problemas (Canguilhem, 2002, p. 222).
Para Canguilhem, a norma é menos unificadora do que reguladora. Ela orga-
niza as distâncias, tentando reduzi-las a uma medida comum, restando, contudo,
a possibilidade de inversão da norma: ao impor uma exigência e a unificação do
diverso, a norma pode-se inverter em seu contrário ou em outra norma, em nova
norma.
Objetivação do sujeito e subjetivação
É importante ressaltar que se pode compreender a norma social, para
Canguilhem, como a expressão de uma vontade coletiva que pode ser interrom-
pida por uma normatividade individual para a qual a valorização de um outro
estado de coisas engendra uma nova possibilidade de transformação do terreno
já existenteda vida social. Desse modo, as normas sociais determinam a ação do
indivíduo parcialmente, pois, a mecanização do sistema social deixa margens,
cria zonas vazias, que somente um sujeito, cujo projeto é inventar suas próprias
normas, pode delas se apropriar.
Só há sujeito para Canguilhem porque há, simultaneamente, sujeição às
normas que objetivam o sujeito, e subjetivação dessas mesmas normas. O sujei-
to é um efeito das normas, porém, um efeito original, pois efetua-se a si mesmo,
delas distanciando-se. A distância torna-se a condição normativa do sujeito. O
ato de subjetivação por excelência é o afastamento das normas; sua condição de
possibilidade é a capacidade normativa da distância.
Foucault parte do enraizamento em Canguilhem para mostrar, a seu modo, é
claro, como práticas sociais podem engendrar saberes que não somente fazem
aparecer novos objetos, novos conceitos, novas técnicas, mas também objetivam
o sujeito, fazendo nascer formas totalmente novas de sujeitos; para mostrar
como se pôde formar, no século XIX, um certo saber do homem, da individuali-
dade, do indivíduo normal ou anormal, dentro ou fora da regra –, saber esse que,
na verdade, nasceu de práticas sociais divisoras do indivíduo. Tal questão tem
suscitado, nos últimos anos, inúmeras análises e polêmicas, no campo do direi-
to, da ética, da política e das ciências do homem na modernidade.
Ao discutir a questão do sujeito em Canguilhem e Foucault, Guilhaume Le
Blanc (1998, p. 95-96), por exemplo, aponta uma afinidade e uma diferença entre
estas duas perspectivas. Uma afinidade: na sociedade disciplinar moderna, ana-
lisada por Foucault, as normas passam pelo espírito e pelo corpo; não havendo
nenhuma possibilidade de sair do jogo normativo, o indivíduo não pode jamais
liberar-se das normas. No interior das normas, mantêm-se as distâncias indivi-
duais, que são teóricas e práticas, restando possibilidade teórica de compreen-
181
der-se como pertencente às normas e elaborar os conceitos adequados à produ-
ção normativa interna do saber. Para o último Foucault, é possível, na prática
singular da amizade, inventar uma relação não normalizada com o outro, visto
que os amigos inventam formas de relações singulares. Os modos de vida dos
amigos podem fazer surgir sistemas não normativos entre os seres.
Uma diferença: quer dizer que o indivíduo é compreendido em Foucault
como ser normativo? O homem normativo é definido por Canguilhem segundo
seu poder inventivo, criador de novas normas. Esta possibilidade está ausente
da análise de Foucault. De acordo com a leitura de Le Blanc, eu posso, nas
normas existentes, colocar entre parênteses a disciplina normativa na prática da
amizade; em troca, não posso inventar novas normas, o que seria sair das nor-
mas existentes. A transgressão das normas existentes é uma impossibilidade
para Foucault, ele afirma, sendo a experiência literária a única experiência da
transgressão objetivada pelo filósofo. Uma subversão das normas torna-se, em
troca, possível com Canguilhem, a partir do momento em que o homem normativo
tem a possibilidade de fazer quebrar as normas e de instituir novas.
Encontramos com freqüência, nos últimos anos, o desenvolvimento dessa
questão, através da hipótese de uma solução ética foucaultiana para o problema
da inelutabilidade do controle social sobre o sujeito face à eficácia do exercício
do poder disciplinar e normalizador das sociedades contemporâneas. Esse pro-
blema é levantado principalmente pela esquerda marxista, que critica duramente
sua noção de poder, nela apontando uma visão niilista, segundo a qual não
haveria lugar nem para a resistência nem para a liberdade.
Uma solução residiria nas idéias de técnicas de si, de cuidado de si, de
governo de si, de arte de não ser governado e no conceito de governo, estuda-
dos no último Foucault9. É certo que a noção de governo, delineada a partir do
final dos anos de 1970, como um determinado tipo de relações entre indivíduos,
uma forma social de relação junto a outras, como uma ação que se exerce sobre
a ação dos outros e sobre si mesmo constitui uma contribuição para a discussão
aqui proposta. Porém, é possível, do ponto de vista de sua genealogia do poder
– desenvolvida na década de 1970 –, vislumbrar soluções, se a referência de
Foucault às reflexões de Canguilhem sobre a normalização for levada a sério e às
últimas conseqüências e se a estas reflexões se combinarem alguns elementos
da concepção de poder como resistência, conforme explicitada em História da
sexualidade I (Foucault, 2001, p. 91).
Em primeiro lugar, a idéia de que lá onde há poder há resistência; negá-lo
seria desconhecer o caráter estritamente relacional das correlações de poder,
que não podem existir senão em função de uma multiplicidade de pontos de
resistência que representam, nas relações de poder, o papel de adversário, de
alvo, de apoio, de saliência.
Em segundo lugar, de acordo com Foucault, esses pontos de resistência
estão presentes em toda a rede de poder. As resistências são singulares e podem
182
ser necessárias, improváveis, possíveis, espontâneas, selvagens, solitárias, pla-
nejadas, arrastadas, violentas, irreconcialiáveis, prontas ao compromisso, inte-
ressadas ou fadadas ao sacrifício. Por definição, as resistências só não podem
existir no campo estratégico das relações de poder, mas isso não quer dizer que
sejam apenas subproduto das mesmas, sua marca em negativo, formando, por
oposição à dominação essencial, um reverso inteiramente passivo, fadado à
infinita derrota. Ao contrário, por serem o outro termo nas relações de poder,
elas se inscrevem nessas relações como interlocutor irredutível: “elas introdu-
zem na sociedade clivagens que se deslocam, rompem unidades e suscitam
reagrupamentos, percorrem os próprios indivíduos, recortando-os e remodelan-
do, traçando neles, em seus corpos e almas, regiões irredutíveis” (Foucault,
2001, p. 92).
Em terceiro lugar, a afirmação de Foucault de que assim como a rede das
relações de poder acaba formando um tecido espesso, atravessando os apare-
lhos e as instituições sem se localizar exatamente neles, também a pulverização
dos pontos de resistência atravessa as estratificações sociais e as unidades
individuais.
De acordo com esta forma de problematização da normalização aqui estuda-
da cabe, sem dúvida, buscar pontos de abertura para um novo campo de inven-
ções possíveis, onde as formas de relações de poder permitam fazer ver, hoje,
eixos ou pontos de resistência, vetores, em cujos fluxos o Outro seja inteiramen-
te reconhecido como sujeito de ação. Trata-se de retomar o modelo instituído no
século XX, sua forma de objetivação do sujeito para tornar visível aquilo que
estamos nos tornando e de que maneira devemos agir, para tentar pensar às
margens das formas políticas e sociais prévias, buscando outras possibilidades.
Notas
1. De acordo com Deleuze, a filosofia inteira de Foucault é uma pragmática da
multiplicidade, compreendida como algo a ser feito e apreendido no ato mesmo de sua
fabricação (Deleuze e Guattari, 1980). É nesse sentido que Rajchman comenta: “(...) O
que é ver, tornar visível esta multiplicidade ainda por ser feita (...) e uma vez vista, ou
visível, como então agimos sobre ela, pensamos sobre ela – como no caso de perceber
e tornar visível aquilo que Foucault chamava de ‘o intolerável’, para o qual ainda não
fixamos um modo de tratar?” (Rajchman, 2000, p. 75).
2. Em A verdade e as formas jurídicas, Foucault explicita a diferença desse seu projeto
em relação ao marxista: “existe uma tendência que poderíamos chamar, um tanto ironi-
camente, de marxismo acadêmico, que consiste em procurar de que maneira as condi-
ções econômicas de existência podem encontrar na consciência dos homens o seu
reflexo e expressão. Parece-me que essa forma de análise, tradicional no marxismo
universitário da França e da Europa, apresenta um defeito muito grave: o de supor, no
fundo, que o sujeito humano, o sujeito de conhecimento, as próprias formas do conhe-
cimento são de certo modo dadosprévia e definitivamente, e que as condições econô-
183
micas, sociais e políticas da existência não fazem mais do que se depositar ou se
imprimir neste sujeito definitivamente dado” (Foucault, 1999, p. 8).
3. De acordo com Foucault, a teoria do sujeito foi modificada no século XX por certas
teorias e por certas práticas dentre as quais incluem-se o marxismo europeu e a psica-
nálise. Ele considera a psicanálise como a prática e a teoria que reavaliaram mais
profundamente a prioridade “sagrada” conferida ao sujeito pelo pensamento ocidental
desde Descartes. A psicanálise questionou essa posição absoluta do sujeito como
fundamento de todo conhecimento, como aquilo a partir de que a liberdade e a verdade
se revelam. Contudo, para Foucault, a teoria ainda continua muito “cartesiana e Kantiana”
porque ainda está presa a um sujeito da representação, um ponto de origem a partir do
qual o conhecimento é possível a verdade aparece (Foucault, 1999).
4. A noção de positividade do poder opõe-se à de poder negativo – conforme Foucault
explicita em História da sexualidade I –, ao rejeitar a hipótese repressiva, particular-
mente a marxista tradicional, para a qual o poder funciona através da repressão exercida
pelas classes dominantes sobre as classes dominadas, para produzir e reproduzir a
exploração do capital. Neste caso, a verdade está fora do poder e o poder coincide com
o Estado.
5. “O que Foucault pretende mostrar em suas análises do poder é que a dominação
capitalista não conseguiria se manter se fosse exclusivamente baseada na repressão, se
fosse exercida de forma exclusivamente violenta. A violência é a forma mais insegura e
menos econômica de poder. Um professor não é propriamente um agente da repressão;
é um representante do saber. Mas não será que ele exerce – pelo saber que produz ou
reproduz – um tipo de poder diferente, um tipo específico de dominação?” (Machado,
2004, p. 30).
6. Foucault explica tal projeto atribuindo grande relevância à questão da
“governamentalidade” (questão da relação entre segurança, população e governo), his-
toricamente incrementada a partir do século XVIII, momento em que a população
passa a ser compreendida como problema econômico e político, quando os governos
percebem que não têm de lidar apenas com sujeitos ou povos, mas com uma população
que precisa ser regulada, que tem variáveis específicas (natalidade, fecundidade, ali-
mentação, habitação) aos quais se situam no ponto de interseção dos movimentos
próprios à vida e os efeitos particulares das instituições (Foucault, 1982).
7. O caráter de integração da anormalidade pela instituição pedagógica pode tornar-se
mais claro com o exemplo específico da psiquiatria brasileira, a partir do final do século
XIX. Como se pode observar, a concepção de anormalidade – especificada nos vários
tipos de comportamentos anti-sociais ou não-disciplinados, juntamente com as dispo-
sições fisiológicas que lesionam o sistema nervoso ou alguma parte do cérebro – deter-
mina, por um lado, a delimitação das novas modalidades de assistência que compõem
um sistema completo de assistência; por outro lado, o conceito de anormalidade como
uma forma de psicopatologia, tornando-se, então, justificativa para as tentativas de
submetê-los ao poder disciplinar e normalizador. Este conceito corresponde, mais do
que à causalidade, à necessidade de combater, preventiva e profilaticamente, os proble-
mas sociais decorrentes do comportamento indisciplinável dos indivíduos que não
podiam ser considerados loucos, nem normais. A categoria dos anormais se sobrepõe
ao par normal/doente, tornando a ação da psiquiatria mais específica, dirigindo-se a
184
cada tipo particular de anormalidade. A ação da psiquiatria torna-se ao mesmo tempo,
mais abrangente, assistindo a um número muito maior de indivíduos considerados,
devido à sua inutilidade, nocivos à sociedade. Essa ação baseia-se na crença na possibi-
lidade de sua recuperação por meio de uma intervenção fundada num saber “científico”
(Cf. Portocarrero, 2002 e 2004).
8. Foucault o afirma ao analisar os procedimentos constitutivos do poder disciplinar, no
capítulo “Sanção normalizadora” de Vigiar e punir (Foucault, 2003). Aí, ele explicita
que sua concepção de norma é tributária do conceito cunhado por Canguilhem em “Do
social ao vital” (Canguilhem, 2002).
9. Segundo Ortega, por exemplo, desde 1976, constata-se um deslocamento teórico de
Foucault no eixo do poder que conduz à substituição do conceito de poder pelo de
governo, para finalmente, desembocar na temática do governo de si. Ortega ressalta que
Foucault admite ter estado preso, até o começo dos anos de 1970, a uma noção negativa
de poder, a qual ele mesmo critica como hipótese repressiva. Essa noção foi substituída
pela concepção de um poder produtivo de verdade e de objetos. Em História da
sexualidade I (Foucault, 2001), segundo Ortega, Foucault defende uma concepção
monista de poder, inspirada em Nietzsche, como multiplicidade de relações de forças.
“Com a passagem para a análise das tecnologias de governo, afirma Ortega, Foucault
amplia, graças a Habermas, sua concepção de poder para um tipo determinado de
relações entre indivíduos, ou seja, uma forma de relação social junto a outras. Assim, o
conceito de poder é substituído pelo conceito de ‘governo’, considerado por Foucault
mais operacional” (Ortega, 1999, p. 35).
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Vera Portocarrero é professora de Filosofia da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ).
Endereço para correspondência:
E-mail: veraport@uerj.br

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