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HISTÓRIA DA AMÉRICA INDEPENDENTE E CONTEMPORÂNEA Tiago Rattes de Andrade E d u ca çã o Ti ag o R at te s d e A nd ra d e Este livro tem como objetivo introduzir a discussão histórica acerca dos proces- sos de independência nas Américas espanhola, portuguesa e anglo-saxônica. Para isso, abordaremos alguns aspectos que a historiografia do assunto trouxe nas últimas décadas. Esta obra lança bases importantes para que o leitor tenha condições de pensar criticamente sobre uma série de fatos decisivos nos processos apresentados e seja capaz inclusive de compará-los devidamente, algo fundamental para o exercício do historiador. H IS T Ó R IA D A A M É R IC A IN D E P E N D E N T E E C O N T E M P O R Â N E A Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-6404-5 9 788538 764045 Tiago Rattes de Andrade IESDE BRASIL S/A Curitiba 2018 Hist ria da América Independente e Contempor nea © 2018 – IESDE Brasil S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito do autor e do detentor dos direitos autorais. Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br Produção FAEL Direção Acadêmica Francisco Carlos Sardo Coordenação Editorial Raquel Andrade Lorenz Revisão IESDE Projeto Gráfico Sandro Niemicz Capa Vitor Bernardo Backes Lopes Imagem Capa Kelly vanDellen/Shutterstock.com Arte-Final Evelyn Caroline dos Santos Betim CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ A571h Andrade, Tiago Rattes de História da América independente e contemporânea / Tiago Rattes de Andrade. - 1. ed. - Curitiba [PR] : IESDE Brasil, 2018. 164 p. : il. ; 21 cm. Inclui bibliografia ISBN 978-85-387-6404-5 1. América Latina - História. I. Título. 18-49825 CDD: 980 CDU: 94(8) Direitos desta edição reservados à Fael. É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Fael. Sumário Carta ao aluno | 5 1. Independências: um debate no plural | 7 2. Antecedentes históricos dos processos de independência das Américas | 25 3. Formação política e econômica: duas Américas em construção | 41 4. Transformações locais e a circulação de ideias “perigosas” | 59 5. Cenários das independências | 75 6. A consolidação dos processos de independência | 93 7. Portas abertas para a contemporaneidade: o pós-independência | 113 8. América hoje: rastros de uma história de mudanças | 129 Gabarito | 145 Referências | 155 Carta ao aluno Este livro tem como objetivo introduzir a discussão his- tórica acerca dos processos de independência nas Américas espanhola, portuguesa e anglo-saxônica. Para isso, abordare- mos alguns aspectos que a historiografia do assunto trouxe nas últimas décadas. Esta obra lança bases importantes para que o leitor tenha condições de pensar criticamente sobre uma série de fatos decisivos nos processos apresentados e seja capaz inclusive de compará-los devidamente, algo fundamental para o exercí- cio do historiador. Para esclarecer esse tema específico da historiografia, esta obra foi subdividida didaticamente em oito capítulos. – 6 – História da América Independente e Contemporânea O Capítulo 1 compreende os aspectos historiográficos que envolvem o conceito de independência e de colonização, apresentando as mudanças de concepção sobre o tema ao longo dos anos e sua importância para a ati- vidade do historiador, como docente e pesquisador. O Capítulo 2 discorre sobre elementos históricos que antecedem o processo estudado e que per- mitem construir relações de causa e nexo, ampliando a capacidade crítica sobre visões consagradas e novas. No Capítulo 3 são abordadas as rela- ções entre o modelo de colonização e a formação de um modelo de eco- nomia e de sociedade política no continente, compreendendo como essas diferentes perspectivas afetam as análises da historiografia. O Capítulo 4 elucida como se deu o processo de transformação local para entender a construção dos processos de ruptura colonial na América. No Capítulo 5, são enfocados os fatos históricos e as especificida- des decisivas que ajudaram a constituir os cenários de independência nas diferentes Américas, além de fatos relevantes para a constituição do pro- cesso histórico. Por sua vez, o Capítulo 6 analisa o processo histórico que envolve as independências, abordando as guerras de ruptura, os conflitos políticos e outras dimensões relevantes, inclusive identificando de que modo isso afetou a economia do continente. No capítulo 7, são identifica- dos os fatos históricos decisivos para a consolidação das independências e suas especificidades em cada região, relacionando esses processos às transformações imediatas e aos vínculos decisivos para essas nações se alocarem no cenário internacional. Por fim, o Capítulo 8, ao tratar de aspectos da atualidade, permite o estabelecimento de relações claras e objetivas entre os processos de independência, por meio das análises his- toriográficas e características das sociedades estudadas hoje. Boa leitura! Independências: um debate no plural Este capítulo tem como objetivo introduzir a discussão histórica acerca dos processos de independência nas Américas espanhola, portuguesa e anglo-saxônica. Para isso, abordaremos alguns aspectos debatidos pela historiografia nas últimas décadas e aprofundaremos dois deles: a dimensão de colônia e o caráter das rupturas que as independências propiciaram ou não ao con- tinente americano. Com caráter historiográfico, este capítulo visa a discutir bases importantes para que o leitor tenha condições de pensar criticamente sobre uma série de fatos decisivos nos processos que aqui serão abordados. Isso inclui pensar as correlações polí- ticas e sociais, o desenvolvimento econômico e peculiar de cada região, bem como a formação das elites locais. Com base nisso, esperamos que o leitor seja capaz de fazer comparações entre os conceitos que serão estudados. 1 História da América Independente e Contemporânea – 8 – 1.1 A historiografia e a noção de colonização É inevitável que nos debrucemos sobre o ofício de historiador antes de discutirmos a respeito de um processo histórico. Embora não tenhamos a intenção de dedicar um tempo muito extenso a isso, é importante percor- rer pontos significativos da historiografia. Na primeira metade do século XX, em especial, podemos notar um grande movimento de buscas explicativas para a formação social, política e econômica das nações do continente americano. Cada uma das regiões resguarda suas especificidades1, o que não nos impede, por sua vez, de tratarmos de maneira geral esse fenômeno da formação social, política e econômica das nações do continente americano. Ao longo do século XX, tornou-se visível o desenvolvimento de uma historiografia cada vez mais complexa acerca do tema do processo de construção e independência das nações do Novo Mundo. No Brasil, esse movimento historiográfico encontra reflexos, por exemplo, na Geração de 1930, que inclui nomes como Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior. e Gilberto Freire. Esses autores foram pioneiros no processo de construção de explicações modernas sobre o sentido da modernização de nosso país. Eles trouxeram algo em comum: a construção de grandes sínteses explicativas sobre o Brasil. Nesse sentido, ao longo das últimas décadas, as mudanças de pers- pectivas da historiografia nos ajudam a entender melhor alguns processos históricos. Quando nos referimos a mudanças paradigmáticas da historio- grafia, estamos abordando em especial o deslocamento central de análise das grandes sínteses e dos modelos que enfatizam também aspectos do cotidiano, da cultura e da sociedade. 1 Quando tratamos das especificidades das regiões abordadas, estamos falando de proces- sos históricos singulares que tem efeito prático na forma como esses países sedesenvolve- ram. Cada uma das regiões vivenciou processos de colonização com diferentes perfis, por isso é necessário que estejamos atentos a essas diferenças. – 9 – Independências: um debate no plural Quando a ênfase nas grandes sínteses predomina, é natural que muitos pormenores acabem esquecidos, o que interfere na efetiva compreensão do processo histórico. Não se trata de abandonar as contribuições clássicas ao debate (ao longo das próximas seções, será recorrente esse tipo de contribui- ção). De certa forma, estamos buscando oferecer a possibilidade de olhar de forma mais específica para processos tão significativos, muitas vezes esque- cidos, como o cotidiano e as relações sociais de caráter mais específico. As elites políticas constituem grandes alianças entre si. Mas não podemos esquecer também das pequenas tramas de poder que se dese- nham nas relações locais e regionais, da formação de redes clientelares, entre outros. Não nos dedicaremos, nesta obra, a esmiuçar todos os ele- mentos que podem servir como explicação desses processos, o que não nos impede, porém, de apontar sua relevância. Dito isso, é interessante nos atermos a um dos desafios historio- gráficos mais significativos ao abordarmos a formação das nações do Novo Mundo: a discussão entre rupturas e continuidades. Essa noção está pautada no entendimento sobre as independências e suas análi- ses. Em parte, essa percepção se deu em duas dimensões: a marxista e a weberiana. No caso do pensamento marxista, predominante na primeira metade do século XX, é notável que a continuidade ganhou força, e as análises tenderam a ver a América em um processo de capitalismo internacional. Para essa visão em que predomina a continuidade, a América Latina está inserida na lógica da acumulação e exploração de riquezas por parte do mundo europeu. Nesse sentido, a América Anglo-saxônica escapou desse processo exploratório devido a brechas geradas por uma eventual colônia de povoamento. Assim, a América Latina é apenas a continuidade do processo colo- nial. Todas as suas instituições são um arremedo para dar prosseguimento a esse processo. Esse tipo de percepção é muito forte nas obras de Caio Prado Júnior (2011). História da América Independente e Contemporânea – 10 – Na outra ponta das análises, o pensamento weberiano teve grande influência entre historiadores ao abordar conceitos como o patrimonia- lismo2. Nesse caso, especificamente, nossas instituições pós-indepen- dência não apresentariam mudanças significativas, já que estaríamos relegados a reproduzir a lógica da confusão entre público e privado. Nesse sentido, podemos destacar obras como a de Holanda (1995) e a de Faoro (1987), que são essenciais para entendermos os conceitos de continuidade e de herança ibérica. Outro viés de interpretação recorrente entre weberianos é o das “ideias fora do lugar”. Diante disso, o liberalismo no Brasil não seria puro, assim como o da Europa. Por isso, nosso sistema político e econô- mico acabaria por reproduzir a lógica colonial e não permitir que o país adentrasse a modernidade do capitalismo. Essas análises têm possibilidades valiosas e serão retomadas ao longo desta obra porque têm um grau de importância significativo. Não se trata de descartá-las, até porque podem ser utilizadas em pesquisas e aulas, por isso são chamadas de clássicas. Queremos evidenciar a necessidade de transcendermos essas visões, que versam exclusivamente sobre as continuidades. Então, apostamos na importância de pensarmos nas rupturas, pois assim poderemos verificar com maior complexidade e precisão os pro- cessos históricos em sua vasta dinâmica. O que mudou? Quais nações nasceram? Quem são os homens e mulheres que agora passam a governar essas novas nações que emergem de movimentos políticos tão importan- tes? Por que tantas diferenças nessas Américas unidas e ao mesmo tempo tão distantes? Como podemos observar alguns fatos tão abordados nos 2 O conceito de patrimonialismo ganhou uma grande força no pensamento social brasileiro principalmente pela difusão de autores como Holanda (1995). Basicamente, esse conceito diz que a tradição em nações ibéricas era a de “confusão” entre aquilo que é público e privado, tendo em vista o perfil de monarquias estabelecidas na região. Dessa forma, tor- nava-se algo natural que governantes passassem a tratar os negócios públicos sem a rigidez moral necessária. A consequência imediata de tal prática seria a consolidação de toda uma cultura política onde o público acaba sempre submetido ao privado. Isso explicaria, entre outras coisas, por que numa nação como o Brasil as relações assimétricas de poder tende- riam sempre a se gravar. – 11 – Independências: um debate no plural últimos tempos para extrair deles informações que possam ser relevantes para um novo olhar? Já que temos como objetivo compreender o processo das independên- cias no Novo Mundo, façamos uma imersão em torno de algumas ques- tões historiográficas. Os fatos serão importantes na busca que faremos ao longo desta obra para oferecer a você, leitor, uma perspectiva ao máximo esmiuçada sobre os processos políticos, econômicos, sociais e culturais que determinam e derivam dessas independências. Não podemos deixar de lado uma constatação: em toda seleção de fatos que consideremos decisivos para interpretar a história haverá de alguma forma uma posição metodológica. Durante décadas, em especial após 1980, a moderna historiografia obje- tiva explicar o fenômeno dos processos de colonização nas Américas espa- nhola, portuguesa e anglo-saxônica. Esse empreendimento visa a dar respostas a velhos dilemas, como o do desenvolvimento × subdesenvolvimento, que sempre ganham espaço nos debates acerca dessas sociedades, inclusive na atualidade. Por muito tempo, buscamos entender as características dessas sociedades, seu sentido, sua vocação, considerando a forma como foram colonizadas e, em consequência, a ruptura de seus pactos coloniais, com objetivo de compreender o mundo em que vivemos. Ao longo da segunda metade do século XX, uma série de mudanças na historiografia aconteceram. Isso nos abre um campo de possibilidades e, ao mesmo tempo, aumenta a necessidade de se tomar o devido cuidado ao construirmos esse debate de referenciais. Não pretendemos esgotar o assunto nesta seção, mas apontaremos debates significativos para melhor entender os processos de independência dessas Américas. Assim é o conceito de colonização, que historicamente é o eixo expli- cativo de boa parte dos êxitos e fracassos do Novo Mundo. Esses debates historiográficos nos permitem colocar a ideia de colonização como algo central para entendermos esses aspectos na atualidade? Durante muito tempo, os processos de independência na América foram pensados de forma monolítica3 pelos historiadores, o que ajudou a construir uma visão de senso comum muito forte na maior parte das pessoas. 3 Nesse sentido, refere-se a uma forma rígida ou homogênea de pensamento. História da América Independente e Contemporânea – 12 – Geralmente, entendemos que os processos de emancipação polí- tica das Américas espanhola e portuguesa são menos significativos e disruptivos se comparados ao da América Anglo-saxônica. Para alguns pensadores, isso aconteceu pelo fato de o nosso modelo latino-americano de colonização supostamente nos colocar em uma situação de constante exploração, a ponto de se tornar praticamente inviável a construção de instituições e governos que fugissem da total exploração e dependência. Isso é verificado, por exemplo, na tese de Caio Prado Júnior (2011), que aponta o “sentido da colonização” na América portuguesa. Se objetivamos fornecer riquezas para a metrópole e nunca as acu- mular, é mais do que natural que seja esse o destino decisivo da realidade pós-independência. Já a América Anglo-saxônica viveria em uma situação oposta, pois ao longo de seu processo de colonização conseguiria fugir da lógica da exploração e constituira de povoamento. Antes de avançar é importante pontuarmos que não se trata de “jogar fora” as análises de obras clássicas, que recebem essa denominação por serem relevantes, terem inovado e contribuído com a historiografia. Parte de nosso trabalho é provocar ao máximo o debate para avançar em busca de explicações mais complexas. A historiadora Annick Lempérière (2004) contribui ao explicar sobre os limites do paradigma colonial ao debruçar-se sobre a realidade da colo- nização espanhola na América. Suas reflexões nos fornecem subsídios sobre esses processos em sua totalidade. Para ela, [La] “Historia colonial” de América Latina, desde hace muchas décadas, no remite a otra cosa que al periodo de estudio que abarca los siglos anteriores a la independencia: la “época colonial” y, coro- lariamente, a una subparte de la materia académica “Historia de América Latina”. La fórmula, en sí misma, se ha vuelto neutral, gris, no polémica. “Colonial” es una señal de identidad específica para los historiadores que estudian los siglos XVI a XVIII. Normalmente se podría prescindir de repetir sucesiva y reiterativamente las alusiones a lo “colonial” a lo largo de los estudios claramente ubicados dentro del “periodo colonial”. Sin embargo, no sucede así. Al estudiar la sociedad, los sistemas de trabajo, la economía, la fiscalidad entre el siglo XVI y el XIX, la mayoría de los historiadores siente la nece- sidad de añadir el calificativo “colonial” a cualquier descripción. Se habla de “régimen colonial”, pero, ¿qué quiere decir “colonial” – 13 – Independências: um debate no plural en este caso? ¿Qué sentido añade al análisis del sistema político, si de eso se trata? Si significa que las instituciones son distintas de las de la península, ¿“colonial” es suficiente para calificarlas?4 (LEMPÉRIÈRE, 2004, p. 2) O centro do debate é em relação à noção de colonização como con- ceito global, que pode ser utilizado para entendermos melhor a construção dessas nações, em específico, para entender os processos de independên- cias. Por isso, pensar criticamente acerca da noção de colonização pode nos apontar detalhes, brechas, fissuras, rupturas e demais questões que envolvem um processo histórico tão complexo como o aqui estudado. Então, ao usar o texto de Lempérière, não pretendemos abandonar o conceito de colonial, mas problematizá-lo para que possamos estabelecer conexões a fim de tornar o debate sobre as independências mais complexo. Muitas vezes, ao olharmos as sociedades coloniais, principalmente as da América espanhola e portuguesa, tendemos a enxergar um mundo colo- nial restrito à exploração e com instituições vazias de poder e de signifi- cado. O mundo colonial passa a ser visto exclusivamente como apêndice e reprodução. Isso acaba por influenciar demasiadamente o nosso olhar para os atores históricos. Não queremos abandonar o conceito de colonial, mas pensá-lo com mais nuances, para que seja possível entendermos melhor o que estaria por vir nas independências. 4 “A ‘História colonial’ da América Latina há muitas décadas não remete a outra coisa a não ser o período de estudo que abarca os séculos anteriores à independência, à ‘época co- lonial’ e a uma subdivisão da disciplina acadêmica História da América Latina. A fórmula, fechada em si, transformou-se em neutra, cinza, sem polêmica. ‘Colonial’ é um traço de identidade específica para os historiadores que se debruçam sobre os séculos XVI a XVIII. Normalmente, poderia não ser necessário repetir reiteradamente as alusões ao “colonial” ao longo dos estudos claramente localizados dentro do ‘período colonial’ – o que não ocor- re, no entanto, dessa forma. Ao estudar a sociedade, os sistemas de trabalho, a economia, a fiscalização entre o século XVI e o XIX, a maioria dos historiadores sente a necessidade de adicionar o adjetivo ‘colonial’ a qualquer descrição. Fala-se de ‘regime colonial’, mas o que quer dizer ‘colonial’ nesse caso? Que sentido agrega à análise do sistema político, se é disso que se trata? Se significa que as instituições são distintas daquelas da península, ‘colonial’ é suficiente para qualificá-las?” (LEMPÉRIÈRE, 2004, p. 2, tradução nossa). História da América Independente e Contemporânea – 14 – 1.2 Novos e velhos olhares sobre independência Precisamos compreender de forma efetiva como a historiografia tem debatido conceitualmente as independências das Américas, com o objetivo de constituir um marco importante para nossas próximas análi- ses. Isso significa entendermos de forma mais profunda as implicações sociais, políticas e econômicas que efetivamente se concretizaram desde a segunda metade do século XVIII e ao longo de todo XIX. Com isso, é natural que façamos ressalvas a respeito das peculiari- dades de cada região, mas, em um primeiro momento, faremos um debate sintético sobre o assunto. As independências da América espanhola e portuguesa, como vimos, sempre foram associadas muito mais a processos de continuidade do que de ruptura, em oposição ao processo de Independência das Treze Colônias5, que deu origem aos Estados Unidos da América, por exemplo. É comum que boa parte das análises sobre esses processos tenda a repro- duzir que nenhum tipo de ruptura se instituiu e que nem mesmo as ideias de liberdade se concretizaram efetivamente. Os movimentos de independência hispano-americanos nunca haviam sido plenamente associados à ideia de revolução até muito recentemente, apesar de o termo aparecer com grande frequên- cia na historiografia tradicional sobre as independências no con- tinente. No conjunto das américas, a problemática da revolução no contexto das independências sempre pareceu reservada ao caso clássico da “Revolução Americana” – a das Treze Colônias, em fins do século XVIII – e ao caso-limite do Haiti, no qual a articu- lação entre revolução, independência e abolição imprimiu caracte- rísticas sobremodo radicais ao processo. (GOUVÊA, 1997, p. 275) No caso específico da América espanhola, em que se verifica algu- mas lutas específicas, como as capitaneadas por Simón Bolívar e José 5 O processo de Independência das Treze Colônias é também chamado por alguns historia- dores de Revolução Americana, por seu caráter de rupturas e de guerra, fatores que serão abordados em outros capítulos. – 15 – Independências: um debate no plural Martí6, é recorrente nos depararmos com estudos que tratem esses per- sonagens como “caudilhos”7 ou simplesmente agentes da continuidade das elites coloniais. Essas análises muitas vezes padecem de um anacronismo perigoso. É preciso pensar os personagens históricos dentro do contexto de suas ideias, isto é, entender as possibilidades e limitações de ação. [...] assim é também necessário pensar de forma contextualizada os conceitos. Assunto muito raramente considerado por historia- dores brasileiros, exceto poucas e honrosas exceções (PRADO, 1985), as independências latino-americanas construíram até muito recentemente um território marcado pela presença de uma his- toriografia bastante convencional e pouquíssimo explicativa. Em termos gerais se pode dizer que desde fins do século XIX foi sendo cunhada uma historiografia de corte sobremodo liberal e nacio- nalista em cujo conteúdo era utilizado o termo revolução apenas como sinônimo de guerras de independência e, consequentemente, apenas enfatizando o simples caráter de ruptura institucional do mundo colonial hispano-americano. Essa historiografia se pren- dia de modo muito particular ao relato dos eventos de natureza mais local, então tomados e analisados a partir de um ponto de vista “nacional”. Era uma produção sem grandes conexões com as transformações mais globais, o que fazia com que o conceito 6 Simón Bolívar foi um entusiasta da ideia de união política das ex-colônias espanholas como Bolívia, a Colômbia, Equador, Panamá, Peru e Venezuela, processo também co- nhecido como Integração Continental. Muitas vezes, a crítica a seu papel histórico se dá pelo fatode ele ser de origem aristocrática. Para saber mais a respeito de Simon Bolívar, ver Arana (2015). José Martí, por sua vez, teve uma atuação política direta mais restrita a Cuba, onde militou desde a adolescência pela independência desse território no século XIX. Teve um fim diferente de Bolívar, já que foi atingido por tiros de soldados espanhóis durante o conflito da independência. Para saber mais sobre José Martí, acesse sua biogra- fia. Disponível em: <http://www.josemarti.cu/biografia>. Acesso em: 30 jan. 2018. 7 O caudilhismo pode ser definido como um fenômeno “caracterizado pela divisão do po- der entre chefes de tendência local: os caudilhos. Estes líderes, geralmente de origem mi- litar, oriundos, em sua grande maioria, da desmobilização dos exércitos que combateram nas guerras de independência, de 1810 em diante, provinham, em certos casos, de estratos sociais inferiores ou de grupos étnicos discriminados (mestiços, índios, mulatos, negros). Para grande parte deles, o Caudilhismo, com sua organização paramilitar, constituiu um canal de mobilidade vertical” (OLIVIERI, 1998, p. 156, grifos do original). História da América Independente e Contemporânea – 16 – de revolução não aparecesse problematizado e muito menos expli- cado. (GOUVÊA, 1997, p. 276) Atualmente, ao tratarmos dos processos de independência, é necessá- rio que avancemos além da ideia de mera ruptura institucional ou simples- mente do simulacro8. É decisivo entender esses processos dentro de suas peculiaridades e, por sua vez, todos os seus efeitos. Ao abordarmos um tema tão relevante, é fundamental que nos habi- tuemos a perguntar: seria plausível que um processo de mudança institu- cional tão grandioso pudesse simplesmente se resumir a continuidades? Na atualidade, em que estamos tão atentos a detalhes e complexidades, sintetizarmos de forma pouco cuidadosa esse processo de independência? Cremos que não. Por isso, insistimos: devemos estar atentos às especificidades dos processos de construção das independências das Américas para entender- mos de que forma a realidade colonial imprime particularidades e pro- move novas formas de vivência e organização. É necessário identificarmos que algumas visões do senso comum se confundem com visões da historiografia tradicional sobre o tema que estamos abordando. Durante décadas, a historiografia acabou por reafirmar visões deter- ministas e explicações pautadas exclusivamente por fatores econômicos e culturais. Por exemplo: se os Estados Unidos da América se tornaram uma nação rica e desenvolvida – diante do senso comum e influenciado por um tipo de corrente historiográfica –, significaria que em algum momento essa nação teve uma variável econômica favorável (como é o caso da tese da colônia de exploração × colônia de povoamento). Por outro viés, a elite política dos EUA seria mais dinâmica e com maior vocação para o desenvolvimento. 8 Quando falamos de uma “mera ruptura institucional” estamos nos referindo à ideia muitas vezes propagada de que com as independências, em especial na América Latina, tivemos uma continuidade plena das relações sociais e econômicas, o que faria desses processos apenas uma mudança formal na relação de dominação entre metrópole e colônia. No caso do simulacro é comum também que nos deparemos com análises que tendem a apontar que, nas Américas, inclusive na anglo-saxônica, teríamos modelos políticos e econômicos que simplesmente reproduziriam o que já existia na Europa, sem qualquer tipo de peculiaridade. – 17 – Independências: um debate no plural Logo, insistimos que uma análise não deve estar estruturada exclu- sivamente em uma variável, que pode ser perigosa e incapaz de efetuar a explicação que precisamos. Por isso, precisamos levar em conta a ideia de múltiplas matrizes, considerando características específicas a cada contexto histórico. 1.3 América: unidade e construção Ao pensarmos o contexto das independências nas Américas, temos de explorar o imaginário a respeito da ideia de América. Ao longo de séculos, as discussões historiográficas ganharam tam- bém a esfera pública e contribuíram para a construção do imaginário político sobre as nações do continente. Em alguns momentos veremos que se tentou construir uma América unida do Norte ao Sul. Em outros momentos, lutou-se pela unidade da América do Sul como estratégia de fortalecimento em relação à América do Norte. Por inúmeras outras vezes, assistimos relações que fugiam da unidade e também da dicotomização. Esses movimentos relacionam-se diretamente com os desejos e interesses dos grupos políticos, nos diversos períodos históricos. Ao longo da obra, buscaremos apontar fatos históricos que foram determinantes para a com- preensão desse processo. Algumas questões são importantes. Existe uma América Latina efe- tivamente? Há uma unidade que percorra todas as nações colonizadas por Portugal e Espanha que nos permita pensar de maneira homogênea? É possível pensarmos da mesma forma as nações da América Central e do Caribe? E no caso das nações da América Anglo-saxônica? Estados Unidos e Canadá estão tão próximos assim? Esses questionamentos ser- vem como instrumento para abrirmos espaço para análises mais comple- xas sobre o tema. O filósofo Francisco Bilbao foi o primeiro a utilizar a expressão América Latina. Ele, de alguma maneira, ajudou a consolidar a ideia de um continente, de uma unidade que talvez tenha demorado para ser efe- tivamente constituída conforme os dias atuais (SAN MARTÍN, 2013). Napoleão III curiosamente foi quem efetivamente popularizou a expressão História da América Independente e Contemporânea – 18 – ao buscar construir uma relação política e comercial entre a França e o México naquele momento, independentemente de qualquer consideração que tenhamos sobre a efetiva unidade que essas nações guardam entre si. Os territórios de origem espanhola, embora resguardem diferenças significativas, mantêm ao menos uma unidade linguística e, em alguns casos, têm no passado histórias de independência em comum. Não pre- tendemos esgotar as relações entre essas nações, mas apontar como esse processo de busca da construção de unidade política e cultural é um ponto de apoio interessante para estudarmos esse processo histórico. Se pensarmos na história contemporânea, veremos que ao longo da segunda metade do século XX era recorrente que movimentos culturais evocassem a unidade latino-americana – um desafio complexo, porque a relação entre as colônias espanholas e portuguesas sempre foi cercada de inúmeros detalhes e desafios. Não é demais relembrarmos que Portugal e Espanha guardam entre si inúmeras diferenças culturais e políticas, ainda que sejam nações vizinhas com pontos de interseção significativos em sua história. Outro aspecto importante é que essas nações, por serem pioneiras no processo de expan- são marítima, acabariam por protagonizar disputas políticas e econômicas no Novo Mundo. Até mesmo viveriam durante um tempo sob o mesmo reinado, no período da União Ibérica. O contexto político dos países da América Latina no século XX acabou por propiciar possibilidades de reflexão muito incentivadas pela conjuntura das décadas de 1960 e 1970. Naquele momento, boa parte das nações como Brasil, Argentina, Uruguai, Peru, Equador e Venezuela viviam contextos de ditadura e luta política intensa. Em muitas dessas nações, os movimentos políticos de oposição erguiam-se com a bandeira da ruptura política. Era um período de efervescência em todos os campos. A possibilidade de pensarmos essas emancipações como revoluções aparece nessa época. No polo oposto, a década de 1950 assistiria ao aparecimento de uma nova tendência historiográfica na qual a ideia de revolu- ção se apresentava mais pronunciada. “Revolução” surgia aqui, porém, não tanto como um conceito explicativo dos processos que – 19 – Independências: um debate no plural configuravam as independências hispano-americanas, mas como a expressãode uma causalidade externa. Tratava-se de um período muito marcado pelo ambiente da Guerra Fria, em que se observava o esforço dos Estados Unidos e dos principais países da Europa Ocidental para organizar a OTna, concretizando uma oposição conjunta aos avanços alcançados pelo bloco comunista no con- texto mundial do pós-guerra. (GOUVÊA, 1997, p. 277) Se pensarmos no contexto da chamada América Anglo-saxônica, teremos uma visão similar de unidade forjada ainda que sem resguardar as devidas diferenças. Basta pensarmos que existem diferenças relevantes que separam os EUA e Canadá9, por exemplo. Ainda assim, essa percepção de uma América do “Norte” constituiu parte importante em um imaginário político e cultural. Em consequência, deixamos de pensar objetivamente os processos históricos que envolvem o Canadá como nação peculiar. No decorrer deste livro, será possível notar que procuramos dar conta da diversidade de análises acerca da construção dessas Américas, apon- tando os elementos que as aproximam em suas constituições históricas, mas também os que as afastam. Não é demais frisar que o posicionamento geográfico do continente, as relações construídas com o Velho Mundo, as afinidades e divergências, tudo isso de alguma forma colocou a América em uma espécie de unidade forçada, inclusive quando pensarmos nas políticas de influência dos EUA em determinados períodos. Quando falamos em invenção, estamos falando de História. Alguns his- toriadores dirão que nada mais inventado do que as tradições10. Porém, elas são parte constitutiva dos imaginários que, por sua vez, têm efeito prático na vida das pessoas, na maneira como se identificam, por exemplo. Nada mais decisivo para a política do que a identidade que as sociedades constituem. 9 Embora EUA e Canadá tenham características similares em seu processo de colonização, é possível notarmos que no Canadá houve a consolidação de um modelo de sociedade menos pautada na lógica de mercado. Outra diferença muito relevante entre ambos países é que a dimensão de nação predestinada a conduzir o mundo nunca se repetiu no Canadá, algo notável ainda mais quando consideramos o envolvimento de ambas as nações em conflitos bélicos. 10 Sobre as tradições como invenção, ver Hobsbawm e Ranger (1997). História da América Independente e Contemporânea – 20 – Assim, é importante destacarmos que distinguir as especificidades das Américas chamadas de latinas também é um elemento considera- velmente decisivo para avançarmos nesse processo de compreensão das independências. Um breve exercício de comparação pode ser de grande valia: ao pensarmos na independência brasileira, especificamente, pode- mos perceber um caso essencialmente singular. Mantivemos um território continental, portanto um Império, adotamos um regime monárquico, algo praticamente inédito nas Américas. Esse perfil se deve, em parte, pelo desejo de as elites manterem o modelo escravista no país. A unidade territorial sacramentada por um governo centralizado, como o monárquico, seria a ferramenta mais eficaz para evitar o esvaziamento das senzalas. Mas essa ação, em prol da mão de obra escrava e em detrimento da atividade econômica, era possível sem que outros fatores determinassem um grau de unidade política entre as diversas elites do Brasil? Alguns historiadores já discutem a respeito disso, por exemplo, com a tese de que a unidade de pensamento de nossos “bons homens” veio do Iluminismo, peculiar da Faculdade de Coimbra, onde a maioria desses homens estudou11. Então, o processo de invenção é consequência de fatores que ao se tocarem constituem as peculiaridades tão importantes para nossa análise. Não há mais espaço na historiografia para estudos que deixem de fora esses pormenores. Conclusão Pensar os processos de independência das Américas exige alguns exercícios por parte de historiadores. O primeiro deles está em refletir sobre o que foi produzido em termos de conhecimentos historiográfi- cos ao longo das últimas décadas. Identificar essa produção e entender o efeito que ela produziu, não só no mundo da historiografia, mas no senso comum, é parte importante do nosso trabalho. 11 Sobre esta unidade de pensamento advinda da grade curricular de Coimbra, ver Carvalho (2013). – 21 – Independências: um debate no plural Quando tratamos sobre processos de independência, versamos a res- peito de um assunto que é responsável pela construção de imaginários sobre nossas sociedades, vida cultural e política. Ao longo de muito tempo, os processos de independência nas Américas eram pensados em bloco, em que poucas peculiaridades eram usadas como fatores de distinção. Na atualidade, sabemos que não é mais possível pensarmos assim. Levantar as características amplas de um número considerável de atores, pensar a respeito das rupturas, permanên- cias e as peculiaridades de cada contexto é o caminho central. Devemos evitar interpretar o Novo Mundo de forma teleológica12. Muitas vezes, ao olharmos para a fartura dos EUA ao longo do século XX, é comum procurarmos uma explicação imediata no passado. Contudo, essa busca por vezes nos tira do rumo de uma análise objetiva. Ao vermos os EUA como uma nação desenvolvida, procuramos em sua independên- cia uma ação que explique essa consequência e acabamos esquecendo peculiaridades que permearam esse processo de independência. Isso tam- bém acontece na América portuguesa e espanhola. Se trouxermos para o contexto brasileiro as dificuldades, a desigual- dade, os momentos de autoritarismo e ditadura, é quase inevitável que ao olharmos nossa independência busquemos perguntar: “o que aconteceu de errado?”. Obviamente, há relação, mas devemos evitar a teleologia para que possamos extrair desses processos novas perguntas e respostas, para que seja levado em consideração o maior número de possibilidades. O modelo de independência do Brasil influenciou o desenvolvimento social e econômico do país ao longo dos últimos anos. Isso não significa que todo processo esteja relacionado apenas a continuidades. O mesmo exercício deve ser feito ao observar a história dos EUA: devemos perceber além das rupturas. 12 O conceito de teleologia, em linhas gerais, diz respeito ao fenômeno de interpretação histórica de um determinado fato totalmente influenciado pelos que o sucedem. Ou seja, muitas vezes os historiadores contaminam suas análises e visões ao levar em consideração acontecimentos de um período posterior. Em vez de pensar a história como conjunto, pro- cesso, acaba-se por dar ênfase à consequência em si. História da América Independente e Contemporânea – 22 – Por fim, entender essa aventura das independências e seus pormeno- res envolve principalmente nossa capacidade de trazer para o cotidiano, seja nas pesquisas, seja nas salas de aula, essas mudanças de paradigmas interpretativos para que a história cumpra sua função de desvelar um incrí- vel mundo de conhecimentos infindáveis. Ampliando seus conhecimentos Para entendermos a relevância dos processos de independência, é fundamental que ampliemos nosso debate acerca do conceito de colônia. O texto a seguir tem como objetivo ajudar você a entender a complexidade do empreendimento colonial. Muitas vezes, falamos sobre a colonização e esquecemo-nos de pensar o quanto foi grandioso o que se sucedeu se considerarmos os desafios colocados para a época. Se entendermos isso de forma ampla, poderemos pensar de maneira mais aprofundada a questão das sociedades que se formarão pós-independência. O que uniu as pessoas que viviam nesse território? O que fez com que esses empreendimentos tivessem sucesso? Monarquia pluricontinental e repúbli- cas: algumas reflexões sobre a Améri- ca lusa nos séculos XVI-XVIII (FRAGOSO, GOUVÊA, 2009, p. 36-50) Estima-se que a população da América lusa tenha aumentado de 100.000 em 1600 para 1.500.000 habitantes em 1766. Portanto, em menos de dois séculos tal população cresceu cerca de 15 vezes. Para o tráfico de escravos,acredita-se que ao longo dos Quinhentos chegaram à mesma América 29.275 africanos e no século seguinte 784.457 cativos; o crescimento fora de mais de 25 vezes. O conjunto de tais números sugere o apareci- mento de uma verdadeira Babilônia, entendida como confu- são, nesta parte do Atlântico Sul, pois, entre aqueles africanos, – 23 – Independências: um debate no plural encontramos pessoas das terras islamizadas do Senegâmbia, do reino do Daomé, das aldeias dos Ijós do delta Níger e das linhagens matrilineares de Angola. Em outras palavras, homens e mulheres de diferentes sociedades, culturas e idiomas. A essas multidões uniram-se os açorianos, minhotos etc. Com certeza os reinóis e ilhéus comungavam os preceitos da mesma monarquia católica e corporativa, mas não necessariamente partilhavam dos mesmos sistemas e práticas costumeiras de organização familiar e de transmissão de patrimônio. Apesar desta torre de Babel estar espalhada, no século XVII, ao longo de uma costa de milhões de quilômetros com maior con- centração em ilhas de povoamento como o recôncavo baiano, litoral de Pernambuco e cercanias da Guanabara – tão distantes uma da outra como Lisboa de Berlim –, o fato é que ela deu certo. Aquela Babilônia se transformou numa sociedade orga- nizada conforme normas do Antigo Regime (monarquia, cato- licismo, ideia de autogoverno etc.) reconhecidas por todos e tendo por base uma economia escravista. Em outras palavras, a dita torre de Babel não foi engolida pela floresta tropical nem virou comida de onças pintadas, de jiboias e nem foi dizimada por epidemias. Atividades 1. Ao pensarmos os processos de independência nas Américas, um fa- tor fundamental é que nos debrucemos sobre a historiografia produ- zida no continente, decisiva para essa interpretação. No Brasil, em especial, podemos destacar a chamada Geração de 1930. Entre esses historiadores, tivemos a difusão significativa do conceito de patrimo- nialismo. Aponte as principais características desse conceito. História da América Independente e Contemporânea – 24 – 2. Ao tratarmos dos processos de independência nas Américas, al- guns historiadores dão destaque à necessidade de pensarmos o conceito de colônia. Aponte qual é a problematização em torno desse conceito e como ele pode ajudar na compreensão dos pro- cessos de independência. 3. O contexto político nas Américas no século XX acabou por se tornar importante para entendermos como as independências no continente foram pensadas pelos historiadores. Um desses efeitos é o uso da expressão revolução para interpretar esses processos históricos. Explique esse fenômeno e seu efeito na historiografia. 4. Ao longo das últimas décadas, muitos historiadores dedicaram-se a pensar de forma mais ampla e complexa os processos de inde- pendência nas Américas. Destaque os principais elementos que compõem esse novo olhar da historiografia e o que ele oferece de importante para a compreensão dos processos citados. Antecedentes históricos dos processos de independência das Américas Pensar o processo de independência das Américas exige a compreensão das correntes historiográficas, seus movimen- tos, construções e a forma como essas ideias influenciam nossa visão sobre a história. É extremamente significativo analisar os aspectos históricos em si, ou seja, os elementos de caráter fac- tuais relacionados a esse evento. Explorar ao máximo os antece- dentes históricos torna essa tarefa mais precisa. Este capítulo se dedica a oferecer um panorama sobre o assunto. 2 História da América Independente e Contemporânea – 26 – 2.1 A colonização da América ibérica Esta seção tem por objetivo apresentar elementos históricos que pos- sam ser pensados como determinantes na análise historiográfica predomi- nante, principalmente aquela desenvolvida ao longo da segunda metade do século XX. Dessa maneira, ofereceremos subsídios a uma reflexão profunda sobre os aspectos que antecedem o processo de independência das Américas. Para entendermos a relevância do Mundo Ibérico1, constituído por Portugal e Espanha, no que costumamos corriqueiramente chamar de Expansão Ultramarina da Europa, dois elementos são significativos: o processo pioneiro de centralização política e o acúmulo de conheci- mento técnico sobre navegações. Portugal e Espanha, embora resguardem peculiaridades, passaram por processos de centralização monárquica e formação de seus estados mais cedo que outras nações do Velho Continente. Por isso, tanto Portugal quanto Espanha passaram a ter desde cedo uma série de estruturas políticas e administrativas que tiveram impacto recorrente nas Grandes. Nisso, é possível incluirmos as contribuições da Escola de Sagres2 na navegação, consolidando-se como elemento central de estudos tecnológicos de nave- gação da época. Esse dado nos ajuda a considerar a importância que as nações iriam assumir ao protagonizar um evento tão grandioso como esse. Nas últimas décadas, alguns historiadores, como Boris Fausto, sina- lizam a importância do gosto pela aventura (FAUSTO, 1995, p. 23) para a nação como portuguesa para que se lançassem ao mar em busca de novos territórios e rotas comerciais. Seria impossível compreender esse 1 A unidade apontada aqui ao tratarmos esses países diferentes como parte de um mundo com caráter unificado vem da ideia de que muitas de suas características comuns acabaram por fazer dessas nações pioneiras e fundamentais no processo de expansão ultramarina. 2 A Escola de Sagres não foi exatamente uma escola no sentido em que estamos habi- tuados. Ela foi um importante espaço de compartilhamento de descobertas e técnicas da época, permitindo o intercâmbio entre navegadores e cientistas. A existência desse espaço acelerou o protagonismo da Península Ibérica no processo de navegações. – 27 – Antecedentes históricos dos processos de independência das Américas pioneirismo das nações da Península Ibérica apenas pela sede de comér- cio. Essa propensão à aventura, vale pontuar, diz respeito ao interesse dos portugueses pelo desconhecido, pelo desbravamento. Diferentemente de outros povos, desde sempre estavam dispostos a enfrentar as fronteiras. Parte disso se deve às questões geográficas do país, que, diante de sua dimensão territorial, precisaria sempre enfrentar desafios para crescer e se desenvolver. Dois marcos temporais – a chegada dos espanhóis às Antilhas, em 1492, e a dos portugueses ao Brasil, em 1500 – são fundamentais para a análise. Em um curto intervalo de tempo, modificações significativas no panorama mundial estavam acontecendo. Esse preâmbulo sobre as nações da Península Ibérica tem como obje- tivo, antes de tudo, ressaltar como essas duas nações passaram a ter um papel decisivo na lógica de colonização e expansão, tornando-se funda- mentais na compreensão dos interesses políticos e econômicos no mundo. Este novo equilíbrio firma-se desde princípios do século XV. Dele derivará, não só todo um novo sistema de relações internas do con- tinente como, nas suas consequências mais afastadas, a expansão europeia ultramarina. O primeiro passo estava dado, e a Europa deixará de viver recolhida sobre si mesma para enfrentar o Oceano. O papel de pioneiro nesta nova etapa caberá aos portugueses, os melhores situados, geograficamente, no extremo dessa península que avança pelo mar. Enquanto os holandeses, ingleses, norman- dos e bretões se ocupam na vida comercial recém-aberta, e que bordeja e envolve pelo mar o ocidente europeu, os portugueses vão mais longe, procurando empresas em que não encontrassem con- correntes mais antigos já instalados, e para o que contavam com vantagens geográficas apreciáveis: buscarão a costa ocidental da África, traficando aí com os mouros que dominavam as populações indígenas. Nesta avançada pelo oceano descobrirão as Ilhas (Cabo Verde, Madeira, Açores), e continuarão perlongando o continente negro para o sul. (PRADO JÚNIOR, 1981, p. 12-13). Ditoisso, é importante levar em consideração os dois modelos colo- niais adotados. A metáfora mais significativa sobre esse assunto é de um autor clássico, Sérgio Buarque de Holanda (1995, p. 92). Em uma das História da América Independente e Contemporânea – 28 – seções da obra Raízes do Brasil, o autor se dedica a pensar na fundação das cidades nas colônias portuguesas e espanholas. Ele identifica um tipo de padrão oriundo de uma série de características culturais, sociais e polí- ticas. De um lado, os espanhóis haviam adotado uma postura de “ladrilha- dores”3; do outro, os portugueses agiriam como “semeadores”. De acordo com a metáfora, em um primeiro momento, os portugue- ses tinham uma visão mais transitória acerca do território explorado, preo- cupando-se pouco com grandes transformações e impactos sobre a nova colônia. Uma prova disso é a configuração das cidades que atualmente cha- mamos de históricas, como Ouro Preto, em Minas Gerais. A intervenção na natureza era mínima. Mantiveram-se as ladeiras, as curvas e os aciden- tes geográficos, mesmo sendo empecilhos para a dinâmica do cotidiano. Contudo, há uma intensidade significativa na “semeadura”. Era necessário retirar riquezas, independentemente do futuro que se desenharia. O perfil semeador dos portugueses explica uma série de outros fenô- menos sobre a colonização e o modelo de sociedade instalado em nosso país. Em comparação às colônias espanholas, o Brasil demorou muito para ter instituições culturais e educacionais, por exemplo. A ordem que aceita não é a que compõem os homens com traba- lho, mas a que fazem com desleixo e certa liberdade; a ordem do semeador, não a do ladrilhador. É também a ordem em que estão postas as coisas divinas e naturais pois que, já o dizia Antônio Vieira, se as estrelas estão em ordem, “he ordem que faz influência, não he ordem que faça lavor. Não fez Deus o Céu em xadrez de estrelas [...]”. (HOLANDA, 1995, p. 116) Já os espanhóis adotaram postura similar ao ladrilhador. A intervenção deles no território teve como características mudanças mais drásticas, como a transformação do relevo, construção de grandes espaços como as plazas e os prédios públicos. Até mesmo a organização política das colônias espa- nholas refletiu a lógica de território como extensão do reino espanhol. Essa distinção é peça-chave para a compreensão dos processos de independência: a estratégia de manutenção territorial da América 3 Ladrilhador deriva de ladrilho. Embora não esteja em uso atualmente, a palavra refere-se a piso, azulejo ou cerâmica. Remete, portanto, à ideia de intervenção, obra, transformação. – 29 – Antecedentes históricos dos processos de independência das Américas portuguesa em forma de um grande e vasto império, fator decisivo para manter a escravidão. Embora as colonizações promovidas por Portugal e Espanha nas Américas guardem semelhanças no seu processo inicial, algumas dis- tinções apontam caminhos diversos na formação dessas sociedades até a independência. Ao tratarmos dessas duas realidades, podemos apontar como elementos significativos: o perfil da colonização, as características da sociedade que emerge e o caráter das elites locais em ascensão. No caso brasileiro, o modelo de exploração usado foram as capitanias – baseadas na concessão para pessoas de confiança da Coroa. Isso teve efeito significativo na formação social e econômica do Brasil, desde cedo já consolidando uma noção muito típica de acumulação de terras, culmi- nando no latifúndio como base latente de desigualdade no país. O modelo de capitanias também acabará por consolidar o poder familiar como rele- vante. Nesse caso, algumas visões da historiografia foram consolidadas ao longo das últimas décadas, ajudando no entendimento sobre o processo de construção de nossa sociedade, inclusive sob o ponto de vista econômico. São recorrentes questionamentos sobre por que há enorme distinção social entre a América espanhola e a portuguesa. Essa resposta talvez se encontre em alguns novos trabalhos historiográficos. Eles apontam que o “atraso” talvez não seja um fruto do “acaso” ou da simples ação dos agentes externos. Este quadro geral sugere um perfil de crescente enriquecimento da elite mercantil, e de contínua pauperização das camadas subalter- nas livres. Entretanto, o manejo das taxas de/pobreza e de riqueza durante a primeira metade do século XIX mostrou certa invariân- cia na parcela detida pelos ricos e pelos pobres. Na verdade, o acesso dos pobres a recursos produtivos em si mesmos baratos — terras, alimentos e mão-de-obra — impediu a débâcle social, garantindo a estabilidade do sistema em meio a altos níveis de con- centração. A elite mercantil, por sua vez, viu-se marcada por aquilo que chamamos ideal aristocrático, que consistia em transformar a acumulação gerada na circulação de bens em terras, homens e sobrados. (FRAGOSO; FLORENTINO, 2001, p. 21) História da América Independente e Contemporânea – 30 – Ou seja, a acumulação existia em alguma medida, mas era convertida em bens que garantiriam a manutenção de toda essa conjuntura. O arcaísmo era efetivamente uma concepção que nos diferenciou quanto a projeto de nação. 2.2 A colonização da América Anglo-saxônica Ao nos debruçarmos sobre o processo de colonização do território que convencionamos chamar de América Anglo-saxônica, composta por Estados Unidos e Canadá, é importante entendermos as características econômicas, sociais e culturais da Inglaterra no período dos séculos XV e XVI. Embora a nação tenha se lançado aos mares após portugueses e espanhóis, ela não tardou a buscar as riquezas do outro lado do Atlântico. A Inglaterra, entretanto, não ficou apenas concentrada no roubo dos navios ibéricos e nos saques da costa. Ainda no fim do século XV, encarregara John Cabot de explorar a América do Norte. A marca do desconhecido é evidente na carta que Henrique VII entrega ao italiano. O rei concede o que ninguém sabe o que é, a américa, entregando a Cabot quaisquer ilhas, quaisquer nativos, quaisquer castelos que o navegante encontrasse... A América é um mundo de incertezas, terra do desconhecido, mas capaz de atrair expedições em busca de riquezas. De concreto, Cabot encontraria bacalhau no atual Canadá. [...] A américa cada vez mais passa a ser vista como um lugar de muitos recursos e de possibilidades eco- nômicas. Comerciantes e aventureiros, a Coroa inglesa e pessoas comuns nas ilhas britânicas agitam-se com essas notícias. A ideia da exploração vai se tornando uma necessidade aos súditos dos Tudor. (KARNAL et al., 2007, p. 32) A Inglaterra guarda peculiaridades decisivas para entendermos a ação colonizadora e sua decisão de lançar-se ao mar. A primeira delas relaciona- -se aos séculos anteriores ao início da expansão marítima. Nesse contexto, os ingleses estavam dedicados a transformações políticas muito sérias. Desde o século XII, o processo de mudanças políticas era muito signifi- cativo. A Inglaterra foi uma nação pioneira na construção de mecanismos de controle do poder real por meio de uma Carta Magna. Isso explica o engendramento da noção de justiça nessa nação. A ética religiosa que se – 31 – Antecedentes históricos dos processos de independência das Américas desenvolveu no país após a reforma protestante, com aspectos do calvi- nismo, ajuda a explicar o perfil de ação política da Inglaterra nas navega- ções. O tema da religiosidade será abordado com mais precisão em outro momento. Embora seja recorrente pensarmos diretamente no papel das elites políticas e econômicas, é necessário retrocedermos para entender como algumas das ideias se formaram. Assim como os principais temas e modos de discurso da vida polí- tica espanhola foram forjados sob pressões múltiplas de uma grande conjuntura histórica, também o pensamento político inglês adquiriu padrões arquetípicos num momento análogo de organização e reo- rientação nacional. Por isso ao explicar os temas característicos de ThomasHobbes (1588-1679) e John Locke (1632-1704), para citar os dois nomes mais destacados, devemos estar atentos à influência condicionante de pelo menos quatro revoluções: a científica, a reli- giosa, a comercial e a política. (MORSE, 1988, p. 60) A citação anterior nos ajuda a entender que um grande diferencial entre a Inglaterra e as nações ibéricas reside nas diferentes formas como essas nações formaram em seus estados um determinado tipo de pensa- mento político, determinante para moldar a cultura política de seus habi- tantes. Isso é decisivo para a compreensão da mentalidade daqueles que migraram para a América em busca de um sonho específico. É necessário refletirmos sobre as razões tradicionalmente apontadas como diferenciais para a compreensão da colonização inglesa na América. Durante muito tempo, a historiografia falou sobre “negligência salutar” para diferenciar os processos de colonização entre as Treze Colônias e as colônias portuguesas e espanholas. Esse conceito não só ocupou alguns trabalhos historiográficos como teve eco significativo nos livros didáti- cos de História, tornando essa expressão praticamente de senso comum quando tratamos da história dos EUA. De acordo com essa perspectiva, a maior capacidade de acumulação de riquezas nas Treze Colônias – e, em consequência, um maior desen- volvimento econômico – aconteceu diante do fraco controle do território colonial pela metrópole inglesa. Nesse período, a Inglaterra enfrentou uma História da América Independente e Contemporânea – 32 – série de dificuldades para manter um grau de controle similar ao exercido por Portugal e Espanha. Se observarmos do ponto de vista comparativo, o modelo ibérico, em um primeiro momento, constituiu instituições muito mais rígidas do que as inglesas. Ainda assim, esse processo histórico vai além desses elementos. A constituição de um pensamento e de uma cultura política peculiar foi decisiva no perfil da colonização inglesa nas Treze Colônias. Antes de pensarmos na suposta “negligência”, é necessário entendermos: o perfil de estado que foi constituído na Inglaterra teve reflexos inevitáveis nas Treze Colônias. O perfil constitucional da Inglaterra influenciou a ideia de autogoverno4, ou seja, um governo cujo os interesses do indivíduo e sua autonomia tivessem grau de relevância – o carro-chefe da administração das Treze Colônias. Nesse caso, ideais de liberdade tiveram muito mais efeito do que a incapacidade de a Inglaterra ser metrópole diante das dificuldades de man- ter o pacto colonial e exercer fiscalização rígida dos fluxos de mercadoria e recursos. Do ponto de vista cultural, o fenômeno do calvinismo ajudou a consolidar um modelo de elite política e econômica razoavelmente dinâ- mica. No caso da colonização inglesa, um tipo específico de calvinismo – o puritanismo dos peregrinos – foi decisivo para a consolidação do desen- volvimento econômico das Treze Colônias. O puritanismo diz respeito a uma visão extremamente radical do ideal protestante calvinista, no qual preceitos morais eram exacerbados. Isso teve impacto significativo na vida das pessoas, incluindo a forma de se comportar em relação ao trabalho. A exortação do apóstolo a “se segurar” no chamado recebido é interpretada aqui, portanto, como dever de conquistar na luta do dia a dia a certeza subjetiva da própria eleição e justificação. Em lugar dos pecadores humildes a quem Lutero promete a graça quando em fé penitente recorrem a Deus, disciplinam-se dessa forma aqueles “santos” autoconfiantes com os quais toparemos outra vez na figura dos comerciantes puritanos da época heroica do capitalismo, rijos como aço, e em alguns exemplares isolados 4 Nesse contexto, estamos tratando de uma dimensão de autogoverno do século XVII. – 33 – Antecedentes históricos dos processos de independência das Américas do presente. E, de outro lado, distingue-se o trabalho profissional sem descanso como o meio mais saliente para se conseguir essa autoconfiança. (WEBER, 2009, p. 70, grifos do original) No caso das palavras de Weber, devemos entender o apóstolo no calvinismo como o indivíduo comum e imbuído de uma missão espiritual de grande responsabilidade. A ele, não há espaço para o lamento e dor, apenas para a redenção que, diferentemente da do pecador, nasce do tra- balho e da obstinação. Esses elementos ultrapassam a moral e chegam à ética. Essa percepção de missão como elemento decisivo, inclusive para a salvação, é o que constituirá a ética desses calvinistas. Assim, por meio desse rigor, constituirão sua força. A ética dos calvinistas que migraram para as Treze Colônias é parte fundamental da compreensão desse processo. Não se trata, porém, de abandonar outras matrizes explicativas. Apenas as mentalidades não são suficientes para compreendermos o fenômeno colocado, mas são deci- sivas e precisam ser lembradas. O fundamento determinante do purita- nismo, portanto, é o ascetismo, assim definido: Em grego, a palavra áskesis quer dizer “exercício físico”. Ascese, ascetismo ou ascética é o controle austero e disciplinado do pró- prio corpo através da evitação metódica do sono, da comida, da bebida, da fala, da gratificação sexual e de outros tantos prazeres deste mundo. [...] [Há] dois tipos principais de ascese: a ascese do monge, que se pratica “fora do mundo”, chamada “extramundana”, e a ascese do protestante puritano, que é “intramundana” e faz do trabalho diário e metódico um dever religioso, a melhor forma de cumprir, “no meio do mundo”, a vontade de Deus. É por isso que [...] as formas puritanas de protestantismo recebem o rótulo de “protestantismo ascético”. (WEBER, 2009, p. 219) Os colonos que migraram para a América tiveram como missão fazer da terra o “paraíso” por meio de uma ética incansável de trabalho – sus- tentada pela certeza de predestinação a fazer da América uma nova terra livre dos “pecados” que haviam tomado conta da Inglaterra. O pecado da Inglaterra estava essencialmente em abrir mão do ideal de governo justo. De alguma maneira, era como se a Coroa tentasse “roubar” o paraíso, a terra prometida desses colonos. História da América Independente e Contemporânea – 34 – Figura 1 – Mapa das Treze Colônias. A figura dá uma dimensão da diversidade e magnitude territorial, fatores que ajudarão a compreender a independência dessas colônias, assim como seus desdobramentos, como a Guerra da Secessão. Fonte: National Atlas of the United States/Wikimedia Commons. Ao longo do território das Treze Colônias, instalou-se uma série de companhias comerciais submetidas à Coroa inglesa. Elas tiveram como responsabilidade a exploração do território, incluindo aí seu desbrava- mento. A atividade comercial foi decisiva para a constituição de uma elite local voltada a um projeto de desenvolvimento amplo, embora uma cisão – 35 – Antecedentes históricos dos processos de independência das Américas permanecesse clara: a divergência entre os colonos do Norte e Sul em relação à abolição da escravatura. Em síntese, o caráter do processo histórico das Treze Colônias se destaca essencialmente pela conjunção entre o perfil ético-religioso de seus habitantes e a relação estabelecida com uma colônia que, embora nem tão negligente, não detinha um projeto de colonização tão complexo e controlador como o dos países ibéricos. Isso trará outro elemento decisivo: a constituição e a circulação de ideias de cunho liberal acontecerá de maneira mais ampla e radical na América Anglo-saxônica, diferentemente do perfil das ideias mais con- servadoras do Iluminismo português, da Universidade de Coimbra, que circularam no Brasil. Parte dessa matriz explicativa ficará mais clara na próxima seção, na qual traçaremos comparações possíveis e necessárias. 2.3 Possibilidades comparativas Seria tentador insistirmos na ideia de uma comparação meramente dicotômica. Tradicionalmente, a comparação costuma começar por cons- truir um discurso de culpa depreciativa sobre os que noscolonizaram. Tendemos a tratar como negativa toda a tradição ibérica, raiz de nosso atraso, e enaltecer toda tradição inglesa, origem do sucesso dos Estados Unidos da atualidade. Embora seja impossível nos desvencilharmos do presente em nossas análises históricas é importante não cairmos nos riscos da teleologia, ou seja, de induzirmos nosso olhar sobre o fenômeno totalmente influencia- dos pelos acontecimentos posteriores. Comparar nos leva à necessidade de buscar os elementos mais complexos, ao contrário dos que parecem óbvios. Já nos alertaram alguns historiadores: Por que os Estados Unidos são tão ricos e nós não? Essa pergunta já provocou muita reflexão. Desde o século XIX, a explicação dos norte-americanos para seu “sucesso” diante dos vizinhos da américa hispânica e portuguesa foi clara: havia um “destino mani- festo”, uma vocação dada por deus a eles, um caminho claro de História da América Independente e Contemporânea – 36 – êxito em função de serem um “povo escolhido”. No Brasil sempre houve desconfiança sobre a ideia de um “destino manifesto” que privilegiasse o governo de Washington. Porém, muito curiosa- mente, criou-se aqui uma explicação tão fantasiosa como aquela. A riqueza deles e nossas mazelas decorreriam de dois modelos his- tóricos: as colônias de povoamento e as de exploração. (KARNAL et al., 2007, p. 21) Um bom começo seria, portanto, pensarmos se as narrativas expli- cativas construídas dizem o suficiente sobre esses processos históricos. A ideia de uma América ibérica pobre devido a seu passado colonial e uma América Anglo-saxônica rica pela mesma razão não é capaz de fornecer respostas adequadas. Em 1492, os espanhóis chegaram à América e, em 1500, os portugue- ses chegaram ao Brasil e iniciaram o processo de colonização. Ao longo dessas décadas, principalmente por volta de 1530, começava a ser consoli- dado um modelo administrativo relativamente complexo de domínio sobre o território. É importante não perdermos de vista que Portugal e Espanha eram até então grandes potências mundiais. O século XVI foi de desenvolvimento do modelo colonial e de con- solidação de ambas as nações como protagonistas graças às riquezas advindas de suas possessões além-mar. Esses elementos econômicos são relevantes para entendermos as mudanças que se desenhavam no mundo naquele momento, mas não suficientes. Do ponto de vista comparativo, é necessário pensarmos desde a con- juntura histórica que antecede o processo de colonização até o perfil educa- cional e cultural dos membros da elite, com o objetivo de entendermos parte de suas ações. As transformações do século XVII, tanto políticas quanto culturais e religiosas, deram um novo tom para o papel de nações como a Inglaterra. Os efeitos da reforma protestante, a consolidação de um modelo político advindo de processos históricos como a Revolução Gloriosa e as marcas deixadas por anos de lutas pelo controle de poder central. Isso nos ajuda a construir uma comparação com o que vimos. Nas seções anteriores deste capítulo, portugueses e espanhóis destacavam-se pela cen- tralização de seus reinos e a constituição de um estado forte e organizado, propiciando assim a expansão ultramarina. Ambas as nações foram capazes – 37 – Antecedentes históricos dos processos de independência das Américas de construir estruturas coloniais relativamente complexas que davam conta do domínio e da exploração de um território muito extenso. Isso sem contar a multiplicidade de atores envolvidos, desde europeus, indígenas, africanos, clérigos, homens livres e toda sorte de pessoas colocadas em um território hostil. Ainda assim, o empreendimento colonial teve sucesso. É impossível acreditarmos que Portugal e Espanha não tinham virtudes civilizatórias. Ao longo do século XVIII, Portugal buscou dar resposta aos movimen- tos políticos que tomavam conta da Europa e eram embasados no pensamento Iluminista. Esse foi o papel do Marquês de Pombal. Ele buscou uma série de reformas políticas e educacionais na tentativa de modernizar Portugal. Nesse processo comparativo, não podemos nos limitar à busca de vantagens ou desvantagens simplesmente. Processos históricos são muito mais complexos do que uma simples dicotomização pode apontar. Assim, é importante, ao compararmos a trajetória histórica de diferentes nações, questionar as ideias de senso comum com a finalidade de aprofundarmos os fatores críticos. A comparação nos remete à ideia de investigação e de teste. Ao colo- carmos processos históricos parecidos lado a lado, podemos testar hipó- teses e desafiar nossa capacidade explicativa. Por exemplo, se o Brasil tivesse sido colonizado por ingleses, seríamos uma nação desenvolvida como os Estados Unidos? Mas e se observarmos uma nação como a Jamaica? Ela recebeu colonização inglesa, mas conseguiu desenvolver-se da mesma maneira que as outras? E se pensarmos no Haiti, que teve uma fase de colonização espanhola e outra francesa, mas passa por tantos desa- fios? A situação do Brasil e dos demais países de colonização espanhola na atualidade reflete, por exemplo, a magnitude dos impérios constituídos por Portugal e Espanha outrora? Dessa questão, podemos trazer uma que se relaciona: todos os problemas de nosso desenvolvimento econômico, político e social podem ser relacionados exclusivamente ao nosso passado colonial? A mesma pergunta pode ser feita para os Estados Unidos: todo êxito deriva da ética protestante dos peregrinos e do autogoverno das Treze Colônias? Ou outros fatores foram decisivos? Ainda estamos longe de dar uma resposta definitiva para as diferenças marcantes entre as Américas em seus processos de colonização. Um bom História da América Independente e Contemporânea – 38 – caminho para a reflexão histórica pode ser com base em questionamentos críticos e reflexivos. Conclusão O debate sobre o processo histórico que cerca as independências das Américas tornou-se mais complexo para os historiadores e nos desafia a pensar em novas questões, oferecendo novos questionamentos. Procuramos apontar a superação de dicotomias históricas arraigadas ao senso comum, como a de povoamento/exploração, determinantes para outra noção binária, a de desenvolvimento/subdesenvolvimento. Dito isso, a reflexão de Richard Morse (1988, p. 21) nos remete à necessidade de pensarmos cada vez mais em projeção histórica. O autor problematiza o hábito rotineiro de discutirmos as civilizações das Américas coloniais sem pensarmos nas pré-histórias europeias, como ele mesmo chama. Entender a configuração institucional, política, cultural, filosófica dessas nações é determinante para compreender as colônias em suas peculiaridades. Ao nos debruçarmos sobre os antecedentes históricos, buscamos menos relações automaticamente causais e mais possibilidades explicati- vas que possam nos remeter a novas perguntas. Essas distinções não podem ser limitadas a respostas prontas, pois existem caminhos para entender de maneira mais complexa os processos de independência que guardam em si também uma série de elementos distintos e, consequentemente, de enorme complexidade, assim como os processos coloniais. Ampliando seus conhecimentos É comum nos habituarmos a tratar o processo de independência da América portuguesa. Porém, isso acaba nos afastando de detalhes impor- tantes sobre os processos históricos que envolvem a independência das – 39 – Antecedentes históricos dos processos de independência das Américas colônias espanholas. O texto a seguir, da historiadora Maria de Fátima Gouvêa, é um marco na história política e pode nos ajudar a entender de maneira mais aprofundada alguns elementos sobre as independências e como podemos relacioná-las. Revolução e independências: notas sobre o conceito e os processos revo- lucionários na América espanhola (GOUVÊA, 1997, p. 275-276) Os movimentos de independência hispano-americanos nunca haviam sido plenamente associados à ideia de revolução até muito recentemente,apesar de o termo aparecer com grande frequência na historiografia tradicional sobre as independên- cias no continente. No conjunto das Américas, a problemática da revolução no contexto das independências sempre pareceu reservada ao caso clássico da “Revolução Americana” – a das Treze Colônias, em fins do século XVIII – e ao caso-limite do Haiti, no qual a articulação entre revolução, independência e abolição imprimiu características sobremodo radicais ao pro- cesso. No caso hispano-americano, no entanto, “revolução” quase sempre não foi mais do que uma palavra, indicando antes uma ausência e levando a uma história contada pela ótica do continuísmo e do conservadorismo. Foi apenas nos últimos anos que, sob a influência de estudos mais recentes sobre o Antigo Regime e mais particularmente sobre a Revolução Francesa, novos rumos foram percebidos nesse processo, favorecendo a elaboração de uma história mais dinâmica da desagregação do mundo colonial hispano-americano. História da América Independente e Contemporânea – 40 – Atividades 1. Um dos elementos fundamentais para a compreensão do processo das grandes navegações europeias e, consequentemente, da colo- nização das Américas, é entendermos o pioneirismo das nações ibéricas. Aponte as razões que explicam esse pioneirismo e suas eventuais consequências práticas. 2. Tradicionalmente, a historiografia brasileira costuma explicar o modelo colonial do nosso país por meio da transferência de ri- quezas direto da colônia para a metrópole. Alguns historiadores, porém, apontam que havia algum tipo de acúmulo “drenado” para um certo projeto de arcaísmo. Explique. 3. Muitas vezes, ao compararmos a colonização da América anglo- -saxã com a da América ibérica, é recorrente falarmos da negligên- cia salutar. Algumas diferenças político-culturais, porém, têm se tornado importantes para essa explicação. Aponte-as. 4. Do ponto de vista da metodologia historiográfica, como podemos apontar caminhos para esse processo comparativo de colonizações? Formação política e econômica: duas Américas em construção Neste capítulo, será traçado um panorama sobre o processo de colonização das Américas portuguesa, espanhola e anglo- -saxã, com maior ênfase nos aspectos das estruturas adminis- trativas constituídas e como elas foram determinantes para o processo de colonização. Na sequência, buscamos debater as características de interseção e distinção entre essas américas. Por fim, fecharemos com um debate acerca da atuação das elites locais e como suas características foram decisivas para o pro- cesso de desenvolvimento econômico da região. 3 História da América Independente e Contemporânea – 42 – 3.1 Modelos de exploração colonial O Pacto Colonial consistia essencialmente em uma relação desi- gual: a colônia teria de vender todos seus produtos exclusivamente para a metrópole, que, além de controlar os tributos, tinha total controle sobre preços. Diante disso, produtos manufaturados ou produzidos em outras regiões só poderiam ser comprados da metrópole. Além da questão eco- nômica, o pacto envolvia também o controle das demandas educacio- nais e culturais. Esse modelo ganhou especificidades em cada uma das Américas. No Brasil, ganhou força a partir de 1530, com a necessidade de exploração e proteção do território. O modelo de exploração colonial espanhol difere do modelo portu- guês. Os espanhóis chegaram ao continente em 1492 e iniciaram ao longo das décadas posteriores a formação de um sistema administrativo e de exploração. Basicamente, o diferencial dos espanhóis foi a subdivisão em vice-reinos (Rio da Prata, Peru, Nova Granada e Nova Espanha), cada um deles administrado por um vice-Rei e um capitão-geral, designados por gesto de confiança da Coroa espanhola. Acima de todos eles estavam o Conselho Real e os Supremos das índias. Os vice-reinos, portanto, eram unidades administrativas que tentavam dar caráter de organização, repro- duzindo a lógica de continuidade do território do reino na América. Na América espanhola, havia instituições similares às câmaras muni- cipais do Brasil – os cabildos coloniais, onde atuavam principalmente os criollos, filhos de espanhóis nascidos na colônia. Já nas instâncias supe- riores, o exercício de poder estava restrito aos chapetones, isto é, aos espanhóis de nascença (SCHWARTZ; LOCKHART, 2002). Figura 1 – Estrutura administrativa e social das colônias espanholas na América. Conselho Real e Supremo das Índias Vice-reinos (chapetones) Cabildos (criollos) Fonte: Elaborada pelo autor. – 43 – Formação política e econômica: duas Américas em construção Do ponto de vista econômico, essa estrutura política e administrativa constituída ao longo do século XVII garantiu a transferência de recursos, como metais preciosos e outros bens primários – fundamentais para o enriquecimento da metrópole espanhola. Do ponto de vista da mão de obra, um elemento diferencial entre a colonização espanhola e portuguesa precisa ser apontado: embora na América portuguesa a mão de obra indí- gena1 tenha sido usada, essa modalidade teve muito mais abrangência nas possessões espanholas. Se pensarmos especificamente nas colônias do Prata, onde atualmente estão situados os países Argentina, Paraguai e Uruguai, algumas peculia- ridades do processo de colonização, que tiveram efeitos substanciais na formação dessas nações, merecem destaque. Essa região foi motivo de intensos debates e posteriores conflitos entre Portugal e Espanha desde o início do processo de colonização. A região, entre os séculos XVI e XVIII, produziu insumos sob o domínio espanhol. A cidade de Assunção, no atual Paraguai, foi por muitos anos o centro comercial espanhol no novo continente. Isso mudou após a divisão territorial que deu origem à cidade de Buenos Aires e limitou o acesso ao mar nessa região. Apenas no século XVIII aconteceria a criação do vice-reino do Rio do Prata, abarcando as duas regiões. A colônia de Sacramento antecedeu a fundação de Montevidéu, onde atualmente está o Uruguai, e teve como prin- cipal peculiaridade a inserção da pecuária bovina já no século XVII. Do ponto de vista cultural, é importante lembrarmos: a partir do século XVII chegaram à região os Jesuítas – ordem católica com enorme tradição no processo educacional, atuante na profusão da fé católica e na manutenção dos ideais cristãos entre povos já convertidos. Assim, o cris- tianismo ganhou capilaridade nesse período pela atuação desses religiosos nas aldeias indígenas, por meio da catequese, e nos núcleos urbanos, por meio da educação formal. Diante disso, instalou-se um modelo de organização política que em muito se assemelhava ao reino (vide o uso da unidade administrativa 1 As duas formas de trabalho indígenas na América espanhola eram a mita e a encomienda. Na mita, especificamente, os índios eram sorteados para grandes jornadas de trabalho compulsó- rio. Já na encomienda os espanhóis dominavam tribos inteiras em suas regiões para o trabalho. História da América Independente e Contemporânea – 44 – vice-reino), uma intensa exploração comercial apoiada na extração de recursos e na diversificação da economia por meio da pecuária. Do ponto de vista das forças de trabalho, era um modelo de exploração indígena que ainda não havia sido desenvolvido em nenhuma região, personificado na mita e na encomienda. Antes de avançarmos especificamente na História das Treze Colônias, no intuito de pontuarmos os elementos fundamentais para a compreensão da América independente, algumas questões históricas são importantes. Embora a marca da colonização inglesa seja determinante na história dos Estados Unidos, os primeiros territórios foram ocupados pelos espanhóis, inclusive regiões de grande destaque, como o Texas e a Califórnia. Além dos espanhóis, houve também a presença de holandeses e franceses ao longo do território. Ao fim do século XV, ainda havia disputas territoriais e a presença de espanhóis
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