Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
UNIFG DIREITO ALAN VINICIUS DA SILVA RIBEIRO BRUNO DE SOUSA RODRIGUES BIANCA R. DOS SANTOS SILVA SERGIO J. DOS SANTOS RIBEIRO VILSON DA SILVA NUNES FICHAMENTO Guanambi – BA 2020 ALAN VINICIUS DA SILVA RIBEIRO BRUNO DE SOUSA RODRIGUES BIANCA R. DOS SANTOS SILVA SERGIO J. DOS SANTOS RIBEIRO VILSON DA SILVA NUNES FICHAMENTO Fichamento apresentado ao curso de Direito do Centro Universitário UNIFG, como um dos pré-requisitos para avaliação da disciplina de Direito Penal II. Professor: Júlio Boa Sorte Guanambi – BA 2020 GUNTHER, Klaus. O desafio naturalístico de um direito penal fundado na culpabilidade. Revista DireitoGV. 2019. A atual transformação do direito penal em um direito de segurança* pós- preventivo vem sendo acompanhada de um intenso debate sobre o princípio da culpabilidade. [...] o conceito jurídico--penal de culpabilidade é também objeto das atuais discussões sobre as possíveis implicações das mais recentes descobertas no campo da neurociência. [...] Wolf Singer, Gerhard Roth e Hans Markowitsch [...] vêm se posicionando contra o conceito de culpabilidade e contra qualquer pena sobre ele fundada [...] Wolf Singer chega [...] a sugerir a utilização de uma nova terminologia para o direito penal, [...] que façamos apenas um uso formal da palavra ‘responsabilidade’, sem que nos esqueçamos, contudo, de que, na verdade, estaríamos aqui tratando da ideia de ‘periculosidade’. (GUNTHER, 2019, p.1053). Nas páginas seguintes, analisarei criticamente o desafio naturalístico enfrentado por um direito penal fundado na ideia de culpabilidade, para, em seguida, adentrar nas relações pouco notadas que esse desafio mantém com a atual transformação sofrida pelo direito penal. (GUNTHER, 2019, p.1054). Quando colocados diante dos desafios postos pela neurociência, os penalistas acabam não reagindo de maneira uniforme. [...] o conceito jurídico de culpabilidade é [...] altamente controverso [...] Essa falta de consenso reflete-se no constante desenvolvimento de novas teorias – ora afirmando o livre-arbítrio, ora negando-o, ora mantendo sobre ele uma posição agnóstica [...] a culpabilidade penal, quando tomada em sentido amplo, pressupõe, entre outras coisas, a intencionalidade do agente – em regra definida positivamente pelas noções de dolo ou de culpa. [...] não estamos aqui diante de uma definição conclusiva [...] (GUNTHER, 2019, p.1055). Esse tipo de delimitação aplica-se com muita propriedade à determinação dos elementos que compõem o núcleo originário do conceito de culpabilidade, tal forma de delimitação pode ser claramente observada no plano do conceito jurídico-penal de culpabilidade em sentido estrito. (GUNTHER, 2019, p.1055). A vantagem de se utilizarem [...] definições negativas consiste no fato de que, [...] o legislador não precisa se vincular a um determinado conceito de culpabilidade, o que lhe evita ter de acatar uma resposta possivelmente problemática à questão do livre-arbí-trio. (GUNTHER, 2019, p.1056). [...] na medida em que a ausência de uma causa excludente de culpabilidade ou de uma causa de exculpação implica diretamente – e sem necessidade de qualquer fundamento extra – a aceitação de que o autor agiu culpavelmente, torna-se claro que, em direito penal, todo delinquente é tomado por culpável, a não ser que um déficit interno ou externo aponte na direção contrária. (GUNTHER, 2019, p.1056). “No processo penal, o acusado é tido sem mais como culpado, a não ser que circunstâncias específicas tornem questionável tal suposição.” (GUNTHER, 2019, p.1056). [...] a culpabilidade penal é aquilo que, em certo sentido, ‘sobra’ quando nenhuma das exceções legais acima mencionadas estão presentes. Neste sentido é que Herbert L. A. Hart definiu a responsabilização no direito a partir do conceito de atribuição passível de refutação (anfechtbare Zuschreibung). (GUNTHER, 2019, p.1057). “Um agente é culpável sempre que não puder refutar, com base em circunstâncias excepcionais, a responsabilidade que prima facie lhe foi atribuída.” (GUNTHER, 2019, p.1057). “O direito penal e o sistema de justiça criminal operam com uma espécie de presunção de normalidade, que pode ser refutada recorrendo-se a circunstâncias excepcionantes.” (GUNTHER, 2019, p.1057). “Aquele que não sofre de um dos déficits já mencionados ou não se encontra em uma situação extremamente difícil no momento do ato é tomado como capaz de observar o direito e de evitar a lesão a um bem-jurídico.” (GUNTHER, 2019, p.1057). “[...] em regra tomamos a pessoa em questão como responsável por seus atos. Apenas quanto ela reage com um pedido de desculpas [...]” (GUNTHER, 2019, p.1057). “[...] não se trata de um conjunto taxativo, que compreenderia todos os elementos cuja ausência implica uma atribuição de culpabilidade.” (GUNTHER, 2019, p.1058). “[...] a que a presunção de normalidade, até aqui, parece legitimar-se apenas com base em elementos empíricos. [...] Não obstante isso, essa presunção de normalidade possui também um sentido normativo [...]” (GUNTHER, 2019, p.1059). “[...] a constatação empírica de determinada deficiência ou de determinado distúrbio não é capaz de fornecer uma resposta suficiente para a pergunta acerca da imputabilidade de um autor.” (GUNTHER, 2019, p.1060). [...] sentido normativo da presunção de normalidade mostra-se também na aplicação do direito ao caso concreto. Do fato empírico de que determinadas capacidades são encontradas na maioria da população, nós extraímos implicitamente uma norma que exige do indivíduo um comportamento de acordo com esse padrão majoritário. (GUNTHER, 2019, p.1060-1061). [...] tanto o lado empírico quanto o lado normativo da presunção de normalidade deixam claro que esta não se sustenta apenas de maneira contrafática. Capacidade de compreensão e capacidade de autocontrole são qualidades encontradas na maioria dos destinatários das normas [...] (GUNTHER, 2019, p.1061). Quem pertence a essa maioria, dispondo dessas capacidades, e apesar disso viola bens jurí-dicos alheios, é tratado de acordo com tal condição – isto é, como uma pessoa cujas capacidades não foram usadas como se podia e se devia. Nisto funda-se a possibilidade de se imputar culpabilidade penal. (GUNTHER, 2019, p.1061). “No caso das chamadas causas de exclusão de culpabilidade (menoridade penal, inimputabilidade e erro de proibi-ção inevitável), o autor é retirado total ou parcialmente do grupo majoritário dos capazes [...]” (GUNTHER, 2019, p.1061). “[...] as pessoas dotadas de capacidades normais não seriam tão determinadas quanto as que delas não dispõem? [...]” (GUNTHER, 2019, p.1062). Von Liszt definia a imputabilidade como sendo o reflexo de uma espécie normal de determinação, fundada na percepção e em motivos para ação [...] ‘imputável é todo ser humano mentalmente são e maduro, sem qualquer distúrbio de consciência. A essência da imputabilidade é formada, nestes termos, tanto por uma espécie normal de percepção quanto por uma motivação normal para o agir’ [...] portanto, o imputável é em seu comportamento tão determinado quanto o inimputável [...] a diferença entre eles consiste apenas no tipo e na forma de determinação incidente sobre o primeiro, que é tida comonormal, ao passo que a determinação que age sobre o último afasta-se sensivelmente do campo da normalidade. (GUNTHER, 2019, p.1062). “O imputável pertence à parcela dos homens capaz de ser determinada causalmente por valores, normas e ameaças de pena” (GUNTHER, 2019, p.1062). “O imputável pertence à parcela dos homens capaz de ser determinada causalmente por valores, normas e ameaças de pena seriam apenas um fruto do acaso.” (GUNTHER, 2019, p.1062-1063). No rumo [...] oposto ao tomado por Von Liszt, seguindo em direção a um indeterminismo, encontramos uma decisão do SuperiorTribunal de Justiça (Bundesgerichtshof– ‘BGH’) de 1952, versando sobre um caso de erro de proibição. Nela, sustenta-se que o fundamento para o juízo de culpabilidade estaria ‘na autodeterminação livre, responsável e moral de que dispõe o ser humano e que o torna capaz de se decidir a favor da legalidade e contra a ilegalidade’. (GUNTHER, 2019, p.1063). Esta tentativa do Superior Tribunal de definir positivamente o conceito jurídico-penal de culpabilidade, contudo, acabou não indo muito longe. Os juízes continuaram sem verificar se, em cada caso concreto, todos os elementos do conceito de culpabilidade postos na definição do Tribunal estavam ou não presentes no acusado. (GUNTHER, 2019, p.1063). “[...] com essa definição positiva também não é possível pôr fim à controvérsia científica em torno do conceito de culpabilidade e de sua relação com o livre-arbítrio.” (GUNTHER, 2019, p.1063). Diante desta contradição, muitos autores acabam adotando um posicionamento agnóstico [...] Roxin – que declaradamente se reconhece como agnóstico – sustenta que ‘a culpabilidade deve ser entendida como agir ilícito apesar da idoneidade do autor para ser destinatário de normas’ [...] não se quer dizer mais do que a capacidade psíquica de uma pessoa para se controlar, isto é, para reagir psiquicamente a normas de modo a incluí-las em seu mecanismo de ação [...] ‘um posicionamento normativo cujo valor social independe da problemática do livre-arbítrio, tanto a apresentada pela teoria do conhecimento como a posta pelas ciências naturais’ [...] (GUNTHER, 2019, p.1064). Esta linha argumentativa, contudo, permanece exposta a uma relevante objeção: para um determinista consequente, continua em aberto saber qual é a vantagem de se perceber o caráter normativo dessa decisão sobre a normalidade, no momento em que o livre-arbí-trio passa a ser visto pela neurociência como uma completa ilusão. (GUNTHER, 2019, p.1065). Como culpável, então, é tido todo delinquente cuja punição for necessária para se alcançar determinado fim socialmente desejado [...] Todo o sentido da responsabilização jurí-dico-penal ou da atribuição de culpa esgota-se neste contexto. [...] O reconhecimento de tal ‘erro de proibição’ como uma causa excludente de culpabilidade deriva, portanto, não de uma descoberta da neurociência, mas sim de uma consideração normativa, segundo a qual uma infra-ção assim cometida é inofensiva para o funcionamento de uma sociedade moderna [...] (GUNTHER, 2019, p.1065). “Com desvinculação da culpabilidade em relação à liberdade, atingimos um estado no qual aquela é sustentada apenas por seu ‘valor’ ou por sua função social.” (GUNTHER, 2019, p.1066). [...] Eduard Kohlrausch caracterizou essa forma de presunção generalizada de capacidade média para cada delinquente individual em uma famosa expressão, segundo a qual, ‘com isso, a capacidade individual torna-se uma ficção necessária ao Estado’. O fundamento dessa ficção residiria não mais na liberdade da pessoa, mas sim nos fins e nas exigências funcionais do Estado e da sociedade a serem alcançados e satisfeitos pela imputação de responsabilidade. [...] Kohlrausch, no entanto, deixou bem claro o que isso significa para o indivíduo delinquente: “[...] o autor torna-se vítima da coletividade, ele passa a ter de sofrer no interesse dela”. (GUNTHER, 2019, p.1066). [...] também nesta concepção a irresolúvel questão da liberdade parece ressurgir como visitante não convidada. E isso em pelo menos dois sentidos. Em primeiro lugar, a sociedade não pode a seu bel-prazer ‘tornar vítimas’ os seus delinquentes. [...] uma pena funcional deve ser capaz de manter uma relação de adequação com o fato e com o grau de culpabilidade do indivíduo. (GUNTHER, 2019, p.1066). “[...] a dependência do conceito de culpabilidade em relação a seu valor social deixa claro que a determinação do ‘se’ e do ‘como’ da culpa penal constitui uma decisão que requer fundamentação social [...] uma decisão que para o legislador é política.” (GUNTHER, 2019, p.1067). “Em 1898, von Liszt ainda podia afirmar: ‘[...] nós, a classe dominante, determinamos hoje quem deve ser apenado e quem não deve. Nós tomamos os deficientes mentais como penalmente inimputáveis’.” (GUNTHER, 2019, p.1067). “[...] percebe-se que no conceito de culpabilidade está refletida a própria autocompreensão normativa da sociedade.” (GUNTHER, 2019, p.1067). Em suma: tanto a presunção de normalidade de compreensão e de autocontrole, praticada na atribuição de culpabilidade, quanto a definição sobre as condições que a excepcionam e em que medida isso deve acontecer, são questões que apenas podem resultar de um processo de crítica e de legitimação públicas. (GUNTHER, 2019, p.1068). [...]um conceito de culpabilidade invariavelmente orientado pela ideia de liberdade não se deixa afastar nem por posições deterministas, nem por posições agnósticas. [...] restam para o direito penal e para a ciência jurídico--penal, fundamentalmente, três formas de lidar com os argumentos e as conclusões fortemente deterministas da neurociência. (GUNTHER, 2019, p.1068). (1) O primeiro dos caminhos consiste em deixar tudo como está, procedendo-se apenas a uma revisão – com base nos atuais conhecimentos da neurociência e das demais ciências naturais – dos critérios constantes do § 20 do Código Penal Alemão [...] Seguindo por este caminho, o direito penal não se desconecta da prática cotidiana de atribuição de liberdade e de responsabilidade, tal como inicialmente mencionada quando tratamos do modelo de “regra e exceção” presente em nossa sociedade. [...] Tomado nestes termos, o direito penal apenas elabora e formaliza os critérios de imputação e os procedimentos através dos quais se decide sobre a culpa do delinquente. Conta a favor deste caminho o fato de que ele coincide tanto com nossa autocompreensão socialmente praticada como com as estruturas, as instituições e os princípios básicos que constituem uma sociedade organizada [...] (GUNTHER, 2019, p.1068). (2) O segundo caminho consiste em se engajar nas controvérsias travadas entre a neurociência e a filosofia em torno do indeterminismo e do determinismo, com o objetivo de, eventualmente, revisarmos o conceito de culpabilidade. Neste plano, os conceitos dogmá-tico-penais de problemática interpretação no âmbito da presunção de normalidade mostram-se como reflexo de debates filosóficos envolvendo o livre-arbítrio. (GUNTHER, 2019, p.1069). [...] o caminho mais promissor parece ser seguido por aqueles que não negam que nós vivemos em um mundo determinado e causalmente cerrado, mas que descrevem o tipo e os termos dessa determinação do ser humano por sua própria mente, de forma mais ambiciosa e complexa do que o fazem os neurocientistas. (GUNTHER, 2019, p.1070). Fundamentalmente, trata-se aqui da tese segundo a qual o agir livre é determinado por razões que, é verdade, surgem no âmbito de uma cadeia de causa e efeito, mas que, por outro lado, não se resumem completamente a esta, nem constituem seu mero epifenômeno – estando, portanto, para as relações causais assim como a fumaça está para o fogo. (GUNTHER, 2019, p.1070). Outras propostas chamam ainda a atenção para os diferentes contextos em que fazemos uso, por um lado, de explicações naturalísticas com base em leiscausais e, por outro, de atribuição de responsabilidade a pessoas atuantes; esses jogos de linguagem poderiam conviver sem conflitos apenas porque cada um deles desempenharia uma função distinta. (GUNTHER, 2019, p.1070-1071). [...] possivelmente, os cérebros precisem ser programados culturalmente para responder a razões; contudo, não devemos esquecer que as pessoas se movimentam no plano das razões de modo diverso aos cérebros em suas relações de causa e efeito. (GUNTHER, 2019, p.1071). As consequências dessa tese para o conceito jurídico-penal de culpabilidade são algo ainda indefinido; no entanto, provavelmente não derivaria daí nenhuma revisão fundamental. (GUNTHER, 2019, p.1071). (3) O terceiro e último caminho consiste em extrair das teses fortemente deterministas formuladas pela neurociência a consequência radical de abolir do direito penal o conceito de culpabilidade, substituí-lo por categorias neurocientíficas, e pôr fim também à pena, de modo que, em seu lugar, intervenham sobre os indivíduos perigosos medidas de proteção da sociedade. (GUNTHER, 2019, p.1071). As implicações decorrentes de se seguir por este terceiro caminho são [...] temidas por grande parte dos neurocientistas. [...] Partilhar de um juízo de culpabilidade centrado na ideia de livre-arbítrio seria, neste sentido, tão equivocado quanto acreditar que determinadas pessoas são dotadas de poderes malignos ou tomadas por maldições capazes de espalhar o mal no mundo. (GUNTHER, 2019, p.1071-1072). Não é por acaso que a neurociência da atualidade vem acompanhada de uma polí-tica criminal que busca as causas e os motivos da criminalidade exclusivamente no delinquente, voltando-se contra qualquer explicação sociológica ou psicológica desse fenômeno. (GUNTHER, 2019, p.1072). “[...] o humanismo esclarecido dos neurocientistas vai, contudo, mais além: o que se questiona é a própria possibilidade de formular uma justificação.” (GUNTHER, 2019, p.1073). Neste momento separam-se os caminhos da neurociência e da ciência jurídico-penal crí-tica. Se o próprio paradigma de homem livre é renegado, então realmente ninguém mais pode ser penalizado. E se a pena não pode mais se fundar sobre um juízo de culpabilidade, então restaria como fim da sanção somente a proteção da coletividade. (GUNTHER, 2019, p.1073). Essas exigências de proteção da coletividade poderiam, ainda, variar fortemente, a depender das condições sociais e do clima político do momento. Dependendo de quão ameaçada a coletividade se sentisse diante de um infrator, a pena poderia ser maior ou menor. (GUNTHER, 2019, p.1073). Apesar dos mencionados esforços de revisão do atual paradigma de homem livre, provavelmente os recentes desafios postos por uma neurociência marcada pelo determinismo não alterarão substantivamente nem o direito penal nem a práxis do sistema de justiça criminal. (GUNTHER, 2019, p.1074). O combate legislativo à criminalidade organizada e à criminalidade econômica, bem como a luta contra graves delitos sexuais e contra o terrorismo internacional, acabou deslocando o equilíbrio existente entre liberdade e segurança, típico de um Estado de direito, dando clara preponderância a este último lado da balança (GUNTHER, 2019, p.1074). Esse direito penal pós-preventivo retira os delinquentes da práxis cotidiana de presunção de capacidades de compreensão e autocontrole, capaz de ser refutada em casos excepcionais. A determinação diferencial entre o comportamento normal e o anormal torna-se obsoleta, pois o combate a perigos intervém muito antes de que ela possa ser feita. (GUNTHER, 2019, p.1075). Quando os seres humanos são tomados somente como potenciais fontes de perigo sujeitas à vigilância estatal, interessam apenas aquelas circunstâncias determinadoras de comportamento, das quais podemos extrair algum prognóstico acerca de potenciais danos. É esta a lógica da prisão preventiva. (GUNTHER, 2019, p.1076). O indivíduo perigoso é tomado, assim, como mero complexo de conexões perigosas, no qual o Estado intervém por meio de contrafatores causais, quando não por meio do simples encarceramento em nome da proteção da coletividade contra futuros atos criminosos. (GUNTHER, 2019, p.1076). “Jakobs chamou essa despersonalização dos delinquentes (potenciais) de “direito penal do inimigo” [...] Jakobs chamou essa despersonalização dos delinquentes (potenciais) de “direito penal do inimigo”.” (GUNTHER, 2019, p.1076). Estes são, em resumo, os componentes fáticos e normativos da presunção de normalidade, já acima mencionados, e que estão na base do conceito jurídico-penal de culpabilidade. Ao inimigo são negados tais componentes, posto que ele não é reconhecido como pessoa livre (GUNTHER, 2019, p.1076-1077). Ao final deste percurso, pode parecer surpresa o fato de que os neurocientistas, com suas exigências político-criminais de abolição do conceito de culpabilidade, acabaram dando suporte para a transformação de um direito penal do cidadão em um direito penal do inimigo.47 Cada qual a partir de uma perspectiva diferente, tanto a revisão neurocientífica do paradigma de homem livre quanto a moderna política criminal de segurança acabaram chegando ao mesmo resultado: o delinquente não deveria mais ser tomado como uma pessoa dotada de liberdade e de capacidade de compreensão e autocontrole, mas sim deveria ser visto como um feixe de causas e efeitos sobre o qual o próprio Estado deveria intervir causalmente, em vista de alcançar determinados fins. Diante do exposto, constitui uma trágica ironia, pouco explorada pela neurociência, o fato de que seus representantes aceitem de forma tão submissa este resultado e o defendam em nome de uma forma mais humana de lidar com aqueles que cometeram uma infração penal. (GUNTHER, 2019, p.1077).
Compartilhar