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MORAES, Carlos Antonio de Souza. O Serviço Social brasileiro na entrada do século XXI: Formação, trabalho, pesquisa, dimensão investigativa e a particularidade da saúde. 2016. 318f. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2016, p. 104 - 114. 2.2 Dimensão Investigativa: Concepções e Críticas Refletir a respeito da dimensão investigativa na formação profissional do assistente social no século XXI supõe analisar as determinações gerais da sociedade capitalista e, ao mesmo tempo, sinalizar que, se a compreendemos e a defendemos na lógica do Projeto profissional atual 1 , torna-se necessário criar reflexões que contribuam para que os profissionais compromissados com seus valores ético-políticos possam qualificar a dimensão interventiva. Assim, discutir a dimensão investigativa em estreita articulação com a dimensão interventiva, a partir de fundamentação teórica, ética, política e capacidade de análise, supõe caminhar na construção de um movimento de superação da histórica submissão embutida no perfil e postura do assistente social e abrir possibilidades de (re) construção de seu protagonismo profissional que, como já citado, só se edifica a partir da fecundação da capacidade crítica dos assistentes sociais. Uma primeira aproximação aos significados do termo dimensão investigativa pode indicar, no campo das aparências, que ele expressa uma unidade extensa, composta por diversos vetores que se relacionam em processos investigativos/indagativos. Compreende-se, assim, que a dimensão investigativa, em sua amplitude, é formada por dois elementos centrais e que devem obrigatoriamente compor o trabalho do assistente social: 1. Postura/atitude investigativa; e 2. Ação investigativa. Ambos embasados nas dimensões teórico-metodológica e ético-política profissional atual. 1. A postura/atitude investigativa é construída no contato direto com a realidade social/meio externo, que vai exigir análise de conjuntura, calcada em conhecimentos relativos à sociedade brasileira em tempos de mundialização do 1 A dimensão investigativa existe desde as protoformas do Serviço Social, ligada à compreensão e análise da realidade social “[...] sendo determinada pela sua natureza interventiva e pela sua inserção histórica na divisão sociotécnica do trabalho” (BOURGUIGNON, 2007, p. 16). capital e de “reconfiguração” de Estados Nacionais, na tentativa do desenvolvimento econômico e de elevação dos indicadores sociais. Além disso, traz a necessidade de o assistente social analisar as manifestações da “questão social” no cenário nacional, suas formas de enfrentamento por meio de políticas sociais públicas e privadas e as particularidades em seu local de trabalho. Para tanto, ela também se expressa na relação com os usuários, empregadores e demais profissionais, a fim de decodificar a realidade e romper a aparência dos fenômenos, que se manifestam de forma caótica, desconectados e que exigem respostas imediatas. A postura/atitude investigativa, portanto, pode ser caracterizada pela observação constante da realidade e atenção aos detalhes que a compõe, a curiosidade no trato dos fenômenos, a indagação e desconfiança articuladas ao respeito e não invasão à privacidade dos sujeitos. Isso supõe um profissional que se atualize, participe de eventos acadêmicos e coletivos que dizem respeito ao Serviço Social e sua área de atuação, acompanhe a produção de conhecimentos na área em que trabalha, relacione criticamente esses conhecimentos teóricos à legislação, normas, cultura e dinâmica institucional. Supõe um profissional que busque constantemente a segurança de seus valores ético-políticos e que compreenda o valor e a função social de seus posicionamentos nos espaços públicos da sociedade. Defende-se que a postura/atitude investigativa é fundamental em um cotidiano que se apresenta de forma fragmentada, contraditória e liquidificada. Necessária, porque esse mesmo cotidiano é capaz de oferecer informações de como ultrapassá-lo. Ou seja, o real se compõe e manifesta-se entre aparência e essência. Para captar a aparência, o bom senso, a intuição e o entendimento são elementos fundamentais. Já a essência supõe os fundamentos dessa realidade, a estrutura que a compõe e suas determinações, que precisam ser desveladas à luz de uma teoria crítica e que compreenda e analise sua dialética em sua “representação caótica” (KOSIK, 1976; MARX, 1983; CHAVES, 2014). Para Lefebvre (1991), o cotidiano pode ser pensado como “um campo e uma renovação simultânea, uma etapa e um trampolim, um momento composto de momentos [...] interação dialética da qual seria impossível não partir para realizar o possível” (p. 20). “Em sua trivialidade, o cotidiano se compõe de repetições: gestos no trabalho e fora do trabalho, movimentos mecânicos [...], horas, dias, semanas, meses, anos; repetições lineares e repetições cíclicas etc.”. (p. 24). “Ele se apresenta como o lugar do nascimento das contradições [...], o lugar das lutas entre sexos, gerações, grupos, ideologias” (p. 43). Nesse contexto, o cotidiano apresenta um dilema: trabalha-se para fortificar as instituições e ideologias, compreendendo-as como irredutíveis e consolidando o cotidiano em que essas estruturas se estabelecem ou mobiliza-se suas análises e ações a serviço de suas causas, dedicando-se a “mudar a vida”. A segunda opção tende a demonstrar os conflitos entre o racional e o irracional na nossa sociedade e na nossa época. “A análise crítica visa virar pelo avesso esse mundo em que os determinismos e opressões passam por racionais” (LEFEBVRE, 1991, p. 30). A postura/atitude investigativa se refere a uma primeira tentativa de aproximação crítica para construção dessa análise, por meio da inquietação com o caos da realidade, com suas manifestações, informações e dados. Supõe estar disposto a apreender e compreender o inesperado, aquilo que extrapola suas referências e o leva a ir além do absolutamente visível. Supõe a compreensão de sua aparência e a tentativa de ultrapassá-la, garantindo o compromisso com os usuários, com a qualidade dos serviços prestados à população, na perspectiva da construção do projeto ético e político profissional. Sabe-se, no entanto, que o cotidiano é marcado pela busca de soluções imediatas, em função das exigências postas para a própria sobrevivência. E essas soluções, em princípio, referem-se a: um atendimento médico; uma cesta básica; realização de um exame; acesso a um medicamento ou a um benefício; uma casa para morar; uma creche para deixar os filhos enquanto trabalha ou procura emprego; a retirada da rua, local em que se vive e não é adequado para se viver; uma passagem de volta para cidade de origem; uma instituição para abrigar um idoso em situação de abandono e/ou violência, dentre outros (JUNCÁ, 2012). A miséria, a fome, a violência, a falta de atendimento em serviços de saúde, muitas vezes exigem respostas imediatas, que garantam o acesso ao direito e promovam a sobrevivência digna dos sujeitos. Sem dúvidas, os assistentes sociais são pressionados por essa realidade, que pede socorro, desafiando-os em respostas urgentes. O problema é a imersão nesse imediato, a ponto de limitar as ações nas consequências, entendendo essa realidade como irredutível, distanciando-se de seus determinantes e restringindo o trânsito na aparência dos fenômenos (JUNCÁ, 2012). “É impossível captar o cotidiano como tal, aceitando, „vivendo-o‟ passivamente, sem fazer um recuo. Distância crítica, contestação e comparação caminham lado a lado” (p. 34). É preciso superar a alienação que prende o “homem cotidiano em problemas minúsculos”, “que transforma a pobreza material em pobreza espiritual, a consciência criadora [...] numa consciência passiva e infeliz” (LEFEBVRE, 1991,p. 40). Distanciando-se dos caminhos da crítica, do querer saber para o querer fazer ético e político, o assistente social afasta-se de mediações necessárias ao trabalho profissional e constrói um trabalho repetitivo, imediato e com características humanas, geralmente associadas à presteza e disponibilidade, mas que se mantém estagnado e cristalizado no campo do aprendizado e das descobertas para ação transformadora, embora, muitas vezes, ela permaneça em discursos associadas a concepções de democracia, cidadania e emancipação (JUNCÁ, 2012). O mergulho no imediato nos limita à manutenção de seus laços, banalizando o olhar, as percepções, as experiências e as possibilidades de decifrar a rede de relações reais que compõe a realidade. “Estranhar o familiar” supõe a necessidade de ultrapassar análises genéricas e superficiais. Nesse caminho, os estudos antropológicos de Da Matta (1978) e Gilberto Velho (1978, p. 39, grifos do autor) afirmam: “O que sempre vemos e encontramos pode ser familiar, mas não é necessariamente conhecido, e o que não vemos e encontramos pode ser exótico, mas, até certo ponto, conhecido”. Velho (1978, p. 40, grifos do autor) ainda continua: Dispomos de um mapa que nos familiariza com os cenários e situações sociais de nosso cotidiano, dando nome, lugar e posição aos indivíduos. Isto, no entanto, não significa que conhecemos o ponto de vista e a visão de mundo dos diferentes atores em uma situação social, nem as regras que estão por detrás dessas interações [...]. Posso estar acostumado [...] com uma certa paisagem social, onde a disposição dos atores me é familiar, a hierarquia e a distribuição de poder permitem-me fixar, grosso modo, os indivíduos em categorias mais amplas. No entanto, isto não significa que eu compreenda a lógica de suas relações. O meu conhecimento pode estar seriamente comprometido pela rotina, hábitos, estereótipos. O convite é que se assuma o estranhamento constante do familiar e a familiarização do que é exótico em nosso cotidiano de trabalho. Embora familiaridade traduza um tipo de apreensão da realidade e possa contribuir para a construção de conhecimento científico, ela não é sinônimo desse conhecimento. Em Lefebvre (1991, p. 44), isso é identificado quando o autor aponta a necessidade de se “revelar a riqueza escondida sob a aparente pobreza do cotidiano, descobrir a profundeza sob a trivialidade, atingir o extraordinário do ordinário”. Aqui, de acordo com Moraes, Juncá e Santos (2010), encontra-se um desafio para os assistentes sociais. Desafio que nem sempre é assumido, em nome de uma suposta experiência acumulada durante os anos de trabalho. Esse estranhamento é fundamental para que o assistente social enfrente tal desafio na tentativa de conhecer, de forma mais aprofundada, a matéria-prima de seu trabalho e, enquanto sujeito de suas ações, esteja consciente do que elas podem provocar nos processos sociais e nas múltiplas expressões da “questão social”. Assim, constroem-se possibilidades de ultrapassar a passividade e subalternidade também presentes nos estudos de Gramsci (1977) e analisados por Simionatto (2011). Para o autor, sair da passividade, deixar de ser massa de manobra dos interesses das classes dominantes, para a ação consciente, significa também buscar uma nova articulação entre teoria e prática, combatendo concepções mecanicistas e particularistas que encobrem o ser social. Nesse caminho, nota-se que a postura/atitude investigativa, pautada na análise do dia a dia, percorre cotidianamente o exame “do que”, “para que” e “como” se sabe/conhece, permitindo tecer indagações e reflexões. Enquanto trabalhadores assalariados, inscritos na divisão social e técnica do trabalho e dotados de estatuto intelectual, ela permite analisar os processos gerais de precarização do trabalho, condições e relações no cenário atual e as implicações para o contexto particular de trabalho do assistente social. Permite também fazer análise da política em que atua e como se concretiza na instituição de trabalho, por meio do orçamento para atendimento das demandas sociais dos usuários, dos discursos e práticas dos gestores e profissionais de modo geral, das posições que se confrontam, das relações de poder instituídas e em fase de se instituir, dos objetivos e prescrições institucionais e de suas vinculações ao Serviço Social, no sentido da imagem construída ou que desejam construir (gestores e demais profissionais) a respeito do Serviço Social naquela política de atuação, em confronto com a identidade que se deseja firmar naquele espaço de trabalho 2 . Além disso, a postura/atitude investigativa assegura uma análise do próprio Serviço Social na construção de seu trabalho profissional, avaliando os momentos de tentativa de avanços e conquistas de novos espaços, a criação de novas estratégias para aproximação crítica da realidade, as efetivas implicações da predominância feminina entre os assistentes sociais e em sua relação com os demais profissionais e gestão, além do momento estratégico para apresentação de propostas de trabalho com direcionamento para a defesa de direitos dos usuários. Dialeticamente, ela nos permite questionar: até que ponto o saber é superficial, generalista, rotulador? Foram construídos caminhos para apropriação intelectual da realidade que nos cerca? O que fundamenta a nossa escuta e nosso olhar? Quais as particularidades expressas em meu trabalho e como elas se movimentam no terreno da totalidade? Quem é a população usuária de nossos serviços? Como vive? Que experiências e representações têm construído? Quais as principais demandas que apresentam? Quais os principais determinantes dessas demandas na particularidade do território de atuação? Quais os desdobramentos dessas demandas no espaço institucional? Como a rede de serviços tem se organizado para atender às necessidades sociais dos sujeitos sociais? Como garantir o direito desses sujeitos e mobilizá-los para ação coletiva sem colocar em xeque nosso vínculo de trabalho? A rotina impregnada em políticas e instituições sociais não limita a um fazer repetitivo. O sujeito do trabalho profissional é aquele que, mesmo na condição de assalariado e tendo que responder requisições e interesses institucionais, vai além da competência permitida e se aproxima da competência crítica. Isso porque não se limita aos muros da empiria e nem adensa a tendência tecnicista, porque tem vontade ético- política, compromisso com o saber-fazer e insistência pelo aprendizado constante, visto que, segundo Netto (2009, p. 695), “[...] nenhum (a) assistente social pode pretender 2 Os estudos de Ortiz (2010, p. 142) indicam que existem “[...] vários elementos que compõem a imagem socialmente existente do Serviço Social, como o perfil voluntarista; a subalternidade; a exigência de respostas imediatas e geralmente limitadas ao nível da aparência da situação demandada; o primado dos valores morais do agente profissional sobre sua „especialização‟ técnica e a consequente desqualificação da teoria; dentre outros, parecem conviver com outros traços que apontam para a construção de uma nova autoimagem profissional – aquela do profissional que defende a luta por direitos sociais e reconhece seu papel e limites na divisão social e técnica do trabalho, presente no projeto profissional hegemônico na atualidade. Há, em nosso entender, um progressivo distanciamento entre os elementos que, tradicionalmente, compõem a imagem da profissão e aqueles que hoje atravessam o projeto e o perfil profissional a ele subjacente, redundando em um processo de metamorfose da imagem da profissão”. qualquer nível de competência profissional prendendo-se exclusivamente aos aspectos imediatamente instrumentais e operativos da sua atividade”. A postura/atitude investigativa não dependede recursos financeiros e materiais para sua realização (embora a falta ou precariedade desses recursos interfiram objetivamente em seu processo de construção, podendo fragilizá-la), mas depende de compromisso com o aprimoramento constante, de segurança dos princípios e valores éticos e políticos, de análise de realidade, de querer saber para a intervenção estratégica. Isso não supõe a “incorporação” de um “espírito” investigativo, porque a postura/atitude investigativa não se refere a algo sobrenatural e que contempla a sujeitos privilegiados por serem detentores de dons e capacidades específicas e/ou inerentes ao seu ser. Ao contrário, ela deve ser democrática, inerente ao trabalho de todo assistente social e, portanto, precisa ser ensinada na graduação em Serviço Social, a partir de problematizações da realidade social, por meio de participação em eventos científicos, debates de temas históricos e atuais, capazes de aguçar o olhar sensível, crítico, curioso e aberto a novas possibilidades, com clareza do “por que”, “para que” e “como” conhecer. Conhecimentos capazes de trazer significados para apropriação e não apenas para o entendimento, já que, segundo Maria Regina de Avila Moreira: “Conhecimento que não te traga algum significado, não é apropriado” (Depoimento, 2013). 2. Quando a postura/atitude investigativa é encarada como indissociável do cotidiano de trabalho profissional e articulada às competências, atribuições do assistente social, que se concretizam por meio dos instrumentos de trabalho (entrevistas, visitas domiciliares, laudos, informações, pareceres, encaminhamentos), estratégias de ação, projetos de intervenção, sistematização e análise de dados, de depoimentos e experiências de trabalho (GUERRA, 2009), na tentativa de compreender os nexos que compõem essa realidade, caminha-se na construção da ação investigativa, que não se dissocia da dimensão interventiva. Assim, torna-se possível afirmar que a ação investigativa supõe imediatamente a postura/atitude investigativa, mas a postura/atitude investigativa não necessariamente gera uma ação investigativa no plano imediato, mas é fundamental para a construção das ações investigativas e intervenções profissionais. Porém, tanto a ação investigativa quanto a postura/atitude investigativa devem estar pautadas nas dimensões teórico- metodológica e ético-política profissional do projeto do Serviço Social contemporâneo, e constituem o que se entende, neste estudo, por dimensão investigativa. Dessa forma, há o desafio de apreender e desvelar os limites e possibilidades presentes na dinâmica da vida cotidiana profissional (SUGHIRO, 1999). Para tanto, o hábito de anotações sistemáticas do cotidiano profissional pode se apresentar como base para a ação investigativa e capaz de gerar novas investigações, inclusive por meio de pesquisa em serviços (abordada na sessão 2.4.2). A sistematização dos dados 3 não deve ser entendida como um fim em si mesmo ou apenas como um documento que comprove e resguarde o assistente social quanto às ações realizadas em sua instituição de trabalho. Ela reúne um conjunto de informações e dados primários que asseguram um conhecimento preliminar do cotidiano, por meio de análise no sentido e tentativa de desvendamento do caos expresso pela realidade, compreensão de sua complexidade, identificação dos fenômenos presentes naquele período histórico e que marcam as demandas apresentadas à instituição de trabalho do assistente social. Assim, descrição, associação e comparação desses elementos, entre si e com a dinâmica societária, possibilitarão uma maior racionalização e objetivação do trabalho profissional, por meio de avanços na produção de conhecimentos, mediante diagnóstico da realidade e, provavelmente, irão sugerir seu aprofundamento, através de pesquisas e estudos, que também exigirão maiores investimentos em reflexão teórica e ético-política. Ao reunir, agrupar e analisar, com fundamentação teórico-crítica, os dados e informações assegurados no cotidiano profissional, o assistente social começa a construir artesanalmente as interconexões relativas ao tema estudado. Essa leitura, com base ético-política, torna-se fundamental e estratégica para a intervenção profissional, seja no sentido de problematizar as condições do trabalho profissional, seja para refletir a respeito da política em que atua, as demandas apresentadas pelo usuário à instituição e a construção de estratégias na tentativa de garantia de direitos dos usuários, tendo por norte valores vinculados à sociedade que se deseja. 3 “[...] a sistematização de dados (ou aspectos, traços, facetas) pertinentes a um fenômeno, grupo ou fenômenos ou processo (s) constitui um procedimento prévio e necessário à reflexão teórica. Vale dizer, os procedimentos sistematizadores, especialmente fundados na atividade analítica da intelecção configuram um passo preliminar e compulsório da elaboração teórica – sem, entretanto, confundir-se com ela” (NETTO, 1989, p. 141-142). De forma geral, a ação investigativa, resultado e geradora de sistematização e análise de realidade, é fundamental para o reforço e consistência da capacidade argumentativa do assistente social no diálogo com a chefia e demais profissionais. Mas a ação investigativa não pode se limitar à empiria e à tendência tecnicista a partir de um discurso que reproduz a realidade, os depoimentos dos usuários sem reflexão teórica e ético/política. Há necessidade de exercitar constantemente “o olhar rigoroso, crítico, atento”, buscando “o desvendamento crítico da realidade em análise” (MARTINELLI, 2005, p. 10). A esse respeito, destaca Maria Regina de Avila Moreira (Presidente da ABEPSS, gestão 2012-2014): [...] o assistente social tem que sistematizar o seu cotidiano, tem que transformar estes elementos, estes dados riquíssimos que tem em seu cotidiano [...] para disputas que vai fazer com as chefias, com as gestões, para as divergências que vão ter [...] E isso tem que ser da nossa formação. (Depoimento, dez. 2013). A entrevistada ainda destacou a seguinte experiência de trabalho no Estado de São Paulo, na década de 1980: Desde a reunião com a chefia, que eu ia naquela semana e eu nunca ia dizer assim: ‘eu acho que’, mas eu ia dizendo: ‘olha, essa semana eu atendi tantos por cento de famílias...’ isso faz toda a diferença para sua intervenção cotidiana, para o mestrado que eu vou fazer, para a pesquisa que eu vou participar, como seu eu quiser fazer no meu trabalho uma pesquisa mais profunda também faz toda a diferença. E isso é possível de desenvolver no nosso trabalho (Depoimento, dez. 2013). Dessa forma, a ação investigativa, que não se dissocia da postura/atitude investigativa, por meio de visitas domiciliares, entrevistas, contatos com outros profissionais, com a rede de serviços, observação sensível da realidade e sistematização dessas informações, torna-se fundamental para articulação de enfrentamentos necessários e cabíveis às manifestações da “questão social”, particularizadas no espaço de atuação. Assim, e se necessário, será possível a construção de alianças com outros trabalhadores capazes de questionar sua condição no interior da instituição, bem como a condição dos usuários, com destaque para aquelas situações em que as instituições não sabem responder a suas demandas e apelam para o encaminhamento para a rede de serviços, sem nenhuma perspectiva de inclusão. Além disso, pode contribuir para a construção de diálogo e negociação para reorientação dos serviços e da rotina dos atendimentos, em busca da ampliação do acesso e da qualidade deles; a identificação e discussão a respeito de demandas implícitas, determinantes da elevação quantitativa dos atendimentos institucionais; a criação de projetos de intervenção e a avaliação constantedos serviços prestados à população; o estudo mais aprofundado desses fenômenos, a fim de compreender suas singularidades, o que os particularizam no espaço social de atuação e o que os determinam no terreno da totalidade. Dessa forma, se no eixo técnico-operativo a ação investigativa formata as possibilidades de intervenções qualificadas, estratégicas e ricas subjetivamente, no plano ético-político assume o questionamento do naturalizado socialmente e investe no caráter organizativo e político de resistência, que questiona as organizações do trabalho, com atenção a situações de conflito, buscando em um primeiro momento, em articulação com outros profissionais, a defesa da segurança, proteção, dignidade e satisfação no trabalho, bem como o atendimento das necessidades sociais dos segmentos subalternizados. Isso tudo a partir de um conhecimento qualificado, trabalhado e analisado a partir do debate teórico e metodológico do Serviço Social contemporâneo. Ao articular competência e atribuição profissional à dimensão investigativa, chega-se à compreensão e defesa de que realizar uma visita domiciliar, preencher um cadastro para tentativa de inclusão do usuário em determinado benefício social, realizar entrevistas, construir laudos e pareceres sobre a matéria do Serviço Social supõe postura/atitude e ação investigativa. Ou seja, essa associação supõe um trabalho sério, atento, que examina e tenta captar a realidade em suas diferentes expressões. Supõe uma postura que indaga, quer saber as causas dos fenômenos, não culpabiliza, não julga, mas investiga as diversas determinações daquela mesma situação, que não se ancora em valores religiosos, não se prende ao conhecimento produzido pelo senso comum, não moraliza e rompe uma relação pautada em preconceitos e discriminações. Essa associação contribui para a ultrapassagem de significados exclusivamente burocráticos do fazer profissional, garantindo ao trabalho profissional cotidiano o lugar da produção de conhecimentos, que transpõe a simples reprodução do já produzido e subsidia os profissionais na construção de respostas qualificadas às demandas e necessidades da prática, bem como no avanço da construção de estratégias pedagógicas que medeiam o senso comum e a produção de conhecimentos (SUGHIRO, 1999). Nesse sentido, e ao defender que postura/atitude investigativa + ação investigativa constituem a dimensão investigativa que deve ser indissociável da dimensão interventiva, caminha-se no enfrentamento da ameaça à dimensão intelectiva do trabalho profissional, na perspectiva do atual projeto ético e político profissional do Serviço Social, visto que esse rumo teórico-metodológico e ético-político exige a ultrapassagem do fazer pelo fazer, aprisionados em interesses e ações imediatas. Ao contrário, conforme Iamamoto (2004), a tentativa é de decifrar a gênese dos processos sociais, suas desigualdades que se manifestam na realidade de trabalho dos assistentes sociais e que exigem estratégias de ação qualificadas para enfrentá-las. É na tentativa de manter viva a dimensão intelectiva do trabalho profissional que será analisado, a seguir, qual o “lugar” que a dimensão investigativa tem assumido na formação profissional do assistente social no século XXI, apostando na competência teórica, técnica e ético-política do assistente social, capaz de capacitá-lo, a partir de dados empíricos e movimento rigoroso de criação intelectual, para construção de categorias analíticas práticas (SUGHIRO, 1999).