Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
ISBN 85-7578-039-5 '7 88575 "7 80398' E TRABALHO urn unico ou multiples olhares? emir & DACOSTA, iri (org.) <.00213 |<e Ademir Muller Lamartine Pereira DaCosta orgon/zadores a\W°* LAN^AMENTOS A produga"o do conhecimento sobre o "mundo rural' no Brasil: as contribuigrjes de Jose" de Souza Martins e Jose" Graziano da Silva William Hector Gdmez Soto Dos bastidores ao centra do palco: a atuagao politica da burguesia industrial gaucha no processo de redemocratizagao Marco Andre Cadona 0 pendulo da angustia Marli Silveira Histoiia, medicina e sociedade no Brasil Mozart LJnhares da Silva (Organizador) Educacao ambiental e cidadania: cenEirios brasileiras Fernando Oliveira Noa! e Valdo Hermes de Lima Barcelos (Organizations) Meranga agoriana nas dangas tradicionais do Rio Grande do Sul Flfoio Antdnio de Azeredo Emancipagao do sexo feminino: a luta pelos direitos da mulher no Brasil, 1850-1940 June Edith Hahner Direitos sociais & polfticas publicas: desatios contemporaneos. Tomo 2 Rog&rio Gesta Leal e Luiz Emani Bonesso de Araujo (Orgartizadores) Cidade, corporagao e periferia urbana Rogerio Lima da Silveira A rainha do Ignoto Emilia Freitas A falencia Jtilia Lopes de Almeida Igreja catolica, sindicatos e movimentos sociais Roque Hammes Unisc: a construgSo de uma universidade comunitaria Maria Hoppe Kipper, Elizabeth Pires Rizzato e Olgario Paulo Vogt Lazer e Trabalho urn unico ou multiples olhares? •ErUIMISC Reilor Luis Augusto Costa a Campis Vice-Reitor Jose Antonio Pastoriza Fonloura Pr6-Rei(ora de Graduate LadElaine Kr&mer Pro-Reilor de Pesquisa e P6s-Gradua9ao Wilson Kniphoffda Cruz Pr6-Rei(ora de Exiensao e Relac6es Co muni (arias Carmen Lucia de Lima Heifer Pro-Reilor de Adminisiracao Vtintar Thome Pr6-Reitor de Planejamento e Desenvolvimento Institutional Joao Pedro Schmidt EDITORA DA UNISC Editora Helga Haas COMISSAO EDITORIAL He/ga Haas - Preside/lie Wilson Kniphoffda Cruz Alba Olmi Marli Marlene Moraes da Costa Miria Suzana Burgos OlgArio Paulo r'ogt Rosanu de Cassia de S. Schneider . Vanderlei Becker Ribeiro . IO EDUNISC Av. Independencia, 2293 96815-900 - Santa Cruz do Sul - RS Fones:(51)3717-7462,(51)3717-7461 -Fax: (51)3717-7402 http://www.unisc.br/edunisc E-mail: editora@unisc.br Ademir Miiller Lamartine Pereira DaCosta Lazer e Trabalho urn unico ou multiplos olhares? Santa Cruz do Sul EDUNISC 2003 © Copyright Iaediclo2003 Direitos reservados: Universidade de Santa Cruz do Sul Editoragao: Clarice Agnes, Evandro Andre Barbian Capa: Edson Augusto Hadler Costa L431 Lazer e Trabalho / organizadores Ademir Miiller e Lamartine Pereira DaCosta. - Santa Cruz do Sul: EDUNISC,2003. 266 p. 1. Lazer. 2. Lazer- Aspectossocials. 3. Lazer e Trabalho. I. Mutler, Ademir. II. DaCosta, Lamartine Pereira. CDD: 306.4812 Ficha catalografica: Bibliotecaria Edi Focking CRB-10/1197 ISBN 85-7578-039-5 SUMARIO APRESENTAgAO Ruy Jornada Krebs 7 LAZER E TRABALHO: urn unico ou multiples olhares? Lamartme P DaCosta 9 LAZER E TRABALHO NO CONTEXTO URBANO: re- flexoes sobre os "clubes de menores operarios" (1937-1947) Christianne Luce Gomes 27 ATIVIDADES CORPORAIS NO AMBIENTE E TEMPO ESCOLARES: uma alternativa de aproximacJao entre tra- balho e lazer Carlos Nazareno Ferreira Barges 45 O LAZER COMO PRODUTO DO TRABALHO Beatris Francisca Chemin 83 CULTURA DO LAZER DO TRABALHADOR DA IN- DUSTR1A: inclusao ou exclusao? Ademir Muller 117 A VISAO DOS ASSOCIADOS REFERENTE AS ATIVI- DADES DE LAZER OPORTUNIZADAS PELA ASSO- CIAQAO ATLETICA PHILIP MORRIS ]oao Aloisio Goerck e Ademir MUlkr 137 LAZER E TRABALHO: relacao de continuidade na apo- sentadoria? Marcus Vinicius Castro Witczak 155 LAZER E TRABALHO NA MUSICA E NA LITERATURA Giuliano Gomes de Assis Pimentel 201 SEO TRABALHO E DOENQA, O LAZER E REMEDIO? Valquiria Padilha 243 APRESENTAgAO Um dos fatos que marcaram o 14s ENAREL, o maior evento nacional que envolve pesquisadores e extensionistas das areas de recreagao e lazer, realizado no campus da Universidade de Santa Cruz do Sul, foi o crescente numero de publicacoes de livros e peri- odicos dedicados a essa area. Naquela ocasiao tive a satisfacao de escrever a apresentacao para o livro que o professor Ademir Muller e o Professor Lamartine Pereira da Costa organizaram para ser lan- cado no referido evento. Agora, transcorrido aproximadamente um ano desde o lancamento daquela obra, tenho novamente a honrosa tarefa de apresentar mats um livro organizado pelos mesmos autores, composto pot instigantes textos escritos por alguns dos mais desta- cados estudiosos da area do lazer e suas interfaces com o trabalho. Se observarmos atentamente o titulo do livro, ja podemos perceber que a inten^ao dos autores foi a de abrir um espaco para a discussao de diferentes pontos de vista que refletem as aproxima- coes e/ou as contradicoes entre lazer e trabalho. Para que isso ficas- se mais evidente, o texto escolhido para abrir esta coletanea foi o do professor Lamartine, o qual anuncia que: "em primeira instan- cia buscaremos fundamentacao para as questoes que se antepoe ao sentido do trabalho. Posteriormente estabeleceremos bases para a discussao das relacoes do trabalho, compondo assim, um quadro abrangente que possa orientar novas interpretacoes epistemologicas tanto do trabalho como do lazer, ou de ambos, simukaneamente, como querem os seguidores de De Masi". Considerando a caracteristica deste livro, que pretende ser uma amostra das diferentes opinioes que se tern formado a respeito da relac.ao lazer/trabalho, as tematicas abordadas por cada autor se projetam alem da relacao direta e estreita entre esses dois fenome- nos. Assim, outros fenomenos sao explorados no sentido de forma- rem uma moldura para se discutir com mats profundidade, tanto as dimensoes do lazer quanto as do trabalho. Nas tramas de cada tex- to, percebe-se matizes que vao desde os questionamentos sobre o que necessitamos e o que devemos fazer para atender as demandas do nosso tempo livre, ate aos processes desenvolvimentais que en- volvem os problemas da educagao e da aposentadoria. Nao pretendo nessa breve apresentagao fazer um recorte de cada um dos textos que compoe a coletanea, mas sim destacar a relevancia de mats esta publicagao da EDUNISC, dtrecionada a pro- fissionais de diversas areas que estao, direta ou indiretamente, com- prometidas com a qualidade de vida do cidadao, frente a indissociabilidade desses dois temas, aparentemente dicotomicos. A todos aqueles que estao comprometidos com as questoes do lazer e do trabaiho, este livro torna-se uma leitura obrigatoria. Mais do que decretar um linico olhar, ou determinar que sejam multiplos olhares que irao delimitar as relates do lazer e do trabalho, uma leitura critica de cada um dos capitulos deste livro instigara o leitor, tambem, a colocar o seu olhar sobre essa relagao. Ruy Jornada Krebs, PhD. Universidade de Santa Cruz do Sul LAZER E TRABALHO: um unico ou multiplos olhares? Lamartine P. DaCosta1 Ha duas decadas, realizava-se, em Roma, o "Primeiro Con- gresso Internacional sobre a Economia Informal -1982", quando se confirmou a imprecisao terminologica do tema motivador do even- to, alem do hiato teorico para com o que se denominava, na epoca, de "trabalho informal". A digressao a esse acontecimento passado concerne ao debate atual sobre a transformacjio do trabalho que estaria se confundindo com o lazer, como, por exemplo, se depreende das obras de Domenico de Masi, tao difundidas no Brasil. E, se esta em questao tal coincidencia de concepc.6es antes consideradas con- traditorias, o estudo do trabalho informal, numa perspectiva histo- rica da constru§ao do conceito, conduz o debate para uma revisao epistemologica do trabalho como produgao de cultura. Este liame cultural, numa abordagem publicada em 2000, foi atribuido ao lazer, e nao ao trabalho, por Christianne Werneck, "por meio da vivencia ludica de diferentes conteudos, mobilizada pelo desejo e permeada pelos sentidos de liberdade, autonomia, criatividade e prazer, os quais saocoletivamente construidos"2. Ora, a concep^ao do trabalho informal ligado a liberdade, autonomia, criatividade e ludicidade emergiu na decada de 1980, pela pressao de pesquisadores sociais no lidar com a entao chamada "economia informal". Esta, por seu turno, mostrou-se sempre difusa Doutor em Filosofia - Universidade Gama Filho — UGF, Rio de Janeiro. Ver La Economia Sumergida in Sodologia del trabajo, n. 9, 1983, Madrid, Presentation do editor Juan }os6 Castillo, p. 3-6; DE MASI, D. O desenvol- vimento sem trabalho. Sao Paulo: Esfera Editora, 1999; WERNECK, C., T, trabatiw e educa$ao. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000, p. 132. 10 Lazer e trabalho: um unico ou multiples olharcs? e compfexa, mas, a partir do evento de Roma, uma certa iluminagao do fen6meno ocorreu ao se eleger a categoria trabalho como cen- tral, sobretudo no vies subterr^neo, submerso, criativo e autono- mo. Vejamos, portanto, como o nexo do trabalho evoluiu nos ulti- mos vinte anos no sentido da informalidade, alcangando hoje uma posigao simetrica ao lazer, deixando de ser seu oposto. Vittorio Capechi, por exemplo, propunha que a economia submersa fosse referida "a relagoes de trabalho ou de intercambio que escapam a contabilidade oficial com finalidades fiscais"3. Entretanto, Juan J. Castillo, representando interpretac,oes diversificadas sobre o tema, advertia quanto a importancia da investiga§ao no ambito da eco- nomia subterrdnea, "cuyo solo titulo muestra la importance de los fenomenos sociales que suelen hoy incluirse bajo esa ambigua y polisemica denominacion"1. Efetivamente a experiencia tern mostrado que a abordagem centrada na economia, e nela ao nivel macro, reproduz uma media- c,ao administrativa governamental que, eventualmente, distorce, ou mesmo exclui, relacionamentos importantes com as variaveis sociais do fenomeno. Por isso, e pertinente cogitarmos da dimen- sao micro, isto e, do trabalho informal e suas diversas relagoes de intercambio. Apoiando-nos em Erbes-Seguin e Oilier5, quanto aos enfoques tradicionais da sociologia do trabalho, observa-se que sao recomendados mveis de analise abrangendo tanto o micro como o macro: (a) trabalhador e sua relacao direta com o trabalho; (b) relagoes envolvendo o trabalho e (c) trabalho como atividade da sociedade. Nestes termos, pretendemos referenciar nosso estudo sobre o setor informal de economia e do trabalho, objetivando marcos conceituais e teoricos integrados, contornando o funcio- nalismo das abordagens em separado. Com esse proposito, construiremos nossa analise por meio de duas vertentes de aproxirnagao ao tema: filosofica e socioeconomica. Em primeira instancia, buscaremos fundamenta- 1 Ibidem, p. 38. In "La Economia Sumergida en Italia" de Vittorio Capechi, p. 35-64. 4 Ibidem, p. 6. 5 C£ ERBES-SEGUIN, S.; OLL1ER, E Sociologia del trabajo, Madrid: Ediciones PirSmide, L972, p. 15-32. Laicr e crabalho: um unico ou multiples olharcs? 11 C.ao para questoes que se antepoem ao sentido do trabalho. Posteri- ormente, estabeleceremos bases para a discussao das relagoes do tra- balho, compondo, assim, um quadro abrangente que possa orientar novas interpretagoes epistemologicas, tanto do trabalho como do lazer, ou de ambos simultaneamente como querem os seguidores de De Masi. ABORDAGEM FILOSOFICA O trabalho, no sentido da agao e realizagao humana, tern sido um tema classico na reflexao filosofica; ja em Platao o traba- Ihador representava um tipo de homem inferior ao guerreiro e ao filosofo, enquanto que, na "Politica" de Aristoteles, o artesao era privado da cidadania. Ambos os casos expressavam o dualismo so- cial vigente na antiguidade grega: os homens livres, que contem- plavam as ideias, contrapondo-se aos escravos, ocupados em traba- Ihar sobre a materia. Os romanos herdaram, em parte, o sentido negative do tra- balho, como transparece a palavra "negotium", indicadora da au- sencia de "otium" {o lazer), que dava significado ao trabalho e aos negocios. Igualmente, no cristianismo, o trabalho aparece com. fre- quencia conotando punigao, embora, na Idade Media, Santo Tomas de Aquino antevisse o trabalhador numa missao de caridade, "nao somente apaziguando as almas, mas tambem como um servigo hu- mano, dobrando a materia frente ao espirito". No decorrer da historia da filosofia, a questao do trabalho sempre se mostra presente, tal como em Descartes, que via, nessa agao, a formula para tornar-nos senhores e possuidores da natureza. Hegel, coerentemente, admitia o trabalho como redengao, tradu- zindo o espirito da epoca da cristandade e retornando a oposic.ao senhor-escravo da antiga cultura helenica, entao numa visao dialetica encontrada na celebre descrigao do vencido que se sub- mete ao vencedor, mas recupera a liberdade atraves do trabalho. Ja entre os filosofos do alvorecer do seculo 20, Bergson propunha que o divino estaria intimamente unido ao homem como este ao seu trabalho, alem de definir a inteligencia como uma aptidao para fabricar instrumentos, compondo o homo sapiens como o homofaber. Porem Comte, no seculo anterior, mais cientificista, relevava a trans- 12 Lazer e trabalho: um unico ou multiples olhares? formacao inteligente da natureza atraves do trabalho, pela modifi- cagao utilitaria do meio exterior pelo homem. Um aprofundamento mais analltico dessas concepgoes, nao necessariamente contraditorio, e encontrado na teoria marxista, que coloca o trabalho numa das posicoes centrais das relagoes soci- ais, enaltecendo "o principio do trabalho como essencia generica do homem". A partir daf, derivaram, sucessivamente, as conheci- das teses de divisao do trabalho, da alienacao, da mais-valia, da luta de classes, etc. Uma smtese das proposigoes de Marx, com base nes- sas hipoteses do materialismo historico, nos e oferecida por Ernest Fischer quando revela, em outra cir.ac.ao, que "a acao da liberdade real e justamente o trabalho"6. Nestes termos, podemos observar que a evolu^ao historica da interpretagao do trabalho passou de um extreme de anulagao para outro oposto de sublimac.ao, da servidao para a libertagao, de a^ao eventual para processo de transformagao social. Mais recentemente, Joseph Pieper7 tentou inverter o senti- do idealizado por Marx, retornando ao lazer conforme a cultura grega, sem, entretanto, subestimar o trabalho, entao valorizado como "a esfera total da atividade intelectual e espiritual do ho- mem". Segundo esse filosofo alemao contemporaneo, o lazer e a base da cultura, enfatizando a negacao do trabalho como significa- do da expressao grega "skole" para lazer e "a-scolia" para o traba- Iho, a qual, na lingua helenica, tinha a conotacao de negacao, semelhantemente ao posterior uso de "negotium" pelos romanos. Assim, o lazer na Grecia era uma atitude mental e espiritual - dan- do origem, inclusive, a palavra "escola" -, e nao um simples resulta- do de fatores externos ou o produto inevitavel de tempo livre. Dai o surgimento do trabalho intelectual e das celebrac.6es que marca- vam o fluir da cultura e a pratica da reltgiao. Cf. FISCHER, E. Was Marx Wirklich Sagts, Verlag Fritz Molden, Ziirich, 1968: citacoes retiradas das versoes em lingua portuguesa de 1970; "O que Marx realmente disse", Civilizagao Brasileira, Rio de Janeiro, p. 22 e 20. Cf. PIEPER, J. Was heisst Philosophierent, Kosel Verlag, 1947; citacoes referenciadas & versao em lingua inglesa de 1963: "Leisure; The Basis of Culture", The New American Library, New York, respectivamente, p. 49, 22 ,21 ,40e56 . Lazer e trabalho: um unico ou multiples olhares? 13 Antecipando-se a Pieper, encontramos obras da d£cada de 1930 produzidas por Bertrand Russell e por Johan Huizinga8, que ja convergem para a tese do lazer como base cultural, tanto quanto nelas transparece o pensamento contemporaneo sobre o trabalho. No caso do filosofo ingles, cabe transcrever uma das proposigoes principals de seu classico "In Praise of Idleness": No passado, havia uma pequena classe sem ocupacao e uma classe mator de trabalhadores. A primeira gozava van- tagens para as quais nao haviabases na justica social. Isso, necessariamente, a tornou opressiva, Hmitou suas simpati- as e foi a causa do invento de muitas teorias para juscificar seus privilegios. Esses fatos diminuiram, enormemente, o seu merito, mas a despeito desse recuo, ela contribuiu, intimamente, para o todo que chamamos civilizacao. Essa classe cultivou as artes e descobriu as ci6ncias, escreveu livros, inventou filosofias e aprimorou as relacoes socials. Ate mesmo a libertacao dos oprimidos foi comecada por ela. Sem essa classe dos sem ocupagao, jamais teria o mun- do emergido do barbarismo. Outro aspecto relevado por Russell e o da etica do trabalho, evidentemente reiativa entre as diversas culturas, mas que sobrevi- via em varies povos, na feigao do dever normativo. Assim, pessoas abastadas envolvem-se com o trabalho quando deveriam cultivar o espfrito e as artes. Nesse particular, o precursor do empirismo I6gi- co mostra-se radical: "A moralidade do trabalho e a moralidade dos escravos e o mundo moderno nao tern necessidade de escravidao humana". A abordagem de Huizinga, no seu tambem classico "Homo Ludens", realiza-se por outro caminho de reflexao, na medida em que parte de caractenstica inerente a natureza do homem - a do jogo -, e nao propriamente de suas relacoes sociais. Para o historia- dor holandes, o jogo tem sido, historicamente, a atividade basica do lazer quando se pressupoe a geragao de fen6menos culturais, tais Cf. RUSSELL, B. O elogio do lazer, Companhia Editora National, Sao Paulo, 1957 {traducao do original ingles de 1932), p. 17 e 6; HUIZINGA, J. Homo Ludens. Sao Paulo: Editora Perspectiva, 1980 (traducao do original alemao de 1938), p. 163-175 e 3-31. 14 Lazer e trabalho: um unico ou iniiltiplos olhares? como a expressao da linguagem, o direito, a guerra, o conhecimen- to, a poesia e a pr6pria filosofia. Portanto, podemos admitir que o trabalho deixa de ser a antinomia do lazer quando se identifica com as praticas ludicas. Esta oposicao reciproca naturalmente aparece ao longo da historia, tanto quando a tematica e a do trabalho como quando se trata do lazer. Em Huizinga, sem embargo, ha demons- tracao de que ha pontos de identidade comuns entre um e outro, e nao somente divergencias tao comumente divulgadas, tal com de- fende De Mais nos dias presentes. Em resumo, as especulacoes filosoficas sobre o trabalho, ate meados da decada de 1940, foram estabeiecidas em bases dialeticas, ora com vistas a domina^ao (senhor versus escravo), ora com rela- gao a sublimagao e a auto-realizacao (espirito versus materia) e, sobretudo, no atinente a liberta^ao (homem versus condigoes soci- ais adversas). A negacao do trabalho, nessas circunstancias, deli- mitou a cultura, pelo menos nos aspectos essenciais. Nesse perfodo e, por extensao, ate a decada de 1980, contudo, este quadro generi- co orientou-se para o piano dos valores, a julgar pelo conteudo referente ao trabalho da "Declaracao Universal de Direitos Huma- nos", de 1949, e da enciclica "Laborem Exercens", de 19819, tanto como por outras tendencias ainda pouco claras para a delimitagao do presente ensaio. Para uma sintese necessaria dessas mudangas em delineamento, apelamos para os questionamentos que se se- guem, com base nas interpretacoes socioeconomicas da proxima secao, alem das proposigoes da Declaragao e da Enciclica citadas: - O trabalho deve ser defmido mais no sentido de "posto" ou "colocagao" do que propriamente de "tarefa"? Isto significaria uma questao de direito ao trabalho e defesa contra o desemprego, predominando sobre a ideia da agao? - A crescente expansao do tempo livre e derivada da redu- Cf. Organizagao das Nagoes Unidas - ONU, Declaracao Universal dos Direi- tos Humanos, aprovada em 10/12/1949 em Paris, especialmente o artigo XXIII: "Todo homem tern direito ao trabalho, % livre escolha de emprego, a condigoes justas e favoraveis de trabalho e a protegao contra o desernprego". No referente a "Laborem Exercens", veja-se O trabalho humano - Carta enciclica dejoao Paulo II, Edic.oes Paulinas, Sao Paulo, 1982, particularmen- te capitulos II (O trabalho e o homem) e IV {Direitos dos homms do trabalho), p. 15-35 e 58-80. Lazer c trabalho: um unico ou multiples olhares? 15 gao da Jornada de trabalho (paises ricos), do desemprego (crescente nas nacoes afluentes e endemico nas pobres), das carencias educa- cionais para jovens, do aumento de aposentados e idosos, etc? - Deve ser valorizado positivamente o lazer, em grau superi- or ao trabalho stricto sensu? Dai se pode subentender a prevalencia das atividades culturais de lazer sobre as demais da vida societaria? Deve-se considerar o "direito de nao trabalhar" no mesmo nivel de igualdade do direito ao trabalho? - A atua^ao crescente do Estado nas economias de mercado e o seu ja existente absolutismo nos paises socialistas - situacao tipica dos anos de 1980 - estariam produzindo um conflito com o trabalho, igual ou superior ao tradicional com as instituicoes e o capital? - A recente expansao do trabalho "marginal", isto e, inde- pendente dos sistemas formais das instituic.6es e do Estado, realiza- do por iniciativas individuals e grupais, seria produto dos direitos e defesas nascentes, do crescimento do tempo livre e do desemprego e dos conflitos de trabalho de um modo geral? Haveria razoes e oportunidade para o estabelecimento de uma valorizacao positiva para o trabalho informal? No que concerne a esta ultima interrogac.ao, em que pese aos limites das generalizagoes que Ihe dao suporte preliminar, havia um minimo de validagao a epoca, conforme podemos apreciar por duas obras do ambito da filosofia: "Trabalho e Reflexao", do brasileiro Jose Arthur Giannotti, publicada em 1983, e "Filosofia do Traba- Iho", do italiano Luigi Bagolini, de 1982'°. No primeiro ensaio, busca-se, explicitamente, uma "dialetica da sociabilidade" atraves da fundamentac.ao marxista do trabalho. Esta ordem de ideias indi- ca, em meio a uma grande variedade de entradas e saidas do tema principal, uma proposigao digna de analise: 10 Cf. GIANNOTTI, J. A. Trabalho e reflexao. Sao Paulo: Editora Brasiliense, 1983. A primeira citacao textual e encontrada na pfigina 114, enquanto as caracterizac.6es pre-capitalistas, incluindo-se a condic,ao de autonomia, refe- rem-se ao capitulo II, "O Ardil do Trabalho", p. 80-125; a segunda citac, ao e encontrada na pflgina 85, L. Bagloni, "Filosofia do Trabalho", Editora Uni- versidade de Brasilia, Brasflia, 1982 (tradu^ao do original italiano de 1977, com revisao do Autor para edigao brasileira). A citagao referida no nosso texto e" da pfigina 34. 16 Lazer e trabalho: urn ULILCO ou multiplos olhares? O capital necessica de duas conduces hist6ricas: de um lado o trabalho livre, propriedade do trabalhador, passivel de ser comprado a dinheiro, de outro a separacao desse trabalho das condicoes objetivas de sua realizac.ao, a saber, a destruigao das formas de propriedade em que o trabaiha- dor se apropria dos rneios de produc.ao como se fossem seu corpo inorganico. Dai surgem diversos caminhos a serem trilhados e algumas conclusoes, entre as quais destacamos o que Giannotti chama de "caracterizagao tipica de pre-capitalismo", que se baseia na autono- mia do trabalhador. Adiantando a argumentagao sobre esse aspec- to, Giannotti procura demonstrar que as condigoes capitalistas so- mente se exercem atraves da forga de trabalho e das mercadorias, que sao postas em funcionamento a fim de se obterem valores de troca, enquanto que "as demais formas de trabalho individual sao excluidas dessas relagoes". No caso de Bagolini, a abordagem do trabalho e feita, em principle, pela negagao de apriorismos ideologicos conflitantes, traduzidos pela apologia da livre iniciativa com o Estado debilitado ou pela defesa da socializagao dos meios de produgao sob um Estado totalitario. Isto posto, Bagolini discute a exaltagao do trabalho pe- los filosofos e os valores morais em questao, a posigao do lazer e as exigencias da tecnoestrutura, e, finalmente, passa a tese central da partidpagao, ideiamestra da Democracia Social, como solugao para evitar as opgoes unilaterais e imperativas, peculiares as praticas ideologicas. Interpretando o trabalho em uma filosofia imanentista negadora da "transcendencia e do misterio divino", Bagolini en- tende que Todo trabalho e atividade que, se bem que implique uma pena, a implica para supera-la mediante o senso da con- quisca. No trabalho esta a Hberdade. Merece a liberdade e a vida quern todo dia consegue conquista-los. Procura-se sintetizar a materialidade do trabalho com a idealidade de uma liberdade absoluta: sintese de forma e de materia, sintese entendida como atividade humana na qual seja de certo modo superfivel a distinc.ao do trabalho como pena e do trabalho como conquista. Lazer e crabalho: um unico ou multiples olharcs? 17 Ponderando-se as duas posigoes dos autores em exame, evi- dencia-se que a perspectiva de Giannotti e voltada para o passado, enquanto Bagolini assume visao prospectiva. Entendemos que tais interpreta^oes transpassam o espirito da epoca com relacao ao tra- balho e, sobretudo, enfatizam a versao altemativa, ainda que exclu- ida das rela^oes predominantes e aporias tradicionais. Tal trabalho informal, em tese, representa a convivencia do passado com o pre- sente, como tambem reflete o ainda sobrevivente sentido de auto- nomia e de conquista do dia-a-dia do trabalhador, constituindo, em ultima analise, a sua libertagao. ABORDAGEM SOCIOECONOMICA O trabalho realizado em condicoes nao-convencionais, fora do controle governamental e das relacoes legais, sindicais e institucionais, de um modo geral, e uma das peculiaridades da soci- edade moderna, embora pratica bastante antiga. Efetivamente, os seus efeitos, englobados genericamente pela denominacao de "eco- nomia invisivel" ou "submersa", tern sido significativos nos paises pobres ou dos avangados nas ultimas decadas. Este tipo de trabalho, que, em algumas circunstSncias, foi considerado clandestine ou ate mesmo criminoso, pode ser classi- ficado significativamente de "alternativo" ou "informal", convi- vendo, equilibradamente ou em conflito, com a sociedade, necessa- riamente organizada e administrada por ordenagoes formais. Nes- tes termos, o setor de economia informal aparentava constituir, nos idos da decada de 1980, um efeito multifario, abrangendo, quer as rejeigoes institucionais ao trabalho alternativo, quer as defesas da cidadam'a contra as distorgoes eticas e operacionais dessas mes- mas entidades. Tal ambiguidade e hoje confirmada a priori ao se reconhecerem diferentes segmentos da sociedade - pessoas, grupos e instituigoes - atuando com uma educagao nao-formal, uma rnedi- cina popular, uma agricultura alternativa, uma tecnologia apropri- ada e outras formas de intercambios socioeconomicos simetricos aos tradicionais. A importancia do tema em proposicao para a atualidade e realidade brasileiras pode ser apreciada por meio de dados quanti- tativos revelados, oficialmente, pelo Institute Brasileiro de Geo- 18 Lnzer e trabalho: um (mica ou multiples olhares? grafia e Estatistica, que tambem ja causava preocupac.ao em 1983, com a parcela da economia invisivel no Produto Interne Bruto - PIB - do pals, avaliando-a em tomo de 10%, com 42% da populac,ao economicamente ativa-PEA - (18,8 milhoes de pessoas) partici- pando, em 1980, do trabalho "informal", segundo a nomenclatura usada pelo IBGE11. Trinta anos depois, o numero de trabalhadores brasileiros sem carteira de trabalho assinada ultrapassava, sensi- velmente, o quantitative de empregados "formais", como passou a ser do dommio publico por apropria^ao do fato pela midia. Evidentemente, as cifras de 1983 foram inferidas por residu- es estatisticos ou medicoes indiretas, sendo sujeitas, portanto, a oscilacpes amplas nas tnedigoes subsequentes. Por outro lado, a pro- pria natureza do trabalho informal impedia um aperfeicpamento no recolhimento de informac.oes, que consolidava a intransparencia do fenomeno dentro das perspectivas e possibilidades formais da sociedade. Em outros paises, as circunstancias eram similares, mas, em razao da importancia crescente do tema, a Organizac,ao Internacio- nal do Trabalho (OIT) financiava estudos e pesquisas que busca- vam conhecimento, definigoes e metodologias mais adequadas. Neste proposito, citamos, em principio, a coletanea "Sector Infor- mal - Funcionamento y Politicas", de diversos autores latino-ame- ricanos referenciando-se a seus parses12, e o ja citado livro de Raffaelle de Grazia, "Le Travail Clandestin", com uma visao com- preensiva sobre o assunto, ambos interpretando dados quantitati- vos sobre as decadas em que o tema da informalidade tornou-se importante. Em adigao a esses, sao dignos de realce os livros de Bawly13 e Cantelli'4, publicados, respectivamente, nos EE.UU. e na Italia, revelando orientac,oes mais academicas e de maior sentido de analise. Por essas fontes, considera-se que a subterranean economy 11 Cf. IBGE - Pesquisa National por Amostra Domiciliar - 1983. Rio de Janeiro, 1984. 12 Cf. OIT - Sector Informal - Funcionamiento y Politicas, Oficina Internacional Del Trabajo, Programa Regional Del Empleo para America Latina y el Caribe, Santiago/Chile, 1981. 13 Cf. BAWLY, D. O Subterrdneo da eomonua, Sao Paulo: EdUora MacGraw HilldoBrasil, 1983 (traducao da edicao de 1982 nos EE.UU). 14 Cf. CANTELLI, E Veconomia sommersa, Roma: Edicori Riunici, 1980. Lazer e trabalho: um unico ou multiples olhares? 19 a epoca tenha uma dimensao em torno de 15% do PIB nos EE.UU. e no Canada, com 2/5 dessa parcela destinados a atividades ilegais. Na Alemanha, a "Schattenwirtschaft" representava cerca de 10%, o que se repetia na Franca e na Suecia. Na Inglaterra, a cifra reduzia- se para 5%, enquanto, no Japao, aumentava para 15%. Com relac,ao ao Terceiro Mundo, as atividades alternativas ja mobilizam cerca de metade da forca de trabalho existente em paises como a India e o Peru. Na Italia, considerava-se a proporc.ao de 35% do PIB como razoavel para definir a "economia sommersa", freqiientemente in- terpretada como o esteio principal de sustentagao do pais durante as crises economicas. Razoes diversas das italianas, com base em Alain Besangon15, explicariam o trabalho informal que entao se praticava na URSS, envolvendo entre 10% a 15% do PIB e operan- do como um dispositive que cobria os setores em que o Estado nao atuava ou mostrava ineficiencia. Ainda se cogitando das nac,oes socialistas da epoca, a por elas chamadas de economia paralela ou secunddria, era oficialmente reconhecida na Hungria, Bulgaria e lu- goslavia, tolerando-se, neste ultimo pais, que de 10 a 25% da popu- la^ao praticassem comercio e services sem controle estatal16. Uma analise comparativa dos dados das fontes citadas mos- tra as seguintes preliminares, adotando-se perspectivas analiticas atuais: (I9) O trabalho informal nao era conhecido suficientemen- te e estaria passando por uma fase de constatac,6es quantitativas, associadas a relagoes superficiais e especulativas de causa e efeito. Conforme enfatizava De Grazia17, tratava-se de um fenomeno bas- tante complexo e multiforme, cujos estudos eram ainda explorat6rios, sugerindo apenas uma ideia geral sobre o assunto. Alem disso, as informac,5es sobre as repercussoes economicas eram pouco confiaveis, notadamente em razao de tendencias deliberadas a amplia^ao ou a minimiza^ao do fen6meno. (2Q) A ideia predominante era a de analisar o trabalho infor- 15 Cf, BESAQON, A. Breve tratado de sovietologia. Rio de Janeiro: Nova Fron- teira, 1983. 16 Cf. DE GRAZIA, R. - Op. cit., p. 1. 17 Op. cit., p. 115. 20 Lazer e trabalho: urn untco ou multiples olhares? mal do lado do interesse juridico imediatista, visualizando, sobre- tudo, os aspectos negatives de evasao fiscal e da exploragao da mao- de-obra clandestina. Mesmo na Italia - onde havia pleno reconhe- cimento da faceta positiva do setor - observava-se tal peculiarida- de atraves do levantamento realizado por De Grazia, o que se repe- tia na Espanha e em Portugal, por meio de interpretagoes seme-Ihantes de repressao, julgadas necessarias por parte dos governos no inicio da decada dos anos de I96018. Posteriormente, em 1984, intervencao similar do lado do governo federal brasileiro ocorreu quando da tram.itac.ao do Estatuto da Microempresa no Congresso Nacional, traduzida por vetos as proposi^oes de liberacao fiscal aos negocios informais, visando a incorporacao desses empreendimen- tos ao universo legalizado. Nesse sentido, vale destacar a tradicao irrealista e punitiva do Estado brasileiro no concernente as microempresas, conforme estudo de Messias Pereira Donate, con- suitor juridico da Federacao de Indiistrias do Estado de Minas Ge- rais19. Nos EE.UU., por seu turno, a tradigao era nitidamente puni- tiva, segundo Bawly em suas conclusoes20, apontando o inicio da decada de 1980 como o ponto de partida para atencao devida ao assunto numa perspectiva academica. (3-) O carater maniquefsta predominante nas interpreta- coes dificultava a identifi.cac.ao das relagoes e transformac.oes soci- ais que o trabalho informal representava. Havia, inclusive, um cir- culo vicioso entre o desconhecimento das manifestacoes deliberadamente ocultadas pelos trabalhadores alternatives e a impossibilidade de evolucao de comportamento do governo e de conhecimento dos estudiosos. Nesse contexto, o livro do sociologo Pino Arlacchi, publicado em 1983, na Italia2', passou a constituir uma ruptura digna de nota, uma vez que via uma serie de pesquisas realizadas a partir de 1977, aplicando o metodo historico-social de Max Weber na Calabria italiana, consolidando a hipotese de que a Mafia estaria passando do papel de int.ermediac.ao para o de acumu- 18 Op. cit., p. 102. 19 Cf. DONATO, M. P O estado punitivo. IV Congresso Brasileiro da Pequena e Media Empresa, Senado Federal, Brasilia, 7 a 9 de novernbro de 1984. 20 Cf. BAWLY, D. Op. cit., p. 173-177. 21 Cf. ARLACCHI, E La Mafia Imprendiirice. Bologna: Societa Editrice il Mulino, 1983. Lazer e trabalho: um uruco ou multiples olhares? 21 lac.ao do capital, transformando-se numa empresa "normal". Esta inedita institucionalizacao seria simetrica a desintegragao institucional idenrificada pelo autor na Italia dos anos de 1970. Em resume, os questionamentos finals de De Grazia" foram significa- tivos para posicionar o setor informal no universo societario, con- forme verificamos textualmente: "deve-se considerar o travail noir como uma enfermidade social, urn fenomeno da sociedade, OLI uma nova eticade vida?" As proposicoes de Ralf Dahrendorf23, que exercitou um tra- jeto inverse aos autores aqui citados, ou seja, da ceoria de bases filosoficas para uma interpretacao sociologica, criam hoje condi- coes para se observar a relatividade das conclusoes entao prevale- centes. Esta pratica laboral autonoma com relagao a governos e instituigoes privadas, na visao do sociologo alemao, consistiria um reforcp a sua tese de que a "sociedade de trabalho" encontrava-se em fase de extingao, havendo um processo de transformacao no sentido da "sociedade de atividade". Um dado basico nessa propo- siQao e o de que nao havia uma possibilidade amplamente aceita de combate ao desemprego, considerando-se os paises mais avancados tecnologicamente. Nestes termos, vale transcrever as extensas con- clusSes de Dahrendorf: A perspectiva e aflitiva, e sua viabilidade muito depende- r£ de um fenomeno sobre o qual nao se falou ate agora, mas que pode representar a chave para o futuro: o traba- lho fora da profissao, o trabalho ilicito ou clandestino, nada benquisto nos circulos oftciais da sociedade de trabalho. Isto e por um lado compreensivel. Mas por outro ele nao deixa de documentar sobretudo, a indomita vontade com que o homem procura fazer algo que fac.a realniente sen- tido, independenteraente do que possam dizer os sindica- tos, as camaras dos oficios e as reparticoes do imposto de renda. O trabalho clandestino comec.a em casa. Todas as donas de casa trabalham clandestinamente. Mas o assun- 22 Cf. DEGRAZIA, R. Op. cit., p. 117-118. " Cf. DAHRENDORF, R. A sociedade de trabalho, Humboldt n. 46 e Altema- tivas para a sociedade de trabaliio, Humboldt 'n. -47, Editora F. Bruckmann, Munchen, 1983 (edigoes em lingua portuguesa, traduzidas do original ale- mao) . As citagoes sao das paginas 74 e 69 da revista n. 46. 22 Lazer e trabalho: um unico on multiples olhares? to aqui e mais propriamente a atividade clandestine. Aque- le que repara o automovel do vizinho ou vai mais longe, chegando mesmo a aprimora-lo, aquele que pinta a casa com os amigos, ou ate mesmo aquele que trabalha para fora lecionando numa universidade popular ou assessora terceiros em questoes legais e profissionais, aquele enfim que aproveita a sua liberdade ou a dos outros para desen- volver uma atividade, esse alguem sinaliza um futuro me- Ihor. Seja ele ou ela, quern assim age faz ressaltar tambern um outro aspecto da questao. A indefinida economia do trabalho clandestino e hoje uma industria em desenvolvi- mento. E muitos paises ela chega a ser quase a linica. Mas o trabalho clandestino tambe"m e uma atividade que visa indenizagoes que estao bem abaixo dos indices estipulados para os salaries reais. A remuneracao do trabalho clandes- tino e baixa. Tanto que ela e muitas vezes complementada ou substitufda por um salario efetivo em forma de merca- dorias ou prestacoes de servigos. E, naturalmente, o traba- lho clandestino nao e protegido pela seguranc.a nos lugares de trabalho, nem pela garantia dos lugares de trabalho. Ao pensar no quanto a sociedade de trabalho, apesar de tudo, resistiu, e de se temer que o trabalho clandestino nao ofe- re$a tantas possibilidades de atividade humana quantas sao as ameacas de retorno as antigas realidades de traba- lho hurnano. Ja que existem dois diferentes pianos de atu- acao humana, e ate possivel que o mais baixo deles consiga se impor como norma. Repetindo: nao se trata aqui de uma necessidade historica. Portanto, 6 necessario ter em mente que o trabalho esta deixando de existir na socieda- de de trabalho, mas que seus mentores tudo fazem para recuperS-lo, e para obstruir, conseqiientemente, o cami- nho que conduz a sociedade da atividade. Essa conclusao de Dahrendorf, emitida em 1983, baseava-se prime tramente em Hannah Arendt - conforme remissao do autor em citac,ao - quando se referia a "perspectiva de uma sociedade de trabalho desprovida de trabalho, ou seja, da unica atividade que a justifica". Trabalho (labour) e, para ela, o que Marx qualifica de "alienac.ao" do trabalho": a ac,ao humana nos dominios da necessi- dade, um antigo pensamento aristotelico. Para Aristoteles, a vida ativa nao era de forma alguma desejavel, com o que concorda Lazcr c trabalho: um unico ou multiples olhares? 23 Hannah Arendt, propondo um trabalho (work) em prol da com- preensao humana, de criagao de instituic,6es e da sociedade. Dentro dessa linha de raciocfnio, Dahrendorf buscou apoio em Marx, que, nos "Manuscritos Parisienses", fala freqiientemente de "atividade mais humana de vida", de "atividade de consciente", de "atividade livre" e que declara ainda: "O proprio individuo faz da atividade de sua vida um objeto de seu desejo e de sua consciencia. Ele possui uma atividade consciente de vida". Isto posto, enquanto o pensa- mento marxista pareceu antever o fim da sociedade de trabalho, Dahrendorf foi levado a se questionar quanto a praticabilidade da substitute do trabalho tradicional por atividade racional. Neste particular, o ponto de partida e Aristoteles, com sua ja citada dis- tingao entre "vida ativa" e "vida contemplativa": algumas catego- rias ou classes sociais seguem para a vida pratica, de modo que ou- tras gozem a vida teorica, desenvolvendo, assim, uma atividade. Ao longo da grande parte da hist6ria, esse dispositive funcionou como fator-chave na formacjio de classes sociais e, nesse caso, era nitida a diferenga entre os que eram obrigados a fazer tarefas e os que as faziam por iniciativa propria. No referente a sociedade concernente a duas decadas passa- das, concordancias e contradigoesa parte, o que se pode concluir acualmente, e que havia mudancas em andamento na natureza do trabalho, ora interpretadas como marginais aos sistemas formais, ora entendidas como fragmentac.ao em atividades autSnomas, in- trinsecamente ao trabalho convencional. Alem dessas diferentes perspectivas sobre um mesmo fenomeno, nao havia contradiQao entre as concepgoes dedutivas de Dahrendorf e as constatacoes indutivas dos autores de bases empiricas. Sem embargo, h^ uma evidente sintonia entre a ja presente "sociedade do lazer" e a "sociedade de atividade" entao prevista por Dahrendorf, sendo o trabalho informal um aspecto comum a ambas, se forem aceitas duas interpretagoes simetricas para esse fenome- no: a derivada do excesso de recursos na vida societaria e a outra, originada de carelncias no mesmo ambito. Trata-se de dire?oes dis- tintas que estao convergindo para um mesmo ponto, criando im- portancia ao estudo do setor da economia e do trabalho informal, tanto para os paises ricos como para os pobres, uma vez que as duas conot.ac.6es estao sempre presentes em qualquer regiao ou popula- 24 Lazer e trabalho: um unico ou miildiplos olharcs? Lazer e trabalho: um unico ou multiples olhares? 25 gao, em proporgSes e ritmo de transformagao diferences. Um reforgo as presentes conjecturas e uma abordagem das relagoes envolvendo o trabalho referem-se a evolugao das ciencias administrativas, que estariam refletindo os avangos tecnologicos da atualidade - principalmente em razao do crescente uso de com- putadores - atraves de soluc.5es segmentadoras de tarefas e de cen- tralizac.ao do controle por meio de informagoes. Em outros termos, Toffler24 abriu esta discussao em 1980, projetando um futuro em que as pessoas produziriam em suas residencias, com tarefas mais criativas e com cada pessoa estabelecendo seu horario de trabalho. Efetivamente, a proposicao representava uma tendencia concreta, confirmando-se nos seus estagios initials, no Brasil, inclusive, em empreendimentos mais avangados e em setores especializados, como no caso da automagao bancaria, das telecomumcagoes, do comer- cio varejista de alto nivel, da industria de montagem de componen- tes eletronicos, etc. CONCLUSOES De um modo geral, a apreciaclo epistemolfigica do setor in- formal que congrega o trabalho e a economia, iniciada desde Roma - 1982, ocorreu, na origem, por vias de recortes de conhecimento multidisciplinar, a partir dos efeitos de maior transparencia. Dai a enfase no ambiente urbano, seja na industria ou nos services, e o mtido hiato de informagoes e estudos sobre o setor rural. Nesse contexto, os marcos teoricos dispostos em ordem his- torico-descritiva foram, todavia, representados por tendencias, en- quanto os conceitos se mostraram mais descritivos do que interpretativos. Concomitantemente, os conflitos se revelaram tao claros como as tendencias, assumindo denominagoes, tais como "ambiguidade", "contradigao" e "polarizagao". Neste caso, inclu- em-se: a economia informal x trabalho informal; posto de trabalho x tarefa de trabalho; sociedade de trabalho x sociedade de ativida- des; razoes de afluencia x razoes de pobreza para o incentivo ao 24 Cf. TOFFLER, A. The Tird Wave, Bantan Books, New York, 1980. A tese mencionada no texto 6 analisada ao iongo do livro, especialrnente no quarto capitulo "Conclusao", p. 263-439. trabalho informal; direito ao trabalho x direito ao nao-trabalho; interesse institucional x interesse pessoal em face a economia in- formal. A rigor, o conflito incidia apenas entre o interesse das insti- tuigoes e o das pessoas, uma vez que, nas demais situagoes, o con- fronto era resultado natural da evoluQao do trabalho no desenvol- vimento societario. Releve-se, nesses termos, a convergencia das abordagens filosofica e socioeconomica, de diversificados enfoques de especulac.30 e interpretacjio, algo nao muito comum nos dias presentes. Hoje, diante da tese central de De Masi, cabe sugerir que a coincidencia do trabalho com o lazer nada mais e do que uma atu- alizac.ao de interpretagoes ja correntes nos agitados anos de 1980, quando, aparentemente, ficou claro nos meios academicos que o trabalho entrara em mais uma crise conceitual. De fa to, a contradi- C,ao entre as categorias "trabalho" e "nao - trabalho" e uma cons- tante historica, iniciando-se com os antigos gregos e romanos. Entretanto, o debate iniciado ha vinte anos indicou - como se configurou em Dahrendorf, por exemplo - que as duas categorias em pauta constituiriam mais um continuum do que uma contradi- C.ao, mais uma atividade unica processada entre polos opostos, po- rem complementares, em propor^oes distintas no tempo e no espa- co. Tal interpretagao tambem representa uma atualiza^ao, pois o autor deste ensaio teorizou sobre o lazer dentro do enfoque do continuum ja em 1987, em um ensaio de cunho historico e filosofico publicado em Portugal15, que propunha a reinvenc.ao do lazer por novos paradigmas. Em outras palavras, a concepgao de continuum representaria o lazer e o trabalho em uma perspectiva unificada, ao passo que o lazer em oposigao ao trabalho solicitava, historicamen- te, multiples olhares para sua compreensao. Em resumo, De Masi e Werneck nao sao mutuamente exclusivos em suas concepgoes, mas apenas versoes da convivencia atual do uno com o multiple no olhar do lazer e do trabalho. 25 Ver DACOSTA, L. P, A reinvengao da Educagao Fisica e do Desporto scgundo paradigmas do lazer a da recreagao, Ancologia de Textos Desporto e Socieda- de, Ministdrio da Educa$ao e Cultura, Lisboa, 1987-Ver, em especial, p. 13- 18. LAZER E TRABALHO NO CONTEXTO URBANO: reflexoes sobre os "clubes de menores operarios" (1937-1947) Christianne Luce Gomes' A discussao sobre os processos de construgao histories da relac,ao entre o lazer e o trabalho, no Brasil, e ainda pouco explora- da em nosso meio - principalmente se tomarmos o lazer como prin- cipal referencia de analise. Esta e uma das razoes que vem me insti- gando a realizar estudos sobre o lazer na perspectiva historica (WERNECK.2003). Por referir-se a. particularidade unica do tempo, a historia e marcada pelo singular e evoca conexoes com o universal, efetuando uma interagao entre o passado e o presente. Para Le Goff (1984, p. 163), "o passado e uma construc,ao e uma reinterpretac,ao cons- tante e tem um futuro que e parte integrante e significativa da historia". A pesquisa historica, segundo Pesavento (1997), e muito complexa e nao depende apenas das relagoes presente/passado e memoria/historia. A historia nao se reduz, portanto, a uma filiagao mais ou menos linear de ideias. Por este motivo, precisa ser baseada nas interagoes entre o conhecimento e as ideologias, entre os di- versos aspectos, por vezes discordantes, presentes na investiga^ao. Considerando o desenvolvimento de ac,oes preocupadas em promover intera^oes entre o lazer e o trabalho em nosso pais - seja por parte do poder publico ou de outras instituicoes -, a cidade de Professora e Coordenadora Pedagogics do Cencro de Escudos de Lazer e Recreate (CELAR) do Departamento de Educa^ao Fisica/UFMG, cuja produgao bibliogrSfica, ace abril/2003, foi identifkada por WERNECK, Chriscianne L. G. Licenciada e Mestre em Educagao Fisica; EspecialisCa em Laser e Doutora em EducagaoAJFMG. Editora da Revista Licere. E-mail: chris@eef.uftng.br. 28 Lazer e trabalhoi um unico ou multiples olliares/ Sao Paulo fornece elementos interessantes para a analise da ques- tao. Dentre as diversas possibilidades de encaminhamento desta reflexao, optei por discutir as razees que levaram o poder publico municipal a sistematizar os Clubes de Menores Operarios, focali- zando, em especial, as relagoes estabelecidas entre o lazer e o traba- lho no contexto urbane paulistano, nas decadas de 1930/1940. Esta experiencia urbana teve sua trajetoria iniciada em 1937, fruto da politica desenvolvida pelo Departamento de Cultura e Recreagao, or- gao que esteve, a principle, sob a lideranga de Mario de Andrade ate a ditadura imposta pelo Estado Novo. PROPORCIONANDOEDUCAgAO, SAUDE E RE* CREIO PARA AS CRIANQAS E ADOLESCENTES POBRES: ESTRATEG1A PARA EVITAR A FOME, AS DOENQAS E O TRABALHO INFANTIL. Uma das propostas de destaque do Departamento de Cultu- ra e Recreagao, desde o momento de sua criagao (1935), foi a cria- gao de "Parques Infantis", logradouros destinados a educagao, re- creagao e assistencia dos filhos de operarios. Segundo a concepcao das Hderangas do novo Departamento, o Parque Infantil "ideal" deveria ser um lugar agradavel, bonito e seguro, com bastante espa- go para que as criangas pudessem se sentir livres e praticar ativida- des recreativas espontaneas ou orientadas por uma educadora. Des- sa maneira, os programas desenvolvidos no Parque deveriam abrir espago para diversas formas de expressao: habilidades manuals, dese- nho, modelagem, recorte, dramatizagao, canto, musica instrumen- tal, danga, colecionamento, exercicios ginasticos, jogos, folguedos. Analisando documentos da decada de 1930 (Departamento de Cultura, [s.d.]), observamos que a municipalidade pautistana considerava fundamental promover o bem-estar das criangas po- bres, proporcionado-lhes meios de educagao, de saude e de recreio. Para tanto, deveriam reservar espagos livres na cidade de Sao Paulo e conduzir as criangas para ambientes considerados saudaveis e atra- entes, nos quais pudessem se exercitar, se divertir e, nas palavras de Mario de Andrade, produzir cultura. Tal encaminhamento poderia evitar nao somente os maus habitos, os vicios e a criminalidade, mas tambem a fome, a proliferagao de doengas e o trabalho infantil. e trabaiho no contexto urbano 29 Mesmo que muitos fossem contraries ao trabalho infantil, um projeto sustentado pelo poder publico, com enfase na difusao de jogos e brincadeiras populares, discoteca, museu, biblioteca, teatro, cinema, musica popular e erudita, coral, concertos e outras mani- festagoes culturais inteiramente gratuitas para o povo foi conside- radoumverdadeiroabsurdo.ComoevidenciaDuarte {1971,p.52), a medida que o recem criado Departamento de Cultura desenvolvia suas agoes, "parecia que o pais tremia todo ante aquela calamidade de desperdicio e de maluqueira". Com o depoimento de Paulo Duarte, constatamos que esta proposta buscava melhorar as condigoes de vida da populagao po- bre, privilegiando a inclusao cultural e social das criangas de farm- lias operarias. Este investimento nao foi, assim, totalmente apreci- ado pela burguesia, que via, no projeto dos Parques Infantis, finan- ciado pelo poder publico municipal, um grande "desperdicio de di- nheiro". Afinal, um Parque Infantil padrao requeria substanciais in- vestimentos em termos de infra-estrutura fisica, material e pessoal, e sua disponibilizagao para a comunidade dependia de alguns pre- requisites. Segundo Maria Aparecida Duarte (1941), o Parque de- veria ser instalado em um terreno de bairro populoso, com urna area de 8 a 10.000 metres quadrados, contendo boa arborizagao, abrigos e instalagoes necessaries ao adequado funcionamento do service. Alem da parte construida, o Parque Infantil deveria center uma area para jogos, com campo para ginastica, "tanque de vadear" (piscina), tanque de areia e aparelhos diversos como balances, gangorras e carrosseis que, alem de "grande valor educativo", exer- ciam atragao nas criangas. O Departamento de Cultura e Recreagao nao se preocupou apenas com o desenvolvimento de atividades recreativas e educativas para as criangas, pois sua estrutura contava com setores encarregados de organizar as horas de lazer da populagao operaria como um todo, uma vez que esta constituia a massa da populagao residente em Sao Paulo. Dessa maneira, as acoes do novo orgao nao foram direcionadas apenas as criangas, mas tambem aos rapazes e mogas dos segmentos proletaries. Os censos realizados em Sao Paulo mostram que, entre os anos de 1928 e 1937, o numero de estabelecimentos industrials se 30 Lazer e trabalho: um unico ou tnultiplos olhares? elevou de 6.923 para 9.051. Nesse mesmo periodo, a massa de traba- lhadores operarios quase dobrou, passando de 148.376 para 245.715. De acordo com a investigagao de Simao (1966, p.69), como sempre e em toda parte, a industria de Sao Paulo empregou fartamente o trabalho de mulheres e criangas de ambos os sexos (...). Essa mao-de-obra predominava nas indiistrias texteis, do vestuario e da alimentacao, estando a feminina presente em quase todos e a masculina em todos os demais setores de acividades. A remuneragao do trabalho nao se fazia segundo o criterio de igual salario por igual service, sendo de menor prego o prestado por mulhe- res e jovens. Segundo as constatacoes do autor acima, as criangas das fa- milias operarias come^avam a trabalhar muito cedo, e pequenos de ate 5 anos eram ocupados em pequenos services. Isso ocorria, mui- tas vezes, a revelia da lei, pois, com a politica trabalhista adotada pelo governo Vargas, a idade minima legal para o trabalho foi esti- pulada em 14 anos, quando a quase totalidade dos menores da clas- se operaria deveria ser encaminhada para as atividades profissio- nais. Mas, aos 12 anos, os menores, em "casos especiais" e mediante autorizac,ao judicial, ja podiam trabalhar "legalmente". Conforme o entendimento de Miranda (1984), a recreagao para o adolescente e para o adulto da classe operaria representava um complemento indispensavel da recreate na infancia, cuja ne- cessidade ficava ainda mais latente no caso das criamjas que tive- ram a oportunidade de freqiientar um. Parque Infantll. Afmal, os "parqueanos" recebiam os proveitos da assistencia medica, alimen- tar e dentaria; da educagao fisica, moral e intelectual; e da recrea- gao organizada e dirigida durante varios anos. Ao ingressar no tra- balho, ainda na adolescencia, na visao do autor, esses jovens nao poderiam ficar privados de todos esses beneficios. Nicanor Miranda pondera que o Estado nao deveria cuidar apenas da vida da crianga, pois os adolescentes operarios seriam os homens de amanba que, bem ou mal integrados na sociedade, iriam constituir a massa de trabalhadores da Nagao. "Porque nao integra- los bem, proporcionando-lhes, quanto antes, os meios e os recursos para que venham a ser professionals aptos, cidadaos nobres e dignos Lazer e trabalho no contcxeo urbano 31 das suas funcoes na coletividade?" (MIRANDA, 1984, p.34). Ao analisar o problema da mocidade operaria, e refletir so- bre as conseqiiencias negativas decorrentes do abandono social, moral, educacional e recreative apos os 12 anos de idade, em. 1936, Nicanor Miranda, na condic,ao de chefe da Divisao de Educagao e Recreio do Departamento de Cultura e Recreagao, propos a Mario de Andrade a criagao de Clubes de Menores Operdrios. Respaldado pelas experiencias de recrea$ao para a j uventude, desenvolvidas com sucesso em varios paises, o autor sublinha que os clubes para meno- res eram uma sociedade em miniatura de valor inestimavel, prepa- rando a mocidade para a participac,ao na vida social. Descrevendo o exemplo do primeiro clube de menores da America Latina, fundado no Chile em 1932, Miranda (1984) afir- ma que essa organizagao foi elaborada a partir do estudo do proble- ma nos Estados Unidos. Para pertencer ao Clube, os menores devi- am assinar um compromisso, tendo em vista cumprir as normas da vida clubistica: Respeitar os companheiros e os superiores, andar sempre limpo, dizer sempre a verdade, nao tornar riunca o alheio, nao dizer nem escrever palavroes e nem cometer agoes improprias, auxiliar os companheiros e o clube e demons- trar, com sua conduta, em todas as partes, ser digno de ser socio do 1" Clube de Menores do Chile. (MIRANDA, 1984, P-32) Muitos problemas dificultavam a organizacao de propostas de recreacao para os menores operarios na capital paulista, tais como a escassez de terrenes municipals, o custo vultoso das obras e a demora decorrente do proprio servigo publico em criar novos ser- vicos. Visando equacionar esses problemas, Miranda (1984) escla- rece que a alternativa encontrada foi estabelecer que os novos par- ques instaladospela Prefeitura nao fossem "Parques Infantis", mas "Parques de Jogos", para que tambem pudessem ser destinados aos adolescentes. Assim, os parques deveriam center instances que nao fos- sem especificas apenas para crian^as, abrigando pistas de corrida, piscinas, locais para jogos atleticos e esportivos, campos de futebol 32 Lazer e trabalho: um unico ou multiples olharcs? e quadras de bola ao cesto. Essa orientacao foi adotada pela municipalidade de Sao Paulo, e os Parques de Jogos de Barra Funda, Catumbi, Belenzinho e Vila Romana foram projetados dentro des- ses moldes. CLUBES DE MENORES OPERARIOS: POSSIBILIDA- DE DE PREENCHER AS HORAS DE LAZER DOS JOVENS E DE EDUCA-LOS PARA QUE PUDESSEM SE TORNAR TRABALHADORES VIGOROSOS, DISCIPLINADOS E PRODUTIVOS. 01° Clube de Menores Qperdrios foi instituido, em Sao Paulo, no ano de 1937 e, segundo Miranda (1984, p.32), esta foi "uma realizagdo que aconteceu pela primeira vez no pais." O Clube tambem visava a proporcionar educac.ao, assistencia e recreacao para os tra- balhadores adolescentes, responsaveis pelo contmuo engrandeci- mento economico e cultural do pais. O Clube poderia colaborar, ainda, com a constituicao de corpos disciplinados e aptos para o trabalho, em um mercado cambiante e flexivel que precisava de trabalhadores vigorosos, preparados e disponiveis para funcionar. Destinado a educac.ao da juventude operaria, o Clube de Menores Operdrios adotava meios para a realizagao desse proposito. O que ern outras realizac.6es semelhantes poderia constituir um fim, tais como os jogos, os esportes e a recreacao, no Clube, representavam um meio, e era esta a caracteristica fundamental e inconfundivel desse sistema: Por intermedio de ativjdades v^rias, utilizadas como for- mas de recrcagao, contando-se entre as principais os jogos, os esportes, o canto coral, bibliotecas, excursoes, acampa- mento, organizacao de conselho de lideres, seu objetivo precipuo tern sido formar a personalidade do adolescence proletario de hoje, e firmar essa personalidade no proleta- rio adulto de amanha. (PREFEITURA DO MUNICIPIO DE SAO PAULO, 1943, p.l) Cuidando da fase critlca de transicao entre a infancia e a adolescencia, o 1" Clube de Menores Operdrios foi instituido no Par- Lazer e trabalho no contexto urbano 33 que D. Pedro II. Funcionando a noite, atendia egressos dos Parques Infantis, muitos dos quais ja se encontravam empregados como ope- rarios. Segundo Nicanor Miranda, o aumento da despesa com o Clube se resumia apenas na contratac,ao de um instrutor. No ano de 1938, mais dois Clubes estavam previstos para serem inaugurados no Parque da Lapa e do Ipiranga, mas a Prefeitu- ra, administrada por Prestes Maia, contratou apenas um instrutor. Assim, o Clube de Menores da Lapa fbi inaugurado nos primeiros meses do ano, mas acabou sendo fechado pouco depots, em decor- rencia da exoneragao do profissional contra tado. Nessas condic.oes, funcionou, nesse periodo, apenas o Clube D. Pedro II (PREFEITU- RA DO MUNICIPIO DE SAO PAULO, 1938). De acordo com as estatisticas da epoca, 300 adolescentes estavam sendo atendidos no Clube de Menores Pedro II (MIRANDA, 1938a) e, a parcir das 18 horas, iniciava-se o servigo com os seus "associados".2 As atividades realizadas eram diversificadas e seguiam uma programagao fundamentada, sobretu- do, nos conhecimentos produzidos nos campos da Pedagogia e da Psicologia (MIRANDA, 1984). Ao chegarem ao Parque, os menores se dedicavam a ativida- des tranquilas como xadrez, dama, domino, leitura; participavam de reunioes das comissoes esportivas do Clube, de aulas teoricas sobre jogos ou assistiam a palestras ministradas pelos professores. Apos a refeicao, tinham intcio as aulas de educagao fisica, seguidas de jogos e esportes: futebol, bola ao cesto, voleibol, pugilismo, es- grima, corrida, arremesso de peso, salto em altura, entre diversos outros. Alem da educagao fisica e dos jogos, havia um programa de recreacao que incluia festivals, acampamentos, excursoes e viagens. Foi organizado um acampamento permanente na praia da repress Guarapiranga, em Santo Amaro, para proporcionar ao menor ope- rario uma vida em contato com a natureza (MIRANDA, [s.d.]). Esta foi uma das oportunidades sociabilizadoras proporcionadas por Ao ser registrado, cada socio recebia uma carteira de identificagao. Segundo Miranda (1984), a ficha de registro acusava, entre outros dados, a nacionali- dade, profiss&o e salario dos pais; nacionalidade, escolaridade, salario e pro- fissao do menor. 34 Lazer e trabalho: utn draco ou multiples olhares? esses sistemas educativos.3 Na pesquisa realizada (WERNECK, 2003), verifiquei que, entre 1939 e 1941, os Clubes de Menores da Lapa e do Ipiranga entraram em funcionamento. A capacidade de atendimento desses Clubes totalizava, no inicio de 1941, quase 300 rapazes, como pode ser constatado em artigos jornalisticos de autoria de Mario de Andrade, publicados em abril desse ultimo ano (O ESTADO DE SAO PAULO, 13/4/1941 ;DIARIODE SAO PAULO, 16/4/1941). Ou as estatisticas apontadas por Miranda (1938a) nao estavam cor- retas quando este afirmou que 300 menores estavam sendo atendi- dos apenas no Clube Pedro II, ou a capacidade de atendimento do Clube fbi alterada, de maneira que cada Parque de Jogo passou a beneficiar em torno de 100 rapazes. Conforme as palavras de Mario de Andrade, gragas a iniciativa inceligente de Nicanor Miranda e a dedicagao de Alceu Maynard de Araujo e seus colegas instmtores, urn numero ja ponder&vel de menores operari- os se aglomera nesses clubes, em vez de ficar vagando pelas ruas a noite, ma's conselheiras em. geral. Sao rapazes de 13 a 21 anos os frequentadores desses clubes de meno- res; nos seus varios tamanhos e forc.as, executando em franco modo maior, toda a escala da puberdade. E posso testemunhar o quanto e dificil o trabalho desses instruto- resf na orientagao dessa rapaziada asperrima na forca fisi- ca de trabalhadores manuals, mas conservando na alma essa delicadeza inesperada e sempre insondavel da juven- tude. (DlARIO DE SAO PAULO, 16/4/1941) As viagens eram muito apreciadas pelos menores, como enfatiza Miranda (1984, p.35-36); "Cada menor contribute com a medida de suas posses para a viagem que se realizava em grupo de 60 a 90 socios. As viagens eram realizadas a cidades proximas e vizinhas, sendo que Santos, com seus arredo- res, despertavam um encusiasmo fora do cornum, devido talvez ao fato de muitos menores terem atingido a idade de 16 e 17 anos sem jamais terem visto o mar! (...) O conhecimento de outras cidades despercava-lhes o desejo de travar relates com pessoas de fora e estrangeiros. Trocando cartas com argentinos, foi estabelecido um interessante concato internacional, mediante o qual ficaram os menores conhecendo no^oes elementares sobre paises es- trangeiros e dando a conhecer alguma coisa do nosso". Lazer c trabalho no contexto urbano 35 Meu interesse sobre as consideracoes de Mario de Andrade incide sobre as informac.oes que nos fornece sobre o trabalho de- senvolvido nos Clubes de Menores Operarios. Tal encaminhamen- to nos permite mapear mais alguns elementos que auxiliam a com- preender as inter-relac,6es entre o lazer e o trabalho construidas pela experiencia institucional paulistana. Destaco, assim, um as- pecto relevante: o desenvolvimento de atividades recreativas que evitassem a entrega dos adolescentes ao ocio e a vadiagem ,gerado- res de vicios e criniinalidade, o que poderia ser prejudicial a socie- dade. Era nesse ambito que o adequado preenchimento das horas de lazer dos menores operarios poderia ser util ao trabalho produti- vo. Convem lembrar que a criacao de sistemas educativos como os Clubes de Menores Operarios ocorreu paralelamente ao advento da legislac,ao intervencionista de protegao ao trabalho, como indi- caMarinho{1957,p.l35): O Escado, com a evolugao das leis trabalhistas, veio paula- tinamente reduzindo a Jornada de trabalho para 12, 10, 9 e 8 horas de labor, aumentando os momentos de folga, e, desta forma, criando o problema do uso adequadodas horas de lazer. Poderemos, tambem, afirmar que os povos nao se depauperam nem se degeneram nas suas horas de trabalho, mas, isto sim, nas suas horas de lazer, de ocio. Em conseqiiencia, todo esforgo dos poderes piiblicos no senti- do de atender as irnperiosas necessidades de recreagao do povo constituiriarn medida preservadora das suas energias fisicas e morais. Este pensamento que concebe o lazer como regra, e o ocio, como desvio, constitui os pilares de um preconceito ainda existen- te, recorrente no senso comum e em algumas areas de conhecimen- to. Desde a decada de 1940, o lazer dos mogos operarios, decor- rente da ampliagao do tempo livre, funcionava como um intervalo plenamente aproveitavel, como um memento a ser gerido, contro- lado e inspecionado pelo poder publico, a fim de extrair todo o proveito moral e higienico possivel. O controle do tempo de "nao trabalho" foi concebido, portanto, como uma forma de controle social. Entre outras, possivelmente esta foi uma das razoes que le- 36 Lazer e trabalho: um unico ou multiples oihares? vou a municipalidade paulista a criar e a manter os Clubes. Esta suposigao e confirmada por Nicanor Miranda em um artigo jornalistico, de sua autoria, publicado no jornal O Estado de Sao Paulo em 1943, no qual presta informagoes sobre os Clubes de Menores Operarios. Aquele momento o Departamento de Cultura e Recreagao nao havia instalado mais nenhum clube alem dos ou- tros tres criados anteriormente. Nicanor Miranda explica que os Clubes de Menores eram em numero muito reduzido, funcionavam diariamente, das 19 as 23 horas, exceto nos sabados e domingos, congregando aproximadamente, 350 rapazes. Conforme observa o autor, a parte educacional vinha sendo constantemente aperfeigoada e promovia interessantes conquis- tas, como, por exemplo, a elevagao do nivel intelectual dos jovens. Mas este avango nao vinha sendo acompanhado pela ampliagao das instalagoes. Todavia, a benefica influencia dessa agao acabava se estendendo a milhares de adolescentes operarios, pois muitos gru- pos de jogadores e esportistas "surgiam de todas as partes para dis- putar peladas de futebol, bola ao cesto, voleibol, pugilismo, atletis- mo, com os socios dos Clubes" (O Estado de Sao Paulo, 4/4/1943). O autor finaliza sua exposigao, ressaltando o grande interes- se das pessoas por esse tipo de proposta voltada para a organizagao do lazer dos menores operarios: O Clube de Menores Pedro II 6 visitado anualmente por mais de 30.000 jovens, o do Ipiranga por mais de 20.000 e o da Lapa por mais de 5.000. O que representa algurna cousa em prol da organizagao dos lazeres dos mogos operfirios. (O ESTADO DE SAO PAULO, 4/4/1943) Para a Prefeitura de Sao Paulo, os Clubes, restritos aos me- nores operarios do sexo masculino, constituiam um servic.o publi- co de grande valor que, cada vez mais prestigiado pelos governantes, representava uma notavel obra social. Afinal, esses sistemas nao visavam apenas a educagao fisica da juventude trabalhadora de Sao Paulo, tendo uma finalidade mais ampla e universal: criar uma per- sonalidade vigorosa no adolescente operario, cuja expressao seria formada com a pratica dos jogos, dos esportes e do cultivo de deter- minadas formas de arte. Assim, o lazer, enquanto espago social, distribuia o poder e, conseqiientemente, posicionava os sujeitos, Lazer e trabalho no concexto urbano 37 proporcionando o acesso a determinadas atividades. Podemos concluir, portanto, que o prop6sito dos Clubes era desenvolver atividades consideradas licitas e saudaveis, tanto do ponto de vista biologico, como moral e social, que pudessem ocupar o tempo de lazer dos menores operarios, desenvolver a educasao e aumentar a resistencia fisica desses jovens (WERNECK, 2003). A preocupagao com a educagao higienica do povo vinculou o tempo de trabalho com o de recreagao, fazendo do primeiro o necessario contraponto da segunda (SCARES, 1994)- Paralelamen- te, o pensamento higienista difundiu a ideia da recreagao como um meio eficiente de recuperar as forgas despendidas ao longo da Jor- nada de trabalho nao apenas dos homens, mas tambem das mulhe- res e das criangas operarias. A ORGANlZAgAO DAS HORAS DE LAZER DA MOQA OPERAR1A: COROLARIO DO TRABALHO PRO- DUTIVO E PREPARAgAO PARA O CUMPRIMENTO DO PAPEL SOCIAL A ELA DESIGNADO A importancia de se organizar os momentos de lazer, torna- do este um corolario do trabalho produtivo, perpassa artigos jornalisticos de Nicanor Miranda que colocam em evidencia a mega operaria. Neste momento, visualizamos a preocupagao do chefe da Divisao de Educagao e Recreio em possibilttar as mogas os mesmos beneficios que vinham sendo concedidos aos rapazes. A lembranga das "horas de alegria e saude" vividas pela cri- anca nos Parques Infantis se perpetuava no coragao do adolescente, fato evidenciado nas frequentes visitas que os egressos faziam a instrutora, a educadora-sanitaria, ao medico e aos seus pequenos companheiros. A maioria dessas visitas objetivava "reviver mo- mentos de prazer proporcionados pela vida ao ar livre, ao sol, com exercicios fisicos, jogos e atividades recreacionais livres ou organi- zadas" (O ESTADO DE SAO PAULO, 24/7/1943). Quando criangas, as meninas contavam com orientadores para as suas atividades mais corriqueiras, mas, em plena juventude, no momento em que mais precisavam, nao encontravam mais o auxflio seguro: seja para uma orientagao profissional, um problema intimo, tratamento de molestias, desenvolvimento de trabalhos manuals, confecgao de enxoval. Se esses problemas representavam 38 Lazer e trabalho: um unico ou multiples olhares? um resulcado das falhas de uma educagao que anos e anos de vida no Parque nao conseguiram sanar, a situacao das mocas operarias que nao tiveram essa oportunidade deveria ser ainda pior. No caso dos rapazes, o autor afirma que, enquanto ao Estado competia a formac^ao de personalidades fortes e vigorosas, indivi- duos cheios de entusiasmo e energia para servirem como eficientes "obreiros da Nac.ao", no caso da jovem operaria, o problema era "mais complexo, mais delicado e mais fundamental: serem aptas para formar geragoes mais capazes e mais robustas que as atuais." (O ESTADO DE SAO PAULO, 7/8/1943) O Brasil, pais novo e cheio de vico, nao pode considerar secundario - e nao o considera - um problema tao basico como o da formacao de maes operarias. E € por isso que toda a contribuigao, ainda mesmo que possa parecer exi- gua e minima aos olhos dos ceticos como a de um Clube de Mocas Operarias, representa mais uma estaca da constru- cao de um Brasil grandioso, respeitado e considerado no concerto das Nacoes. (O ESTADO DE SAO PAULO, II 8/1943) Nos textos jornalfsticos analisados, o autor reforca a ideia de que as mulheres, mesmo exercendo o oficio operario, nao deveriam descuidar do papel social a elas reservado, ou seja, a maternidade. Para esta sublime missao as jovens deveriam ser formadas e conduzidas pelos poderes publicos, pois uma "educac.ao incomple- ta11 das mogas operarias acabava gerando varias deficiencias (WERNECKf2003). As falhas, erros, vfcios e defeitos provenientes de uma edu- cagao incompleta da moca operaria podem resumir-se mais ou menos no seguinte: ausencia da noc.ao de responsabili- dade, do sentimento do dever; do valor da pontualidade; falta de escrupulos em relacao as coisas alheias; atitudes levianas nos lugares publicos, na rua, no ceatro, no cinema, na saida das festas, na vida em sociedade; falta de tino no comportamento em relacao ao sexo masculino, responden- do aos gracejos, inocentes ou nao, com inconveniencia ou brutalidade; incapacidade para escolher as suas ieituras e divertimentos; incompetencia para preencher conscien- trabalho no contexto urbano 39 temente as suas horas de lazer e organiza-las sob forma educativa (...). (O ESTADO DE SAO PAULO, 24/7/ 1943). As ideias expostas pelo autor na citagao acima sao uma evi- dencia de que o emprego "consciente e educativo" das horas de lazer das mogas e rapazes operarios realmente constitute uma gran- de preocupacaode Nicanor Miranda. Este profissional atuou, por aproximadamente uma decada, como chefe da Divisao de Educacao e Recreio do Departamento de Cultura, sendo um dos responsaveis pelo encaminhamento das propostas de recreagao organizadas pela experiencia institucional paulistana. O autor acreditava que, assim como a educagao de qualquer ser humano, a formacao da moca operdria deveria ser "total", isto e, fisica, intelectual, moral, estetica, social e sexual. Para tanto, seria fundamental que elas tivessem a oportunidade de freqiientar, de maneira semelhante aos rapazes, Clubes de Mogas Operarias. Conforme a sua visao, em linhas gerais, as atividades mais indicadas para a moc,a operaria eram aquelas que constituiam um programa de recreagao adequado a adolescencia, podendo ser clas- sificadas em fisicas, manuais, dramaticas, musicals e sociais. "Sao, alias, atividades pertinentes a um programa de recreagao para qual- quer idade" (O ESTADO DE SAO PAULO, 5/9/1943). A iniciativa de classificar as atividades que deveriam consti- tuir um programa de recreagao representa, para nos, uma agao ino- vadora e de extrema importancia para os estudiosos do lazer. Seja ou nao uma proposta de autoria do proprio Nicanor Miranda, o funda- mental e que, em 1943, este autor ja esbocava um sistema de car.egorizac.ao que englobava varies campos de interesses, os quais correspondiam aos valores hegemonicos na e"poca. Geralmente os estudiosos brasileiros do lazer adotam a clas- sificac.ao proposta por Joffre Dumazedier (1979), que distingue cin- co campos fundamentais, assim denorninados: os interesses fisico- esportivos, os sociais, os manuals, os intelectuais e os artisticos.4 Esta classificagao, apesar de ser vista com ressalvas por alguns pes- quisadores pelo fato de que toda categorizagao acaba negligencian- Camargo (1986) acrescenta a esta classificacao o campo dos interesses turis- ticos. 40 Lazer e trabalho: um unico ou mfiltiplos olharcs? do alguns aspectos, e" amplamente reproduzida por diversos autores da area. Sua larga difusao e justificada, principalmente, por ser con- siderada uma sistematica interessante para diversificar as ativida- des de lazer. Contudo, enquanto o soci6logo frances apresentou esta clas- sificagao na decada de 1970, recebendo ampla aceitagao pelos estu- diosos do lazer, cerca de 30 anos antes Nicanor Miranda, um autor brasileiro, ja delineava uma proposta dessa natureza, fato ainda des- conhecido em nosso meio. No jornal O Estado de Sao Paulo, de 5/9/ 1943, este autor fez algumas recomendagoes quanto a um programa de recreacao adequado as jovens trabalhadoras; As atividades fisicas para a moca operaria devem ser cui- dadosamente escolhidas. Em primeiro lugar e preciso lem- brar que tipo de trabalho a moca realiza na fabrica onde esta empregada, pois e mister nao esquecer que o exerci- cio fisico deve estar condicionado ao trabalho jornaleiro que a jovem realiza. Pode-se apontar alguns cipos de exer- cicios, jogos e esportes recomendaveis. Ginastica analitica, corretiva e terap6utica, ginastica ritraica, dan^as, bailados, voleibol, 'ring toss' (erroneamente chamado 'deck tenis' entre nos), 'badminton', shurfeboard', 'handball' em campo reduzido, natagao, pingue-pongue, croque, etc., etc. No que se refere as atividades manuals, o autor recomenda adotar, em primeiro lugar, todas aquelas que tivessem uma aplica- cao domestica imediata. Fornece varios exemplos, dentre os quais bordado, trico e costura. Esses afazeres eram considerados apropri- ados para a mulher que se desejava formar, pois, mesmo trabalhan- do e executando oficios duros e desgastantes, essas atividades seri- am um recurso para agucar a sensibilidade feminina da moc_a opera- ria. A jovem deveria desenvolver habilidades manuals voltadas para a decora^ao do lar, para pequenos trabalhos de madeira, confecgao de bonecas, desenho, pintura, escultura, modelagem, pintura de cenarios e decoragao de palco. As atividades dramdticas, por sua vez, seriam constituidas por vivencias que envolvessem todos os generos teatrais, Inclulndo as comedias, os dramas e a operetas. As musicals poderiam ser "vocais ou instrumentais. Coros, pequenos grupos orquestrais, concertos, espetaculos e festivals de musica, audioes de discos e de radio" (O Lazer e trabalho no contcxto urbano 41 ESTADO DE SAO PAULO, 5/9/1943). Finalmente, as atividades socials seriam constituidas de todas as posslbilidades que pudessem, simultaneamente, "proporcionar o ensino das boas maneiras e socializar, no mais alto grau, a adoles- cente operaria". Neste ambito, sao inumeros os exemplos dados pelo autor: convescotes, excursoes, viagens de curta distancia, visi- tas educativas, festivals esportivos, artistlcos e socials; festas civi- cas em datas nacionais, festas de pals e maes, entre outras experi- e'ncias. Ainda considerando o universo das atividades sociais, o au- tor destaca que, para atribuir maior eficiencia a obra educaclonal, os poderes publicos deveriam organizar uma sala na qual pudessem ser desenvolvidos jogos diversos (xadrez, damas, domino), auxili- ando, tambem., a estruturagao de conselhos de lideres das princi- pals atividades realizadas no Clube de Mocas Operdrias. Nicanor Miranda finaliza seu texto (O ESTADO DE SAO PAULO, 5/9/1943), dizendo que um piano elaborado nesses mol- des serviria apenas para um trabalho initial, pois apenas a experi- encia seria capaz de apontar as necessarias ampliagoes e modifica- coes a serem observadas em um programa de recreagao para as jo- vens trabalhadoras. Analisando as materias de autoria de Nicanor Miranda so- bre a moga operaria, publicadas no jornal O Estado de Sao Paulo em 1943 (nos dias 24/7, 7/8 e 5/9), temos a impressao de que o autor empreende esforgos para justificar a necessidade de se estender o service prestado aos rapazes dos Clubes de Menores Operdrios para as adolescentes. Assim, ate o ano de 1943, o Clube de Mocas parecia airida nao estar implantado, apesar de na obra de Miranda (1984) observarmos que o autor revela que esse service prestou educagao, assistencia e recreagao para as jovens. E a informagao tambem contida em um documento elabora- do pela agora denominada "Divisao de Educacao, Assistencia e Recreio" da Prefeitura Municipal de Sao Paulo (1949), chefiada pelo medico Joao de Deus Bueno dos Reis, colega de Nicanor Miranda, que vinha participando dessa proposta desde a epoca de criacjao do Departamento de Cultura. Dessa maneira, vemos que o texto indica que o Parque Infantil da Barra Funda tambem funcio- nava como um "Centro de Moc_as" e que outros Parques continham 42 Lazer e trabalho: um unico ou multiples olhares? "Centro de Rapazes". Possivelmente, as novas denominagoes fo- ram dadas a Divisao e aos Clubes de Menores, e de Mocas Operari- as, a partir da reforma administrativa realizada em 1947. No inicio da gestao do prefeito Abrahao Ribeiro, em dezem- bro de 1945, um Decreto-Lei redefiniu o organograma da maquina administrativa paulistana. Varias outras modificacoes foram pro- cessadas em 1947, atingindo varies setores, dentre os quais o De- partamento de Cultura e Recreagao. Com a reforma, esse orgao cultural, fundado em 1935, deixou de ser um Departamento auto- nomo e passou a integrar a estrutura administrativa da recem-cri- ada Secretaria Municipal de Educagdo e Cultura (REVISTA DO AR- QUIVO MUNICIPAL, 1991). Essa modificacao foi determinante para que as acoes desen- volvidas nos Parques Infantis e Parques de Jogos perdessem o cara- ter de educac,ao extra-escolar e fossem gradativamente encaminha- das para o ensino formal. Esta nova orientacao culminou com a transformac.ao desses logradouros nas atuais Escolas Municipals de Educagao Infantil (EMEIS) de Sao Paulo. Desta maneira, a politica cultural idealizada em 1935 preo- cupou-se, entre outros pontos, com a organizacao de programas de recreacao para a crianc.a pobre e o adolescente operario. Mas esta politica foi interrompida na trajetoria da experiencia municipal paulistana em 1947, ano que marca o ponto de chegada
Compartilhar