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Estética, esporte e educação física - Hugo Lovisolo

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O
Cfi
Os esportes tornaram-se um poderoso campo de oportuni-
dades para a razão utilitária. Porem, num mesmo movimento,
um campo de expressão e desenvolvimento de gostos, emoções
e prazeres. Nas peculiaridades da junção da razão prática e da
razão estética, o autor procura chaves de entendimento para os
fenômenos correlates do esporte e a formação corporal. Por
esses caminhos, a obra é urn esforço significativo, inteligente e
válido de compreensão da cultura corporal.
A obra reflete a importante contribuição que o Dr. Hugo
I^ovisolo vem realizando enquanto antropólogo, para entender
nosso campo de reflexão c intervenção.
Desejo destacar o fato de que sua participação em nossa
área, que já também é sua, realiza-sc sem que o Dr. Lovisolo
abandone o referencial das ciências sociais nem sua inserção
nelas, via produção e docência, como testemunha sua contribui-
ção atual sobre o desenvolvimento de comunidades científicas
em países da América Latina e, especialmente, na Argentina e
no Brasil.
Dr. Helder Guerra de Resende
ISBNaS-7332-044-3
D
E
cd
o
Hugo Lovisolo
ÍC
CL
SPRINT
" Educação Física como Arte da
Mediação
• Educação e Educação Física
em escolas do Rio de Janeiro
• Regras, esportes e capitalismo
• Esporte e movimento pela
saúde
• Ciências do esporte:
Iníerdisciplinaridade ou
mediação
ÍPHINT
Tele-atendimento
(02}) 264-8080
(021)567-0295
BEXIGA, ESPORTE E
;DUGAÇÃO FÍSICA
ENSAIOS
HUGO LOVISOLO
Rio de Janeiro
1997
Direitos exclusivos para a língua portuguesa
Copyright© 1997 by
EDITORA SPRINT LTDA.
Rua Adolfo Mota, 69
CEP 20540-100 - Rio de Janeiro - RJ
Tel.: (021) 264-8080 — Fax: (021) 284-9340
ISBN 85-7332-044-3
Reservados todos os direitos.
Proibida a reprodução desta obra, ou de suas partes,
sem o consentimento expresso da Editora.
CIP-Brasil. Catalogação na fonte
LOVISOLO, Hugo
ESTÉTICA, ESPORTE E EDUCAÇÃO FÍSICA - Sprint
Editora - Rio de Janeiro - RJ - 1997
ISBN 85-7332-044-3
l. Estética
3. Cultura
5. Antropologia
I. Título
2. Esportes
4. Educação Física
Depósito legal na Biblioteca Nacional, conforme
Decreto n° 1825 de 20 de dezembro de 1967
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
ESTÉTICA, ESPORTE E
EDUCAÇÃO FÍSICA
ENSAIOS
HUGO LOVISOLO
Rio de Janeiro
1997
índice
Introdução 5
Capítulo l
Da ciência da gastronomia à estética 11
Capítulo 2
Educação, estética e movimento 31
Capítulo 3
Normas, utilidades e gostos na aprendizagem 51
Capítulo 4
Esporte: normas, utilidades e gostos 81
Capítulo 5
Público e privado e as questões do lazer 105
Capítulo 6
Hegemonia e legitimidade
nas ciências dos esportes 121
Capítulo 7
Esporte e cooperação 145
Bibliografia 169
Sobre o Autor
• Doutor em Antropologia Social
• Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação
Física, mestrado e doutorado da Universidade Gama Filho - R]
e do Departamento de Ciências Sociais da UERJ.
• Autor de numerosos artigos e vários livros, entre eles:
"Educação Popular: maioridade e conciliação"
Ed. UFBA-EGBA, 1992
"Educação Física - Arte da Mediação"
Ed. SPRINT, 1995
Prefácio
O campo da cultura esportiva e corporal cresceu signifi-
cativamente ao longo do século. O desenvolvimento dos meios
de comunicação situou o esporte e a formação corporal ao vivo
dentro dos lares, favorecendo a constituição de um púbico de
tamanho jamais imaginado. A indústria, os serviços, a formação
profissional e a pesquisa cresceram e diversificaram-se em torno
da atividade esportiva e da formação corporal. Identidades
individuais e coletivas, procura de reconhecimento social,
geração e canalização de sentimentos e emoções são, para o
autor, dimensões da estética que permeia o campo. Uma estética
popular universalizante, a do gesto esportivo e dos modelos
corporais, que parece atravessar as fronteiras entre as classes
sociais, entre as culturas nacionais e regionais e, ao mesmo
tempo, favorece o desenvolvimento de sentimentos de iden-
tidade na criação de estilos próprios no futebol, no basquetebol,
no pólo ou na formação e expressão corporal.
Os esportes tornaram-se um poderoso campo de oportu-
nidades para a razão utilitária. Porém, num mesmo movimento,
um campo de expressão e desenvolvimento de gostos, emoções
e prazeres. Nas peculiaridades da junção da razão prática e da
razão estética, o autor procura chaves de entendimento para os
fenômenos correlates do esporte e a formação corporal. Por esses
caminhos, a obra é um esforço significativo, inteligente e válido
de compreensão da cultura corporal.
A obra reflete a importante contribuição que o Dr. Hugo
Lovisolo vem realizando enquanto antropólogo, para entender
nosso campo de reflexão e intervenção.
Desejo destacar o fato de que sua participação em nossa área,
que já também é sua, realiza-se sem que o Dr. Lovisolo aban-
done o referencial das ciências sociais nem sua inserção nela, via
produção e docência, como testemunha sua contribuição atual
sobre o desenvolvimento de comunidades científicas em países
da América Latina e, especialmente, na Argentina e no Brasil.
Dr. Helder Guerra de Resende
Introdução
As sociedades ocidentais tornaram-se crescentemente
campo das intervenções racionalizadoras realizada por espe-
cialistas, por profissionais, quer quando se pretende reformar,
quer quando se pretende revolucionar as relações sociais, a
ordem social, a cultura ou os estilos de vida. O processos, de
desencantamento do mundo e a crescente racionalidade,
apontados por Max Weber como eixos do mundo moderno, estão
na base da intervenção dos especialistas e se manifestam como
predomínio do valor da ciência, da técnica e da tecnologia de
base científica no campo da intervenção social. O próprio
marxismo, considerado como o projeto revolucionário da mo-
dernidade, pretendeu ser uma intervenção científica no
diagnóstico e para a ação e, na percepção leninista, o partido
revolucionário devia estar formado por profissionais ou espe-
cialistas na condução das massas operárias para a conquista do
poder.
A intervenção, contudo, destina-se, no cotidiano da vida
institucional pública e privada a atingir objetivos, cujos funda-
mentos últimos são valores (solidariedade, felicidade, progresso,
bem-estar, igualdade, saúde, realização pessoal, entre outros), a
partir das propostas e ações de especialistas supostamente
fundadas em conhecimentos científicos e tecnológicos. Os
especialistas podem tanto situar-se como maximizadores da
relações entre meios e objetivos quanto como formuladores dos
objetivos e dos valores que os referenciam. Assim, podem dizer
que estão a serviço da saúde ou da emancipação aceitando as
definições populares ou pretender definir seus significados e os
objetivos que estimam são indicadores de suas concretizações,
embora se distanciando ou contrapondo, ou, ainda, propor novos
valores e objetivos. No primeiro caso, os especialistas não
questionam os valores e objetivos que procuram maximizar
racionalizando a intervenção. No segundo e no terceiro, sim, o
fazem, discutindo os valores que deveriam orientar a intervenção
e construindo argumentos legitimadores para orientar suas
propostas.
Nas universidades e instituições de ensino superior,
antigas e novas ocupações são racionalizadas e sistematizadas,
com o objetivo geral de formar especialistas ou profissionais da
intervenção nos mais variados campos das práticas sociais: admi-
nistração, saúde, estética, turismo, sexualidade, lazer, educação,
produção, segurança e tantas outras. Antigas ocupações, baseadas
na aprendizagem na vida ou na prática, tornam-se profissões
racionalizadas e ensinadas em ambientes formais de apren-
dizagem. Os especialistas das profissões devem gerar discursos
justificadores e orientadores de sua ação e propostas de racio-
nalização da relação entre meios, condições e objetivos. Em cada
campo de intervenção os especialistas debatem as propostas
concorrentes que pretendem dar unidade à intervenção em cada
profissão ou especialidade. Em algumas profissões, o debate
parecer ser endêmico, mais que epidêmico ou meramente
conjuntural, indicando que os valores orientadoresda ação de
intervenção não são consensuais e, também, que a fundação
científica dos conhecimentos e relativa. Assim, a discussão pela
conquista da hegemonia em cada campo tende a tornar-se
permanente, paripassu, com a procura ativa da legitimidade para
ação social. A procura de legitimidade e reconhecimento
profissional tornam-se, por vezes, numa tarefa obsessiva e
desgarrante; a legalização e normatização da profissão, num
objetivo recorrente de legitimação e reconhecimento.
No campo das atividades corporais e esportivas o número
de especialistas cresceu tão rápido quanto o das escolas, para sua
formação. A base representacional desse crescimento foi o
discurso sobre as sociedades modernas que, pelo seu tipo de vida
urbano e sedentário, demandariam a promoção da atividade
corporal em benefício da saúde física e mental e tendo como
horizonte a Nação e o Progresso. Ginástica e esporte foram
visualizados como atividades que podiam colaborar com a
formação dos corpos e do caráter a serviço da saúde, da pro-
dutividade, do nacionalismo, da felicidade e moralidade, entre
outros valores. Sobre essa matriz formativa, e por vezes em
contraposição, desenvolveu-se um poderoso movimento ideoló-
gico e econômico, que levou o espetáculo esportivo a ser uma
preferência na vida moderna juntamente com um estilo
esportivo no modo de se vestir, alimentar, construir e operar com
o corpo e na organização e prática do lazer. Os especialistas
passaram a formular propostas de intervenção nesse mundo
amplo e diferenciado: regime alimentar e de sono, roupas,
cosméticos, atividades corporais, recreação, sexo e tantas outras
esferas de atividades foram reguladas por suas intervenções
geralmente fundamentadas em conhecimentos ditos científicos.
As questões teóricas e práticas sobre a intervenção
multiplicaram-se, desdobraram-se e a procura de fundamentos e
respostas tornou-se uma atividade quase constante dos profissio-
nais da área e as reinvindicações de legitimidade e reconhe-
cimento parecem se haver avolumado nas últimas décadas.
Em termos de legitimação, a linguagem da moral ou da
norma e a do utilitarismo ou da prática foram acionadas para se
construírem argumentos a favor da atividade corporal e do
esporte enquanto moralizadores e utilitários. A educação física
situou-se tanto a serviço da formação moral e da ordem social,
bem antiga e conservadora, de novo tipo e revolucionária, quanto
da aptidão corporal. Ambas foram pilares de sua intervenção e os
historiadores oferecem dados e interpretações consistentes nessa
direção. Assim, durante bastante tempo, moral e economia foram
bases para a intervenção da educação física. A intervenção sobre
os corpos foi, e ainda é, dominantemente moral e econômica.
Essas matrizes fundamentadoras da ação de intervenção
não foram abandonadas. Entretanto, de forma lenta, uma nova
matriz começou a dar sentido à intervenção - a estética.
Lentamente foi impondo o reconhecimento de sua presença:
como demanda e ação de formação de corpos estéticos e como
campo do espetáculo esportivo no qual as emoções e os gostos,
ambos componentes centrais do fenômeno estético e de suas
teorizações, podem ser expressados, descarregados, elaborados.
A linguagem estética foi ganhando destaque, abrangência e
intensidade.
Os artigos-ensaios apresentados neste livro tratam da
relação entre o fundamento estético, a formação dos corpos e o
esporte. De modo geral, foram escritos diante de solicitações
específicas e, sobretudo, diante de demandas de conversas ou
conferências. Decorre dessa demanda o tom por vezes coloquial
com o qual estão escritos.
Em Da ciência da gastronomia à estética procura-se apresentar
como, no início do século XIX, a idéia da estética corporal,
sobretudo entre as mulheres, aparece como elemento orientador
das condutas gastronômicas e da atividade corporal. Em outros
termos, cedo descobriu-se que poderia ser mais fácil convencer
as pessoas para que enfrentassem um regime corporal a partir de
razões estéticas, que a partir de razões morais ou econômicas,
isto é, de saúde. O entendimento da cultura como estética, seu
impacto na pedagogia moderna e sobre a educação física escolar,
v é explorado em Educação, estética e movimento. As linguagens da
moral, da utilidade e da estética são postas em relação mais
sistemática em Normas, utilidades e gostos na aprendizagem. Trata-
se, basicamente, de compreender como a linguagem estética,
expressada nos gostos, impõe novas tarefas ao processo de
aprendizagem e qual poderiam ser os lineamentos de inter-
venção de uma educação física preocupada com dinâmica
escolar, ao invés de centrar-se apenas nos objetivos disciplinares,
no sentido do ensino da disciplina Educação Física. Em Esportes:
normas, utilidades e gostos, as razões ou modelos da atividade
corporal e do esporte, consideradas como linguagens, são postas
em relação à dinâmica de suas contraposições e tendências que
afetam nosso presente. Público e privado e as questões do lazer
significa um momento de visualização entre o desenvolvimento
da intimidade ou privacidade, enquanto domínio dos gostos, e o
público, nas mediações, por vezes paradoxais, que o lazer
envolve.
Os dois últimos capítulos. Em Hegemonia e legitimidade nas
ciência do esporte são discutidos os problemas que envolvem a
racionalização, sistematização e profissionalização da educação
física e das ciências dos esportes, sob o ponto de vista das lutas
pela hegemonia (teórica e metodológica) e a legitimidade social,
focalizando os problemas atuais sobre o que é a educação física
e a ciência dos esportes, quais suas limitações e potencialidades
no contexto da vida universitária e das práticas de intervenção.
Por último, em Esporte e cooperação, procura-se apresentar e
refletir sobre as dificuldades, paradoxos e efeitos não esperados
quando, mediante a intervenção no campo dos esportes,
pretende-se a promoção de valores socais, no caso, o da
cooperação.
Devo reconhecer que os artigos têm um certo ar de
intervenção de segundo grau, ou seja, intervém-se pensando a
intervenção. Entretanto, essa intervenção de segundo grau, ao
invés de se propor como científica, procura retomar e não perder
o fio da conversa. É nela, acredito, que podemos encontrar os
acordos para a ação. De fato, os textos aqui reunidos, resultaram
sobretudo de conversas com colegas e alunos. Agradeço,
coletivamente, suas incitações e contribuições.
10
Capítulo l
Da ciência da gastronomia
à estética1
Introdução
Os desvios corporais de peso, em relação aos padrões
considerados normais, e em especial a obesidade ou gordura,
tornaram-se um inimigo combatido por uma forte aliança de
interesses, abrangendo desde o Estado, as companhias segura-
doras, a indústria, os profissionais da área da saúde, até, e de
modo geral, as diversas organizações e profissionais participantes
do que poderíamos denominar movimento pela saúde/
Atualmente, a obesidade, a inatividade corporal e o fumo são os
grandes inimigos do movimento que aposta na saúde, mediante
a formação de hábitos de alimentação, atividade corporal e
controle dos estimulantes, principalmente, o fumo, o álcool e as
drogas. O valor da saúde, eixo central do movimento (entendido
1.0 texto é produto parcial da pesquisa Formação dos Corpos no Brasil. Agradecemos ao CNPq pelo apoio.
2. Um dos estudos significativos do "movimento pela saúde" nos E.E.U.U. é o de Goldsteín (1992).
Conferir também Lovisolo (1995).
11
como elevação da esperança de vida ou longevidade, manter a
forma, fítness e o aumento da qualidade de vida), expande-se
pelo mundo, associado numa esportivização da cultura,
particularmente, através dos estilos de vida apresentados como
novos e mediados por novos hábitos, formas de pensar e sentir
as relações com o corpo. Trata-se, no seu sentido mais amplo, da
construção dos "eus", de identidades individuais ou sujetivi-
dades nas quais os novos complexos de relações com os corpos
passaram a ser centrais e integrantes, portanto, do nosso
cotidiano.3
De praxe, a emergência de novos hábitos alímentarese de
atividade corporal, que acompanham as argumentações desen-
volvidas no movimento pela saúde, possuem fundamentos de
tipo técnico englobados por valores estéticos e morais.4 Os
esforços por formar e manter hábitos prolongadores da vida,
mantenedores da boa forma física e que aumentem sua
qualidade, apenas podem encontrar seus sentidos em valores
estéticos e morais. Os objetivos de longevidade ou de fítness, por
exemplo, apenas fazem sentido em relação a valores. Não
encontramos no mundo da natureza esse objetivo e a interpre-
tação neodarwiniana da teoria da evolução somente apresenta
como objetivo natural a reprodução genética, raramente
realizado por meio da prolongação da vida. (Embora possam ser
apresentados como naturais, os objetivos em pauta ancoram seus
significados em valores, em movimentos ou jogos, portanto, da
cultura).
3. Cf. Laceida (1995).
4. Cf. Lo viso Io (1995). O argumento técnico especifica os meios racionais para atingirmos objetivos. Os
argumentos técnicos podem ter uma base empírica ou científica. A correlação positiva entre, de um lado,
gordura, fumo e inarividade corporal, com doenças cardiová seu lares, do outro, possui uma base empírica. Não
está provado que a presença de um ou dois dos elementos mencionados estejam associados significativamente
com as doenças cardiovasculares. O argumento teria uma base científica se os mecanismos que subjazem à
correlação estivessem claramente explicados. Os objetivos são, de pá se, traduções de valores morais ou
estéticos. Há escolha valorativa entre desenvolver hábitos alimentares e de atividade corporal, vivência d os
como custosos, ou entregar-se aos prazeres da mesa e da inatividade. A escolha apenas pode ancorar-se
vatorativamente (valor da saúde, do a u to-controle, das formas corporais entre outros). De fato, quando
realizamos uma escolha, habitualmente em contextos de incerteza, tendemos a aceitar e formular argumentos
que a reforcem.
12
No plano dos valores morais, além do imperativo de manter
a saúde, conservar e prolongar a vida, os esforços de construção
e de manutenção de novos hábitos pareceriam vincular-se ao
valor moral do autocontrole, quer dizer, ao valor da "mente" ou
"consciência" ou "superego" em controlar os impulsos (pelos
alimentos, estimulantes e inatividade) dos "corpos".5 Por
conseguinte, o movimento pela saúde surge, prima fade, como
conscientizador ou moralizador dás relações que os indivíduos
mantêm com seus corpos. Uma certa falha moral tenderia a ser
associada aos indivíduos que não cuidam de seus corpos, que
perdem o controle de demandas, fisiológicas ou psicológicas,
excessivas. Dizer autocontrole significa dizer autonomia em
relação a demandas socialmente caracterizadas como vícios. A
gordura, por exemplo, poderia ser associada à falta de tem-
perança, valor significativo ainda há um par de séculos atrás,
embora os termos autocontrole e equilíbrio, no horizonte da
autonomia do indivíduo, descrevam melhor os objetivos em ação
no presente. Então, traduzida para a nossa linguagem, a gordura
parece estar associada à falta de domínio sobre si mesmo, de
autocontrole e de equilíbrio entre entradas e saídas, consumo e
gasto. Em outros termos, possuir hábitos considerados agressivos
e violentos para o corpo, mesmo no caso de se reconhecer serem
gerados pela inércia do próprio corpo em interação com o social,
afigura-se como sendo uma conduta moralmente questionável.
O movimento pela saúde procura: alongar a vida,
estabelecer uma vida saudável e ativa e promover uma velhice
em atividade. Estes valores são apresentados como auto-eviden-
tes, embora exista uma campanha permanente para inculcá-los
nos indivíduos. Por certo, a extensão e intensidade da campanha
5. O termo "corpos" está aqui sendo usado de modo metafórico. De fato, o problema é que os "corpos"
não pareceriam contar com mecanismos de auto-ré gula cão para a ingestão de alimentos, o consumo de
estimulantes e a entrega ã inatividade. Assim, os "corpos" pareceriam poder entregar-se com faculdade a
"consumos" que os destruiriam. Devemos levar em consideração que a formação de novos hábitos demanda
altos custos no imediato, que apenas podem ser compensados pelas expectativas de futuros benefícios
compensadores.
13
v
pareceriam desmentir a auto-evidência desses valores. A
primeira vista, situa-se na tradição de um processo civilizador
que pretende controlar a violência, no seu caso, contra a própria
vida, isto é, contra o próprio corpo. Os argumentos afirmando
que fumar, comer demais, não fazer atividade corporal e usar
drogas é uma forma de suicídio, mais ou menos rápida,
confirmam o lado civilizador do movimento pela saúde. Os
hábitos positivos são os que indicariam a capacidade pessoal de
resistência aos prazeres do fumo, da mesa, do sono e da
inatividade.
Entretanto, a estética é um poderoso vetor constitutivo das
novas relações com os corpos. De modo geral, aspira-se a corpos
com baixo percentual de gordura e sem concentrações, com
músculos definidos, embora não necessariamente aumentados.
Há silhuetas que são apresentadas e inculcadas como estéticas e
outras, antiestéticas. A silhueta "estética" tornou-se um pode-
roso passaporte de circulação social no campo do trabalho, da
sociabilidade e da sexualidade. Assim sendo, é apresentada como
natural. Dessa forma, são os hábitos culturais negativos os que
destruiriam as formas belas dos corpos, ou seja, as formas que
devem ser desejadas. Também então, no campo dos funda-
mentos estéticos, nos confrontamos com um movimento que
pretende uma reforma cultural em relação ao corpo. A cultura
valiosa do corpo critica e pretende reformular a cultura negativa.
Assim, fala-se mal da cultura em nome da cultura.
Há, por certo, muitos críticos dos valores estetizantes do
corpo. Basicamente, acham imoral que poderosos esforços de
alimentação, atividade corporal, ingestão de produtos químicos,
uso de cosméticos, realização de cirurgias entre outros, sejam
realizados pelos indivíduos, e especialmente'pelas mulheres,
para atingirem padrões corporais esteticamente valorizados. Tais
esforços seriam imorais, pois os indivíduos abandonariam sua
autonomia para aceitarem padrões estéticos externos, entre-
gando-se à dominação de uma sociedade consumista. Entretanto,
14
não raro, esses mesmos críticos se apoiam em apelos em favor da
saúde, pois consideram que esses esforços estetizantes também
significam uma violência, uma agressão contra a saúde do corpo
dos indivíduos e seu efeito negativo extremo poderia ser a
anorexia6. Alguns críticos o são dos meios, como, por exemplo,
o uso de substâncias químicas ou mecânicas ou da dedicação
intensiva às atividades corporais. Mais do que atacar a vontade
de se obterem silhuetas estéticas, combatem os meios,
sinalizando a necessidade de uma moralidade em relação aos
meios utilizados.
No cotidiano, os argumentos morais, estéticos e técnicos
aparecem entremeados e os indivíduos geram misturas, embora
com ênfases circunstanciais, desses argumentos nos processos de
construção de seus "eus" e de suas "imagens sociais". Neste
texto, o que pretendo fazer é sugerir as hipóteses de que:
a) os argumentos técnicos não avançaram significativamente
nos últimos duzentos anos;
b) tampouco avançaram significativamente as recomendações
básicas de controle da obesidade e
c) o argumento estético, talvez, tenha preeminência histórica
sobre o moral na estratégia de desenvolvimento do autocontrole.
Em relação ao ponto "c", diria que a estética do corpo foi um
poderoso ardil, particularmente sobre os jovens, sobretudo para
abrir o caminho dos argumentos morais do movimento pela
saúde7. Fundamentarei minhas sugestões na leitura e análise da
Fisiología do gosto de Brillat-Savarin.
6. As atividades corporais ditas suaves c alternativas situam-se como resposta que aceita o argumento
dos críticos. Por um lado, porque tenta diminuir a violência contra o corpo que estaria presente nas atividades
corporais duras e que se manifestaria, por exemplo, em diferentes tipos de lesões pemantemes outransi cá rias. Por outro lado, porque pretende devolver ou desenvolver nos indivíduos a autonomia no controle
das atividades corporais. De fato, nas atividades suaves, os valores de saúde, de equilíbrio, de
autoconhecimento, entre outros, ganham preeminência sobre os valores estédco-físicos Cf. Lacerda (1995).
7. Coireia {1994) mostra como o sentimento de potência dos jovens os leva a sentir-se fora dos perigos
que ameaçam os corpos e também além dos sentimentos de perda da forma e da saúde que, possivclntente,
aparecem com o decorrer dos anos e dos sinais manifestos pela entropia corporal
15
Biografia e contexto
Jean Anthelme Brillat-Savarin (1755-1826) publicou a
primeira edição de seu livro no ano anterior ao de sua morte. Foi
testemunha e ator de violentas, tempestades da história, bem
como da calmaria e da volta das coisas a seus lugares. Nasceu
numa família de robe, togada. Membro da burguesia, alcançou
posições de prestígio: começou sua carreira na corte de Beíley;
foi escolhido deputado da Assembléia Nacional, em 1789, da
qual foi expulso em 1792. Sua cidade natal, então, o escolheu
prefeito e comandante da Guarda Nacional. Os chefes revolucio-
nários da região o acusaram de traição e o condenaram. Obrigado
a emigrar, fugiu para a Suíça e chegou aos Estados Unidos, onde
morou por três anos. Conta-se que sobreviveu tocando violino.
Teria sido primeiro violino da orquestra de Nova Iorque, talvez
em virtude de sua vontade de sociabüidade e convivência, da
qual nos proporciona copiosas manifestações em sua obra.
Retornando à França, consegue que seu nome seja expurgado das
listas dos emigrados, recupera a posse de seus bens e a condição
de cidadão. Obtém uma posição de ajudante-de-ordens do
marechal Augereau. Mais tarde, a de delegado, com poderes
executivos, na corte do departamento de Seine-et-OIse e
culmina sua carreira, sendo nomeado por Napoleão Bonaparte,
como membro da Corte Suprema de Apelações.
Savarin foi um sobrevivente dos tempos convulsionados da
Revolução Francesa e assistiu à volta ao poder, de Carlos X, cujo
irmão, lembremos, foi guilhotinado. O poder voltou para os
conservadores, a nobreza retornou às suas posições e a burguesia
continuou sua marcha ascendente. Os prazeres podiam retornar
à ordem do dia num clima de discrição e elegância. A gastro-
nomia era uma das fontes de prazer que representava um estado
de espírito, um modo de encarar a vida e uma forma de
interpretar e intervir na sociedade. Nos planos da ação e da letra,
Savarin somou-se, de forma original, àqueles que promoviam a
16
gastronomia e suas artes — as maneiras da mesa, a relação entre
os convidados e a conversa social — como prática civilizatória. As
regras de Savarin estabelecem desde como se sentir antes do
convite, o respeito ao horário, o tom das conversas, a ordem das
bebidas e das comidas, até os deveres e obrigações do anfitrião
e dos convidados. Para Savarin, convidar alguém significa ocupar-
nos de sua felicidade durante todo o tempo em que estiver sob
nosso teto.
Solicito que o leitor lembre se viu, e se não viu veja, pois
só haverá de ganhar, o filme A festa de Babette. O filme divide-
se, como todo bom ritual, em três partes. Na primeira, se nos
apresenta a difícil e pouco civilizada convivência de um grupo de
velhos aldeões bem como do mediador: a cozinheira francesa
que, por motivos semelhantes aos de Brillat-Savarin, encontra
refúgio entre os aldeões. A primeira parte do filme nos fala da
sociabüidade defeituosa, de individualidades infelizes, dos
desiguais em conflito. Na segunda, vemos o comércio, o
transporte e a preparação dos alimentos. Momento de tensão
que transforma as matérias-primas em alimentos e bebidas,
enfim, uma preliminar antes de uma nova integração: passagem
entre a natureza ou barbárie à civilização. Na terceira, transcorre
a reintegração que o ritual provoca: os "mesmos" velhos aldeões
se transformam à medida que participam do jantar-festa
realizado por Babette para eles: os rostos se iluminam, os modos
e maneiras se civilizam, a conversa torna-se amável e os
antagonismos distendem-se, até desaparecer. Na saída do jantar,
os velhos, agora os convivas, entram na comunhão dos corpos e
das mentes, felizes e civilizados pelas comidas e bebidas
preparadas por uma gastrônoma incomparável. A moralidade é
reinstaurada; a gastronomia "re-liga" e torna felizes homens e
mulheres. Caso o leitor ainda duvide do poder da gastronomia,
pode assistir a Como água para chocolate. Embora o filme fosse
produzido num contexto totalmente diferente ao da Fisiologia
do gosto e A festa de Babette, reitera a mesma confiança no
17
poder dos alimentos, cuidadosamente selecionados e preparados,
sobre as pessoas, seus sentimentos, paixões e autodescobri-
mentos. Assim, o controle das relações entre os homens e o
autocontrole são eixos estruturantes da gastronomia. A
sociabilidade e a realização pessoal (refinamento, crescimento,
integração, entre outros objetivos) resultam da intervenção
gastronômica.
Felicidade contra necessidade
O primeiro aforismo, dos vinte que presidem a obra de
Savarin, constata que "O universo só existe porque ha vida, e
tudo o que vive se alimenta." A partir do pano de fundo da
natureza, e da satisfação das necessidades da vida, se instalam a
cultura, a civilização, o refinamento. Assim, o segundo aforismo,
"Os animais se alimentam, o homem come; só o homem refinado
sabe comer." Dupla distinção: entre a alimentação dos animais
e o comer dos homens; entre o mero comer e o saber comer dos
homens refinados ou seria melhor dizer logo civilizados.
Savarin enfrenta o paradoxo que — embora o conforto
moderno nos distancie de sua constatação imediata, entre
ervilhas enlatadas e pedaços de carne envolvidos em límpidos
plásticos — ainda nos aterra: a vida vive da morte. Há, portanto,
uma violência fundadora da vida. Há testemunhos, reais ou
imaginados, de que os homens violentos, os guerreiros, os
machos, consideram a carne, por vezes quase crua, como ali-
mento energizante. A carne sangüinolenta, apenas escaldada os
enche de energias. Os homens violentos vivem da morte8. Em
contrapartida, quando os vegetarianos eliminam a vida animal
dos cardápios, realizam um sugestivo esforço para suavizar essa
violência: distanciar-se da vida que vive da morte. Contudo, ela
volta a se patentear como problema quando os umbrais de uma
S. Ver a obra de K. Thomas, Ohomemeomadoaaíural, como exemplo.
18
representação mais sensível nos levam a pensar e sentir que a
vida vegetal também sente, sofre, possui sensibilidade. O
vegetarianismo ameniza sem eliminar o paradoxo. Podemos reler
o processo civiíizatório, do qual nos fala Norbert Elias, também
como gradativo distanciamento das evidências de que ávida vive
da morte.
Duas estratégias correntes de resistência ao terror do
paradoxo podem ser pensadas. A primeira reside na
transformação da morte na arte refinada de saber comer: os
pratos, e os ingredientes que lhes dão substância, distanciam-se
em forma e conteúdo das associações com a violência da morte
que demanda a vida. As refinadas fatias de carpacào, embora
cozidas nos ácidos do limão e nos temperos, nos distanciam
consideravelmente do grosso bife de chorizo mal passado que
enche o prato de sangue. A segunda estratégia toma consistência
quando o ato de comer deixa de ser confundido com simples
necessidade e é posto a serviço de finalidades superiores: os
desígnios do Senhor, o prazer, a felicidade humana e a paz que
dela se deriva ou a própria cultura da nação. No ato de saber
comer, os fins superiores podem encontrar uma impecável
articulação. A articulação de ambas estratégias é sempre possível.
Assim, diz Savarin, a descoberta de um prato novo é mais
importante para a felicidade do gênero humano do que a
descoberta de urna estrela (aforismo IX). A capacidade francesa
de gerar pratos refinados e de novos pratos é o fundamento de
sua recuperação econômica, da atração que exerce sobre os
estrangeiros: a luz da gastronomia ilumina Paris talvez com força
maior que a do intelecto, nosdiz Savarin. Um jantar espirituoso
estimula os espíritos e suas luzes mostram as facetas delicadas e
artísticas dos pratos. Nesses momentos, por sobre todos os
outtos, devemos dar graças ao Senhor.
O criador obrigou o homem a comer para viver, o convida
com o apetite e a recompensa com o prazer (aforismo V). Esse
é o prazer que sobra como último para consolar-nos da perda dos
outros (aforismo VII) e que, devemos reconhecer, os interven-
19
cionistas atuais pareceriam querer nos roubar. A mesa é o lugar
onde nunca se sente tédio na primeira hora (aforismo VIII), um
sentimento contraposto ao de prazer e à própria felicidade
humana. Sobre essas bases gerais, Savarin nos diz que o destino
das nações depende de como elas se alimentam (aforismo III) e
a identidade do homem está no que come (aforismo IV).
Fuerbach, o materialista, concordou com Savarin quando
afirmou que o homem é aquilo que come. Se seguirmos Savarin
e Fuerbach, toda etnografia deveria, então, ter por capítulo
introdutório à descrição da gastronomia do povo estudado.
Alimentar-se por necessidade é um ato natural. É bastante
natural encher o bucho até quase se conseguir a imobilidade
física nos tempos de fartura, acumular energias transformadas
em carnes para resistir aos tempos de fome. Assim, um código
genético que acumule gorduras nem sempre é desfavorável,
como o urso testemunha prototipicamente. O ato de comer pode
se tornar mais "cultural" à medida que a produção e a tecnologia
eliminam os ciclos de fartura e escassez. Em conseqüência, o
comer pode cada vez mais ser representado como um ato
cultural, que deveria estar a serviço da felicidade fisiológica,
psicológica, cultural ou social. Comer deixa de ser uma mera
necessidade biológica e desenvolve-se então como gosto, como
ato estético e civilizador. As relações históricas entre gosto,
estética e civilização merecem, ainda, renovados esforços de
entendimento. As ressonâncias estéticas do pato laqueado, das
saladas coloridas ou das sobremesas são múltiplas.
A felicidade gastronômica depende das potencialidades do
gosto que é, para Savarin, superior no homem, se comparado
com qualquer outra espécie. Enquanto a língua dos animais não
vai além de sua inteligência, na constituição da língua do
homem, pela delicadeza de sua textura e pelas membranas que
lhe são vizinhas, anuncia-se "quão sublimes são as operações a
que está destinada". Sobre esta base, construiu-se a tradição da
cozinha que influi de "forma tão direta sobre a saúde, a
felicidade e até sobre os negócios".
20
Formar-se nas ciências e artes da gastronomia é uma tarefa
fundamental para Savarin. É um modo de intervir no devir da
sociedade, nas relações entre os homens, na construção das
personalidades. Há que se formar os especialistas da intervenção;
listar as disciplinas e os conhecimentos significativos; apresentar
as artes de uma ocupação milenar. Falta, apenas, o que mais
tarde se fará: transformar, via legislação e programa universitário,
uma ocupação em profissão. Savarin não dará esse salto. Serão
aqueles preocupados, aparentemente, apenas com o objetivo
mais restrito da saúde, menos doenças e maior esperança de vida
e longevidade, os que se encarregarão dessa parte da tarefa.
Contudo, o comer bem, em função de objetivos (saúde, estética,
sociabilidade), depende, na obra de Savarin e até em nossos dias,
da educação e da socialização que desenvolve o autocontrole
necessário ao saber comer. Assim, a gastronomia e a nutrição
confrontam-se com a tarefa de construir personalidades capazes
de autocontrole. Personalidades suficientemente controladas
para que, ainda quando possuídas pela fome, tenham o domínio
suficiente para cumprir todos os rituais do ato de comer que
diferenciam o homem dos animais. Ou seja, personalidades
capazes de dominar a violência intempestiva da necessidade com
o charme do convidado elegante, que prefere ficar com fome a
demonstrar sua violenta voracidade ou que reprime a ânsia de
alimentos para poder saborear os pratos. Portanto, trata-se de
desenvolver a cultura, o gosto, o refinamento, a estética, enfim,
os valores superiores, num poderoso esforço de autocontrole.
O programa do curso
O programa do curso montado por Savarin inicia-se com os
conhecimentos fisiológicos da época sobre os sentidos (Medi-
tação I). Física, química, fisiologia e erudição são os conheci-
mentos que subsidiam a construção do programa de uma ciência
da gastronomia. Os conhecimentos das ciências estão moldados
21
ou solidificados pela observação e a experiência dos seres
humanos e, especificamente, de suas áreas de sentimentos e
condutas estreitamente relacionadas com o programa do curso:
com a cozinha, os gostos e formas de comer, com os efeitos das
comidas e das bebidas. Savarin pretende traduzir os conheci-
mentos científicos para o público. Entretanto, essa tradução não
é um mero fazer compreender. E uma tradução que se situa no
horizonte, estando a serviço de um programa gastronômico de
intervenção. Portanto, semelhante à tradução da sociologia para
o serviço social ou para a educação física ou da bioquímica e
fisiologia para a atual nutrição. É, assim, uma tradução que
seleciona, recorta, em função dos objetivos sócio-culturais do
programa de formação.
A antropologia de Savarin afirma que o homem é um ser
que pretende gratificar seus sentidos. Sua história das ciências
nos diz que elas resultam dos esforços que continuamente se
fazem para gratificar os sentidos. O principal sentido para a
ciência da gastronomia é o próprio gosto, que atingiu os mesmos
objetivos num processo mais lento de desenvolvimento e
satisfação que lhe garante a duração do sucesso. Emerge assim a
necessidade de meditar sobre o gosto (Meditação II). O gosto e
sua satisfação são o objeto teórico e prático, diríamos hoje, da
nova ciência: a gastronomia. Savarin elabora a definição do gosto,
perfila sua mecânica, reflete sobre a sensação do gosto e dos
sabores, tematiza a influência do oífato sobre o gosto, estabelece
os gozos provocados pelo gosto e a sua supremacia no hornem
através do processo de seu aperfeiçoamento. Ou seja, o
conhecimento da estética do gosto e os fundamentos da
intervenção gastronômica, para desenvolvê-lo e satisfazê-lo,
comandam a escala de valores que orientam Savarin. A saúde,
embora importante, ocupa um segundo lugar. Será que essa
escala mudou significativamente no quarto de milênio que nos
separa de Savarin? Noutros termos, em nossos dias, a dinâmica
da nutrição parece estar dominada tanto pela estética do corpo,
ao invés da estética do gosto, quanto pelo valor da saúde.
22
Contudo, poderíamos insinuar a hipótese de que a saúde é uma
racionalização da estética do corpo? A saúde é hoje um
argumento moral inquestionável enquanto que a estética do
corpo recebe não poucos puxões de orelhas da parte dos
moralistas, sejam conservadores ou progressistas.
O sensualismo parece permear toda a obra de Savarin. A
gastronomia associa-se estreitamente ao prazer. Não a qualquer
prazer, senão ao prazer do sentido do gosto que possui uma
função civilizadora. Assim, nosso cientista da gastronomia afirma
não ser pelo enfoque físico que o gosto tem relevância, mas é
sobretudo através de sua história moral que esse sentido adquire
a sua importância e sua glória. O método mostrará a importância
crescente do ato de comer, indo do puro instinto a uma paixão
influente, sobretudo do que forma a sociedade.
A Meditação III situa a gastronomia no contexto das
ciências, isto é, a legitima cientificamente. Imediatamente,
expõe suas funções sociais: sustenta-nos do nascimento à morte,
aumenta as delícias do amor e a confiança na amizade, desarma
o ódio, facilita os negócios e nos oferece, durante o curto trajeto
da vida, o único gozo que, por não ser seguido da fadiga, nos
repousa de todos os outros. A gastronomia, define Savarin, é o
conhecimento racional de tudo o que se diz a respeito do
homem quando se alimenta. A definição implica na relação da
gastronomia com a história natural, a física, a química, a cozinha,
o comércio, aeconomia política. Enfim, a gastronomia rege a
vida e se ocupa de todos os níveis sociais. Sendo assim, o tema
da gastronomia é tudo aquilo que pode ser comido; seu objetivo,
a conservação dos indivíduos e seus meios de execução, a cultura
que produz, o comércio que intercambia, a indústria que prepara
e a experiência que inventa os meios de dispor de tudo para seu
melhor uso9.
9. Gostaria que o leitor, como diria Savarin, se detivesse neste ponto, sobretudo se é um profissional
da nutrirão, do serviço social, da educação física, da administração de empresas ou de qualquer outra profissão
formado num curso de tipo mosaico, e estabeleça os paralelos entre a construção da gastronomia e a
construção e legitimação em seu próprio campo de atuação.
23
Cada meditação posterior é uma espécie de ementa de
uma disciplina. Encontramos, ainda dentro da primeira parte do
livro, nas meditações, as seguintes ementas: o apetite, os
alimentos, as especialidades, a teoria da fritura, a sede, as
bebidas, a gourmandise, os gourmands, os testes gastronômicos, o
prazer da mesa, os repousos da caça, a digestão, o descanso, o
sono, os sonhos, a dieta e o repouso, a obesidade e seus
tratamentos preservativos ou curativos, a magreza, o jejum, o
esgotamento, a morte, a história filosófica da cozinha, os donos
dos restaurantes, a gourmandise clássica posta em ação e a
mitologia gastronômica. Na segunda parte, denominada de
Variedades, Savarin apresenta receitas e reflexões espirituosas.
Acompanha um glossário gastronômico como fechamento.
Obesidade e magreza:
o poder de observação
A apresentação do curso de gastronomia elaborado por
Brillat Savarin pode deixar o leitor com dois tipos básicos de
resistência, sobretudo se é um profissional formado em algum
curso que objetiva a intervenção e percebe a existência de
proximidades sociológicas entre sua formação mosaico e sua
função social e as propostas da ciência da gastronomia10. A
primeira resistência pode se manifestar de forma violenta,
taxando a obra de Savarin de delírio, de construção imaginaria
que nada tem a ver com o modo de construção de sua própria
profissão. A segunda, mais civilizada, é deliciar-se com Savarin,
porém qualificando sua proposta como um delírio. É difícil
dialogar com a primeira resistência, pois ela não quer enxergar,
cheirar, ouvir nem possui uma fisiologia do gosto desenvolvida.
Embora, pessoalmente, tenho a impressão de que aqueles que
10. Sobre a formação mosaico dos cursos universitários profissionalizantes e especialmente sobre os
cursos de Educação Física, conferir Lovisolo (1995).
24
falam de uma ciência da motricidade humana, no campo da
educação física, ou da administração científica de recursos
humanos, resguardadas as distâncias dos distintos contextos
históricos e seus subsídios, estejam mais próximos do modelo de
Savarin do que imaginam ou do que podem aceitar. Pode-se
dialogar, um pouco mais facilmente, com a segunda resistência.
Procurarei fazê-lo a partir da valorização do poder de observação
de Savarin como manifestação de seu princípio de realidade.
Pretendo assim mostrar que há pouco delírio na sua construção
e para isto tomarei o atualíssimo tema da obesidade11.
Savarin inicia falando-nos da obesidade realista e
humoristicamente. Afirma que se tivesse sido médico teria feito
uma monografia sobre a obesidade e a partir dela teria
construído seu império nesse canto da ciência, desfrutando da
dupla vantagem de ter como pacientes as pessoas que estão nas
melhores condições e de ser perseguido, diariamente, pela
metade mais bonita do gênero humano, pois ser gorda, na justa
medida, sem barriga nem mais nem de menos, é para as mu-
lheres o estudo de toda a vida. Temos de chofre a importância
concedida à obesidade, no reverso, à estética feminina. As
mulheres são o alvo privilegiado do discurso contra a obesidade.
Savarin, em poucas linhas, estabelece o padrão estético para as
mulheres de sua época e privilegia o gênero feminino na
intervenção sobre a obesidade (p. 209). Também antecipa uma
área de negócios médicos (dietas, acompanhamento, cirurgias,
produtos bioquímicos etc.) e paramédicos (academias e clínicas
de emagrecimento, produtos industrializados e naturais, publica-
ções e programas televisivos entre outros) em pleno desenvol-
vimento no nosso presente. Se Savarin delira, o faz com alta
ca-pacidade preditiva, pois ainda a mulher continua sendo privi-
legiada nos discursos sobre a obesidade e os negócios que dela se
11. Realizo a comparação entre o discurso atual sobre a obesidade e as afirmações de Savarin a partir da
dissertação de mestrado de Rocha (1995). Apanirdas resenhas e análises da autora, podemos comprovar que
a reflexão geral e, sobretudo, as linhas gerais das terapêuticas para a obesidade já estavam presentes ao
tempo de Savarin.
25
ocupam andam muito bem graças à estética e ao desejo de vida.
Significativas são as causas que Savarin estabelece para a
obesidade. A primeira é a disposição natural do indivíduo
(p.212). Quase todos os homens nascem com .certas predis-
posições, cujas características são refletidas pela fisionomia.
Assim, Savarin pode antecipar que a jovem charmosa e cheinha
deverá no futuro lutar contra a gordura. E verdade, então, diz o
autor, que há pessoas de certa forma predestinadas à obesidade
e nas quais, o resto sendo igual, as potências digestivas elaboram
uma quantidade maior de gordura. Antes do desenvolvimento da
genética, e em função apenas da observação, Savarin estabelece
um axioma, hoje, bastante aceito: a predisposição genética à
obesidade mediada por uma fisiologia de grande capacidade de
acumulação. Nos indivíduos que têm o estômago ativo, o excesso
de nutrição age como no artigo precedente — Savarin parece
haver observado que pessoas que comem o mesmo podem ter
respostas diferences, sendo um obeso e outro não.. Comer e
beber demais é a última causa que enuncia (p.214). Tudo é
digerido, afirma, e o desnecessário à recuperação do corpo se fixa
e se torna gordura (p. 215). Ou seja, a teoria da obesidade como
produto da superioridade da ingestão sobre o gasto, também já
estava em Savarin. Num mundo civilizado, com grande afluência
de bens, o que poderia ser uma vantagem adaptativa para um
contexto de escassez, a capacidade de assimilação, torna-se um
castigo, uma tortura, um mal, uma doença que legiões de
médicos e não médicos prontificam-se a tratar.
Em segundo lugar, Savarin, aponta substâncias específicas
como causa da obesidade. As farinhas e as féculas, que o homem
fez base de sua alimentação, constituem a principal causa
alimentar da obesidade (p.213).
Um terceiro fator de obesidade reside no excesso de sono
e na falta de exercício. Durante o sono se perdem poucas
calorias, diríamos hoje, e o mesmo efeito provoca a falta de
exercício. Em quarto lugar, Savarin aponta o comer e beber
26
demais como causa da obesidade (p.214). Considera um
privilégio da espécie humana o poder comer sem ter fome e
beber sem ter sede, fruto da reflexão sobre o prazer da mesa e
o desejo de prolongá-lo. Os humanos, em todas as partes, quando
a ocasião o permite, comem e bebem demais e isto iguala
selvagens e civilizados. Os últimos multiplicaram a afluência de
bens possibilitando que o ocasional se tornasse constante. Assim,
a obesidade é também um mal da civilização, pois jamais ocorre
entre os selvagens ou nas classes da sociedade que precisam
trabalhar para comer e que comem para viver (p.212). Tudo
indica o observador profundo; o sistematizador conseqüente das
experiências. Sem possuir uma explicação científica sobre os
mecanismos, a partir somente da observação, estabelecem-se,
portanto, princípios básicos, ainda hoje vigentes, no diagnóstico
e no campo das dietas de emagrecimento.
Savarin observa que a intemperança atraiu os olhares dos
observadores. Apesar de que os filósofos elogiaram a temperança,
os príncipes fizeram leis suntuárias, a religião pregou a moral aos
gourmands, nem um bocado foi comido a menos e a arte de comer
em excesso floresce cada dia mais (p.215).
Sea obesidade é um mal, como combatê-lo, como se
estabelecer a temperança? Savarin estabeleceu lineamentos de
uma estratégia que chega a nossos dias.
A estética como estratégia
"Talvez terei mais sorte utilizando um caminho diferente. Exporei
inconvenientes físicos da obesidade. O cuidado de si mesmo será, quiçá,
mais influente que a moral, mais persuasivo que os sermões, mais possante
que as leis, e acho que o belo sexo está disposto a abrir os olhos à luz"
íp.215).
Entende por "obesidade esse estado de congestão
gordurosa no qual, mesmo que o indivíduo não esteja doente, os
27
membros aumentam pouco a pouco de volume e perdem sua
forma e sua harmonia natural. Há um tipo de obesidade que se
limita à barriga. Nunca o observei nas mulheres; como elas
geralmente têm a fibra mais mole, quando a obesidade as ataca,
não perdoa nada"(p. 210). Savarin confessa que durante trinta
anos lutou contra esse tipo de obesidade e que a luta contra a
obesidade é longa e demanda muita coragem. Não considera a
obesidade como uma doença, entretanto, trata-a como uma
"disposição inconveniente, na qual nos colocamos quase sempre
por descuido nosso"(p- 218).
Observemos que, apesar de detectar causas orgânicas,
Savarin atribui ao indivíduo o controle da obesidade.
O indivíduo, afirma Savarin, não pode descuidar-se e deve
cotidianamente lutar contra os fatores que pode controlar: a
alimentação, a atividade corporal e o sono ou tempo de descanso.
Assim, é da responsabilidade do indivíduo a luta diária contra a
obesidade. Em outras palavras, o obeso é o principal culpado de
sua obesidade, pois come muito e mal em relação a sua fisiologia
e realiza pouca atividade corporal em relação à que deveria
cumprir para não ser obeso. Devemos reconhecer que a
estratégia de combate à obesidade pouco se alterou, apenas
modificaram-se as substâncias, os alimentos, os pratos que
devem ou não ser comidos e o tipo de atividade corporal.
Embora, hoje, nenhum médico recomende praticar equitação, a
maioria, como Savarin, continua indicando o caminhar como
atividade cerporal central no controle da obesidade. A obesidade
foi e ainda é percebida como resultado da falta de autocontrole12.
Mesmo considerando que a obesidade predispõe a algumas
doenças, por exemplo, apoplexia, hidropisia, úlceras das pernas
etc.) e torna outras mais difíceis de sarar, Savarin não argumenta
contra a obesidade a partir delas. O principal inconveniente, nos
diz, é o de prejudicar a f orça e a beleza. Prejudica a força porque
12.A conceituarão do controle e do autocontrole constitui um dos eixos amculadores da elaboração de
Noibeit Elias sobre o processo civilizador. Sua obra é um pano de fundo central para nossas reflexões.
28
aumenta o peso da massa que deve ser movida sem aumentar a
potência motriz, além de dificultar a respiração. Prejudica a
beleza porque destrói a harmonia das proporções estabelecidas
inicialmente, pois cada parte engorda de forma diferente. A
obesidade acarreta o desgosto pelas atividades como a dança, o
passeio, a equitação, enfim, pelas ocupações e divertimentos que
exigem um pouco de agilidade ou de habilidade (p. 218).
A relação entre obesidade e saúde não ocupa um lugar
privilegiado em Savarin. De fato, trata de convencer a partir do
efeito estético negativo sobre a beleza, a perda das formas
naturais, e do efeito negativo sobre a força e, portanto, sobre as
atividades que demandam agilidade ou habilidade. As atividades
que enumera (dança, passeio e equitação) são sociais e estéticas
e formam parte, na sua época, tanto da sociabilidade quanto do
espetáculo culto baseado em atividades corporais. Na dança e na
equitação torna-se fácil entender ser beleza e força quase
indistinguíveis. O efeito estético resulta de sua combinação.
O diagnóstico da obesidade não se alterou significati-
vamente desde os tempos de Savarin, tampouco modificou-se
significativamente o conjunto de recomendações centrais para
combatê-la. Ainda hoje, considera-se ser a obesidade, sobretudo,
responsabilidade moral do obeso e exige uma luta diária para seu
controle, baseada numa tremenda capacidade de autocontrole
dos hábitos alimentares e da atividade corporal. A estratégia,
elaborada por Savarin, para nos convencer dos efeitos negativos
da obesidade, é basicamente estética e vincula-se também ao
prazer dos sentidos nos jogos de beleza e força. Talvez seja,
sobretudo entre os mais jovens, a estratégia estética o vetor
principal dos esforços no controle da obesidade, da flacidez,
enfim, de corpos que perdem as formas e as forças, a agilidade
e as habilidades que demandam o manter a forma e, aqui,
também entram os mais velhos. Por outro lado, a estratégia
continua tendo como alvo central as mulheres. A perda da beleza
de suas formas parece continuar sendo mais significativa que a
29
perda correlata nas formas dos homens.
Duas questões se abrem. A primeira interrogaria sobre os
fundamentos sócio-culturais que, em relação ao campo dos
desejos, das mentalidades, dos imaginários, permitiram que uma
estratégia, formulada com tão parcos elementos, conserve-se
viva, até hoje, quase que constituindo a tradição do combate à
obesidade. A segunda deveria interrogar-se a respeito da
durabilidade da obesidade como problema social, apesar de seu
combate. Ambas questões, por certo, estão estreitamente
relacionadas.
Capítulo 2
30 L
Educação, estética
e movimento
A educação física emerge no Ocidente vinculada a seu
projeto de formação dos homens, a sua bildung ou paidéia. Seu
horizonte maior é o educacional, em termos de formação moral,
cognitiva, estética e corporal de crianças e jovens. Quando a
excessiva preocupação pelo destino das almas se abrandou, os
homens começaram a preocupar-se também pela formação do
corpo como um objetivo valioso em si mesmo. A atividade
corporal e, em especial, a ginástica e os esportes, ganhariam
crescente destaque na formação e não somente em termos
estritamente físicos13. A questão das articulações ou contribui-
ções da atividade corporal para a formação moral, cognitiva e
estética seria um foco de preocupações que geraria variadas
respostas em termos de programas de intervenção. O entre-
laçamento da atividade corporal, da ginástica e do esporte com
13. Houve um desenvolvimento dos esportes paralelo às propostas educativas que o consideraram um
meio pedagógico. O desenvolvimento paralelo deu origem a esporte competitivo como espectáculo, como
negócio e como empresa com objetivos próprios bem diferenciados do horizonte da paidéiã
31
a formação dos homens obriga o educador físico, a refletir sobre
a educação em suas relações com sua prática profissional e com
sua contribuição possível. Portanto, o refletir sobre a educação
deveria ser um componente estrutural e permanente da reflexão
do educador físico14. Entender o complexo panorama de posições
e contraposições que mapeiam a educação moderna é uma tarefa
complexa porém ineludível. Pretende-se na continuação apre-
sentar alguns dos caminhos de construção e entendimento desse
mapa.
Acredito que o vetor ou a idéia dominante das pedagogias
contemporâneas reside em pensar que sua principal função é
ajudar a desenvolver potencialidades, competências ou pro-
priedades prefiguradas nos indivíduos. Trata-se, então, mais de
desenvolver coisas interiores do que interiorizar coisas exte-
riores. Neste sentido, o papel do pedagogo é o de um facilitador,
um oportunizador, um criador de situações educativas que
possibilitem o desenvolvimento das potencialidades biológicas,
psicológicas ou culturais. O educador torna-se assim um facili-
tador e acelerador de processos de desenvolvimento, basica-
mente, criando o ambiente ou condições adequadas para a
interação das crianças que favoreça seu desenvolvimento.
Uma situação poderá ser caracterizada como educativa
quando avaliarmos que favorece o desenvolvimento de compe-
tências ou propriedades cognitivas, motoras, emotivas e sociais.
Em contrapartida, as situações bloqueadoras do desenvol-
vimento serão consideradas como não-educativas e mesmo comoantieducativas e repressoras. Em tal contexto de idéias e
sentimentos, o bom educador seria muito mais um criador de
condições para o aprendizado ativo da criança do que alguém que
se caracteriza por seu conhecimento e capacidade de "ensinar";
seria, portanto, muito mais um criador de ambiências que um
inculcador de conhecimentos, mais um animador que um
H. Crie a expressão educador físico substituindo a denominação habitual de professor de educação física.
Ver, Lovisolo (1995).
32
condutor. Acredito que essas idéias forças, quase diria senti-
mentos pedagógicos, formam o núcleo ou tendência central
desde, pelo menos, o Emílio, de Rousseau, quando sua obra é lida
sob uma perspectiva pedagógica. Dentro desta tendência central
emergem as propostas ou objetivos de aprender a aprender ou
aprender a ser e aprender grande parte da pedagogia dita ativa,
antiautoritária, antimemorista e antibancária entre outras
denominações.
Observemos que esta-tendência da pedagogia moderna é
ainda mais forte quando menos idade possui o educando com o
qual se realiza a ação educativa. Assim, é muito mais oportuni-
zador e estimulador o pedagogo na creche que na universidade.
Na creche, o principal problema é como tratar a criança,
portanto, quais deveriam ser as condições e estímulos que
devem formar o meio educativo ou ambiente educativo. A
supervisão e avaliação do ambiente e, principalmente, das
interações das crianças entre si e com os educadores, torna-se
elemento axial de conferência da proposta pedagógica posta em
prática.
Evidentemente que uma pedagogia inculcadora também
deveria estar preocupada com o ambiente, como de resto
qualquer atividade humana.15 Trata-se, em verdade, de
importâncias e critérios orientadores radicalmente distintos na
criação do ambiente. Uma pedagogia que considere que o
objetivo é o de interiorizar o externo, procurará se guiar pelo
critério de eficiência do ambiente. Portanto, um ambiente será
considerado educativo quando eficiente na inculcação, sendo
secundário que as crianças gostem ou não do mesmo. Em
contrapartida, a pedagogia preocupada pelo desenvolvimento do
interior, da subjetividade, deve orientar-se na criação do
ambiente por um critério estético, pois ele deve ser do gosto ou
15. Nas teorias sobre a administração de empresas a preocupação com o ambiente é considerável, mais
ainda a partir das teorias humanistas. Não se trata, contudo, de uma preocupação conservadora, porém da
criação de ambientes estimula dores e agradáveis para os trabalhadores.
33
agradável para as crianças.16 Gomo poderia ser facilitador e
estimulador não sendo nem agradável nem do gosto da criança?17
Assim, passa a ser fundamental que as crianças gostem da escola
e de sua proposta, do ambiente e das interações com os colegas
e os docentes.18 A importância do gostar deve ser transmitida aos
país ou responsáveis pelas crianças.19 Se observarmos as unidades
físicas escolares veremos que, quanto menor a idade de sua
clientela, maior a preocupação com os fatores estéticos dos
prédios, refletida, entre outros dispositivos, nas cores e na
mobília utilizada. De modo geral, as creches são policromas.
Diria que quando dominam, na proposta pedagógica, os objetivos
de gostar, agradar, seduzir ou encantar, estamos diante de um
modelo pedagógico de fundamento estético.
No final da adolescência, na universidade, a transferência
sistematizada de conhecimentos ganha importância e, de praxe,
deixa na sombra a criação de situações educativas que opor-
tunizem os desenvolvimentos. O que ensinar — o conhecimento
sistematizado ou "manualizado", especialmente nas disciplinas
duras — torna-se centro das preocupações. Os interesses de
supervisão e avaliação voltam-se para o desempenho do aluno e
a produção docente. O interesse em acompanhar o ambiente e
as interações torna-se secundário quando não meramente
inexistente. A preocupação pela criação da ambiência aparece
como marginal ou periférica.jV própria preocupação estética
pode inexistir ou ser relegada quer a um segundo plano, quer
como objetivo de um organismo especializado sem vinculação
16. O principal objetivo da estética é a reflexão sobre os significados e formação desgostos, sobre o que
é belo ou sublime, para os indivíduos. A estética possui uma estreita vinculação com a formação das
subjedvidades. Ver Eagleton (199$) c, era particular, o discurso de Kant sobre o belo e o sublime. Sobre a
história geral da estética ver Bayer (1993). As relações entre modernidade, democratização e subjetivizacão
do gosto foram tratadas provocativa mente por Ferry (1994).
17. Poderia, de fato, pensar-se num ambiente estimulidor porém negativo, como as prisões, por exemplo.
Entretanto, tais ambientes não seriam cstimuladorcs de desenvolvimentos interiores, quando muito
propiciariam a interiorizacão do exterior.
18. Uma aproximação em termos de pesquisa empírica a estas questões pode ser encontrada em Lovisolo
{1995, cap. 2).
19. Basicamente porque se acredita que deve existir, para que a escola tenha eficácia simbólica, uma
correspondência de atitudes e valores entre família e cscok Cf. Lovisolo (1987).
34
com os processos formativos. A monocfomia e a funcionalidade
substituem de praxe as tentativas de agradar, de gostar,
sobretudo nas universidades dos países não-desenvolvidos ou em
processo de desenvolvimento. Nos Estados Unidos, a arquite-
tura, a jardinagem e a reprodução de mim-sÂops constituem-se
em lineamentos centrais das preocupações estéticas de várias
universidades.20 Contudo, o central é o desempenho e a respon-
sabilidade dos alunos em esforçar-se em estudar e a dos docentes
em pesquisar e produzir resultados e em ensinar os conteúdos
sistematizados/Diria que quando o desempenho, o empenho, a
responsabilidade e o esforço são valores orientadores da proposta
pedagógica, estamos diante de um modelo em que domina o
fundamento moral ou ético, centrado na valorização do esforço
no processo de aprendizagem, e de objetivos cognitivos.21 Já na
educação de adultos qualquer ambiência é aceita, desde o
estabelecimento fabril até as salas da associação de moradores.
Os adultos em processo de alfabetização ou de capacitação
podem estar em ambientes não especificamente educacionais.
As diferenças entre as preocupações levam-nos a pensar
que temos, em verdade, dois modelos ou tipos ideais peda-
gógicos. O primeiro, o das pedagogias contemporâneas, que
denominei de estético, pareceria aplicar-se ao começo do
processo educativo e poderia abranger uma parte considerável da
educação básica; O objetivo do processo educativo seria o de
desenvolver uma personalidade original, criativa, autêntica e
expressiva. Sensibilidade, sentimentos e emoções devem estar
no centro da cena pedagógica, categorias que por si mesmas
20. Não por acaso esses processos esterizantes das universidades ocorrem nos Estados Unidos. De fato,
o va|or da estética democratizance avançou mais que em outros lugares. Uma educação nova significou uma
educação que conta com a aprovação e o gosto de seus participantes. A divulgada utilização da piada pelos
professores nas aulas, e sua incorporação como elemento retórico das exposições, parece-me ser muito mais
force no EEUU que em outros países.
21. E facilmente consratável que os formuladores das propostas pedagógicas de praxe apoiam-se em
elaborações ou argumentos que apresentam como científicos ou empíricos. Como poderá ser observado, no
desenvolvimento de rainha argumentação, pessoalmente sou a favor de conciliarmos valores, em função de
acordos, no processo educativo.
35
expressam o peso da estética artística na elaboração do modelo.
Schiller, em A educação estética do homem, expressou a essência da
proposta estética: "A formação da sensibilidade é, portanto, a
necessidade mais premente da época, não apenas porque ela vem
a ser um meio de tornar o conhecimento melhorado eficaz para
a vida, mas também porque desperta para a própria melhora do
conhecimento."" Este modelo seria basicamente inatista no
plano das competências biológicas e psicológicase culturalista,
ou relativista, no dos pertencimentos culturais e sociais.23
O segundo modelo, aplicado no outro extremo da educação
formal, que denominei de moral e cognitivo, seria basicamente
universalista e inculcador, pois se ensinam os mesmos conteúdos
sistematizados em toda parte e se objetiva a inculcação desses
conteúdos em matemáticas, física, química e ainda em história,
sociologia, lingüística e filosofia, entre tantas outras disciplinas.
A disciplina, a autodisciplina, a responsabilidade e o esforço são
valores dominantes no entendimento e ocorrência do processo
educativo.
Se meus argumentos são válidos, podemos nos perguntar se
estaríamos mergulhados nas contradições geradas pela coexis-
tência de dois modelos: um de fundamento estético, o outro de
fundamento moral e cognitivo. Acredito que sim, e também
acredito que parte da crise das pedagogias resulta do insuficente
reconhecimento de ambos modelos e, sobretudo, da necessidade
de conciliá-los, ao invés de situá-los como combatentes destina-
dos a apenas um sobreviver. Esta, contudo, não é a única di-
mensão das contradições presentes em nossas propostas
pedagógicas.
O modelo estético da pedagogia, ao qual nos referimos, não
22.Ver Schiller (1995:51). O lúdico, o jogo, é o processo central na proposta pedagógica de ScbUler, pois
ele oão constrange exterior nem interiormente.
23.0 leitor pode observar que estou tentando substituir uma discussão sobre a educação feita com
categorias da política —liberal e conservadora, liberado» e ínculcadora, progrcssita e conservadora, entre
outras— por um entendimento mais nuançado e acredito que, além de possuir maior sutileza, pode
possibilitar uma discussão mais profunda e frutuosa.
36
poderia ter aparecido sem uma mudança profunda na cultura,
sem novas configurações de sentido. O marco geral dessa
mudança residiu na emergência do romanticismo em sua
interação conflitiva com o iluminismo. Os valores românticos de
autenticidade, expressividade e pertencimento, pareceriam
constituir o chão das pedagogias estéticas. Pensando em
elementos mais específicos das novas configurações de sentido,
apontaríamos a emergência da figura da criança, tornando-se
objeto de reflexão e de cuidados, entendidos como criação de
ambientes adequados a seu desenvolvimento. A psicologia
profunda, que deu crescente importância aos primeiros anos de
vida na formação da personalidade, teve também um grande
impacto. A psicologia cognitiva, quando insistiu sobre os
significativos processos que ocorreriam desde cedo na infância e
as várias propostas pedagógicas que foram formuladas sobre suas
pegadas incidiram sobre o entendimento da educação como
criação de condições propicias. A psicomotricidade foi na mesma
direção. A psicologia social aplicada que destacou a importância
da sociabilidade desde a mais tenra idade colaborou também
com a formação da configuração. Herdamos assim um coro de
vozes que torna natural para nós, tanto conferir importância aos
processos educativos desde o nascimento, e para alguns ainda no
útero, quanto pensarmos que nossa tarefa fundamental é a de
realizar um desenvolvimento natural, espontâneo, "não
repressivo nem bloqueador", das potencialidades por meio da
criação de ambiências estéticas para as crianças. Procuramos o
desenvolvimento da autenticidade, da expressividade e dos
pertencimentos das crianças. Poderíamos nomear outros
processos e elementos constitutivos da configuração que valoriza
a formação moderna da criança. Consideramos, contudo, que os
mencionados são suficentemente indicativos das novas
configurações de sentidos em relação às crianças.
As ciências sociais, com suas teorias sobre a cultura e os
processos de socialização, enfatizaram o lado sócio-cultural dos
37
processos educativos. Basicamente^ atribuindo as diferenças
entre os homens aos processos socializadores das culturas nas
quais se tornam "homens". Dos estudos antropológicos se
depreende uma espécie de axioma que diz: quanto menor a
idader maior as semelhanças, quanto maior a idade, maior as
diferenças entre os homens. Na configuração moderna,sobre as
crianças o relativismo cultural também deixou sua marca signi-
ficativa. No domínio básico da linguagem, a sócio-lingüística
enfatizou as diferenças de linguagem entre as classes sociais de
uma mesma sociedade. Assim, o legado sócio-cultural para a
pedagogia é sua força relativizadora e culturalista. O relativismo
ou culturalismo introduz um cunho antiuniversalizante no
discurso pedagógico, especialmente no modelo estético, embora
não sem tensões ou contradições.
Alguns dos autores principais no campo pedagógico, como
Freud e Piaget, por exemplo, elaboraram teorias com pretensões
universalizantes. Os estágios evolutivos da inteligência seriam
universais e não menos universal a estruturação das instâncias
psíquicas na teoria freudiana. Lembremos que, no próprio
campo da moralidade, foi proposta,a universalidade, como no
caso das teorizações de Kolberg. Se a cognição e moralidade, para
Piaget e Kolberg, fundam-se em estruturas psiconeurológicas,
apenas a estética, as considerações sobre o belo, pareceriam
escapar a essa dinâmica. Ou seja, seria no campo da formação
estética que se processaria com maior força a geração e
manutenção das diferenças entre as culturas e subculturas e
mesmo entre os indivíduos, quer dizer, entre as subjetividades
individuais? Haveria nas pedagogias de nosso presente uma
tensão ou conflito entre fundamentos e tendências universa-
lizantes e relativizantes? Residiria também nessas tensões os
desconfortes e contradições da pedagogia moderna?
Em contraposição às idéias universalizantes, podemos
observar que o vetor pedagógico da modernidade foi envolvido,
encorpado, atravessado por outra idéia não menos potente e
38
profundamente antagônica àquelas. Essa outra idéia, nascida no
campo da filosofia, da crítica estética e das teorias culturais, é a
de que não existe alguma coisa assim como um homem
universal. Os homens seriam produtos de circunstâncias sócio-
culturais-locais, particulares. Os homens são as culturas a que
pertencem e as culturas' são formações significativamente dife-
renciadas. Se há cõmunalidáde biológica entre os homens, diz o
culturalismo, ela começa a ser perdida nos usos e costumes
culturais da gravidez, do parto, do atendimento às crianças nos
primeiros dias de vida. Emerge assim a constatação, repetida na
observação etnográfica, de que os homens quando nascem são
muito semelhantes, porém, logo, começam a se diferenciar em
função dos trabalhos de socialização de suas respetivas culturas.
Diferenciam-se por meio dos arranjos de conhecimentos e
valores, morais e estéticos, que definem suas culturas. Diferen-
ciam-se nas marcas que realizam sobre seus corpos, nos modos
de se pentear, pintar e vestir, tanto quanto nas formas de movi-
mentar-se no espaço e nas avaliações sobre a beleza de uma dan-
ça, de um salto ou de uma corrida. Temos assim a idéia de que
sobre a base de um aparelho biológico comum, as culturas rea-
lizam um profundo processo de diferenciação, de construção dos
homenzinhos que dela serão tanto produto quanto produtores.
No contexto dessa visão, os homens estão suspensos em
redes particulares de pertencimentos. São esses pertencimentos,
os traços culturais, os que fazem suas diferenças. Pertenci-
mentos cognitivos ou sobre a verdade, éticos ou sobre o bem, e
estéticos ou sobre o belo. Estamos assim diante do relativismo,
um idéia poderosa no mundo que nos cabe manter e modificar.
O relativismo tem um pilar muito forte na valorização romântica
dos pertencimentos, da expressividade autêntica e do popular,
como sinal preferencial da autenticidade das expressões,
sobretudo das estéticas.24
24.VerLovÍso[o(1990).
39
Sob o peso desta idéia, as pedagogias modernas
reformularam-se no sentido de pensar que não somente deviam
ser desenvolvidas potencialidades psicobiológicas, porém que
também era condição e objetivo do processo educativo, desen-
volver os pertencimentos culturais nos campos do verdadeiro, dobom e do belo. Havia, portanto, necessidade de criar condições
para o desenvolvimento dos pertencimentos étnicos, de classe,
religiosos ou regionais. Em vários sentidos devia ser recusado o
conjunto das arbitrariedades culturais para dize-lo na linguagem
de Bourdieu e Passeron que fossem entendidos como uma
imposição sobre os pertencimentos. Deveriam ser rejeitadas as
regras que não fossem constitutivas de nossos jogos e de nossos
feitios de jogar.
Contudo, no plano real, no das práticas escolares, há uma
espécie de cisão entre práticas universalizantes e singularizantes.
Matemáticas e ciências definem seus conteúdos a partir da
dinâmica das disciplinas científicas universalizantes. Há também
domínio dos conteúdos universalizantes no campo das ciências
sociais e da história, e mesmo a importância concedida à história
nacional pode ser vista como uma característica universalizante
ou a importância concedida à história dos grandes homens, à
história marxista até recentemente e hoje, como emergência, à
história cultural ou das mentalidades. Onde estariam então os
núcleos singularizantes? Talvez naquilo que é residual dentro
das práticas escolares. Na educação física e artística? Na
importância concedida ao futebol e à capoeira? Nas apropriações
do floclore? E, talvez, nos modos com que se ensina? Seja onde
for, tudo indica que o singularizante está dominantemente
vinculado ao campo da estética das relações, dos esportes e das
atividades artísticas ou da valorização de algum tipo de perten-
cimento: índigena, negro, feminino, regional, entre outros.
É sob o ponto de vista estético que nosso futebol é nosso,
isto é, que constrói sua personalidade, sua singularidade e que
pode, então, ser considerado como expressão (constituída e
40
constituente) de nossos pertencimentos, de nossa autenticidade,
de nossa identidade ou subjetividade. Argumentos semelhantes
poderiam ser apresentados para a capoeira e sua ginga, para o
carnaval e o samba, para o jogo do bicho. Ou seja, estou
insinuando que, na prática educativa, o modelo estético que
pretende responder as demandas conceituais do relativismo,
embora fundamental em termos de proposta, tem sua esfera de
atuação altamente reduzida.
As idéias que estou colocando em termos esquemáticos e
abstratos são bem conhecidas no Brasil e formam parte dos
dilemas, das dúvidas e mesmo das contradições cotidanas dos
educadores brasileiros. Essas idéias cristalizaram, no Brasil, no
que de praxe reconhecemos sob o nome de educação popular
que teve em Paulo Freire uma expressão fundadora e poética.
Para Freire, educar é o contrário de inculcar, é, portanto,
desenvolver possibilidades, potencialidades e pertencimentos
culturais. Contudo, há em Freire, como apresentei em outros
trabalhos, uma profunda contradição que é também típica da
pedagogia moderna.25 Por um lado, Freire é um defensor da
cultura popular e da cultura do grupo que participa do processo
educativo, sendo dela que o educador deve partir, quer em
termos da linguagem do processo de alfabetização, quer em
termos dos conteúdos de verdade, éticos e estéticos. No entanto,
esse ponto de partida deve, mais cedo ou mais tarde, ser
superado pela formação de uma consciência crítica ou reflexiva.26
A consciência crítica ou reflexiva é, no fundo e apenas, a
percepção ou concepção que Freire tinha, quando escrevia suas
obras, sobre o modo de operação do conhecimento científico.
Temos assim um ponto de partida situado na cultura popular e
um ponto de chegada, ou uma meta, produzida pela cultura
25. Ver, idcm.
26. Para as pedagogi» ditas crítios, ser ou ter consciência crítica eqüivale R ser ou ter uma leitura,
interpretação ou explicação maixista do mundo. A crítica não é, portanto, o mero uso crítico da razão, do
pensar por si mesmo, é, sobretudo, uma razão datada e identificada com uma tradição teórica ou ideológica
específica.
41
universalizai!te da ciência, isto é, por uma cultura específica que
se torna padrão, valor e objetivo para todas as outras. (Observo
que o fato de ser Freire para mim contraditório não é uma falha
muito grave. Grandes pensadores têm sido contraditórios sob
múltiplos aspetos. Talvez seja um preço que os criativos pagam).
A contradição de fato desaparece quando consideramos que
partir do horizonte cultural do educando, de seus pertenci-
mentos, é apenas um ardil pedagógico. Partimos do seus saberes
para levá-los na direção de outros saberes,. por vezes opostos em
conteúdo ao .saber original. Partimos de sua linguagem local e
restrita para conduzi-los na direção de uma linguagem mais
universal e ampla. Partimos das contas que pode fazer com a
cabeça para levá-los na direção das "contas" inimagináveis, pelos
seus pertencimentos, que poderá fazer com o papel, com a
calculadora ou com o computador. Partimos de seu modo de
raciocinar para levá-lo ao modo de raciocinar de Euclides ou dos
não euclidianos. Partimos do conhecimento do sensível ou da
sensibilidade para desenvolver o inteligível. Estamos supondo
que há uma tradição de conhecimento —científico, técnico,
humanístico etc. — que dos gregos até nós está em processo de
formação e que ela, ou pelo menos seus elementos centrais ou
constitutivos, deve ser transmitida às novas gerações.
Quando realizamos esse processos, de partida e chegada,
como mero ardil pedagógico, quando^ consideramos que partir
dos pertencimentos é um mero atalho, estamos incorporando a
crítica relativista de um modo bem parcial e reduzido. Estamos
apenas dizendo que para aprender o desconhecido é necessário
partir do conhecido e que o desconhecido pode significar uma
crítica ou uma reformulação do conhecido. Formulamos um
princípio operacional, meramente técnico, ao invés de urna
concepção sobre como ps homens são. Instalamos um ardil
pedagógico e tornamos a idéia central do relativismo um mero
mecanismo operacional. Devemos portanto distinguir entre um
relativismo ontológico, caracterizado de uma profunda fé nas
42
diferenças culturais, de um outro, meramente operacional ou
instrumental, que parte, para ser eficaz, da diferença, porém que
aponta diretamente para a universalidade? O que estou
denominando relativismo operacional ou instrumental pode,
sem muitas complicações, ser adotado tanto nos marcos do
modelo pedagógico estético quanto no moral, formando parte
dos ardis pedagógicos. Na verdade, é no ardil relativista que os
dois modelos podem ser conciliados, confundidos podem,
encontrar a dobradiça que possibilite que dialoguem e se
enriqueçam mutuamente.
No campo educacional consolidou-se a idéia de que
existiriam diferenças culturais profundas entre as diversas
classes da sociedade ou entre seus diferentes segmentos. A
teoria da reprodução penetrou entre os docentes e levou muitos
deles a sentir-se formando parte de um processo de inculcação,
visto como processo de dominação das elites. Assim predominou,
nas últimas duas décadas no Brasil, o fato de o pensamento e o
sentimento da educação ser um processo básico de inculcação e
dominação. Expandiu-se a utopia de uma educação crítica e não-
inculcadora de cunho romântico, embora com objetivos univer-
salizantes. Acredito que a contradição presente nessas idéias
levou a uma operacíonalização da idéia relativista; levou à
aceitação do relativismo instrumental diante de uma realidade,
impossível de ser negada, que destaca os valores do conhe-
cimento científico e técnico da tradição ocidental. Tinha-se
então que partir do horizonte cultural do educando, suposto ou
real, contudo, para se arribar a um outro horizonte.
O deslocamento do relativismo ontológico para o me-
ramente instrumental pode significar também que alguns tipos
de universalismos estão voltando. Significa que, ainda que
vagamente, alguns acordos gerais estão sendo construídos, talvez
como resposta ao modo com que definimos nossas circuns-
tâncias. Um acordo — que acredito desanuviaria o ar pedagógico
e reduziria a sensação de crise — reside em entender que não
43
podemos renunciar nem ao modelo estético nem ao moral. Ou
seja, temos que criar

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