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O Cfi Os esportes tornaram-se um poderoso campo de oportuni- dades para a razão utilitária. Porem, num mesmo movimento, um campo de expressão e desenvolvimento de gostos, emoções e prazeres. Nas peculiaridades da junção da razão prática e da razão estética, o autor procura chaves de entendimento para os fenômenos correlates do esporte e a formação corporal. Por esses caminhos, a obra é urn esforço significativo, inteligente e válido de compreensão da cultura corporal. A obra reflete a importante contribuição que o Dr. Hugo I^ovisolo vem realizando enquanto antropólogo, para entender nosso campo de reflexão c intervenção. Desejo destacar o fato de que sua participação em nossa área, que já também é sua, realiza-sc sem que o Dr. Lovisolo abandone o referencial das ciências sociais nem sua inserção nelas, via produção e docência, como testemunha sua contribui- ção atual sobre o desenvolvimento de comunidades científicas em países da América Latina e, especialmente, na Argentina e no Brasil. Dr. Helder Guerra de Resende ISBNaS-7332-044-3 D E cd o Hugo Lovisolo ÍC CL SPRINT " Educação Física como Arte da Mediação • Educação e Educação Física em escolas do Rio de Janeiro • Regras, esportes e capitalismo • Esporte e movimento pela saúde • Ciências do esporte: Iníerdisciplinaridade ou mediação ÍPHINT Tele-atendimento (02}) 264-8080 (021)567-0295 BEXIGA, ESPORTE E ;DUGAÇÃO FÍSICA ENSAIOS HUGO LOVISOLO Rio de Janeiro 1997 Direitos exclusivos para a língua portuguesa Copyright© 1997 by EDITORA SPRINT LTDA. Rua Adolfo Mota, 69 CEP 20540-100 - Rio de Janeiro - RJ Tel.: (021) 264-8080 — Fax: (021) 284-9340 ISBN 85-7332-044-3 Reservados todos os direitos. Proibida a reprodução desta obra, ou de suas partes, sem o consentimento expresso da Editora. CIP-Brasil. Catalogação na fonte LOVISOLO, Hugo ESTÉTICA, ESPORTE E EDUCAÇÃO FÍSICA - Sprint Editora - Rio de Janeiro - RJ - 1997 ISBN 85-7332-044-3 l. Estética 3. Cultura 5. Antropologia I. Título 2. Esportes 4. Educação Física Depósito legal na Biblioteca Nacional, conforme Decreto n° 1825 de 20 de dezembro de 1967 Impresso no Brasil Printed in Brazil ESTÉTICA, ESPORTE E EDUCAÇÃO FÍSICA ENSAIOS HUGO LOVISOLO Rio de Janeiro 1997 índice Introdução 5 Capítulo l Da ciência da gastronomia à estética 11 Capítulo 2 Educação, estética e movimento 31 Capítulo 3 Normas, utilidades e gostos na aprendizagem 51 Capítulo 4 Esporte: normas, utilidades e gostos 81 Capítulo 5 Público e privado e as questões do lazer 105 Capítulo 6 Hegemonia e legitimidade nas ciências dos esportes 121 Capítulo 7 Esporte e cooperação 145 Bibliografia 169 Sobre o Autor • Doutor em Antropologia Social • Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação Física, mestrado e doutorado da Universidade Gama Filho - R] e do Departamento de Ciências Sociais da UERJ. • Autor de numerosos artigos e vários livros, entre eles: "Educação Popular: maioridade e conciliação" Ed. UFBA-EGBA, 1992 "Educação Física - Arte da Mediação" Ed. SPRINT, 1995 Prefácio O campo da cultura esportiva e corporal cresceu signifi- cativamente ao longo do século. O desenvolvimento dos meios de comunicação situou o esporte e a formação corporal ao vivo dentro dos lares, favorecendo a constituição de um púbico de tamanho jamais imaginado. A indústria, os serviços, a formação profissional e a pesquisa cresceram e diversificaram-se em torno da atividade esportiva e da formação corporal. Identidades individuais e coletivas, procura de reconhecimento social, geração e canalização de sentimentos e emoções são, para o autor, dimensões da estética que permeia o campo. Uma estética popular universalizante, a do gesto esportivo e dos modelos corporais, que parece atravessar as fronteiras entre as classes sociais, entre as culturas nacionais e regionais e, ao mesmo tempo, favorece o desenvolvimento de sentimentos de iden- tidade na criação de estilos próprios no futebol, no basquetebol, no pólo ou na formação e expressão corporal. Os esportes tornaram-se um poderoso campo de oportu- nidades para a razão utilitária. Porém, num mesmo movimento, um campo de expressão e desenvolvimento de gostos, emoções e prazeres. Nas peculiaridades da junção da razão prática e da razão estética, o autor procura chaves de entendimento para os fenômenos correlates do esporte e a formação corporal. Por esses caminhos, a obra é um esforço significativo, inteligente e válido de compreensão da cultura corporal. A obra reflete a importante contribuição que o Dr. Hugo Lovisolo vem realizando enquanto antropólogo, para entender nosso campo de reflexão e intervenção. Desejo destacar o fato de que sua participação em nossa área, que já também é sua, realiza-se sem que o Dr. Lovisolo aban- done o referencial das ciências sociais nem sua inserção nela, via produção e docência, como testemunha sua contribuição atual sobre o desenvolvimento de comunidades científicas em países da América Latina e, especialmente, na Argentina e no Brasil. Dr. Helder Guerra de Resende Introdução As sociedades ocidentais tornaram-se crescentemente campo das intervenções racionalizadoras realizada por espe- cialistas, por profissionais, quer quando se pretende reformar, quer quando se pretende revolucionar as relações sociais, a ordem social, a cultura ou os estilos de vida. O processos, de desencantamento do mundo e a crescente racionalidade, apontados por Max Weber como eixos do mundo moderno, estão na base da intervenção dos especialistas e se manifestam como predomínio do valor da ciência, da técnica e da tecnologia de base científica no campo da intervenção social. O próprio marxismo, considerado como o projeto revolucionário da mo- dernidade, pretendeu ser uma intervenção científica no diagnóstico e para a ação e, na percepção leninista, o partido revolucionário devia estar formado por profissionais ou espe- cialistas na condução das massas operárias para a conquista do poder. A intervenção, contudo, destina-se, no cotidiano da vida institucional pública e privada a atingir objetivos, cujos funda- mentos últimos são valores (solidariedade, felicidade, progresso, bem-estar, igualdade, saúde, realização pessoal, entre outros), a partir das propostas e ações de especialistas supostamente fundadas em conhecimentos científicos e tecnológicos. Os especialistas podem tanto situar-se como maximizadores da relações entre meios e objetivos quanto como formuladores dos objetivos e dos valores que os referenciam. Assim, podem dizer que estão a serviço da saúde ou da emancipação aceitando as definições populares ou pretender definir seus significados e os objetivos que estimam são indicadores de suas concretizações, embora se distanciando ou contrapondo, ou, ainda, propor novos valores e objetivos. No primeiro caso, os especialistas não questionam os valores e objetivos que procuram maximizar racionalizando a intervenção. No segundo e no terceiro, sim, o fazem, discutindo os valores que deveriam orientar a intervenção e construindo argumentos legitimadores para orientar suas propostas. Nas universidades e instituições de ensino superior, antigas e novas ocupações são racionalizadas e sistematizadas, com o objetivo geral de formar especialistas ou profissionais da intervenção nos mais variados campos das práticas sociais: admi- nistração, saúde, estética, turismo, sexualidade, lazer, educação, produção, segurança e tantas outras. Antigas ocupações, baseadas na aprendizagem na vida ou na prática, tornam-se profissões racionalizadas e ensinadas em ambientes formais de apren- dizagem. Os especialistas das profissões devem gerar discursos justificadores e orientadores de sua ação e propostas de racio- nalização da relação entre meios, condições e objetivos. Em cada campo de intervenção os especialistas debatem as propostas concorrentes que pretendem dar unidade à intervenção em cada profissão ou especialidade. Em algumas profissões, o debate parecer ser endêmico, mais que epidêmico ou meramente conjuntural, indicando que os valores orientadoresda ação de intervenção não são consensuais e, também, que a fundação científica dos conhecimentos e relativa. Assim, a discussão pela conquista da hegemonia em cada campo tende a tornar-se permanente, paripassu, com a procura ativa da legitimidade para ação social. A procura de legitimidade e reconhecimento profissional tornam-se, por vezes, numa tarefa obsessiva e desgarrante; a legalização e normatização da profissão, num objetivo recorrente de legitimação e reconhecimento. No campo das atividades corporais e esportivas o número de especialistas cresceu tão rápido quanto o das escolas, para sua formação. A base representacional desse crescimento foi o discurso sobre as sociedades modernas que, pelo seu tipo de vida urbano e sedentário, demandariam a promoção da atividade corporal em benefício da saúde física e mental e tendo como horizonte a Nação e o Progresso. Ginástica e esporte foram visualizados como atividades que podiam colaborar com a formação dos corpos e do caráter a serviço da saúde, da pro- dutividade, do nacionalismo, da felicidade e moralidade, entre outros valores. Sobre essa matriz formativa, e por vezes em contraposição, desenvolveu-se um poderoso movimento ideoló- gico e econômico, que levou o espetáculo esportivo a ser uma preferência na vida moderna juntamente com um estilo esportivo no modo de se vestir, alimentar, construir e operar com o corpo e na organização e prática do lazer. Os especialistas passaram a formular propostas de intervenção nesse mundo amplo e diferenciado: regime alimentar e de sono, roupas, cosméticos, atividades corporais, recreação, sexo e tantas outras esferas de atividades foram reguladas por suas intervenções geralmente fundamentadas em conhecimentos ditos científicos. As questões teóricas e práticas sobre a intervenção multiplicaram-se, desdobraram-se e a procura de fundamentos e respostas tornou-se uma atividade quase constante dos profissio- nais da área e as reinvindicações de legitimidade e reconhe- cimento parecem se haver avolumado nas últimas décadas. Em termos de legitimação, a linguagem da moral ou da norma e a do utilitarismo ou da prática foram acionadas para se construírem argumentos a favor da atividade corporal e do esporte enquanto moralizadores e utilitários. A educação física situou-se tanto a serviço da formação moral e da ordem social, bem antiga e conservadora, de novo tipo e revolucionária, quanto da aptidão corporal. Ambas foram pilares de sua intervenção e os historiadores oferecem dados e interpretações consistentes nessa direção. Assim, durante bastante tempo, moral e economia foram bases para a intervenção da educação física. A intervenção sobre os corpos foi, e ainda é, dominantemente moral e econômica. Essas matrizes fundamentadoras da ação de intervenção não foram abandonadas. Entretanto, de forma lenta, uma nova matriz começou a dar sentido à intervenção - a estética. Lentamente foi impondo o reconhecimento de sua presença: como demanda e ação de formação de corpos estéticos e como campo do espetáculo esportivo no qual as emoções e os gostos, ambos componentes centrais do fenômeno estético e de suas teorizações, podem ser expressados, descarregados, elaborados. A linguagem estética foi ganhando destaque, abrangência e intensidade. Os artigos-ensaios apresentados neste livro tratam da relação entre o fundamento estético, a formação dos corpos e o esporte. De modo geral, foram escritos diante de solicitações específicas e, sobretudo, diante de demandas de conversas ou conferências. Decorre dessa demanda o tom por vezes coloquial com o qual estão escritos. Em Da ciência da gastronomia à estética procura-se apresentar como, no início do século XIX, a idéia da estética corporal, sobretudo entre as mulheres, aparece como elemento orientador das condutas gastronômicas e da atividade corporal. Em outros termos, cedo descobriu-se que poderia ser mais fácil convencer as pessoas para que enfrentassem um regime corporal a partir de razões estéticas, que a partir de razões morais ou econômicas, isto é, de saúde. O entendimento da cultura como estética, seu impacto na pedagogia moderna e sobre a educação física escolar, v é explorado em Educação, estética e movimento. As linguagens da moral, da utilidade e da estética são postas em relação mais sistemática em Normas, utilidades e gostos na aprendizagem. Trata- se, basicamente, de compreender como a linguagem estética, expressada nos gostos, impõe novas tarefas ao processo de aprendizagem e qual poderiam ser os lineamentos de inter- venção de uma educação física preocupada com dinâmica escolar, ao invés de centrar-se apenas nos objetivos disciplinares, no sentido do ensino da disciplina Educação Física. Em Esportes: normas, utilidades e gostos, as razões ou modelos da atividade corporal e do esporte, consideradas como linguagens, são postas em relação à dinâmica de suas contraposições e tendências que afetam nosso presente. Público e privado e as questões do lazer significa um momento de visualização entre o desenvolvimento da intimidade ou privacidade, enquanto domínio dos gostos, e o público, nas mediações, por vezes paradoxais, que o lazer envolve. Os dois últimos capítulos. Em Hegemonia e legitimidade nas ciência do esporte são discutidos os problemas que envolvem a racionalização, sistematização e profissionalização da educação física e das ciências dos esportes, sob o ponto de vista das lutas pela hegemonia (teórica e metodológica) e a legitimidade social, focalizando os problemas atuais sobre o que é a educação física e a ciência dos esportes, quais suas limitações e potencialidades no contexto da vida universitária e das práticas de intervenção. Por último, em Esporte e cooperação, procura-se apresentar e refletir sobre as dificuldades, paradoxos e efeitos não esperados quando, mediante a intervenção no campo dos esportes, pretende-se a promoção de valores socais, no caso, o da cooperação. Devo reconhecer que os artigos têm um certo ar de intervenção de segundo grau, ou seja, intervém-se pensando a intervenção. Entretanto, essa intervenção de segundo grau, ao invés de se propor como científica, procura retomar e não perder o fio da conversa. É nela, acredito, que podemos encontrar os acordos para a ação. De fato, os textos aqui reunidos, resultaram sobretudo de conversas com colegas e alunos. Agradeço, coletivamente, suas incitações e contribuições. 10 Capítulo l Da ciência da gastronomia à estética1 Introdução Os desvios corporais de peso, em relação aos padrões considerados normais, e em especial a obesidade ou gordura, tornaram-se um inimigo combatido por uma forte aliança de interesses, abrangendo desde o Estado, as companhias segura- doras, a indústria, os profissionais da área da saúde, até, e de modo geral, as diversas organizações e profissionais participantes do que poderíamos denominar movimento pela saúde/ Atualmente, a obesidade, a inatividade corporal e o fumo são os grandes inimigos do movimento que aposta na saúde, mediante a formação de hábitos de alimentação, atividade corporal e controle dos estimulantes, principalmente, o fumo, o álcool e as drogas. O valor da saúde, eixo central do movimento (entendido 1.0 texto é produto parcial da pesquisa Formação dos Corpos no Brasil. Agradecemos ao CNPq pelo apoio. 2. Um dos estudos significativos do "movimento pela saúde" nos E.E.U.U. é o de Goldsteín (1992). Conferir também Lovisolo (1995). 11 como elevação da esperança de vida ou longevidade, manter a forma, fítness e o aumento da qualidade de vida), expande-se pelo mundo, associado numa esportivização da cultura, particularmente, através dos estilos de vida apresentados como novos e mediados por novos hábitos, formas de pensar e sentir as relações com o corpo. Trata-se, no seu sentido mais amplo, da construção dos "eus", de identidades individuais ou sujetivi- dades nas quais os novos complexos de relações com os corpos passaram a ser centrais e integrantes, portanto, do nosso cotidiano.3 De praxe, a emergência de novos hábitos alímentarese de atividade corporal, que acompanham as argumentações desen- volvidas no movimento pela saúde, possuem fundamentos de tipo técnico englobados por valores estéticos e morais.4 Os esforços por formar e manter hábitos prolongadores da vida, mantenedores da boa forma física e que aumentem sua qualidade, apenas podem encontrar seus sentidos em valores estéticos e morais. Os objetivos de longevidade ou de fítness, por exemplo, apenas fazem sentido em relação a valores. Não encontramos no mundo da natureza esse objetivo e a interpre- tação neodarwiniana da teoria da evolução somente apresenta como objetivo natural a reprodução genética, raramente realizado por meio da prolongação da vida. (Embora possam ser apresentados como naturais, os objetivos em pauta ancoram seus significados em valores, em movimentos ou jogos, portanto, da cultura). 3. Cf. Laceida (1995). 4. Cf. Lo viso Io (1995). O argumento técnico especifica os meios racionais para atingirmos objetivos. Os argumentos técnicos podem ter uma base empírica ou científica. A correlação positiva entre, de um lado, gordura, fumo e inarividade corporal, com doenças cardiová seu lares, do outro, possui uma base empírica. Não está provado que a presença de um ou dois dos elementos mencionados estejam associados significativamente com as doenças cardiovasculares. O argumento teria uma base científica se os mecanismos que subjazem à correlação estivessem claramente explicados. Os objetivos são, de pá se, traduções de valores morais ou estéticos. Há escolha valorativa entre desenvolver hábitos alimentares e de atividade corporal, vivência d os como custosos, ou entregar-se aos prazeres da mesa e da inatividade. A escolha apenas pode ancorar-se vatorativamente (valor da saúde, do a u to-controle, das formas corporais entre outros). De fato, quando realizamos uma escolha, habitualmente em contextos de incerteza, tendemos a aceitar e formular argumentos que a reforcem. 12 No plano dos valores morais, além do imperativo de manter a saúde, conservar e prolongar a vida, os esforços de construção e de manutenção de novos hábitos pareceriam vincular-se ao valor moral do autocontrole, quer dizer, ao valor da "mente" ou "consciência" ou "superego" em controlar os impulsos (pelos alimentos, estimulantes e inatividade) dos "corpos".5 Por conseguinte, o movimento pela saúde surge, prima fade, como conscientizador ou moralizador dás relações que os indivíduos mantêm com seus corpos. Uma certa falha moral tenderia a ser associada aos indivíduos que não cuidam de seus corpos, que perdem o controle de demandas, fisiológicas ou psicológicas, excessivas. Dizer autocontrole significa dizer autonomia em relação a demandas socialmente caracterizadas como vícios. A gordura, por exemplo, poderia ser associada à falta de tem- perança, valor significativo ainda há um par de séculos atrás, embora os termos autocontrole e equilíbrio, no horizonte da autonomia do indivíduo, descrevam melhor os objetivos em ação no presente. Então, traduzida para a nossa linguagem, a gordura parece estar associada à falta de domínio sobre si mesmo, de autocontrole e de equilíbrio entre entradas e saídas, consumo e gasto. Em outros termos, possuir hábitos considerados agressivos e violentos para o corpo, mesmo no caso de se reconhecer serem gerados pela inércia do próprio corpo em interação com o social, afigura-se como sendo uma conduta moralmente questionável. O movimento pela saúde procura: alongar a vida, estabelecer uma vida saudável e ativa e promover uma velhice em atividade. Estes valores são apresentados como auto-eviden- tes, embora exista uma campanha permanente para inculcá-los nos indivíduos. Por certo, a extensão e intensidade da campanha 5. O termo "corpos" está aqui sendo usado de modo metafórico. De fato, o problema é que os "corpos" não pareceriam contar com mecanismos de auto-ré gula cão para a ingestão de alimentos, o consumo de estimulantes e a entrega ã inatividade. Assim, os "corpos" pareceriam poder entregar-se com faculdade a "consumos" que os destruiriam. Devemos levar em consideração que a formação de novos hábitos demanda altos custos no imediato, que apenas podem ser compensados pelas expectativas de futuros benefícios compensadores. 13 v pareceriam desmentir a auto-evidência desses valores. A primeira vista, situa-se na tradição de um processo civilizador que pretende controlar a violência, no seu caso, contra a própria vida, isto é, contra o próprio corpo. Os argumentos afirmando que fumar, comer demais, não fazer atividade corporal e usar drogas é uma forma de suicídio, mais ou menos rápida, confirmam o lado civilizador do movimento pela saúde. Os hábitos positivos são os que indicariam a capacidade pessoal de resistência aos prazeres do fumo, da mesa, do sono e da inatividade. Entretanto, a estética é um poderoso vetor constitutivo das novas relações com os corpos. De modo geral, aspira-se a corpos com baixo percentual de gordura e sem concentrações, com músculos definidos, embora não necessariamente aumentados. Há silhuetas que são apresentadas e inculcadas como estéticas e outras, antiestéticas. A silhueta "estética" tornou-se um pode- roso passaporte de circulação social no campo do trabalho, da sociabilidade e da sexualidade. Assim sendo, é apresentada como natural. Dessa forma, são os hábitos culturais negativos os que destruiriam as formas belas dos corpos, ou seja, as formas que devem ser desejadas. Também então, no campo dos funda- mentos estéticos, nos confrontamos com um movimento que pretende uma reforma cultural em relação ao corpo. A cultura valiosa do corpo critica e pretende reformular a cultura negativa. Assim, fala-se mal da cultura em nome da cultura. Há, por certo, muitos críticos dos valores estetizantes do corpo. Basicamente, acham imoral que poderosos esforços de alimentação, atividade corporal, ingestão de produtos químicos, uso de cosméticos, realização de cirurgias entre outros, sejam realizados pelos indivíduos, e especialmente'pelas mulheres, para atingirem padrões corporais esteticamente valorizados. Tais esforços seriam imorais, pois os indivíduos abandonariam sua autonomia para aceitarem padrões estéticos externos, entre- gando-se à dominação de uma sociedade consumista. Entretanto, 14 não raro, esses mesmos críticos se apoiam em apelos em favor da saúde, pois consideram que esses esforços estetizantes também significam uma violência, uma agressão contra a saúde do corpo dos indivíduos e seu efeito negativo extremo poderia ser a anorexia6. Alguns críticos o são dos meios, como, por exemplo, o uso de substâncias químicas ou mecânicas ou da dedicação intensiva às atividades corporais. Mais do que atacar a vontade de se obterem silhuetas estéticas, combatem os meios, sinalizando a necessidade de uma moralidade em relação aos meios utilizados. No cotidiano, os argumentos morais, estéticos e técnicos aparecem entremeados e os indivíduos geram misturas, embora com ênfases circunstanciais, desses argumentos nos processos de construção de seus "eus" e de suas "imagens sociais". Neste texto, o que pretendo fazer é sugerir as hipóteses de que: a) os argumentos técnicos não avançaram significativamente nos últimos duzentos anos; b) tampouco avançaram significativamente as recomendações básicas de controle da obesidade e c) o argumento estético, talvez, tenha preeminência histórica sobre o moral na estratégia de desenvolvimento do autocontrole. Em relação ao ponto "c", diria que a estética do corpo foi um poderoso ardil, particularmente sobre os jovens, sobretudo para abrir o caminho dos argumentos morais do movimento pela saúde7. Fundamentarei minhas sugestões na leitura e análise da Fisiología do gosto de Brillat-Savarin. 6. As atividades corporais ditas suaves c alternativas situam-se como resposta que aceita o argumento dos críticos. Por um lado, porque tenta diminuir a violência contra o corpo que estaria presente nas atividades corporais duras e que se manifestaria, por exemplo, em diferentes tipos de lesões pemantemes outransi cá rias. Por outro lado, porque pretende devolver ou desenvolver nos indivíduos a autonomia no controle das atividades corporais. De fato, nas atividades suaves, os valores de saúde, de equilíbrio, de autoconhecimento, entre outros, ganham preeminência sobre os valores estédco-físicos Cf. Lacerda (1995). 7. Coireia {1994) mostra como o sentimento de potência dos jovens os leva a sentir-se fora dos perigos que ameaçam os corpos e também além dos sentimentos de perda da forma e da saúde que, possivclntente, aparecem com o decorrer dos anos e dos sinais manifestos pela entropia corporal 15 Biografia e contexto Jean Anthelme Brillat-Savarin (1755-1826) publicou a primeira edição de seu livro no ano anterior ao de sua morte. Foi testemunha e ator de violentas, tempestades da história, bem como da calmaria e da volta das coisas a seus lugares. Nasceu numa família de robe, togada. Membro da burguesia, alcançou posições de prestígio: começou sua carreira na corte de Beíley; foi escolhido deputado da Assembléia Nacional, em 1789, da qual foi expulso em 1792. Sua cidade natal, então, o escolheu prefeito e comandante da Guarda Nacional. Os chefes revolucio- nários da região o acusaram de traição e o condenaram. Obrigado a emigrar, fugiu para a Suíça e chegou aos Estados Unidos, onde morou por três anos. Conta-se que sobreviveu tocando violino. Teria sido primeiro violino da orquestra de Nova Iorque, talvez em virtude de sua vontade de sociabüidade e convivência, da qual nos proporciona copiosas manifestações em sua obra. Retornando à França, consegue que seu nome seja expurgado das listas dos emigrados, recupera a posse de seus bens e a condição de cidadão. Obtém uma posição de ajudante-de-ordens do marechal Augereau. Mais tarde, a de delegado, com poderes executivos, na corte do departamento de Seine-et-OIse e culmina sua carreira, sendo nomeado por Napoleão Bonaparte, como membro da Corte Suprema de Apelações. Savarin foi um sobrevivente dos tempos convulsionados da Revolução Francesa e assistiu à volta ao poder, de Carlos X, cujo irmão, lembremos, foi guilhotinado. O poder voltou para os conservadores, a nobreza retornou às suas posições e a burguesia continuou sua marcha ascendente. Os prazeres podiam retornar à ordem do dia num clima de discrição e elegância. A gastro- nomia era uma das fontes de prazer que representava um estado de espírito, um modo de encarar a vida e uma forma de interpretar e intervir na sociedade. Nos planos da ação e da letra, Savarin somou-se, de forma original, àqueles que promoviam a 16 gastronomia e suas artes — as maneiras da mesa, a relação entre os convidados e a conversa social — como prática civilizatória. As regras de Savarin estabelecem desde como se sentir antes do convite, o respeito ao horário, o tom das conversas, a ordem das bebidas e das comidas, até os deveres e obrigações do anfitrião e dos convidados. Para Savarin, convidar alguém significa ocupar- nos de sua felicidade durante todo o tempo em que estiver sob nosso teto. Solicito que o leitor lembre se viu, e se não viu veja, pois só haverá de ganhar, o filme A festa de Babette. O filme divide- se, como todo bom ritual, em três partes. Na primeira, se nos apresenta a difícil e pouco civilizada convivência de um grupo de velhos aldeões bem como do mediador: a cozinheira francesa que, por motivos semelhantes aos de Brillat-Savarin, encontra refúgio entre os aldeões. A primeira parte do filme nos fala da sociabüidade defeituosa, de individualidades infelizes, dos desiguais em conflito. Na segunda, vemos o comércio, o transporte e a preparação dos alimentos. Momento de tensão que transforma as matérias-primas em alimentos e bebidas, enfim, uma preliminar antes de uma nova integração: passagem entre a natureza ou barbárie à civilização. Na terceira, transcorre a reintegração que o ritual provoca: os "mesmos" velhos aldeões se transformam à medida que participam do jantar-festa realizado por Babette para eles: os rostos se iluminam, os modos e maneiras se civilizam, a conversa torna-se amável e os antagonismos distendem-se, até desaparecer. Na saída do jantar, os velhos, agora os convivas, entram na comunhão dos corpos e das mentes, felizes e civilizados pelas comidas e bebidas preparadas por uma gastrônoma incomparável. A moralidade é reinstaurada; a gastronomia "re-liga" e torna felizes homens e mulheres. Caso o leitor ainda duvide do poder da gastronomia, pode assistir a Como água para chocolate. Embora o filme fosse produzido num contexto totalmente diferente ao da Fisiologia do gosto e A festa de Babette, reitera a mesma confiança no 17 poder dos alimentos, cuidadosamente selecionados e preparados, sobre as pessoas, seus sentimentos, paixões e autodescobri- mentos. Assim, o controle das relações entre os homens e o autocontrole são eixos estruturantes da gastronomia. A sociabilidade e a realização pessoal (refinamento, crescimento, integração, entre outros objetivos) resultam da intervenção gastronômica. Felicidade contra necessidade O primeiro aforismo, dos vinte que presidem a obra de Savarin, constata que "O universo só existe porque ha vida, e tudo o que vive se alimenta." A partir do pano de fundo da natureza, e da satisfação das necessidades da vida, se instalam a cultura, a civilização, o refinamento. Assim, o segundo aforismo, "Os animais se alimentam, o homem come; só o homem refinado sabe comer." Dupla distinção: entre a alimentação dos animais e o comer dos homens; entre o mero comer e o saber comer dos homens refinados ou seria melhor dizer logo civilizados. Savarin enfrenta o paradoxo que — embora o conforto moderno nos distancie de sua constatação imediata, entre ervilhas enlatadas e pedaços de carne envolvidos em límpidos plásticos — ainda nos aterra: a vida vive da morte. Há, portanto, uma violência fundadora da vida. Há testemunhos, reais ou imaginados, de que os homens violentos, os guerreiros, os machos, consideram a carne, por vezes quase crua, como ali- mento energizante. A carne sangüinolenta, apenas escaldada os enche de energias. Os homens violentos vivem da morte8. Em contrapartida, quando os vegetarianos eliminam a vida animal dos cardápios, realizam um sugestivo esforço para suavizar essa violência: distanciar-se da vida que vive da morte. Contudo, ela volta a se patentear como problema quando os umbrais de uma S. Ver a obra de K. Thomas, Ohomemeomadoaaíural, como exemplo. 18 representação mais sensível nos levam a pensar e sentir que a vida vegetal também sente, sofre, possui sensibilidade. O vegetarianismo ameniza sem eliminar o paradoxo. Podemos reler o processo civiíizatório, do qual nos fala Norbert Elias, também como gradativo distanciamento das evidências de que ávida vive da morte. Duas estratégias correntes de resistência ao terror do paradoxo podem ser pensadas. A primeira reside na transformação da morte na arte refinada de saber comer: os pratos, e os ingredientes que lhes dão substância, distanciam-se em forma e conteúdo das associações com a violência da morte que demanda a vida. As refinadas fatias de carpacào, embora cozidas nos ácidos do limão e nos temperos, nos distanciam consideravelmente do grosso bife de chorizo mal passado que enche o prato de sangue. A segunda estratégia toma consistência quando o ato de comer deixa de ser confundido com simples necessidade e é posto a serviço de finalidades superiores: os desígnios do Senhor, o prazer, a felicidade humana e a paz que dela se deriva ou a própria cultura da nação. No ato de saber comer, os fins superiores podem encontrar uma impecável articulação. A articulação de ambas estratégias é sempre possível. Assim, diz Savarin, a descoberta de um prato novo é mais importante para a felicidade do gênero humano do que a descoberta de urna estrela (aforismo IX). A capacidade francesa de gerar pratos refinados e de novos pratos é o fundamento de sua recuperação econômica, da atração que exerce sobre os estrangeiros: a luz da gastronomia ilumina Paris talvez com força maior que a do intelecto, nosdiz Savarin. Um jantar espirituoso estimula os espíritos e suas luzes mostram as facetas delicadas e artísticas dos pratos. Nesses momentos, por sobre todos os outtos, devemos dar graças ao Senhor. O criador obrigou o homem a comer para viver, o convida com o apetite e a recompensa com o prazer (aforismo V). Esse é o prazer que sobra como último para consolar-nos da perda dos outros (aforismo VII) e que, devemos reconhecer, os interven- 19 cionistas atuais pareceriam querer nos roubar. A mesa é o lugar onde nunca se sente tédio na primeira hora (aforismo VIII), um sentimento contraposto ao de prazer e à própria felicidade humana. Sobre essas bases gerais, Savarin nos diz que o destino das nações depende de como elas se alimentam (aforismo III) e a identidade do homem está no que come (aforismo IV). Fuerbach, o materialista, concordou com Savarin quando afirmou que o homem é aquilo que come. Se seguirmos Savarin e Fuerbach, toda etnografia deveria, então, ter por capítulo introdutório à descrição da gastronomia do povo estudado. Alimentar-se por necessidade é um ato natural. É bastante natural encher o bucho até quase se conseguir a imobilidade física nos tempos de fartura, acumular energias transformadas em carnes para resistir aos tempos de fome. Assim, um código genético que acumule gorduras nem sempre é desfavorável, como o urso testemunha prototipicamente. O ato de comer pode se tornar mais "cultural" à medida que a produção e a tecnologia eliminam os ciclos de fartura e escassez. Em conseqüência, o comer pode cada vez mais ser representado como um ato cultural, que deveria estar a serviço da felicidade fisiológica, psicológica, cultural ou social. Comer deixa de ser uma mera necessidade biológica e desenvolve-se então como gosto, como ato estético e civilizador. As relações históricas entre gosto, estética e civilização merecem, ainda, renovados esforços de entendimento. As ressonâncias estéticas do pato laqueado, das saladas coloridas ou das sobremesas são múltiplas. A felicidade gastronômica depende das potencialidades do gosto que é, para Savarin, superior no homem, se comparado com qualquer outra espécie. Enquanto a língua dos animais não vai além de sua inteligência, na constituição da língua do homem, pela delicadeza de sua textura e pelas membranas que lhe são vizinhas, anuncia-se "quão sublimes são as operações a que está destinada". Sobre esta base, construiu-se a tradição da cozinha que influi de "forma tão direta sobre a saúde, a felicidade e até sobre os negócios". 20 Formar-se nas ciências e artes da gastronomia é uma tarefa fundamental para Savarin. É um modo de intervir no devir da sociedade, nas relações entre os homens, na construção das personalidades. Há que se formar os especialistas da intervenção; listar as disciplinas e os conhecimentos significativos; apresentar as artes de uma ocupação milenar. Falta, apenas, o que mais tarde se fará: transformar, via legislação e programa universitário, uma ocupação em profissão. Savarin não dará esse salto. Serão aqueles preocupados, aparentemente, apenas com o objetivo mais restrito da saúde, menos doenças e maior esperança de vida e longevidade, os que se encarregarão dessa parte da tarefa. Contudo, o comer bem, em função de objetivos (saúde, estética, sociabilidade), depende, na obra de Savarin e até em nossos dias, da educação e da socialização que desenvolve o autocontrole necessário ao saber comer. Assim, a gastronomia e a nutrição confrontam-se com a tarefa de construir personalidades capazes de autocontrole. Personalidades suficientemente controladas para que, ainda quando possuídas pela fome, tenham o domínio suficiente para cumprir todos os rituais do ato de comer que diferenciam o homem dos animais. Ou seja, personalidades capazes de dominar a violência intempestiva da necessidade com o charme do convidado elegante, que prefere ficar com fome a demonstrar sua violenta voracidade ou que reprime a ânsia de alimentos para poder saborear os pratos. Portanto, trata-se de desenvolver a cultura, o gosto, o refinamento, a estética, enfim, os valores superiores, num poderoso esforço de autocontrole. O programa do curso O programa do curso montado por Savarin inicia-se com os conhecimentos fisiológicos da época sobre os sentidos (Medi- tação I). Física, química, fisiologia e erudição são os conheci- mentos que subsidiam a construção do programa de uma ciência da gastronomia. Os conhecimentos das ciências estão moldados 21 ou solidificados pela observação e a experiência dos seres humanos e, especificamente, de suas áreas de sentimentos e condutas estreitamente relacionadas com o programa do curso: com a cozinha, os gostos e formas de comer, com os efeitos das comidas e das bebidas. Savarin pretende traduzir os conheci- mentos científicos para o público. Entretanto, essa tradução não é um mero fazer compreender. E uma tradução que se situa no horizonte, estando a serviço de um programa gastronômico de intervenção. Portanto, semelhante à tradução da sociologia para o serviço social ou para a educação física ou da bioquímica e fisiologia para a atual nutrição. É, assim, uma tradução que seleciona, recorta, em função dos objetivos sócio-culturais do programa de formação. A antropologia de Savarin afirma que o homem é um ser que pretende gratificar seus sentidos. Sua história das ciências nos diz que elas resultam dos esforços que continuamente se fazem para gratificar os sentidos. O principal sentido para a ciência da gastronomia é o próprio gosto, que atingiu os mesmos objetivos num processo mais lento de desenvolvimento e satisfação que lhe garante a duração do sucesso. Emerge assim a necessidade de meditar sobre o gosto (Meditação II). O gosto e sua satisfação são o objeto teórico e prático, diríamos hoje, da nova ciência: a gastronomia. Savarin elabora a definição do gosto, perfila sua mecânica, reflete sobre a sensação do gosto e dos sabores, tematiza a influência do oífato sobre o gosto, estabelece os gozos provocados pelo gosto e a sua supremacia no hornem através do processo de seu aperfeiçoamento. Ou seja, o conhecimento da estética do gosto e os fundamentos da intervenção gastronômica, para desenvolvê-lo e satisfazê-lo, comandam a escala de valores que orientam Savarin. A saúde, embora importante, ocupa um segundo lugar. Será que essa escala mudou significativamente no quarto de milênio que nos separa de Savarin? Noutros termos, em nossos dias, a dinâmica da nutrição parece estar dominada tanto pela estética do corpo, ao invés da estética do gosto, quanto pelo valor da saúde. 22 Contudo, poderíamos insinuar a hipótese de que a saúde é uma racionalização da estética do corpo? A saúde é hoje um argumento moral inquestionável enquanto que a estética do corpo recebe não poucos puxões de orelhas da parte dos moralistas, sejam conservadores ou progressistas. O sensualismo parece permear toda a obra de Savarin. A gastronomia associa-se estreitamente ao prazer. Não a qualquer prazer, senão ao prazer do sentido do gosto que possui uma função civilizadora. Assim, nosso cientista da gastronomia afirma não ser pelo enfoque físico que o gosto tem relevância, mas é sobretudo através de sua história moral que esse sentido adquire a sua importância e sua glória. O método mostrará a importância crescente do ato de comer, indo do puro instinto a uma paixão influente, sobretudo do que forma a sociedade. A Meditação III situa a gastronomia no contexto das ciências, isto é, a legitima cientificamente. Imediatamente, expõe suas funções sociais: sustenta-nos do nascimento à morte, aumenta as delícias do amor e a confiança na amizade, desarma o ódio, facilita os negócios e nos oferece, durante o curto trajeto da vida, o único gozo que, por não ser seguido da fadiga, nos repousa de todos os outros. A gastronomia, define Savarin, é o conhecimento racional de tudo o que se diz a respeito do homem quando se alimenta. A definição implica na relação da gastronomia com a história natural, a física, a química, a cozinha, o comércio, aeconomia política. Enfim, a gastronomia rege a vida e se ocupa de todos os níveis sociais. Sendo assim, o tema da gastronomia é tudo aquilo que pode ser comido; seu objetivo, a conservação dos indivíduos e seus meios de execução, a cultura que produz, o comércio que intercambia, a indústria que prepara e a experiência que inventa os meios de dispor de tudo para seu melhor uso9. 9. Gostaria que o leitor, como diria Savarin, se detivesse neste ponto, sobretudo se é um profissional da nutrirão, do serviço social, da educação física, da administração de empresas ou de qualquer outra profissão formado num curso de tipo mosaico, e estabeleça os paralelos entre a construção da gastronomia e a construção e legitimação em seu próprio campo de atuação. 23 Cada meditação posterior é uma espécie de ementa de uma disciplina. Encontramos, ainda dentro da primeira parte do livro, nas meditações, as seguintes ementas: o apetite, os alimentos, as especialidades, a teoria da fritura, a sede, as bebidas, a gourmandise, os gourmands, os testes gastronômicos, o prazer da mesa, os repousos da caça, a digestão, o descanso, o sono, os sonhos, a dieta e o repouso, a obesidade e seus tratamentos preservativos ou curativos, a magreza, o jejum, o esgotamento, a morte, a história filosófica da cozinha, os donos dos restaurantes, a gourmandise clássica posta em ação e a mitologia gastronômica. Na segunda parte, denominada de Variedades, Savarin apresenta receitas e reflexões espirituosas. Acompanha um glossário gastronômico como fechamento. Obesidade e magreza: o poder de observação A apresentação do curso de gastronomia elaborado por Brillat Savarin pode deixar o leitor com dois tipos básicos de resistência, sobretudo se é um profissional formado em algum curso que objetiva a intervenção e percebe a existência de proximidades sociológicas entre sua formação mosaico e sua função social e as propostas da ciência da gastronomia10. A primeira resistência pode se manifestar de forma violenta, taxando a obra de Savarin de delírio, de construção imaginaria que nada tem a ver com o modo de construção de sua própria profissão. A segunda, mais civilizada, é deliciar-se com Savarin, porém qualificando sua proposta como um delírio. É difícil dialogar com a primeira resistência, pois ela não quer enxergar, cheirar, ouvir nem possui uma fisiologia do gosto desenvolvida. Embora, pessoalmente, tenho a impressão de que aqueles que 10. Sobre a formação mosaico dos cursos universitários profissionalizantes e especialmente sobre os cursos de Educação Física, conferir Lovisolo (1995). 24 falam de uma ciência da motricidade humana, no campo da educação física, ou da administração científica de recursos humanos, resguardadas as distâncias dos distintos contextos históricos e seus subsídios, estejam mais próximos do modelo de Savarin do que imaginam ou do que podem aceitar. Pode-se dialogar, um pouco mais facilmente, com a segunda resistência. Procurarei fazê-lo a partir da valorização do poder de observação de Savarin como manifestação de seu princípio de realidade. Pretendo assim mostrar que há pouco delírio na sua construção e para isto tomarei o atualíssimo tema da obesidade11. Savarin inicia falando-nos da obesidade realista e humoristicamente. Afirma que se tivesse sido médico teria feito uma monografia sobre a obesidade e a partir dela teria construído seu império nesse canto da ciência, desfrutando da dupla vantagem de ter como pacientes as pessoas que estão nas melhores condições e de ser perseguido, diariamente, pela metade mais bonita do gênero humano, pois ser gorda, na justa medida, sem barriga nem mais nem de menos, é para as mu- lheres o estudo de toda a vida. Temos de chofre a importância concedida à obesidade, no reverso, à estética feminina. As mulheres são o alvo privilegiado do discurso contra a obesidade. Savarin, em poucas linhas, estabelece o padrão estético para as mulheres de sua época e privilegia o gênero feminino na intervenção sobre a obesidade (p. 209). Também antecipa uma área de negócios médicos (dietas, acompanhamento, cirurgias, produtos bioquímicos etc.) e paramédicos (academias e clínicas de emagrecimento, produtos industrializados e naturais, publica- ções e programas televisivos entre outros) em pleno desenvol- vimento no nosso presente. Se Savarin delira, o faz com alta ca-pacidade preditiva, pois ainda a mulher continua sendo privi- legiada nos discursos sobre a obesidade e os negócios que dela se 11. Realizo a comparação entre o discurso atual sobre a obesidade e as afirmações de Savarin a partir da dissertação de mestrado de Rocha (1995). Apanirdas resenhas e análises da autora, podemos comprovar que a reflexão geral e, sobretudo, as linhas gerais das terapêuticas para a obesidade já estavam presentes ao tempo de Savarin. 25 ocupam andam muito bem graças à estética e ao desejo de vida. Significativas são as causas que Savarin estabelece para a obesidade. A primeira é a disposição natural do indivíduo (p.212). Quase todos os homens nascem com .certas predis- posições, cujas características são refletidas pela fisionomia. Assim, Savarin pode antecipar que a jovem charmosa e cheinha deverá no futuro lutar contra a gordura. E verdade, então, diz o autor, que há pessoas de certa forma predestinadas à obesidade e nas quais, o resto sendo igual, as potências digestivas elaboram uma quantidade maior de gordura. Antes do desenvolvimento da genética, e em função apenas da observação, Savarin estabelece um axioma, hoje, bastante aceito: a predisposição genética à obesidade mediada por uma fisiologia de grande capacidade de acumulação. Nos indivíduos que têm o estômago ativo, o excesso de nutrição age como no artigo precedente — Savarin parece haver observado que pessoas que comem o mesmo podem ter respostas diferences, sendo um obeso e outro não.. Comer e beber demais é a última causa que enuncia (p.214). Tudo é digerido, afirma, e o desnecessário à recuperação do corpo se fixa e se torna gordura (p. 215). Ou seja, a teoria da obesidade como produto da superioridade da ingestão sobre o gasto, também já estava em Savarin. Num mundo civilizado, com grande afluência de bens, o que poderia ser uma vantagem adaptativa para um contexto de escassez, a capacidade de assimilação, torna-se um castigo, uma tortura, um mal, uma doença que legiões de médicos e não médicos prontificam-se a tratar. Em segundo lugar, Savarin, aponta substâncias específicas como causa da obesidade. As farinhas e as féculas, que o homem fez base de sua alimentação, constituem a principal causa alimentar da obesidade (p.213). Um terceiro fator de obesidade reside no excesso de sono e na falta de exercício. Durante o sono se perdem poucas calorias, diríamos hoje, e o mesmo efeito provoca a falta de exercício. Em quarto lugar, Savarin aponta o comer e beber 26 demais como causa da obesidade (p.214). Considera um privilégio da espécie humana o poder comer sem ter fome e beber sem ter sede, fruto da reflexão sobre o prazer da mesa e o desejo de prolongá-lo. Os humanos, em todas as partes, quando a ocasião o permite, comem e bebem demais e isto iguala selvagens e civilizados. Os últimos multiplicaram a afluência de bens possibilitando que o ocasional se tornasse constante. Assim, a obesidade é também um mal da civilização, pois jamais ocorre entre os selvagens ou nas classes da sociedade que precisam trabalhar para comer e que comem para viver (p.212). Tudo indica o observador profundo; o sistematizador conseqüente das experiências. Sem possuir uma explicação científica sobre os mecanismos, a partir somente da observação, estabelecem-se, portanto, princípios básicos, ainda hoje vigentes, no diagnóstico e no campo das dietas de emagrecimento. Savarin observa que a intemperança atraiu os olhares dos observadores. Apesar de que os filósofos elogiaram a temperança, os príncipes fizeram leis suntuárias, a religião pregou a moral aos gourmands, nem um bocado foi comido a menos e a arte de comer em excesso floresce cada dia mais (p.215). Sea obesidade é um mal, como combatê-lo, como se estabelecer a temperança? Savarin estabeleceu lineamentos de uma estratégia que chega a nossos dias. A estética como estratégia "Talvez terei mais sorte utilizando um caminho diferente. Exporei inconvenientes físicos da obesidade. O cuidado de si mesmo será, quiçá, mais influente que a moral, mais persuasivo que os sermões, mais possante que as leis, e acho que o belo sexo está disposto a abrir os olhos à luz" íp.215). Entende por "obesidade esse estado de congestão gordurosa no qual, mesmo que o indivíduo não esteja doente, os 27 membros aumentam pouco a pouco de volume e perdem sua forma e sua harmonia natural. Há um tipo de obesidade que se limita à barriga. Nunca o observei nas mulheres; como elas geralmente têm a fibra mais mole, quando a obesidade as ataca, não perdoa nada"(p. 210). Savarin confessa que durante trinta anos lutou contra esse tipo de obesidade e que a luta contra a obesidade é longa e demanda muita coragem. Não considera a obesidade como uma doença, entretanto, trata-a como uma "disposição inconveniente, na qual nos colocamos quase sempre por descuido nosso"(p- 218). Observemos que, apesar de detectar causas orgânicas, Savarin atribui ao indivíduo o controle da obesidade. O indivíduo, afirma Savarin, não pode descuidar-se e deve cotidianamente lutar contra os fatores que pode controlar: a alimentação, a atividade corporal e o sono ou tempo de descanso. Assim, é da responsabilidade do indivíduo a luta diária contra a obesidade. Em outras palavras, o obeso é o principal culpado de sua obesidade, pois come muito e mal em relação a sua fisiologia e realiza pouca atividade corporal em relação à que deveria cumprir para não ser obeso. Devemos reconhecer que a estratégia de combate à obesidade pouco se alterou, apenas modificaram-se as substâncias, os alimentos, os pratos que devem ou não ser comidos e o tipo de atividade corporal. Embora, hoje, nenhum médico recomende praticar equitação, a maioria, como Savarin, continua indicando o caminhar como atividade cerporal central no controle da obesidade. A obesidade foi e ainda é percebida como resultado da falta de autocontrole12. Mesmo considerando que a obesidade predispõe a algumas doenças, por exemplo, apoplexia, hidropisia, úlceras das pernas etc.) e torna outras mais difíceis de sarar, Savarin não argumenta contra a obesidade a partir delas. O principal inconveniente, nos diz, é o de prejudicar a f orça e a beleza. Prejudica a força porque 12.A conceituarão do controle e do autocontrole constitui um dos eixos amculadores da elaboração de Noibeit Elias sobre o processo civilizador. Sua obra é um pano de fundo central para nossas reflexões. 28 aumenta o peso da massa que deve ser movida sem aumentar a potência motriz, além de dificultar a respiração. Prejudica a beleza porque destrói a harmonia das proporções estabelecidas inicialmente, pois cada parte engorda de forma diferente. A obesidade acarreta o desgosto pelas atividades como a dança, o passeio, a equitação, enfim, pelas ocupações e divertimentos que exigem um pouco de agilidade ou de habilidade (p. 218). A relação entre obesidade e saúde não ocupa um lugar privilegiado em Savarin. De fato, trata de convencer a partir do efeito estético negativo sobre a beleza, a perda das formas naturais, e do efeito negativo sobre a força e, portanto, sobre as atividades que demandam agilidade ou habilidade. As atividades que enumera (dança, passeio e equitação) são sociais e estéticas e formam parte, na sua época, tanto da sociabilidade quanto do espetáculo culto baseado em atividades corporais. Na dança e na equitação torna-se fácil entender ser beleza e força quase indistinguíveis. O efeito estético resulta de sua combinação. O diagnóstico da obesidade não se alterou significati- vamente desde os tempos de Savarin, tampouco modificou-se significativamente o conjunto de recomendações centrais para combatê-la. Ainda hoje, considera-se ser a obesidade, sobretudo, responsabilidade moral do obeso e exige uma luta diária para seu controle, baseada numa tremenda capacidade de autocontrole dos hábitos alimentares e da atividade corporal. A estratégia, elaborada por Savarin, para nos convencer dos efeitos negativos da obesidade, é basicamente estética e vincula-se também ao prazer dos sentidos nos jogos de beleza e força. Talvez seja, sobretudo entre os mais jovens, a estratégia estética o vetor principal dos esforços no controle da obesidade, da flacidez, enfim, de corpos que perdem as formas e as forças, a agilidade e as habilidades que demandam o manter a forma e, aqui, também entram os mais velhos. Por outro lado, a estratégia continua tendo como alvo central as mulheres. A perda da beleza de suas formas parece continuar sendo mais significativa que a 29 perda correlata nas formas dos homens. Duas questões se abrem. A primeira interrogaria sobre os fundamentos sócio-culturais que, em relação ao campo dos desejos, das mentalidades, dos imaginários, permitiram que uma estratégia, formulada com tão parcos elementos, conserve-se viva, até hoje, quase que constituindo a tradição do combate à obesidade. A segunda deveria interrogar-se a respeito da durabilidade da obesidade como problema social, apesar de seu combate. Ambas questões, por certo, estão estreitamente relacionadas. Capítulo 2 30 L Educação, estética e movimento A educação física emerge no Ocidente vinculada a seu projeto de formação dos homens, a sua bildung ou paidéia. Seu horizonte maior é o educacional, em termos de formação moral, cognitiva, estética e corporal de crianças e jovens. Quando a excessiva preocupação pelo destino das almas se abrandou, os homens começaram a preocupar-se também pela formação do corpo como um objetivo valioso em si mesmo. A atividade corporal e, em especial, a ginástica e os esportes, ganhariam crescente destaque na formação e não somente em termos estritamente físicos13. A questão das articulações ou contribui- ções da atividade corporal para a formação moral, cognitiva e estética seria um foco de preocupações que geraria variadas respostas em termos de programas de intervenção. O entre- laçamento da atividade corporal, da ginástica e do esporte com 13. Houve um desenvolvimento dos esportes paralelo às propostas educativas que o consideraram um meio pedagógico. O desenvolvimento paralelo deu origem a esporte competitivo como espectáculo, como negócio e como empresa com objetivos próprios bem diferenciados do horizonte da paidéiã 31 a formação dos homens obriga o educador físico, a refletir sobre a educação em suas relações com sua prática profissional e com sua contribuição possível. Portanto, o refletir sobre a educação deveria ser um componente estrutural e permanente da reflexão do educador físico14. Entender o complexo panorama de posições e contraposições que mapeiam a educação moderna é uma tarefa complexa porém ineludível. Pretende-se na continuação apre- sentar alguns dos caminhos de construção e entendimento desse mapa. Acredito que o vetor ou a idéia dominante das pedagogias contemporâneas reside em pensar que sua principal função é ajudar a desenvolver potencialidades, competências ou pro- priedades prefiguradas nos indivíduos. Trata-se, então, mais de desenvolver coisas interiores do que interiorizar coisas exte- riores. Neste sentido, o papel do pedagogo é o de um facilitador, um oportunizador, um criador de situações educativas que possibilitem o desenvolvimento das potencialidades biológicas, psicológicas ou culturais. O educador torna-se assim um facili- tador e acelerador de processos de desenvolvimento, basica- mente, criando o ambiente ou condições adequadas para a interação das crianças que favoreça seu desenvolvimento. Uma situação poderá ser caracterizada como educativa quando avaliarmos que favorece o desenvolvimento de compe- tências ou propriedades cognitivas, motoras, emotivas e sociais. Em contrapartida, as situações bloqueadoras do desenvol- vimento serão consideradas como não-educativas e mesmo comoantieducativas e repressoras. Em tal contexto de idéias e sentimentos, o bom educador seria muito mais um criador de condições para o aprendizado ativo da criança do que alguém que se caracteriza por seu conhecimento e capacidade de "ensinar"; seria, portanto, muito mais um criador de ambiências que um inculcador de conhecimentos, mais um animador que um H. Crie a expressão educador físico substituindo a denominação habitual de professor de educação física. Ver, Lovisolo (1995). 32 condutor. Acredito que essas idéias forças, quase diria senti- mentos pedagógicos, formam o núcleo ou tendência central desde, pelo menos, o Emílio, de Rousseau, quando sua obra é lida sob uma perspectiva pedagógica. Dentro desta tendência central emergem as propostas ou objetivos de aprender a aprender ou aprender a ser e aprender grande parte da pedagogia dita ativa, antiautoritária, antimemorista e antibancária entre outras denominações. Observemos que esta-tendência da pedagogia moderna é ainda mais forte quando menos idade possui o educando com o qual se realiza a ação educativa. Assim, é muito mais oportuni- zador e estimulador o pedagogo na creche que na universidade. Na creche, o principal problema é como tratar a criança, portanto, quais deveriam ser as condições e estímulos que devem formar o meio educativo ou ambiente educativo. A supervisão e avaliação do ambiente e, principalmente, das interações das crianças entre si e com os educadores, torna-se elemento axial de conferência da proposta pedagógica posta em prática. Evidentemente que uma pedagogia inculcadora também deveria estar preocupada com o ambiente, como de resto qualquer atividade humana.15 Trata-se, em verdade, de importâncias e critérios orientadores radicalmente distintos na criação do ambiente. Uma pedagogia que considere que o objetivo é o de interiorizar o externo, procurará se guiar pelo critério de eficiência do ambiente. Portanto, um ambiente será considerado educativo quando eficiente na inculcação, sendo secundário que as crianças gostem ou não do mesmo. Em contrapartida, a pedagogia preocupada pelo desenvolvimento do interior, da subjetividade, deve orientar-se na criação do ambiente por um critério estético, pois ele deve ser do gosto ou 15. Nas teorias sobre a administração de empresas a preocupação com o ambiente é considerável, mais ainda a partir das teorias humanistas. Não se trata, contudo, de uma preocupação conservadora, porém da criação de ambientes estimula dores e agradáveis para os trabalhadores. 33 agradável para as crianças.16 Gomo poderia ser facilitador e estimulador não sendo nem agradável nem do gosto da criança?17 Assim, passa a ser fundamental que as crianças gostem da escola e de sua proposta, do ambiente e das interações com os colegas e os docentes.18 A importância do gostar deve ser transmitida aos país ou responsáveis pelas crianças.19 Se observarmos as unidades físicas escolares veremos que, quanto menor a idade de sua clientela, maior a preocupação com os fatores estéticos dos prédios, refletida, entre outros dispositivos, nas cores e na mobília utilizada. De modo geral, as creches são policromas. Diria que quando dominam, na proposta pedagógica, os objetivos de gostar, agradar, seduzir ou encantar, estamos diante de um modelo pedagógico de fundamento estético. No final da adolescência, na universidade, a transferência sistematizada de conhecimentos ganha importância e, de praxe, deixa na sombra a criação de situações educativas que opor- tunizem os desenvolvimentos. O que ensinar — o conhecimento sistematizado ou "manualizado", especialmente nas disciplinas duras — torna-se centro das preocupações. Os interesses de supervisão e avaliação voltam-se para o desempenho do aluno e a produção docente. O interesse em acompanhar o ambiente e as interações torna-se secundário quando não meramente inexistente. A preocupação pela criação da ambiência aparece como marginal ou periférica.jV própria preocupação estética pode inexistir ou ser relegada quer a um segundo plano, quer como objetivo de um organismo especializado sem vinculação 16. O principal objetivo da estética é a reflexão sobre os significados e formação desgostos, sobre o que é belo ou sublime, para os indivíduos. A estética possui uma estreita vinculação com a formação das subjedvidades. Ver Eagleton (199$) c, era particular, o discurso de Kant sobre o belo e o sublime. Sobre a história geral da estética ver Bayer (1993). As relações entre modernidade, democratização e subjetivizacão do gosto foram tratadas provocativa mente por Ferry (1994). 17. Poderia, de fato, pensar-se num ambiente estimulidor porém negativo, como as prisões, por exemplo. Entretanto, tais ambientes não seriam cstimuladorcs de desenvolvimentos interiores, quando muito propiciariam a interiorizacão do exterior. 18. Uma aproximação em termos de pesquisa empírica a estas questões pode ser encontrada em Lovisolo {1995, cap. 2). 19. Basicamente porque se acredita que deve existir, para que a escola tenha eficácia simbólica, uma correspondência de atitudes e valores entre família e cscok Cf. Lovisolo (1987). 34 com os processos formativos. A monocfomia e a funcionalidade substituem de praxe as tentativas de agradar, de gostar, sobretudo nas universidades dos países não-desenvolvidos ou em processo de desenvolvimento. Nos Estados Unidos, a arquite- tura, a jardinagem e a reprodução de mim-sÂops constituem-se em lineamentos centrais das preocupações estéticas de várias universidades.20 Contudo, o central é o desempenho e a respon- sabilidade dos alunos em esforçar-se em estudar e a dos docentes em pesquisar e produzir resultados e em ensinar os conteúdos sistematizados/Diria que quando o desempenho, o empenho, a responsabilidade e o esforço são valores orientadores da proposta pedagógica, estamos diante de um modelo em que domina o fundamento moral ou ético, centrado na valorização do esforço no processo de aprendizagem, e de objetivos cognitivos.21 Já na educação de adultos qualquer ambiência é aceita, desde o estabelecimento fabril até as salas da associação de moradores. Os adultos em processo de alfabetização ou de capacitação podem estar em ambientes não especificamente educacionais. As diferenças entre as preocupações levam-nos a pensar que temos, em verdade, dois modelos ou tipos ideais peda- gógicos. O primeiro, o das pedagogias contemporâneas, que denominei de estético, pareceria aplicar-se ao começo do processo educativo e poderia abranger uma parte considerável da educação básica; O objetivo do processo educativo seria o de desenvolver uma personalidade original, criativa, autêntica e expressiva. Sensibilidade, sentimentos e emoções devem estar no centro da cena pedagógica, categorias que por si mesmas 20. Não por acaso esses processos esterizantes das universidades ocorrem nos Estados Unidos. De fato, o va|or da estética democratizance avançou mais que em outros lugares. Uma educação nova significou uma educação que conta com a aprovação e o gosto de seus participantes. A divulgada utilização da piada pelos professores nas aulas, e sua incorporação como elemento retórico das exposições, parece-me ser muito mais force no EEUU que em outros países. 21. E facilmente consratável que os formuladores das propostas pedagógicas de praxe apoiam-se em elaborações ou argumentos que apresentam como científicos ou empíricos. Como poderá ser observado, no desenvolvimento de rainha argumentação, pessoalmente sou a favor de conciliarmos valores, em função de acordos, no processo educativo. 35 expressam o peso da estética artística na elaboração do modelo. Schiller, em A educação estética do homem, expressou a essência da proposta estética: "A formação da sensibilidade é, portanto, a necessidade mais premente da época, não apenas porque ela vem a ser um meio de tornar o conhecimento melhorado eficaz para a vida, mas também porque desperta para a própria melhora do conhecimento."" Este modelo seria basicamente inatista no plano das competências biológicas e psicológicase culturalista, ou relativista, no dos pertencimentos culturais e sociais.23 O segundo modelo, aplicado no outro extremo da educação formal, que denominei de moral e cognitivo, seria basicamente universalista e inculcador, pois se ensinam os mesmos conteúdos sistematizados em toda parte e se objetiva a inculcação desses conteúdos em matemáticas, física, química e ainda em história, sociologia, lingüística e filosofia, entre tantas outras disciplinas. A disciplina, a autodisciplina, a responsabilidade e o esforço são valores dominantes no entendimento e ocorrência do processo educativo. Se meus argumentos são válidos, podemos nos perguntar se estaríamos mergulhados nas contradições geradas pela coexis- tência de dois modelos: um de fundamento estético, o outro de fundamento moral e cognitivo. Acredito que sim, e também acredito que parte da crise das pedagogias resulta do insuficente reconhecimento de ambos modelos e, sobretudo, da necessidade de conciliá-los, ao invés de situá-los como combatentes destina- dos a apenas um sobreviver. Esta, contudo, não é a única di- mensão das contradições presentes em nossas propostas pedagógicas. O modelo estético da pedagogia, ao qual nos referimos, não 22.Ver Schiller (1995:51). O lúdico, o jogo, é o processo central na proposta pedagógica de ScbUler, pois ele oão constrange exterior nem interiormente. 23.0 leitor pode observar que estou tentando substituir uma discussão sobre a educação feita com categorias da política —liberal e conservadora, liberado» e ínculcadora, progrcssita e conservadora, entre outras— por um entendimento mais nuançado e acredito que, além de possuir maior sutileza, pode possibilitar uma discussão mais profunda e frutuosa. 36 poderia ter aparecido sem uma mudança profunda na cultura, sem novas configurações de sentido. O marco geral dessa mudança residiu na emergência do romanticismo em sua interação conflitiva com o iluminismo. Os valores românticos de autenticidade, expressividade e pertencimento, pareceriam constituir o chão das pedagogias estéticas. Pensando em elementos mais específicos das novas configurações de sentido, apontaríamos a emergência da figura da criança, tornando-se objeto de reflexão e de cuidados, entendidos como criação de ambientes adequados a seu desenvolvimento. A psicologia profunda, que deu crescente importância aos primeiros anos de vida na formação da personalidade, teve também um grande impacto. A psicologia cognitiva, quando insistiu sobre os significativos processos que ocorreriam desde cedo na infância e as várias propostas pedagógicas que foram formuladas sobre suas pegadas incidiram sobre o entendimento da educação como criação de condições propicias. A psicomotricidade foi na mesma direção. A psicologia social aplicada que destacou a importância da sociabilidade desde a mais tenra idade colaborou também com a formação da configuração. Herdamos assim um coro de vozes que torna natural para nós, tanto conferir importância aos processos educativos desde o nascimento, e para alguns ainda no útero, quanto pensarmos que nossa tarefa fundamental é a de realizar um desenvolvimento natural, espontâneo, "não repressivo nem bloqueador", das potencialidades por meio da criação de ambiências estéticas para as crianças. Procuramos o desenvolvimento da autenticidade, da expressividade e dos pertencimentos das crianças. Poderíamos nomear outros processos e elementos constitutivos da configuração que valoriza a formação moderna da criança. Consideramos, contudo, que os mencionados são suficentemente indicativos das novas configurações de sentidos em relação às crianças. As ciências sociais, com suas teorias sobre a cultura e os processos de socialização, enfatizaram o lado sócio-cultural dos 37 processos educativos. Basicamente^ atribuindo as diferenças entre os homens aos processos socializadores das culturas nas quais se tornam "homens". Dos estudos antropológicos se depreende uma espécie de axioma que diz: quanto menor a idader maior as semelhanças, quanto maior a idade, maior as diferenças entre os homens. Na configuração moderna,sobre as crianças o relativismo cultural também deixou sua marca signi- ficativa. No domínio básico da linguagem, a sócio-lingüística enfatizou as diferenças de linguagem entre as classes sociais de uma mesma sociedade. Assim, o legado sócio-cultural para a pedagogia é sua força relativizadora e culturalista. O relativismo ou culturalismo introduz um cunho antiuniversalizante no discurso pedagógico, especialmente no modelo estético, embora não sem tensões ou contradições. Alguns dos autores principais no campo pedagógico, como Freud e Piaget, por exemplo, elaboraram teorias com pretensões universalizantes. Os estágios evolutivos da inteligência seriam universais e não menos universal a estruturação das instâncias psíquicas na teoria freudiana. Lembremos que, no próprio campo da moralidade, foi proposta,a universalidade, como no caso das teorizações de Kolberg. Se a cognição e moralidade, para Piaget e Kolberg, fundam-se em estruturas psiconeurológicas, apenas a estética, as considerações sobre o belo, pareceriam escapar a essa dinâmica. Ou seja, seria no campo da formação estética que se processaria com maior força a geração e manutenção das diferenças entre as culturas e subculturas e mesmo entre os indivíduos, quer dizer, entre as subjetividades individuais? Haveria nas pedagogias de nosso presente uma tensão ou conflito entre fundamentos e tendências universa- lizantes e relativizantes? Residiria também nessas tensões os desconfortes e contradições da pedagogia moderna? Em contraposição às idéias universalizantes, podemos observar que o vetor pedagógico da modernidade foi envolvido, encorpado, atravessado por outra idéia não menos potente e 38 profundamente antagônica àquelas. Essa outra idéia, nascida no campo da filosofia, da crítica estética e das teorias culturais, é a de que não existe alguma coisa assim como um homem universal. Os homens seriam produtos de circunstâncias sócio- culturais-locais, particulares. Os homens são as culturas a que pertencem e as culturas' são formações significativamente dife- renciadas. Se há cõmunalidáde biológica entre os homens, diz o culturalismo, ela começa a ser perdida nos usos e costumes culturais da gravidez, do parto, do atendimento às crianças nos primeiros dias de vida. Emerge assim a constatação, repetida na observação etnográfica, de que os homens quando nascem são muito semelhantes, porém, logo, começam a se diferenciar em função dos trabalhos de socialização de suas respetivas culturas. Diferenciam-se por meio dos arranjos de conhecimentos e valores, morais e estéticos, que definem suas culturas. Diferen- ciam-se nas marcas que realizam sobre seus corpos, nos modos de se pentear, pintar e vestir, tanto quanto nas formas de movi- mentar-se no espaço e nas avaliações sobre a beleza de uma dan- ça, de um salto ou de uma corrida. Temos assim a idéia de que sobre a base de um aparelho biológico comum, as culturas rea- lizam um profundo processo de diferenciação, de construção dos homenzinhos que dela serão tanto produto quanto produtores. No contexto dessa visão, os homens estão suspensos em redes particulares de pertencimentos. São esses pertencimentos, os traços culturais, os que fazem suas diferenças. Pertenci- mentos cognitivos ou sobre a verdade, éticos ou sobre o bem, e estéticos ou sobre o belo. Estamos assim diante do relativismo, um idéia poderosa no mundo que nos cabe manter e modificar. O relativismo tem um pilar muito forte na valorização romântica dos pertencimentos, da expressividade autêntica e do popular, como sinal preferencial da autenticidade das expressões, sobretudo das estéticas.24 24.VerLovÍso[o(1990). 39 Sob o peso desta idéia, as pedagogias modernas reformularam-se no sentido de pensar que não somente deviam ser desenvolvidas potencialidades psicobiológicas, porém que também era condição e objetivo do processo educativo, desen- volver os pertencimentos culturais nos campos do verdadeiro, dobom e do belo. Havia, portanto, necessidade de criar condições para o desenvolvimento dos pertencimentos étnicos, de classe, religiosos ou regionais. Em vários sentidos devia ser recusado o conjunto das arbitrariedades culturais para dize-lo na linguagem de Bourdieu e Passeron que fossem entendidos como uma imposição sobre os pertencimentos. Deveriam ser rejeitadas as regras que não fossem constitutivas de nossos jogos e de nossos feitios de jogar. Contudo, no plano real, no das práticas escolares, há uma espécie de cisão entre práticas universalizantes e singularizantes. Matemáticas e ciências definem seus conteúdos a partir da dinâmica das disciplinas científicas universalizantes. Há também domínio dos conteúdos universalizantes no campo das ciências sociais e da história, e mesmo a importância concedida à história nacional pode ser vista como uma característica universalizante ou a importância concedida à história dos grandes homens, à história marxista até recentemente e hoje, como emergência, à história cultural ou das mentalidades. Onde estariam então os núcleos singularizantes? Talvez naquilo que é residual dentro das práticas escolares. Na educação física e artística? Na importância concedida ao futebol e à capoeira? Nas apropriações do floclore? E, talvez, nos modos com que se ensina? Seja onde for, tudo indica que o singularizante está dominantemente vinculado ao campo da estética das relações, dos esportes e das atividades artísticas ou da valorização de algum tipo de perten- cimento: índigena, negro, feminino, regional, entre outros. É sob o ponto de vista estético que nosso futebol é nosso, isto é, que constrói sua personalidade, sua singularidade e que pode, então, ser considerado como expressão (constituída e 40 constituente) de nossos pertencimentos, de nossa autenticidade, de nossa identidade ou subjetividade. Argumentos semelhantes poderiam ser apresentados para a capoeira e sua ginga, para o carnaval e o samba, para o jogo do bicho. Ou seja, estou insinuando que, na prática educativa, o modelo estético que pretende responder as demandas conceituais do relativismo, embora fundamental em termos de proposta, tem sua esfera de atuação altamente reduzida. As idéias que estou colocando em termos esquemáticos e abstratos são bem conhecidas no Brasil e formam parte dos dilemas, das dúvidas e mesmo das contradições cotidanas dos educadores brasileiros. Essas idéias cristalizaram, no Brasil, no que de praxe reconhecemos sob o nome de educação popular que teve em Paulo Freire uma expressão fundadora e poética. Para Freire, educar é o contrário de inculcar, é, portanto, desenvolver possibilidades, potencialidades e pertencimentos culturais. Contudo, há em Freire, como apresentei em outros trabalhos, uma profunda contradição que é também típica da pedagogia moderna.25 Por um lado, Freire é um defensor da cultura popular e da cultura do grupo que participa do processo educativo, sendo dela que o educador deve partir, quer em termos da linguagem do processo de alfabetização, quer em termos dos conteúdos de verdade, éticos e estéticos. No entanto, esse ponto de partida deve, mais cedo ou mais tarde, ser superado pela formação de uma consciência crítica ou reflexiva.26 A consciência crítica ou reflexiva é, no fundo e apenas, a percepção ou concepção que Freire tinha, quando escrevia suas obras, sobre o modo de operação do conhecimento científico. Temos assim um ponto de partida situado na cultura popular e um ponto de chegada, ou uma meta, produzida pela cultura 25. Ver, idcm. 26. Para as pedagogi» ditas crítios, ser ou ter consciência crítica eqüivale R ser ou ter uma leitura, interpretação ou explicação maixista do mundo. A crítica não é, portanto, o mero uso crítico da razão, do pensar por si mesmo, é, sobretudo, uma razão datada e identificada com uma tradição teórica ou ideológica específica. 41 universalizai!te da ciência, isto é, por uma cultura específica que se torna padrão, valor e objetivo para todas as outras. (Observo que o fato de ser Freire para mim contraditório não é uma falha muito grave. Grandes pensadores têm sido contraditórios sob múltiplos aspetos. Talvez seja um preço que os criativos pagam). A contradição de fato desaparece quando consideramos que partir do horizonte cultural do educando, de seus pertenci- mentos, é apenas um ardil pedagógico. Partimos do seus saberes para levá-los na direção de outros saberes,. por vezes opostos em conteúdo ao .saber original. Partimos de sua linguagem local e restrita para conduzi-los na direção de uma linguagem mais universal e ampla. Partimos das contas que pode fazer com a cabeça para levá-los na direção das "contas" inimagináveis, pelos seus pertencimentos, que poderá fazer com o papel, com a calculadora ou com o computador. Partimos de seu modo de raciocinar para levá-lo ao modo de raciocinar de Euclides ou dos não euclidianos. Partimos do conhecimento do sensível ou da sensibilidade para desenvolver o inteligível. Estamos supondo que há uma tradição de conhecimento —científico, técnico, humanístico etc. — que dos gregos até nós está em processo de formação e que ela, ou pelo menos seus elementos centrais ou constitutivos, deve ser transmitida às novas gerações. Quando realizamos esse processos, de partida e chegada, como mero ardil pedagógico, quando^ consideramos que partir dos pertencimentos é um mero atalho, estamos incorporando a crítica relativista de um modo bem parcial e reduzido. Estamos apenas dizendo que para aprender o desconhecido é necessário partir do conhecido e que o desconhecido pode significar uma crítica ou uma reformulação do conhecido. Formulamos um princípio operacional, meramente técnico, ao invés de urna concepção sobre como ps homens são. Instalamos um ardil pedagógico e tornamos a idéia central do relativismo um mero mecanismo operacional. Devemos portanto distinguir entre um relativismo ontológico, caracterizado de uma profunda fé nas 42 diferenças culturais, de um outro, meramente operacional ou instrumental, que parte, para ser eficaz, da diferença, porém que aponta diretamente para a universalidade? O que estou denominando relativismo operacional ou instrumental pode, sem muitas complicações, ser adotado tanto nos marcos do modelo pedagógico estético quanto no moral, formando parte dos ardis pedagógicos. Na verdade, é no ardil relativista que os dois modelos podem ser conciliados, confundidos podem, encontrar a dobradiça que possibilite que dialoguem e se enriqueçam mutuamente. No campo educacional consolidou-se a idéia de que existiriam diferenças culturais profundas entre as diversas classes da sociedade ou entre seus diferentes segmentos. A teoria da reprodução penetrou entre os docentes e levou muitos deles a sentir-se formando parte de um processo de inculcação, visto como processo de dominação das elites. Assim predominou, nas últimas duas décadas no Brasil, o fato de o pensamento e o sentimento da educação ser um processo básico de inculcação e dominação. Expandiu-se a utopia de uma educação crítica e não- inculcadora de cunho romântico, embora com objetivos univer- salizantes. Acredito que a contradição presente nessas idéias levou a uma operacíonalização da idéia relativista; levou à aceitação do relativismo instrumental diante de uma realidade, impossível de ser negada, que destaca os valores do conhe- cimento científico e técnico da tradição ocidental. Tinha-se então que partir do horizonte cultural do educando, suposto ou real, contudo, para se arribar a um outro horizonte. O deslocamento do relativismo ontológico para o me- ramente instrumental pode significar também que alguns tipos de universalismos estão voltando. Significa que, ainda que vagamente, alguns acordos gerais estão sendo construídos, talvez como resposta ao modo com que definimos nossas circuns- tâncias. Um acordo — que acredito desanuviaria o ar pedagógico e reduziria a sensação de crise — reside em entender que não 43 podemos renunciar nem ao modelo estético nem ao moral. Ou seja, temos que criar
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