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See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.net/publication/260226748 Fundamentos e práticas para o ensino e treino do futebol Chapter · January 2013 CITATIONS 18 READS 16,870 5 authors, including: Some of the authors of this publication are also working on these related projects: Representative learning design in football: Relationship between training task difficulty and complexity levels and players' skills level View project Analysis of tactical-tecnhical performance in team handaball View project Júlio Garganta University of Porto 149 PUBLICATIONS 1,977 CITATIONS SEE PROFILE José Guilherme University of Porto 15 PUBLICATIONS 80 CITATIONS SEE PROFILE Daniel Barreira University of Porto 60 PUBLICATIONS 595 CITATIONS SEE PROFILE João Brito GAT - Grupo de Ativistas em Tratamentos 32 PUBLICATIONS 71 CITATIONS SEE PROFILE All content following this page was uploaded by Júlio Garganta on 29 January 2015. 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Garganta, J. Guilherme, D. Barreira, J. Brito & A. Rebelo Faculdade de Desporto da Universidade do Porto Centro de Investigação, Formação, Intervenção e Inovação em Desporto (CIFI2D) Referência para citação: Garganta, J., Guilherme, J., Barreira, D., Brito, J. & Rebelo, A. (2013). Fundamentos e práticas para o ensino e treino do futebol. In F. Tavares (Ed.), Jogos Desportivos Coletivos. Ensinar a jogar (pp. 199-263). Porto: Editora FADEUP. 2 1. APRENDIZAGEM E TREINO DO FUTEBOL: RAZÕES E FINALIDADES Nada entorpece tanto o desenvolvimento pessoal como a ideia errada de que cada um é como é e não pode mudar. J.A. Marina Ao longo da existência humana, o Futebol tem vindo a suscitar uma crescente adesão de praticantes e de espectadores disseminados por todo o mundo, bem como um número cada vez mais expressivo de treinadores, árbitros, dirigentes e outros agentes desportivos. Tal facto vem correspondendo a uma significativa visibilidade deste jogo desportivo, o que justifica uma acrescida responsabilidade no que respeita ao imperativo de o Futebol se constituir como exemplo de boas práticas e de progresso do ser humano e das sociedades. Neste contexto, o processo de ensino e treino do Futebol assume um papel cada vez mais relevante, nomeadamente no que respeita à influência decisiva que exerce na formação dos praticantes e na preparação destes para lidarem com a competição desportiva. Deste modo, torna-se incontornável a racionalização de processos conducentes à eficácia da respetiva preparação e orientação (Garganta, 2008). O desenvolvimento das competências para jogar requer a criação e aplicação de situações de exercitação que promovam um elevado efeito de transferênciapara a competição e fomentem consideráveis níveis de autonomia e criatividade nos jogadores (Garganta, 2005). Todavia, constata-se que, com uma frequência pouco recomendável, persiste a ideia de que quem alcança o estatuto de “jogador de Futebol” nasce dotado de caraterísticas biomotoras que certificam e garantem a sua vocação para altos desempenhos desportivos. Ora, o pressuposto de que o talento natural determina o sucesso ou o fracasso conduz necessariamente à ideia de que o Futebol não se ensina, o que, quanto a nós, tem constituído um dos erros de perspetiva que mais negativamente têm condicionado a evolução dos jogadores e das equipas e, por inerência, mais têm embaraçado o progresso da própria modalidade. Aliás, o filósofo grego Aristóteles, no ano 300 a.C., dizia que somos o que fazemos repetidamente e que, portanto, a excelência é um hábito. Mais de dois milénios passados, Gladwell (2008) refere que à medida que os cientistas examinam as carreiras dos seres humanos mais proficientes, em várias atividades, menor parece ser o papel atribuído ao “talento inato” e mais significativo se afigura o contributo da aprendizagem e do treino. De facto, os executantes excecionais parecem ser beneficiários de “vantagens escondidas”, oportunidades extraordinárias e legados culturais que lhes permitem aprender e trabalhar bastante. Syed (2010) robustece esta asserção ao sustentar que mesmo os prodígios infantis, que podem parecer que chegaram ao topo em metade do tempo, na realidade concentraram quantidades significativas de prática no curto período entre o nascimento e a adolescência. Ou seja, em atividades de pendor cultural como por 3 exemplo a música e a prática dos jogos desportivos coletivos, o sucesso não parece depender tanto de condições genéticas, mas, sobretudo, de habilidades circunstanciais aprendidas. Tal sugere que para vir a ser executante de excelência é imprescindível acumular uma experiência de vivências relevantes, em quantidade e qualidade, e por isso o jogador só desponta verdadeiramente depois de exposto ao processo de treino e à competição (Garganta, 2009). Justifica-se assim uma cada vez maior sensibilização para o entendimento do processo de ensino e treino, na sua íntima relação com a competição, de modo a propiciar a exploração de cenários que permitam perceber a influência de certas competências e circunstâncias na otimização do desempenho e na formação pessoal dos praticantes. Dado que o processo de ensino e treino visa induzir alterações comportamentais e atitudinais nos praticantes, o problema central que se coloca é o de saber como viabilizar uma formação eficaz, baseada na compreensão e na harmonização das capacidades e habilidades para treinar e jogar, garantindo uma filiação emocional ao jogo e a tudo o que pode apurar. Portanto, compete aos treinadores formar e capacitar os jovens, no respeito pela tríade: saber, saber fazer, saber estar (Garganta, 2006). Considerando tal quadro de exigências, vimos enunciando algumas questões estruturantes que emergem quando nos detemos sobre a necessidade de guiar crianças e jovens no seu percurso formativo (Garganta, 2006): Que razões levam um jovem a envolver-se, e a manter-se, na prática do Futebol? Que tipo (s) de formação importa adotar, de modo a que crianças e jovens sejam praticantes dedicados, talentosos e realizados? Destas questões depreende-se que, para além dos níveis de desempenho dos praticantes, nos preocupa o potencial transformador do ato de educar e de formar pessoas através do Futebol. Como diz Marina (2010), educar é a atividade fundacional da espécie humana. A evolução biológica prolongou-se com a evolução cultural, cuja essência é a educação. O contributo maior que podemos dar para promover uma boa formação consiste em ajudar crianças e jovens a encontrarem uma área em que as suas faculdades possam ser plenamente desenvolvidas e aproveitadas, e na qual se sintam realizados e preparados. Deste modo, é nossa intenção que o presente texto a propósito do ensino e treino do Futebol seja, também, um discurso sobre as possibilidades de transformação de seres humanos através de diversas formas de aprender a jogar o jogo. 4 2. PRIMEIRO, BRINCAR AO JOGO; O TREINO PODE ESPERAR A laranja espremida ao máximo torna-se amarga. Baltazar Gracián Deveríamos investir menos tempo a avaliar e a catalogar as crianças e ajudá-las mais a identificarem e a cultivarem as suas habilidades. Howard Gardner A relação do praticante de Futebol com o ensino, o treino e a competição começa a ser construída cada vez mais cedo e portanto há que dedicar mais e melhor reflexão aos problemas relacionados com as implicações pedagógicas e didáticas da prática desportiva sistemática. Logo, o ensino e treino do Futebol é um assunto que requer um posicionamento claro quanto às conceções e formas de intervenção a adotar. O que todos os praticantes têm em comum é que eles jogam porque gostam e porque querem desfrutar das infinitas possibilidades que o jogo pode oferecer. Assim sendo, apesar do praticante aderir ao jogo com prazer e de o ato de jogar dificilmente se tornar enfadonho, o mesmo não se pode dizer relativamente ao modo como por vezes o futebol é ensinado e treinado (Garganta, 2006). De facto, a busca do prazer pelo jogo e do gosto pelo treino deve ser uma preocupação da qual não se deve abdicar, sob pena de se comprometer a eficácia e a continuidade da prática desportiva de crianças e jovens. Em idades baixas, pode constatar-se que os praticantes experimentam um prazer espontâneo pelo jogo. Trata-se, como refere Csikszentmihalyi (2000), de uma experiência autotélica, isto é, de uma prática em que o objetivo se preenche a si mesmo ou, por outras palavras, em que a atividade é a própria recompensa ou gratificação e não necessariamente o resultado que dela advém. Porém, apesar de se revelar necessário que brinquem, joguem e desfrutem, é igualmente importante que a prática desportiva decorra na observância de princípios orientadores e se norteie pela edificação de atitudes que conduzam ao gosto pelo esforço, pela superação e pelo aperfeiçoamento. E é no treino que tais atitudes se moldam. Portanto, o prazer de melhor jogar pode ajudar a forjar o prazer de mais e melhor aprender e treinar, e vice- versa (Garganta, 2006). Obviamente, o desenvolvimento da capacidade para jogar envolve um aperfeiçoamento de competências situacionais, intimamente relacionadas com a capacidade para gerir as mudanças incessantes produzidas no contexto de jogo. Trata- se de um processo durante o qual se procura estimular o desenvolvimento de uma inteligência corporal, uma inteligência em ato, promovendo a exercitação, a variabilidade e a adaptabilidade de comportamentos e atitudes. Quando nos referimos aos modos de ensinar e de aprender Futebol, reportamo-nos, fundamentalmente, à ideia nuclear de organização. 5 Pelas suas caraterísticas, o Futebol é um jogo que requer elevada versatilidade percetiva, decisional e motora, reclamando o recurso a habilidades de natureza aberta, o que significa que a execução das mesmas, mais do que estar dependente do executante, quando considerado isoladamente, se abre para os espaços e os tempos em que o jogo decorre. Como tal, o desempenho durante uma partida é condicionado, sobretudo, pela forma como os praticantes engendram e manejam múltiplos constrangimentos, tais como, o posicionamento e a movimentação dos colegas de equipa e dos adversários, a zona do terreno em que a ação decorre, a distância aos alvos a defender ou a atacar, a velocidade da bola e a sua trajetória, nas diferentes fases e momentos que o jogo atravessa. De facto, neste quadro importa desenvolver conhecimentos e competências que permitam saber organizar-se nas diferentes fases e momentos do jogo, em funçãodas possibilidades de ação que vão sendo criadas e das que vão emergindo. O holandês Rinus Michels (2001), considerado pela FIFA o treinador do século XX, refere que o futebol de rua é o modo de aprendizagem mais natural que se conhece. Pode constatar-se que é jogado sempre de forma competitiva, normalmente em grupos reduzidos e em pequenos espaços. Raramente se vê as crianças e os jovens praticarem habilidades técnicas ou lances táticos isolados. Apesar de ser verdade que a crescente especialização faz com que não se possa esperar que este tipo de prática espontânea resolva, por si só e de forma satisfatória, as questões da aprendizagem, o futebol de rua pode ser um bom ponto de partida para eleger algumas referências para ensinar e treinar (Garganta, 2006). Aliás, conforme é reportado por jogadores e treinadores (Fonseca & Garganta, 2008), bem como por vários pesquisadores (Barab & Plucker, 2002; Baker, 2003; Salmela & Moraes, 2003; Côté et al., 2007; Baker et al., 2009; Araújo et al., 2010), a prática informal e espontânea parece ter implicações positivas relevantes na posterior prática formal e sistemática. 2.1. A ilusão da aprendizagem sem erros O bumerangue não foi inventado a partir da compreensão dos princípios da aerodinâmica. A bússola não envolveu a formulação dos princípios do magnetismo. Esses e outros mecanismos foram alcançados por tentativa e erro. Paul Davies A capacidade de aprender a partir da experiência é uma das facetas mais notáveis do comportamento humano. E a caraterística mais marcante dos indivíduos que se iniciam numa nova atividade é cometerem erros frequentes (Tani, 1981), não apenas 6 no domínio da execução propriamente dita, mas também ao nível da perceção e da tomada de decisão. De facto, a relação entre as competências e caraterísticas individuais de cada praticante e a dificuldade que cada situação lhe proporciona e impõe, conduz a discrepâncias entre as ações que pretendem realizar e aquelas que conseguem consumar. O que vulgarmente se designa por erro situa-se nesse hiato entre o objetivo que se pretende atingir através de determinada ação e o resultado realmente conseguido aquando da sua efetivação. Porém, em vez do erro ser tido em conta enquanto indicador da adequação do processo usado para se chegar a um determinado resultado, ele é recorrentemente perspetivado no seu conceito restrito de resultado da ação e, portanto, somente enquanto oposto do que é certo. Desse modo, a sua ocorrência tem uma conotação negativa, sendo identificada com algo que impede a aprendizagem, em vez de algo que a pode viabilizar. Por isso, muitos dos sistemas de ensino e aprendizagem visam encontrar estratégias para evitá-los e/ou eliminá-los, em vez de os considerarem como indícios importantes que podem ajudar à evolução dos aprendizes. Também no âmbito do processo de ensino e treino do Futebol, o desacerto ou erro tem sido frequentemente entendido como elemento a banir, quando as novas perspetivas sustentam que o mesmo seja considerado parte integrante e até estruturante da aprendizagem, por ser suscetível de constituir um indicador relevante dos fatores perturbadores do desempenho e assim poder ajudar a corrigi-los. Acresce que a repressão do erro desencoraja a tentativa, reduzindo a disposição do jogador para arriscar e para optar por caminhos diversos. Quem não tenta, com receio de falhar, não pode evoluir. Mais, a não identificação do erro inibe a evolução, porque os erros funcionam como ocorrências-contraste em relação aos comportamentos-alvo e como tal devem ser usados para ajustar e apurar o processo, momento a momento (Garganta, 2004). Torna-se assim necessário que o professor/treinador, em vez de punir os erros, esteja capacitado para os identificar, bem como aos enredos que estão na origem da respetiva ocorrência, e os aproveite para fazer progredir os praticantes (Garganta, 2006). Ademais, Michels (2001) advoga que é a partir dos erros cometidos em situações de jogo que os jogadores aprendem. Inconscientes das qualidades técnicas, táticas, mentais e físicas, eles vão desenvolvendo as suas competências de jogo através do envolvimento competitivo proporcionado pelo jogo. Por sua vez, Cruyff (2002) refere que o melhor método para ensinar uma criança a jogar Futebol não é proibir, mas sim guiar. Guiar não no sentido de conduzir, mas de ensinar a aprender a pilotar o jogo. Também Williams, Horn e Hodges (2003) reforçam estas convicções ao chamarem a atenção para a importância do erro no processo de ensino e treino do Futebol, sustentando a necessidade de os jogadores serem estimulados a obter a solução para o problema colocado, por via do ensaio e erro. 7 Como refere Tani (1981), as “performances erradas” aumentam o reportório de experiências dos sujeitos, e por elas serem inerentes ao processo de aprendizagem, a sua frequência, por si só, não pode ser um verdadeiro problema. Deste modo, justifica-se atribuir uma importância capital ao modo como são perspetivados e administrados os erros no processo de ensino e treino do Futebol, sejam eles de feição individual, grupal ou coletiva. Longe de se esgotar na transmissão de saberes, afigura-se conveniente que o processo de ensino e treino seja conduzido de modo a promover uma autoconstrução e atualização permanente das competências para jogar (Garganta, 2006). Como tal, em oposição às abordagens mecanicistas e analíticas tradicionais, nas quais o aprendiz era um mero recetor passivo de indicações que deveria cumprir, as novas perspetivas destacam a importância dos principiantes desenvolverem o seu próprio mecanismo de deteção e correção de erros, devendo para isso o professor/treinador optar por utilizar metodologias de ensino ativas, baseadas no ensino através da procura, da autonomia e da descoberta. Como sustenta Christina (2002), é conveniente que o professor/treinador adote os estilos de resolução de problemas1 e de descoberta guiada2, formulando perguntas que levem o praticante a encontrar as causas dos seus erros e a descobrir a melhor solução para os debelar. Muitos destes argumentos ajudam a perspetivar o processo de ensino e treino, de modo a que as decisões e as execuções desacertadas dos praticantes sejam percebidas como desvios que constituem parte integrante, e até estruturante, da aprendizagem, em vez de se persistir na recorrente ilusão de uma aprendizagem sem erros. Neste âmbito, temos vindo a apontar alguns dos equívocos que, com maior frequência, sobrevêm no âmbito da formação de crianças e jovens praticantes de Futebol, a saber: Recurso a métodos convencionais para ensinar as técnicas do Futebol, em detrimento do ensino do jogo baseado na sua compreensão; Planificação da atividade realizada apenas em função das competições, sem ter em consideração o calendário escolar dos jovens (férias, períodos de testes, …); Quadros competitivos desajustados, colocando em confronto adversários de nível muito desigual. Longas interrupções e ausência de atividade competitiva quanto às equipas que são eliminadas das competições; Repetição exagerada de exercícios analíticos, tornando o treino monótono e desmotivante; Especialização precoce de funções, sem que se atenda aos imperativos de uma formação integral; 1 Também denominado de Ensino Divergente. O aprendiz inicia a descoberta e a produção de opções em relação ao conteúdo. O professor propõe um problema e o praticante busca a solução. Qualquer opção que resolva o problema é válida (Mosston, 1988). 2 Estilo de Ensino que consiste numa sequência de perguntas do professor/treinador que podem levar a uma várias respostas do aprendiz/praticante. A cada questionamento do professor/treinador corresponde uma resposta correta encontrada pelo aprendiz/praticante. O efeitoacumulativo desta sequência – processo convergente – leva o praticante a descobrir o conceito, princípio ou ideia perseguidas (Mosston, 1988). 8 Repressão do erro, desencorajando a tentativa e a descoberta; carecimento de correções atempadas e pertinentes, durante a execução dos exercícios. 2.2. A imprescindível cumplicidade entre competências táticas e habilidades técnicas Quanto mais e melhor técnica tivermos, menos temos que nos preocupar com ela. Pablo Picasso Os problemas primordiais do jogo de Futebol situam-se no plano estratégico-tático, porque saber o que fazer e como fazer condicionam-se mutuamente, o que implica uma congruência elevada entre a perceção da informação relevante (i.e., das linhas- de-força do jogo), a tomada de decisão e a execução propriamente dita (Garganta, 2006; (Tavares, Greco & Garganta, 2006). Desta forma, o jovem praticante deverá aprender a resolver os problemas que lhe são colocados pela prática do jogo, constituindo-se a técnica tão-somente, mas não menos importante, como instrumento que permite materializar a tomada de decisão. Como sugerem Williams e Davids (1995), o conhecimento específico do jogo repousa em pressupostos cognitivos. Mas, por outro lado, o domínio dos pressupostos cognitivos para realizar as ações de jogo não implica automaticamente o domínio das condições motoras para as operacionalizar. Ou seja, saber quando e como executar não significa saber executar as ações em jogo, porquanto a capacidade de execução não se esgota na dimensão cognitiva, mas tem que ser viabilizada por outras dimensões, nomeadamente a energética e a coordenativa. Aliás, na perspetiva de Newell e Barclay (1982), as ações dos seres humanos são reguladas por indução percetiva e viabilizadas através das denominadas estruturas coordenativas. A verdadeira dimensão da técnica repousa, então, na sua utilidade para servir a inteligência e a capacidade de decisão tática dos jogadores e das equipas. Um bom executante é, antes de mais, um indivíduo capaz de eleger as técnicas mais adequadas, para responder às sucessivas configurações do jogo e para as condicionar em favor da sua equipa. Desse modo, não faz sentido que o ensino e o treino da técnica do Futebol sejam ditados por preceitos biomecânicos, isto é, centrados no “gesto”, devendo atender-se, sobretudo, às imposições da respetiva adaptação inteligente às situações de jogo. Seguindo esta perspetiva, parece mais importante saber gerir regras de funcionamento, ou princípios de ação, do que mobilizar habilidades estereotipadas ou esquemas táticos rígidos e predeterminados (Garganta, 2006). Trata-se, portanto, de “ecologizar” as habilidades técnicas, de modo a propiciar a sua conformidade às condições mutáveis do jogo. 9 Newell (1986) preconiza três tipos de constrangimentos que determinam as ações e que interagem para a produção de um padrão de coordenação, a saber: 1) os específicos do jogador; 2) os relativos à tarefa; e 3) os concernentes ao envolvimento. Diga-se, todavia, que no âmbito do Futebol, esta tipologia não enfatiza a importância da faceta coletiva enquanto totalidade organizada que procura afirmar a sua identidade e preservar a respetiva integridade funcional. Acresce que a perspetiva ecológica tem alertado para a necessidade de se enfatizar o papel das propriedades do envolvimento, pelo facto de estas constituírem um sistema de constrangimentos e de possibilidades de ação (as affordances de Gibson, 1979), com significativas implicações no condicionamento das respostas do jogador. Neste âmbito, o comportamento justifica-se mais pelas competências percetivas do indivíduo, do que pela sua capacidade de armazenar soluções padronizadas na memória. Deste modo, importa entender que o jogador precisa de perceber os sinais do envolvimento para agir de modo ajustado, mas que, paralelamente, o jogador necessita de se mover, para procurar e/ou gerar informação disponível (Gibson, 1979). Esta problemática torna-se ainda mais complexa quando se procura tratar simultaneamente as principais exigências da ação desportiva – “o que fazer” e “como e quando fazer” – na medida em que se sabe, por exemplo, que a capacidade para executar uma habilidade técnica influencia a tendência para a eleger como opção tática na situação de jogo (French et al., 1996). As habilidades técnicas deverão então ser equacionadas em interação com a organização tática. Contudo, por vezes tem-se hipertrofiado a dimensão técnica, ou reprodutiva, em detrimento da dimensão estratégico-tática ou compreensiva (Garganta, 2004) e essa tecnificação do ensino e do treino tem limitado a evolução dos praticantes, nomeadamente no que concerne à construção de um jogar inteligente. Não raramente, ouve-se dizer que a repetição é a “mãe da técnica”. Ora, estamos convictos que a repetição inteligente será, porventura, a “mãe da tática”, na medida em que pode proporcionar formas de jogar intencionais e coletivamente construtivas. Deste modo, qualquer forma de reduzir o Futebol, seja à dimensão tática ou à técnica, mais do que um facilitador constitui um estorvo à evolução dos praticantes na sua relação com o jogo. Garganta (1997) refere que o facto de no Futebol surgirem situações cuja frequência, ordem cronológica e complexidade não poderem ser previstas antecipadamente, exige dos jogadores um flexível espectro adaptativo. Deste modo, ainda que a repetição de uma técnica que especifica os detalhes microscópicos do movimento possa conduzir mais rapidamente à padronização do movimento (ordem), tornando a aprendizagem aparentemente mais eficiente, tal padronização pode corresponder também a uma perda proporcional de flexibilidade no movimento (Tani, 2005). Ou seja, pode resultar na aquisição de um padrão de movimento rígido, estereotipado, de baixa adaptabilidade e, portanto, pouco eficaz. Aliás, Go Tani (2002) advoga que se cada situação exige um movimento diferente, os conhecimentos produzidos pela cuidadosa análise de um padrão restrito de 10 movimento perdem a sua eficácia. Caso contrário, necessitar-se-ia de tantas análises quantas as possibilidades de movimento, o que se afigura inoperante e inviável. O Futebol é um jogo, e num jogo cada jogador pode fazer escolhas, tomar decisões e executar ações, de acordo com as restrições impostas pelo regulamento (Van Lingen, 1997). A proficiência dos praticantes depende, em larga medida, da respetiva capacidade para reconhecerem as diversas situações que o jogo lhes proporciona e para lhes darem resposta cabal (Garganta, 2006). Para compreender o jogo, os jogadores devem ser capazes de organizar as ações em função do contexto. As competências de leitura do ambiente e a execução das habilidades dependem do entendimento que se tem do jogo, não se tratando, portanto, de um problema sensorial ou técnico, mas sobretudo de uma questão conceptual. Vemos e entendemos o jogo, sobretudo, a partir dos conceitos, dos significantes, o que quer dizer que os problemas se colocam, em larga medida, ao nível da organização da informação e, sobretudo, da capacidade para descodificar o significado dessa informação. Se observarmos um jogo de Futebol minimamente organizado, mesmo que ambas as equipas em confronto não se distingam pela cor ou padrão do equipamento, é possível, passado algum tempo, identificar os elementos constitutivos de cada uma delas. Esta possibilidade resulta do facto da referida relação de oposição/cooperação, para ser sustentável e eficaz, reclamar dos jogadores comportamentos congruentes com as sucessivas situações do jogo, de acordo com os respetivos objetivos de sinal contrário de cada uma das equipas (Garganta, 2006). Como a perceção e a ação são inseparáveis e especificamente acopladas, a exercitação deve ser específica, o que significa que os praticantes devem aprender durante o treino comoacoplar a informação ao movimento (Savelsbergh & Van der Kamp, 2005). Nesta conformidade, importa que os jogadores sejam levados a reconhecer os distintos cenários de prática, quando com eles confrontados, e por isso é que na construção dos exercícios para jogar, as analogias entre o treino e o jogo que se quer construir desempenham um papel fundamental. Porque os cenários do jogo de Futebol se desenvolvem em situações de participação simultânea e espaço comum, propiciando atividades férteis em acontecimentos cuja frequência, ordem cronológica e complexidade não podem ser antecipadas, torna-se importante desenvolver competências que transcendam a execução propriamente dita e valorizem as capacidades relacionadas com as estratégias que guiam a captação da informação, a tomada de decisão e a execução (Garganta, 2005). 11 3. AS COREOGRAFIAS DO COLETIVO 3.1. Tecer a teia do jogo: em busca do comportamento coletivo organizado Os seres humanos têm uma tendência difícil de contrariar: querem organizar tudo. Bertrand & Guillemet Ao perseguir-se o entendimento da lógica do jogo e da atividade das equipas e dos jogadores à luz da abrangência estratégico-tática, reconhece-se que o modelo e a conceção de jogo3 funcionam como metaníveis diretores da organização do jogo, conferindo ou retirando coerência aos comportamentos. Considerando a elevada instabilidade situacional e a incerteza inerente aos eventos de jogo (Garganta, 1997, 2009; Wiemeyer, 2003), a compreensão dos desígnios da performance no Futebol requer, cada vez mais, ideias e conceitos inclusivos que permitam perceber o modo como os jogadores e as equipas tecem e coordenam os seus comportamentos, na sua relação com os cenários típicos das partidas. Como referem Lames e McGarry (2007), o comportamento produzido num jogo não é a expressão primária de propriedades estáveis dos praticantes tomados individualmente, dado que emerge das interações dinâmicas que ocorrem entre os sujeitos em confronto. Esta perspetiva não-linear e de final aberto, na qual os agentes coevoluem com outros agentes e sistemas, e criam, em parte, o que lhes acontece, opõe-se à perspetiva linear na qual os agentes unicamente se adaptam às mudanças externas (Stacey, 2001). Portanto, o jogo perfila-se como um evento que emerge do comportamento das equipas, resultando do modo como os jogadores interagem sob diferentes conjuntos de regras e diversos constrangimentos. Neste nexo de acontecimentos que se sucedem em cascata, as equipas coevoluem continuamente, codeterminando as respetivas adaptações. Diga-se, no entanto, que embora o comportamento dos jogadores não seja completamente previsível, também não é tão imponderável quanto o lançamento de dados. De facto, é possível detetar, conhecer e categorizar situações que podem, com maior probabilidade, conduzir à concretização de determinados objetivos do jogo. Contudo, convém estar ciente que se está em presença de um território de possíveis previsíveis, no qual não se afigura viável estandardizar e controlar as sequências de ação que fazem parte do jogo, dado que numa determinada situação as possibilidades de ação são inúmeras (Garganta, 2005). 3 O modelo de jogo, também designado por modelo de jogo ideal (Pinto & Garganta, 1989), consiste num conjunto de referências táticas transversais a várias culturas, que traduzem, em síntese, as tendências do futebol jogado ao mais alto nível. Por seu turno, a conceção de jogo, igualmente denominada de modelo de jogo adaptado, corresponde à forma de conceber um modo de jogar para uma equipa em concreto. Portanto, a conceção de jogo é influenciada pelo modelo de jogo ideal e, simultaneamente, condicionada por vários constrangimentos, tais como a cultura e a história do clube/cidade/país, as características e objetivos delineados para a equipa e para os jogadores, as condições materiais e humanas disponíveis e a política de contratações, entre outros. 12 Portanto, faz sentido que a apreensão da lógica do jogo seja efetuada da consequência para a causa, isto é, partindo do jogo para as habilidades e não das habilidades para o jogo. Tal permite conduzir a uma educação da atenção e do entendimento para jogar em ambientes de baixa previsibilidade, ao mesmo tempo que se aprende a eleger os meios técnicos mais adequados para dar respostas às situações-problema que vão sendo engendradas em interação com o envolvimento. A premência de gerir vários constrangimentos pouco previsíveis confere relevância à necessidade de as equipas desenvolverem uma “aprendizagem organizacional”, ou seja, um processo durante o qual grupos e indivíduos, rápida e criativamente aprendem a governar as alterações do envolvimento e a delas retirar proveito (Muller & Watts, 1993). Esta ideia de “organização que aprende” assenta em conceitos e práticas que promovem redes auto-otimizadoras e auto-organizadoras (Strauss et al., 2001), que se tornam fundamentais para que os atores se sintonizem de modo a melhor lidarem com os constrangimentos inerentes à ação (Marsch et al., 2006). Neste quadro, as equipas, entendidas como organizações, adaptam-se a problemas e oportunidades que assomam no envolvimento, adequando estratégias, decisões e comportamentos. Das interações emerge um padrão total, estrutura ou organização que não é simplesmente uma agregação de ações individuais, mas um processo com caraterísticas únicas que os indivíduos isoladamente não possuem (Drazin & Sandelands, 1994). Por isso, a gestão da adaptação das equipas aos cenários de treino e de jogo é consubstanciada, em grande parte, pelo desenvolvimento de uma “cultura para jogar”, que se traduz num estado dinâmico de prontidão coletiva, com referência a princípios e regras de ação (Garganta, 2008). Tal faz com que o processo de ensino e treino adquira uma importância essencial, de modo a conduzir à construção de um projeto coletivo de jogo que afete positivamente as múltiplas dimensões e escalas de organização, sobrecondicionando a dinâmica do sistema e configurando a correspondente identidade. Na perspetiva de Duarte et al. (2012), a otimização da performance coletiva, no âmbito dos jogos desportivos, implica uma criteriosa divisão do trabalho entre os jogadores intervenientes (e.g., recuperação de bola por um jogador para imediatamente a seguir ser outro a iniciar o ataque), bem como a existência de canais de comunicação intragrupo (e.g., permite a circulação de bola, ou a troca defensiva quando o colega de equipa defesa lateral é ultrapassado). Para além disso, reclama uma cooperação altruísta (e.g., em situação de finalização, o portador da bola opta por passar para um colega melhor posicionado em detrimento de tentar o golo). Uma equipa de Futebol pode ser entendida como um superorganismo cujo comportamento emerge a partir das sinergias que ocorrem entre as partes constituintes, sendo que estas se orientam para finalidades convergentes que favorecem a identidade e a integridade do organismo como um todo. Trata-se, portanto, de um coletivo auto-organizado capaz de gerar uma identidade emergente e em que a relação entre a perceção e a ação dos seus constituintes, i.e., entre si e 13 destes com o envolvimento, dá origem a um organismo superior distinto e indecomponível (Moritz & Fuchs, 1998, cit. Haber, s/d; Rosen, 2000; Marsh et al., 2006; Hölldobler & Wilson 2009). Katsikopoulos e King (2010) sustentam que, contrariamente a tentativas individuais e isoladas, a informação combinada entre os jogadores de uma equipa permite, através de processos de interação, encontrar soluções com maior eficácia para problemas que surgem no decorrer do jogo. Este mecanismo reflete uma inteligência coletiva que decorre de sinergias que tendem a originar uma entidade social única que propiciaao sistema-equipa a descoberta de novas soluções que permitam ultrapassar os constrangimentos em cada situação de jogo (Duarte et al., 2012). Uma equipa, entendida como superorganismo, carateriza-se pelo facto de as relações de cooperação entre os jogadores que a constituem tenderem a gerar harmonia nas decisões, agindo para evitar que o adversário provoque desvios no rumo que o sistema toma como prioritário. As equipas são assim organismos com funcionalidade de ordem superior que aprendem e se auto-organizam, governando-se por uma inteligência coletiva cujo desenvolvimento depende da diversidade do grupo e da especialização dos indivíduos que o compõem (Katsikopoulos & King, 2010). Portanto, apesar de as equipas possuírem anatomias e fisionomias que se vão metamorfoseando à medida que o jogo é urdido (Garganta, 2007), sob a influência de múltiplos constrangimentos elas tendem a adotar comportamentos preferenciais. Embora o jogo integre várias transições de fase entre estados de equilíbrio e quebras do equilíbrio tático, as respetivas fases e momentos (ataque, defesa, alternância de posse de bola) obedecem, por vezes, a um processo de mudança gradual cuja separação não é levada a cabo por linhas de demarcação súbitas ou bruscas, mas por se dissiparem ou diluírem uns nos outros, em gradações pouco percetíveis. Aliás, como refere Ball (2009), conquanto se associe a ordem e os padrões à simetria e a aleatoriedade à sua ausência, talvez a aleatoriedade tenha o seu próprio tipo de simetria. As equipas, enquanto sistemas complexos adaptáveis, revelam caraterísticas ou propriedades que importa conhecer, de modo a facultar o desenvolvimento de um processo de ensino e treino mais específico, e, portanto, mais ajustado às exigências da modalidade e às caraterísticas dos diferentes modelos de jogo e dos jogadores que os procuram interpretar. Três dessas propriedades têm claras implicações no mapeamento das ideias e na operacionalização das estratégias para jogar, condicionando a construção e aplicação de exercícios através dos quais se procura implementar uma cultura de jogo. São elas, a não-linearidade, a interdependência e a emergência (Garganta, 2005). A não-linearidade está relacionada com o facto da identidade dos sistemas em jogo não resultar de uma sobreposição de efeitos ou de comportamentos elementares. Por exemplo, não raramente subsiste a ideia de que para se conseguir eficácia do ponto de vista ofensivo no Futebol é aconselhável jogar-se rápida e diretamente a bola na direção da baliza adversária, tentando atingi-la o mais depressa possível. Contudo, 14 pode constatar-se que em grande parte das vezes se consegue maior eficácia quando se opta por caminhos que, embora teoricamente mais demoradas, se tornam mais acessíveis por não apresentarem tantos, nem tão difíceis, obstáculos. O mais importante não é, portanto, a distância métrica, mas a dificuldade que se experimenta para vencê-la, até se chegar à baliza adversária. A interdependência é uma propriedade que faz com que qualquer comportamento de um dos elementos dos sistemas tenha repercussões no comportamento dos demais. Por exemplo, o tipo de organização defensiva adotado por uma equipa pode ser determinante para a forma como esta ataca a baliza adversária e para o resultado final. Uma das vantagens das equipas eficazes, quando não têm a posse da bola, é a permanência duma estrutura dinâmica, em equilíbrio, aspeto que garante a coordenação dos jogadores e o funcionamento em bloco. Conseguir uma defesa mais equilibrada, mais eficaz, que permita tirar melhor partido das mais-valias do conjunto, tem a ver com o facto de os jogadores não estarem focados em fazer a marcação a pontos físicos ou a jogadores tomados individualmente, mas na marcação de espaços e da bola. A emergência decorre da produção de propriedades coletivas qualitativamente diferentes das competências e atribuições de cada jogador. De acordo com os princípios de jogo, quando uma equipa perde a posse da bola deve procurar encurtar o espaço de jogo efetivo4, de modo a retirar espaço, tempo e iniciativa ao adversário; pelo contrário, a equipa adversária tende a ampliar o espaço de jogo e garantir fluidez, continuidade das ações, para poder circular a bola e criar espaços favoráveis para marcar golo. Assim sendo, a redução ou ampliação do campo de jogo é contingente e virtual, dado que não se processa através de uma manipulação efetiva das medidas físicas do terreno de jogo. Trata-se de artifícios usados à custa das movimentações e dos posicionamentos, ora buscando um aumento de densidade de jogadores nos espaços próximos da bola, aquando da fase defensiva, ora procurando um afastamento dos mesmos durante a fase ofensiva. Quer isto dizer que comportamentos aparentemente individuais podem induzir a realização de coberturas defensivas e o fechamento das linhas de passe mais importantes, o equilíbrio e a concentração espacial, criando-se uma dinâmica emergente que sirva os propósitos da organização coletiva. Por exemplo, um dos pressupostos para se jogar eficazmente está intimamente relacionado com o primeiro tempo defensivo, i.e., o momento imediatamente subsequente à perda da posse de bola. Neste caso, torna-se conveniente dispor de um ou dois jogadores que, estando mais próximos do local onde se perdeu a posse da bola, consigam uma reação forte à perda, sustendo o ataque do adversário e permitindo um reagrupamento dos colegas. 4 Superfície poligonal configurada a partir das linhas que unem os jogadores que se encontram no interior do espaço de jogo regulamentar, situados, num instante t, na periferia do espaço ocupado pelas equipas que se defrontam, excluindo os guarda- redes (Mérand, 1976; Buono & Jade, 1977). 15 3.2. Da identidade coletiva à identidade individual De início somos nós que fazemos os nossos hábitos. Depois, são os hábitos que nos fazem a nós. Robin Sharma No âmbito do ensino e treino do Futebol, preconiza-se que a exercitação dos jogadores e das equipas atenda aos constrangimentos diretamente relacionados com as exigências típicas do jogo, de modo a viabilizar a maior transferência possível das aquisições conseguidas no treino, para o contexto das partidas. Pretende-se, portanto, que a preparação seja coerente, isto é, induza adaptações que viabilizem uma eficácia superior de processos na competição (Garganta, 1999). No Futebol, a exercitação deve basear-se, em larga medida, na aquisição e aplicação de princípios de jogo. Advoga-se portanto que o objetivo fundamental do treino passe por dar condições aos jogadores para poderem estruturar as suas ações em jogo em função de um conjunto de regras que, por um lado, são transversais a quem joga (todas as equipas) e, por outro, são especificadoras de um modelo ou conceção de jogo que se pretende implementar. Um dos fundamentos do treino desportivo assenta na premissa de que a aplicação de um estímulo de treino provoca, sobre o organismo, respostas específicas diretamente relacionadas com a forma como esse exercício foi executado. Então, o treino, enquanto processo de preparação e desenvolvimento de competências, deve aproximar-se, o mais possível, das exigências específicas da competição. Dado que as adaptações são específicas às exigências impostas pelos estímulos de treino, é também importante que se atente que a obtenção de níveis adequados de aptidão requer que sejam garantidas a continuidade e a progressão do processo de preparação. Os trabalhos de Ericsson et al. (1993), no âmbito da excelência desportiva, fornecem informações relevantes para quem se ocupa da preparação de atletas. De acordo com o modelo proposto, o suposto talento inato parece desempenhar um papel reduzido no desenvolvimento da excelência. Na verdade, fortesevidências sugerem que altos níveis de desempenho estão, em grande parte, relacionados com o tempo de prática sistemática e acumulada numa atividade específica. Elevados níveis de motivação, empenhamento e trabalho árduo parecem ser também requisitos essenciais para que se obtenham desempenhos de excelência, mas a importância de ambientes de aprendizagem estimulante e tempo efetivo de prática dirigida de qualidade não podem ser descurados (Williams & Reilly, 2000). Assim, uma das tarefas primárias de quem orienta o processo de ensino e treino passa por conhecer o nível de desempenho dos sujeitos, de modo que possam ser definidos objetivos claros e concretizáveis, bem como todo o planeamento, periodização e estratégias de treino/preparação. Para quem assiste a uma partida de Futebol, o jogo afigura-se simples. Contudo, quem joga apercebe-se que está em presença de um fenómeno complexo, pelo facto de ter 16 que, a um tempo, referenciar a posição da bola, aferir a situação de colegas e adversários, em relação aos alvos a atacar e a defender, e agir num ambiente instável. Se a posição dos alvos é conhecida à partida, já a localização de colegas e oponentes muda continuamente em função da circulação do móbil de jogo (a bola), o que faz com que os espaços do campo de jogo devam ser diferentemente valorizados nos distintos momentos (Garganta, 2006). Torna-se então necessário entender o jogo de Futebol na sua complexidade, no antagonismo das equipas face ao concurso para um objetivo comum. Contudo, o termo complexidade carece de explicitação, sob pena de alimentar um discurso inane, traduzido numa manifesta impotência para aceder à essencialidade dos fenómenos, impondo-se, assim, a clarificação do seu alcance semântico e conceptual. A complexidade não é necessariamente uma propriedade de um sistema (seja natural ou artificial), mas uma propriedade da representação disponível desse sistema. É, portanto, inerente ao sujeito, na apreensão dos fenómenos, e deve-se: (i) à composição do sistema, ao número e às caraterísticas dos seus elementos e sobretudo das suas interações; (ii) à incerteza e aos acasos próprios do meio envolvente; (iii) à imprevisibilidade potencial de comportamentos; e (iv) às relações ambíguas entre determinismo e acaso aparente, entre ordem e desordem. As relações que compõem o sistema-equipa evidenciam situações de cooperação e de oposição entre os jogadores. Esta dimensão psicossocial (Bertrand & Guillemet, 1988) reduz os graus de liberdade na ação, induzindo constrangimentos aos comportamentos dos jogadores (Araújo, 2005), que limitam as possíveis configurações de um sistema e a obtenção de um estado permanente de organização. Por sua vez, a incerteza e a imprevisibilidade5 inerentes ao jogo de Futebol exigem do sistema-equipa respostas assertivas e coerentes. A noção de complexidade deve ser complementada pelas de circularidade e de reversibilidade, no sentido em que as partes agem em função do todo e este retroage sobre as partes, a partir da alternância de papéis e de funções de ataque e de defesa. Marsh et al. (2006) acrescentam que uma equipa enquanto entidade coletiva apresenta propriedades únicas e diferentes relativamente às das unidades individuais (jogadores), verificando-se ainda que os comportamentos dos jogadores se alteram em função da pertença a um coletivo. Ou seja, existe um equilíbrio entre as tensões das orientações individuais do jogador e a dinâmica da equipa. O jogador experimenta, assim, novas oportunidades para atuar optando por umas em detrimento de outras. E de tal modo o jogador e a equipa se fundem e transformam que resulta inviável perceber, de facto, aquilo que o jogador faz à equipa e aquilo que a equipa faz ao jogador. 5 Taleb (2009) metaforiza a representação do imprevisível, isto é, de um acontecimento improvável, através da imagem do cisne negro. Refere o autor que o sujeito, pelo facto de estar programado para apreender o específico em detrimento das generalidades, o evidente em detrimento do menos evidente, se encontra impreparado para detetar o acontecimento causador de um impacto crítico. Consequentemente, apenas após a ocorrência do fenómeno menos previsível é que é arquitetada uma explicação que faz o cisne negro parecer menos aleatório e mais previsível. 17 Aplicada ao Futebol, a noção de sistema exprime o fluxo do jogo, permitindo enquadrar as opções táticas dos jogadores e das equipas. Afigura-se como uma construção ativa, na medida em que o seu desenvolvimento decorre da afirmação e atualização das escolhas e decisões dos jogadores, realizadas num ambiente de diversos constrangimentos e possibilidades. Face a uma situação de jogo, cada jogador privilegia determinadas ações em detrimento de outras, estabelecendo uma hierarquia de relações de exclusão e de preferência. Durante um jogo de Futebol, enquanto atividade coletiva que integra sistemas com distintos níveis de organização, são criadas e alimentadas redes de interações complexas a partir do comportamento dos jogadores (de cooperação e de oposição), de acordo com o modo como as equipas passam por vários estadios de equilíbrio e não-equilíbrio, regulados pelos princípios de jogo. O jogo tende a integrar cadeias de acontecimentos descontínuos e imprevistos, mas implicitamente relacionados com os eventos antecedentes e com as probabilidades de ocorrência de acontecimentos subsequentes. Como tal, o enfoque do jogo de Futebol segundo a perspetiva de abordagem dos sistemas dinâmicos afigura-se como uma estratégia a privilegiar. Porque se centra no estudo de múltiplas variáveis interdependentes, parece revelar-se mais consentânea com a natureza do fenómeno em causa. Deste modo, oferece a possibilidade de identificar e regular interações nas sequências de jogo que se afiguram representativas da dinâmica das partidas, bem como de organizar e sintetizar os conhecimentos para induzir uma superior eficácia na ação (Garganta, 2005). Dado que atuam num contexto em que se estabelecem relações de dependência e de interdependência, as equipas de Futebol podem ser consideradas sistemas hierarquizados, especializados e fortemente dominados pelas competências estratégicas e heurísticas (Garganta, 1997). O desempenho tático, porquanto permite apreender o carácter organizacional e sequencial das ações, representa uma instância funcional nuclear no âmbito do ensino e treino dos diferentes modos de jogar Futebol. O entendimento do jogo de Futebol enquanto sistema valoriza o seu carácter organizacional e sequencial, sendo que é a organização que produz a unidade global do sistema, transformando, produzindo, relacionando e mantendo o sistema e concedendo características próprias ao coletivo (Garganta, 2005). Não se trata, portanto, de reduzir o jogo a uma noção abstrata de sistema, mas de procurar configurar princípios que orientem o comportamento e definam a organização dos sistemas implicados. O comportamento coletivo de um sistema complexo não pode ser explicado pelo comportamento das suas partes constituintes (McGarry et al., 2002), e mais do que reduzido às propriedades dos elementos inerentes, o sistema deve ser entendido na sua inteireza (Kelso & Tuller, 1984). A consideração das partes, sem olhar ao todo, e vice-versa, tornar-se-á assim numa rua sem saída, pois são as interações, como invariante, que conferem nexo e sentido ao sistema-equipa e que, portanto, lhe dão corpo. Como a ação de um jogador desemboca forçosamente na interação dos demais 18 elementos em jogo, percebe-se que a performance desejável de uma equipa pode ser caraterizada pelo princípio que preconiza que o todo é superior à soma das partes. A organização das interações dos elementos da equipa nas diferentes dimensões, baseada num conhecimento coletivoexpresso num saber fazer tático convergente, traduz-se nos comportamentos assumidos pelos jogadores nos episódios do jogo, seja uma disposição no terreno de jogo mais ou menos adiantada, uma ação em posse de bola mais em largura ou mais em profundidade, uma forma mais expectante ou mais ativa quando não têm a bola, e atitudes nos fragmentos constantes do jogo, entre outros comportamentos que refletem uma identidade coletiva. De acordo com Conradt e Roper (2005), em sistemas auto-organizados existem elementos que apesar de optarem por caminhos diferentes dos da maioria, se filiam e orientam pelas regras do coletivo, participando nas decisões de forma consensual, embora possam até desviar, ligeira e pontualmente, o rumo do sistema. Apesar da extrema sensibilidade às condições iniciais, pode reconhecer-se a identidade de uma equipa em momentos distintos do jogo, pela semelhança particular que decorre da organização das suas partes e das respetivas interações. Portanto, torna-se conveniente que as equipas de Futebol procurem um equilíbrio entre as tendências de especialização funcional derivadas da variabilidade de cada jogador, e a integração das mesmas no projeto coletivo (Duarte et al. 2012). Então, a eficácia de uma equipa de Futebol depende, em larga medida, da possibilidade de cada jogador se assumir como um estratego capacitado para integrar as suas soluções táticas individuais no projeto coletivo e vice-versa (Garganta & Oliveira, 1996). Portanto, não se pretende sustentar a necessidade de uma total subordinação das ações individuais às coletivas, em que cada jogador se veja impedido de encontrar o espaço necessário para afirmar a sua personalidade, bem como para improvisar e criar. O importante é que mesmo as iniciativas individuais sirvam, em última instância, os propósitos maiores do coletivo. 4. TREINAR PARA MELHOR JOGAR 4.1. Aprender a (re)organizar os saber-fazer Um perito é alguém que não tem que pensar, porque já sabe! Frank Loyd Wright O ensino e o treino do Futebol encerram uma longa história que convoca jogadores com os seus próprios recursos e uma intervenção externa materializada pela intervenção do treinador e pela influência do meio ambiente (Garganta, 2006). Através deste processo procura-se transmitir e fazer assimilar, ativamente, uma cultura de 19 jogo, materializada num conjunto de regras de ação e princípios de gestão em relação com os diferentes cenários e respetivas probabilidades de evolução (Garganta, 2005). Considerando que o confronto desportivo ocorre em contextos de participação simultânea e de espaço comum, qualquer comportamento é fortemente condicionado do ponto de vista estratégico-tático, com claras implicações no domínio cognitivo. Portanto, admite-se que o entendimento da lógica e, nomeadamente, dos desígnios que governam o jogo, tenha implicações relevantes nos domínios do treino e do controlo da prestação desportiva e influa na conceção e na escolha dos procedimentos metodológicos adequados para otimizar a performance (Garganta, 2007). Admitimos que, no âmbito do jogo de Futebol, cada equipa partilha uma “gramática da ação”, uma linguagem que faz com que um conjunto de jogadores forme um coletivo organizado em função de princípios, intenções e significados. Essa linguagem, que deverá permitir conciliar consistência e versatilidade, padronização e variabilidade, é expressão de uma identidade. Nesta linha de entendimento, não se afigura conveniente que o ensino e treino acarretem a uniformização de métodos nem a padronização da forma de jogar dos jogadores ou das equipas. Pelo contrário, importa fomentar a diversidade e o desenvolvimento, tendo em conta as caraterísticas atualizáveis dos intérpretes desportivos, através do recurso a conhecimentos que possam disponibilizar informação importante para melhor treinar e jogar. A transformação positiva dos níveis de jogo requer a alteração dos conhecimentos e das competências dos jogadores. E é para isso que servem a aprendizagem e o treino. Contudo, não raramente, as situações de ensino e treino contêm demasiados conceitos e objetivos, alguns dos quais confundem o pensamento e estorvam a ação. De facto, ninguém consegue movimentar-se devidamente quando leva bagagem em excesso. O que se pretende é que a transferência entre o efeito de ensino e treino e as competências para jogar seja a mais ajustada possível e, por isso, há que buscar situações-problema que reproduzam as variáveis características dos cenários de jogo. Trata-se, portanto, de amplificar a aplicação e o efeito das denominadas variáveis especificadoras. No quadro do ensino e treino do Futebol, a literatura sugere que grande destaque deve ser dado à expertise cognitiva, na sua relação estreita com os skills tático- decisionais (para referências, ver Williams & Hodges, 2005 e Garganta, 2006). Note-se que o comportamento complexo não implica, forçosamente, estratégias mentais complexas por parte dos jogadores (Gigerenzer, 2007; Leher, 2009). Apesar de ser conveniente que os jogadores tenham consciência dos seus recursos, visto que a ideia que têm de si mesmos influencia a sua capacidade de agir, os saber-fazer relativos ao jogo são aprendidos, em grande parte, como se de uma linguagem se tratasse. Sendo, sobretudo, um conhecimento tácito, não é de esperar que os jogadores consigam explicar as suas decisões nem descrever o capital de soluções técnicas e táticas que possuem, tanto mais que as suas soluções e ações emergem a partir da interação com os cenários que o jogo propicia. 20 Como tal, quando nos reportamos à “inteligência de jogo” e à “tomada de decisão”, não pretendemos invocar, forçosamente, aptidões conscientes e deliberadas, nem tampouco abstratas ou invariáveis. Referimo-nos, sobretudo, a capacidades suscetíveis de modificação através de ajustamentos dinâmicos específicos, ou seja, a uma “inteligência corporal” dinâmica e atualizável (Garganta, 2007). A inteligência para jogar pode ser entendida como a habilidade dos jogadores/equipas para reconhecerem os estímulos mais significativos do envolvimento, de modo a se adaptarem às diversas situações e agirem em benefício da sua equipa, sobre os diferentes ambientes de jogo. Portanto, o jogo propriamente dito decorre do modo como se harmonizam os princípios que guiam a organização individual, grupal e coletiva, em relação com as ideias ou conceitos que conferem sentido à estratégia e à ação tática. No Futebol, as situações de oposição são um constrangimento determinante das ações dos jogadores, pelo que o jogo deve ser analisado e compreendido em termos de relação de forças entre duas equipas (Bayer, 1994). Deste modo, a noção de oposição, entre jogadores e equipas, torna-se capital para o entendimento do jogo e para a elaboração do modo como o mesmo pode ser ensinado, aprendido e treinado (Figura 1). Figura 1. Variáveis que condicionam a organização tática (redesenhado de Gréhaigne & Wallian, 2007). 4.2. Regras de ação e princípios de gestão da organização do jogo O jogo de Futebol, porque decorre da natureza do confronto entre dois sistemas dinâmicos complexos – as equipas – carateriza-se pela sucessiva alternância de estados de ordem e desordem, estabilidade e instabilidade, uniformidade e variedade. No domínio das modalidades desportivas situacionais ou estratégicas, as ações dos praticantes são realizadas tendo em conta diversos constrangimentos, tais como a posição e trajetória da bola, a posição e os deslocamentos dos companheiros e dos adversários e as possibilidades de ação do jogador. As habilidades percetivo-cognitivas, tais como a antecipação e a tomada de decisão, são cruciais para se alcançar um OPOSIÇÃO ordem/desordem Rutura Continuidade Recuo Avanço Risco Segurança Equilíbrio Desequilíbrio 21 desempenho eficazem ambientes de treino e de competição (Williams, Davids & Williams, 1999; Williams, 2002; (Tavares, Greco & Garganta, 2006). Trata-se de contextos de elevada incidência estratégico-tática em que as capacidades se desenvolvem a partir de blocos de informação integrados, conhecimentos tácitos que o jogador percebe como conjuntos de possibilidades. Quando se diz que os jogadores têm "sentido da jogada", têm "capacidade de antecipação", está a invocar- se um conjunto de “habilidades” que, como refere Marina (1995), mais não são do que modos eficazes de lidar com grandes blocos de informação. Cada sujeito percebe o jogo, as suas configurações, em função das aquisições anteriores e do estado presente. Perante o fenómeno jogo, o observador constrói uma paisagem de observação, entendida como um conjunto de estímulos organizados face ao ponto de vista que ele possui sobre o fenómeno. Ou seja, retém o que se lhe afigura pertinente, interpreta os dados dispersos e organiza-os conferindo-lhes um sentido próprio, o que quer dizer que o sentido do jogo é construído e depende de um modelo de referência (Garganta, 1997). Pode dizer-se que a essencialidade do jogo de Futebol decorre de um quadro de referências que contempla: (i) o tipo e relação de força entre os efetivos que se defrontam; (ii) a variabilidade e a aleatoriedade do contexto em que as ações ocorrem; (iii) as caraterísticas das habilidades motoras, para agir em contextos específicos (Garganta, 2005). Deste modo, a compreensão dos cenários de jogo e a construção de situações para o aprender e exercitar dependem de um entendimento que viabilize a representação do respetivo conteúdo, a partir dos constrangimentos típicos inerentes às diferentes fases e momentos do jogo. Dado que os jogadores e as equipas se confrontam com distintos ambientes de jogo, torna-se oportuno que disponham de competências6 para gerirem, em proveito próprio, o ataque, a defesa e as mudanças de posse de bola, isto é, as transições. Assim, desde os primeiros momentos de aprendizagem, os praticantes deverão assimilar princípios que vão desde o modo como cada um se relaciona com a bola, até à forma de comunicar com os companheiros e de contra comunicar com os adversários. No Futebol de alto rendimento, as intervenções sobre a bola por parte dos jogadores tendem a apresentar uma estabilidade e uma organização coesa, coerente e homogénea (Castelo, 1994). As situações de oposição são de tal forma evidentes que o jogo de Futebol pode ser perspetivado como uma sequência contingente de fases7 (ofensiva e defensiva) e momentos8 (transições ataque-defesa e defesa-ataque). As fases do jogo pressupõem, por parte dos jogadores e das equipas, objetivos antagónicos: a fase de ataque carateriza-se pelo facto de a equipa ter a bola e procurar 6 Competência – conjunto de conhecimentos, atitudes, procedimentos e habilidades necessários para responder às exigências complexas de uma situação (Marina, 2010). 7 Fase (etapa, estádio) – período com caraterísticas bem definidas. Cada uma das modificações sucessivas que as sequências de jogo apresentam. 8 Momento (ápice, instante) – espaço de tempo muito breve que ocorre entre as fases de jogo. 22 manter a sua posse, no sentido de criar situações de finalização; por outro lado, a fase de defesa distingue-se da anterior pelo facto de a equipa não possuir a bola, procurando apoderar-se dela, mantendo o equilíbrio coletivo de forma a impedir que equipa adversária crie situações de finalização (Bayer, 1994; Garganta & Pinto, 1994). O facto de se estar, ou não, em situação de posse de bola condiciona, como nenhum outro aspeto do jogo, o comportamento dos jogadores, pois origina que a equipa em posse de bola ataque a baliza adversária, ao passo que a equipa que não tem a bola deve defender a própria baliza (Hughes, 1990). Atendendo a esta relação antagónica entre ataque e defesa, Teodorescu (1984) define as fases de jogo como as etapas percorridas no desenvolvimento quer do ataque, quer da defesa, desde o seu início até à sua conclusão. O desenvolvimento do ataque e da defesa decorre, então, a partir de um conjunto de etapas complementares que devem ser encaradas num contexto de relação de forças. Ataque e defesa, apesar de se constituírem sob uma verdadeira oposição lógica, pressupõem processos complementares; a identificação, nomeação e classificação de cada uma das etapas inerentes a uma fase permite a identificação da etapa de sinal que lhe corresponde (Castelo, 1994). No entanto, não é estritamente necessário que durante a fase ofensiva ou defensiva os jogadores e as equipas tenham de completar todas as etapas subjacentes às fases de jogo. Se, por exemplo, um jogador conquista a posse de bola perto da baliza defendida pela equipa adversária, encontrando-se num situação favorável à marcação de golo, deve obviamente procurar de imediato a finalização do ataque. De igual modo, se um jogador perde a posse de bola no seu setor defensivo, a equipa deve ter como primeira preocupação defender a baliza, impedindo a finalização por parte da equipa adversária. Assim, é a alteração da posse de bola que define o momento de passagem da defesa para o ataque e do ataque para a defesa. Tendo em conta que ataque e defesa pressupõem objetivos diferentes, que se consubstanciam em comportamentos e processos distintos, os momentos de mudança da posse de bola, isto é, as transições, afiguram-se ocasião ocasiões privilegiadas para se surpreender o adversário. Deste modo, para além das fases de jogo – ofensiva e defensiva – é possível identificar dois momentos distintos na estrutura do jogo de Futebol: o momento de transição defesa-ataque, que se carateriza pelos comportamentos que os jogadores e a equipa devem assumir nos instantes imediatos à recuperação da posse de bola; e o momento de transição ataque-defesa, caraterizado pelo conjunto de comportamentos individuais e coletivos a adotar nos instantes após a perda da posse de bola. Adicionalmente, pela sua especificidade e influência no desfecho dos jogos, importa também considerar os fragmentos fixos de jogo, comummente designados de lances de bola parada. 23 Figura 2. Fases e momentos do jogo de futebol 4.3. Princípios transversais e princípios especificadores do modelo e da conceção de jogo No Futebol, o êxito individual e coletivo depende de princípios de jogo, isto é, de um conjunto de regras de ação e de gestão do jogo que definem as propriedades invariáveis sobre as quais se estrutura o desenvolvimento dos acontecimentos do jogo (Bayer, 1994; Gréhaigne, 1992). Tais referências orientam o comportamento dos jogadores na procura de soluções mais eficazes nas diferentes fases e momentos do jogo (Garganta & Pinto, 1994), pelo que quanto mais ajustada e qualificada for a aplicação dos princípios táticos durante o jogo, melhor poderá ser o desempenho da equipa ou do jogador na partida (Costa, Silva, Greco & Mesquita, 2009). Como tal, afigura-se pertinente perspetivar a hierarquização dos princípios de jogo em função do seu grau de especificidade. Seguindo esta lógica, as ações dos jogadores podem ser estruturadas em função de princípios fundamentais e específicos: Os princípios fundamentais reportam-se à relação numérica entre os jogadores da própria equipa e os adversários no centro do jogo, ou seja, onde está a bola. Podem ser resumidos da seguinte forma: nas zonas de disputa da bola, uma equipa deve procurar criar situações de superioridade numérica, evitar situações de igualdade numérica e rejeitar a condição de inferioridade numérica. (Hainaut & Benoit, 1979; Queiroz, 1983; Garganta & Pinto, 1994); Os princípios específicos representam um conjunto de regras de base que orientam as açõesdos jogadores e da equipa ao longo das fases e dos momentos do jogo – defesa, ataque e transições – com o objetivo de criar desequilíbrios na organização da equipa adversária, estabilizar a organização da própria equipa e proporcionar aos jogadores uma intervenção ajustada no jogo. Estes princípios ocorrem de acordo com uma lógica de luta de opostos, isto é, para cada um dos quatro princípios do ataque (penetração, cobertura ofensiva, mobilidade, espaço) existem Ataque Defesa Transição Ataque-Defesa Transição Defesa-Ataque Recuperação da posse de bola Perda da posse de bola 24 outros tantos da defesa (contenção, cobertura defensiva, equilíbrio, concentração) que visam dar resposta a objetivos antagónicos (Queiroz, 1983; Garganta & Pinto, 1994). Quadro 1. Princípios transversais (fundamentais e específicos) do jogo de futebol (adaptado de Worthington, 1974; Hainaut & Benoit, 1979; Queiroz, 1983; Garganta & Pinto, 1994; Costa et al., 2009) Ataque (em posse de bola) Defesa (sem posse de bola) P ri n c íp io s F u n d a m e n ta is Procurar criar superioridade numérica Evitar a igualdade numérica Recusar a inferioridade numérica P ri n c íp io s E s p e c íf ic o s Penetração Atacar diretamente o adversário ou a baliza; Desequilibrar a organização defensiva adversária; Criar situações vantajosas para o ataque em termos numéricos e espaciais. Contenção Parar ou atrasar o ataque adversário; Propiciar tempo para a organização defensiva; Diminuir o espaço de ação do portador da bola; Orientar a progressão do portador da bola; Restringir opções de passe para um adversário; Impedir a finalização. Cobertura ofensiva Garantir a manutenção da posse de bola. Dar apoio ao portador da bola, oferecendo- lhe opções para dar sequência ao jogo; Diminuir a pressão adversária ao portador da bola; Criar superioridade numérica; Induzir desequilíbrio na organização defensiva adversária; Cobertura defensiva Servir de novo obstáculo ao portador da bola, caso este ultrapasse o jogador que fazia contenção; Transmitir segurança e confiança ao jogador de contenção, para que se afoite na disputa pela bola. Mobilidade Criar ações de rotura na organização defensiva adversária; Aparecer em zonas propícias para a obtenção de golo; Criar linhas de passe em profundidade. Equilíbrio Assegurar a estabilidade defensiva nas zonas de disputa pela bola; Apoiar os companheiros que executam as ações de contenção e cobertura defensiva; Cobrir eventuais linhas de passe; Marcar jogadores que podem receber a bola Espaço Ampliar o espaço de jogo efetivo; Expandir as distâncias entre os adversários; Dificultar as marcações defensivas da equipa adversária; Facilitar as ações ofensivas da própria equipa; Dar sequência ao jogo, procurando opções seguras para a manutenção da posse de bola. Concentração Aumentar a proteção à baliza; Orientar o jogo ofensivo adversário para zonas de menor risco no espaço de jogo; Propiciar o aumento da pressão sobre a zona de disputa da bola. 25 Convém no entanto realçar que o cumprimento destes princípios transversais, ou seja, os, fundamentais e os específicos, apenas assegura os pressupostos básicos da organização coletiva e individual, tal como o cumprimento das regras de trânsito pode levar a uma circulação mais segura e adequada aos interesses de cada condutor. Todavia, assim como o conhecimento e a observância do código da estrada não coage os automobilistas a obedecerem a um mesmo estilo de condução nem os impele a dirigirem-se todos para o mesmo destino, também a obediência aos princípios de jogo não compromete as equipas nem os jogadores quanto às formas de jogar que entendam mais convenientes para levarem a cabo os seus planos de ação. Pelo contrário, trata-se de garantir condições essenciais para operacionalização eficaz de uma determinada forma de jogar, independentemente do modelo e conceção que cada equipa entenda adotar. Portanto, tais princípios assumem uma centralidade quanto à adoção de boas práticas para o ensino e o treino do jogo. Neste âmbito, torna-se conveniente que equipas e jogadores tenham ideias claras sobre os modos como devem gerir as diferentes fases e momentos, de acordo com a cascata de objetivos que vai sucedendo à medida que o jogo acontece. Ou seja, do ponto de vista ofensivo: construir ações ofensivas, criar situações de finalização e finalizar; e do ponto de vista defensivo: recuperar a posse da bola, reduzir o espaço de jogo do adversário, anular as situações de finalização e proteger a baliza. 5. DOS JOGOS AO JOGO Quando alguma coisa é alguma coisa, deixa logo de ser as outras todas, e isso é uma pena. O que é preciso é ser tudo ao mesmo tempo Agostinho da Silva 5.1. Construção de cenários de treino: (Gr+4)x(4+Gr), uma estrutura a privilegiar A complexidade do jogo de Futebol, originada, entre outras coisas, pelas relações de cooperação e de oposição entre os jogadores, pela extensão do espaço de jogo e pela aleatoriedade dos acontecimentos (Dunning, 1994; Garganta, 1997; Garganta & Cunha e Silva, 2000), coloca um conjunto de problemas que devem ser equacionados de modo a apontar os caminhos mais racionais para o desenvolvimento do processo de ensino e aprendizagem dos jovens jogadores. Do ponto de vista didático, existe convergência quanto às perspetivas que salientam que o ensino do jogo deve contemplar um progressivo aumento da complexidade dos conteúdos (Queiroz, 1986, Garganta & Pinto, 1994; Rink, French & Tjeerdsma, 1996). Assentam neste pressuposto as etapas de aprendizagem de referência, assim designadas: eu-bola, eu-bola-adversário, eu-bola-colega-adversário, eu-bola-colegas- adversários e eu-bola-equipa-adversários. 26 Estas diferentes etapas de aprendizagem colocam ênfase no ensino do jogo a partir do (Gr+1)x(1+Gr), (Gr+2)x(2+Gr), (Gr+3)x(3+Gr), passando pelas diferentes estruturas funcionais9 subsequentes, até se chegar ao (Gr+10)x(10+Gr). Se nos detivermos nos conteúdos abordados nestes diferentes níveis de complexidade, poderemos concordar com esta opção didática, embora nos devamos manter abertos às adaptações que se justificarem ao longo do processo de ensino. Contudo, neste aumento progressivo de complexidade, importa enquadrar os níveis de dificuldade inerentes. Queremos com isto dizer que no ensino do jogo de Futebol, no que diz respeito às estruturas funcionais, nível de complexidade e grau de dificuldade não são noções equivalentes. O aumento da complexidade decorre, entre outros constrangimentos, do maior número de intervenientes em jogo e consequentemente das interações que daí podem advir. À medida que a quantidade de interações aumenta, também a complexidade funcional pode aumentar, se a qualidade dos intervenientes e a dinâmica criada assim o permitirem. Porém, a aptidão para jogar em determinada estrutura funcional está também intimamente relacionada com as capacidades técnicas e o nível de entendimento do jogo que os jogadores evidenciam. Isto é, os défices técnicos e táticos que os principiantes manifestam, obstam à fluência do próprio jogo, mesmo que a sua complexidade estrutural seja reduzida. Queremos com isto salientar que estruturas funcionais pouco complexas, mas que requisitem permanentes e ajustadas intervenções técnicas dos jogadores para garantirem a continuidade do jogo, podem, paradoxalmente, apresentar maior grau de dificuldade do que organizações estruturais mais complexas, que não estejam tão dependentes da proficiência técnica dos praticantes. A estrutura (Gr+1)x(1+Gr), teoricamente a estrutura menos complexa que os exercícios competitivos do jogo de futebol podem assumir, é um bom exemplo do que acabamos de referir. Nesta situação, solicita-se ao atacante que progrida para marcar golo,