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Marta Mega de Andrade A “CidAde dAs mulheres” cidadania e alteridade feminina na atenas clássica Rio de Janeiro LHIA 2001 Copyright© 2001 Marta Mega de Andrade Preparação: Marta M. de Andrade Diagramação: Marta M. de Andrade Ilustração da capa: Sérgio Barroso Foto da Capa: Atena (sentada) e jovem mulher. Ânfora ática de figuras vermelhas, 475-425 a.C. London, British Museum, E 316; ARV2 857.6. Corpus Vasorum Antiquorum. Brittish Museum, 5, pr. 58, fig. 1 a-b Revisão: Eduardo Corrêa do Prado Impressão e acabamento: Fábrica de Livros Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) 938. 05 Andrade, Marta Mega de - 1967 - A “cidade das mulheres”: cidadania e alteridade feminina na Atenas Clássica / Marta Mega de Andrade. – Rio de Janeiro: LHIA, 2001. 174 p. ISBN: 85-88211-01-7 Bibliografia: p. 171-174 1. História Antiga. I. Título. CDD 2001 Proibida a reprodução total ou parcial. Os infratores serão processados na forma da lei. Laboratório de História Antiga da UFRJ / LHIA 1ª Edição Largo de S. Francisco de Paula 1, Centro Rio de Janeiro - RJ CEP:20051070 http://www.lhiaufrj.com.br info@lhiaufrj.com.br A Eduardo Por este livro, e por tudo mais. Hermes Passa PrefáCio: Ao abrir este livro, o leitor encontrará o estudo que defendi como dissertação de mestrado em 1994, na pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense. É claro que o retorno a este trabalho não podia deixar de ser crítico: seis anos depois, não há leitura mais implacável do que aquela de alguém que se “responsabiliza” pelo que escreveu, nos bons momentos, mas principalmente naquilo que gostaria de dizer de novo com outras palavras. De início, fazer uma “crítica de autor”: em 1994, desagradava-me a idéia de confundir este estudo sobre o imaginário da cidadania ateniense e sua construção a partir da figuração do feminino, com uma pesquisa de cunho “feminista”. Com efeito, eu não fazia uma “história da mulher”, mas uma história da cidadania como nómos, e do como essa “ordem política e social” da Atenas antiga não apenas aceitava como subenten- dia a possibilidade de subversão. Esta possibilidade se configurava na aparição das mulheres como agentes ativas na dinâmica de re-produção de uma ideologia da unidade / diversidade na pólis. Como negar, então, não propriamente intenções feministas, mas o pertencimento dos problemas levantados por este estudo a um projeto de afirmação da presença ativa das mulheres, e da positividade do gênero feminino, na história das póleis antigas? Não se trata de incluir as mul- heres no “clube de homens”, mas de evidenciar que este tal “clube de homens” que, pretende-se, teria sido a cidade-estado grega, não era mais do que a ponta visível de um iceberg, e que a pólis era também uma pólis das mulheres. Uma pólis das mulheres: não a mesma, mas outra; não idêntica aos cidadãos, mas diferente deles. Uma cidade cotidiana, feita de múltiplos encontros e de múltiplas negociações entre habitantes, dentre os quais as mulheres, especialmente as cidadãs (para o caso da ideologia política), tinham um papel de destaque. As mulheres transitavam entre as duas cidades: aquela dos “incluídos”, dos cidadãos e suas famílias, e a dos outros, aqueles que habitavam um lugar conhecido como Atenas ou um território como a Ática, sem, no entanto, se ligarem a ele pelos laços exclusivistas da cidadania. Esta pólis das mulheres não corresponde, definitivamente, ao modelo de cidade ou de Estado, que os historiadores ainda não deixaram de reproduzir desde há muito. E essas mulheres, as descendentes de Pandora que habitam entre os homens mortais nos campos e nas cidades gregas, não se encaixam no modelo da boa mul- her grega, aquela do silêncio, do recato, da reclusão doméstica, que nós nos acostumamos a apontar e dizer” “mirem-se nelas, as mulheres de Atenas”. Mirem-se nelas, porque elas não receberam a herança que nós re- cebemos, e portanto tinham efetivamente uma posição relevante em sua cidade, sem ressentimentos. Porque, de fato, a questão mais importante não é a de esclarecer se elas ficavam presas em casa ou saiam às ruas, se elas eram ou não castas, recatadas, silenciosas. A questão é: como, na subordinação cultural e social das mulheres pelos homens, há mais do que passividade, ou aceitação; mais do que violência ou resistência, há criação, ou talvez fosse melhor dizer, há métis, astúcia, não somente para resistir, mas especificamente para enganar. Como se tira a ação da reação, da passividade? Como tirar a negociação cotidiana e profundamente política, da aceitação? Como perceber o temor de um não, embutido naquele que predomina? É verdade que, seis anos depois, teria sido preferível falar em gêne- ros, ou em como masculino e feminino são posições de sujeitos, investidas nos processos (históricos) de reprodução cultural. No entanto, decidi publicar a dissertação sem alterações de conteúdo, porque o trabalho que teria feito hoje seria outro, e ainda, porque os estudos que realizo hoje têm na dissertação, tal como ela foi defendida, seu ponto de partida e seu ponto de retorno. Boa, má, bem ou mal escrita, em bom português ou — Prefácio — não, o fato é que essa dissertação de mestrado abre e fecha um círculo. O leitor encontrará uma tentativa de evidenciar, primeiro, o caráter de profunda alteridade representada pelo gênero feminino na cultura clássica. Mesmo que se tenha dito que as mulheres cidadãs, em Atenas, eram enquadradas segundo certos modelos de conduta, os quais podiam ser aceitos ou transgredidos na prática social, é verdade que havia um outro “modelo”, não de boa esposa mas de mulher “feminina”, amada, desejada, mas sobretudo temida: porque a sedução feminina tira do homem a sua previdência, sua atenção, seu esforço. Antes mesmo de um modelo (cristão) de “queda” da humanidade, para a qual a respon- sabilidade feminina seria inconteste e seu pecado constituinte, as filhas de Pandora na Grécia tinham que carregar o estigma da suspeita, do presente enganoso que não cessavam de representar na história dos homens. Lembremos, no entanto, que um presente é um presente, não uma tentação; e Pandora era um presente dos deuses, um belo presente, aceito porque desejado. Esse outro modelo do feminino, o do desejo e do temor, da atração e da suspeita, é muito frequentemente esquecido nos estudos sobre a mulher na Grécia; mas é aquele cujos tópicos procuramos explorar na representação de uma “raça das mulheres”. Depois, procura-se deixar claro que a relação das mulheres com a pólis, os avatares de uma participação feminina na construção dos ideais e das práticas políticas na Atenas clássica, não se restringiam apenas à ação largamente aceita (e aceitável, prevista mesmo nas instituições da pólis) da boa-esposa. Ao contrário, a grande importância ativa das práticas políticas femininas, aquilo que poderia ligar feminino a pólis, se configurava no encontro da “raça das mulheres” com a comunidade política e social (políade) da cidade. Tratava-se de algo que só o difer- ente poderia fazer, algo que só um “outro” poderia articular: cidadania e artifício, cidadãos e não-cidadãos, cidade e família, etc. Enfim: não eram os homens que, no fundo, precisavam das mulheres, era a cidade, instituição política e de governo sobre os habitantes de um território, que se experimentava “no” feminino. — A Cidade das Mulheres — Não poderia deixar de agradecer aqui o apoio daqueles que foram parte importante da elaboração desse trabalho. Minha ex-orientadora, profa. Vânia Fróes, e os profs. Ciro Cardoso e Ulpiano Meneses, são ainda hoje pontos de referênciadas pesquisas que realizo. Agradeço também a J-P. Vernant, pois esse estudo sobre feminino e política no teatro jamais teria sido realizado se não fossem as referências teóricas, metodológicas e de vida , de M. Vernant. Rio de Janeiro, 9 de novembro de 2000 sumário introdução: ............................................................................... 11 CAPÍtulo 1: umA PrátiCA do imAGinário: o teAtro e A fABriCAção dA CidAdAniA .....................................18 1.1- o teAtro e A PÓlis: ...........................................................19 1.2 — A prática do imaginário: .......................................................25 1.3 — Cidadania e feminino na Pólis: ............................................28 1.3.1- O Feminino Na Pólis: Algumas Abordagens: ...........................28 1.3.2 — A Vivência da Cidadania Democrática: ................................32 PArte i: o imAGinário do feminino e A rePresen- tAção do outro ................................................................37 CAPÍtulo 2: AlteridAde e feminino ..............................38 2.1- Pandora e a raça das mulheres: ..............................................40 2.1.1- Teogonia: ..................................................................................41 2.1.2- Os Trabalhos e os Dias: ............................................................45 2.2- GYnAiKÓs nÓon: ................................................................48 CAPÍtulo 3: eurÍPides e A Construção dA Alteri- dAde do feminino .............................................................54 3.1- A métis das mulheres: ................................................................54 3.2- uma outra solidariedade: .......................................................62 3.3- A mAniA: ..................................................................................71 3.4- Palavras Vãs, ou o lógos gynaîkos: ...........................................76 3.5- o feminino, A ilusão, A Verdade: ............................................82 3.6- masculino e feminino: ..............................................................89 PArte ii: o feminino e o uniVerso dA PÓlis...............93 CAPÍtulo 4: eurÍPides, ou QuAndo A mulher fAlA dA CidAde ...............................................................................94 4.1- A Cidade como patrís: ...............................................................95 4.2- o discurso Político de hécuba: .............................................106 4.3- o sacrifício das Jovens Virgens: ............................................ 110 4.3.1- Kalòs tánathon: a morte do hoplita e o elogio de Atenas ....... 111 4.3.2- Macária e Polixena: ................................................................ 114 4.3.3- Ifigênia: ................................................................................... 116 CAPÍtulo 5: AristÓfAnes, ou QuAndo As mulheres GoVernAm A CidAde: ......................................................124 5.1- homens e mulheres, partes iguais: ........................................126 5.2- A intervenção nos destinos da Pólis: .....................................130 5.3- A Acrópole sitiada: unidade e diversidade na pólis..............133 5.3.1- Cidadania no feminino: .........................................................134 5.3.2- Unidade, Diversidade: ............................................................136 CAPÍtulo 6: A rAinhA dAs ABelhAs e A Arte de Bem- usAr ........................................................................................145 6.1- A oîkonomia e o anèr agathòs: ................................................146 6.2- hegemòn mélissa: ....................................................................149 6.2.1- Comunidade, complementaridade: .........................................150 6.2.2- O governo da casa: mulher-abelha. ........................................153 6.3- A rainha das Abelhas e a Alteridade do femini-no: ............157 ConClusão: ................................................................................161 BiBlioGrAfiA: ...........................................................................171 lista de Abreviaturas: * AGA Agamenon AND Andrômaca ASM Assembléia das Mulheres BAC As Bacantes ECO O Econômico FEN As Fenícias HEC Hécuba HEL Helena HER Os Heraclidas HIP Hipólito IFA Ifigênia em Áulis IFT Ifigênia em Taurida LIS Lisístrata MED Medéia TEO Teogonia TES As Tesmofórias TRA Os Trabalhos e os Dias TRO As Troianas SEM Elegia - Semônides de Amorgos RÃS As Rãs *A referência completa das obras abreviadas se encontra no item A da Bibliografia do presente estudo. introdução: O estudo que ora se apresenta, abre-se para a construção da cida- dania democrática no período clássico da história das póleis, no espaço do teatro ateniense. Desta perspectiva sob a qual a pólis se oferece ao olhar, emerge a relação entre a cidadania e o feminino. Oferece-se como espetáculo a propriedade que o feminino detém para atuar na construção da cidadania ateniense, de forma que a própria vivência da cidadania comporte, na formulação de seu paradigma, o reconhecimento de si e a delimitação do Outro. Este Outro são os não-atenienses, os não-cidadãos, mas também o Outro da própria cidadania democrática. Pode-se dizer que o feminino impõe à compreensão da cidadania, a presença, junto ao paradigma, daquilo que dele se exclui, mas que no entanto o fundamenta: a alteridade. Que é isso que, excluído, é entretanto fundamento? Uma das princi- pais hipóteses discutidas ao longo do estudo, é a de que justamente por ser excluído da relação política com a cidade, o feminino constitui um Outro: outro do masculino, outro da cidadania, mas também outro da própria cultura (nómos). E por ser este outro, o feminino é chamado a traduzir, no espaço do teatro, uma experiência da alteridade que é constituinte da vivência da cidadania democrática do Vº século a.C.. Não se trata, por- tanto, de desenvolver uma história da mulher, no sentido da abordagem dos vestígios e indícios da “voz” feminina, embora um dos resultados do estudo seja a afirmação da cidadania feminina como possibilidade. Trata-se de percorrer o imaginário do feminino; de compreender as linhas de força presentes neste imaginário, que se misturam e transformam a figura da mulher, em Eurípides e em Aristófanes, principalmente, para que o feminino seja aí lugar de encontro entre a alteridade e a pólis. 12 — Introdução — Por feminino, compreende-se o conjunto das representações que inscrevem a presença da mulher na sociedade. Feminino é, portanto, uma construção do imaginário. O imaginário do feminino comporta, na apropriação que dele fazem as obras de Eurípides e Aristófanes, uma duplicidade. Por um lado, o feminino tem uma “função”. A mulher têm um papel social, no interior do qual se explica sua exclusão do espaço da cidadania. Por outro lado, o imaginário do feminino se abre para a possibilidade de uma relação fundamental entre a mulher e uma forma de alteridade, radical em relação ao universo masculino da cultura. Isto significa que, ao abordar a construção da cidadania pela via do imag- inário do feminino, incide-se sobre ela no “interstício”, onde a identidade comporta sua possível dissolução. As questões básicas apontadas acima delimitam a cronologia e a espacialidade recortadas para o estudo. Focaliza-se a pólis ateniense, na passagem do Vº para o IVº século a.C.. Trata-se de um momento de crise e transição para o mundo grego como um todo. Período da Guerra do Peloponeso, perdida por Atenas, em que a hegemonia da pólis democrática coloca-se em jogo. Momento apropriado para formular com maior insistência a questão da dissolução da experiênciademocrática da cidadania, e, com isso, da experiência da autonomia mesma da pólis. O espaço de circunscrição do estudo é o território ateniense, primeiro porque é a partir deste território, bem como da experiência desta pólis, que o discurso do teatro se estrutura. Segundo, porque Atenas, assim como Esparta, é um paradigma do período clássico da história dos gregos; é um referencial. Um paradigma clássico para os povos da antiguidade grega e romana, mas também para nós mesmos. Torna-se de extrema importância, portanto, mesmo para a atualidade, mostrar como esse “modelo” da democracia investe sobre a relação com o Outro, trazendo para o espaço do teatro a alteridade — estranhamento e diferença, mas ainda pluralidade — como problema. Se a cidadania ateniense clássica foi durante muito tempo percebida através de seus próprios “filtros”, como a isonomia, a permutabilidade, a participação efetiva dos cidadãos, ao — A “Cidade das Mulheres” — 13 incidir sobre ela construindo-a como artifício, é possível perceber como, nesta mesma cidadania, a exclusão da diferença deve ser colocada como questão e não como fato. A questão do outro percebido no interior da cidade, é formulada pelo teatro do final do século V a.C., principalmente por Eurípides e Aristó- fanes. Em ambos, parte-se da figuração do feminino como alteridade. Se o feminino na mulher faz dela um “outro” que habita dentro da pólis, como a diferença instaurada no seio da cidade, a ação dessas mesmas mulheres (ao participarem das festas cívicas, mas ainda procriando filhos legítimos) é imprescindível para a duração da pólis, para a renovação do ciclo ao fim do qual Atenas emerge em sua força, sua hegemonia. Devido a essa “cumplicidade”, a essa “intimidade”, o feminino faz surgir aos olhos públicos um campo em que, do interior, a cidadania começa a vivenciar o problema de sua dissolução pela guerra, pela stásis. Questão de alteridade, mas ainda questão da diferença no interior da cidadania e da cidade. O teatro é um espaço privilegiado para a discussão das imagens que a cidade produz de si mesma. Dentre todas as tragédias inteiramente conhecidas do teatro grego, entre Ésquilo, Sófocles e Eurípides, somente neste último a utilização de personagens femininas, aliada à preocupa- ção com a construção de suas ações, decisões, de seu pathós, era peça chave para a estrutura das peças. Não que os dois primeiros tenham feito das personagens femininas figuras de pouca importância. Mas nenhum deles utilizou, com tanta frequência quanto Eurípides, e com a mesma preocupação em delimitar um campo isolado e próprio ao feminino, a figuração da mulher. A forma de alteridade que o feminino representa, é aquela que se estabelece na delimitação da própria humanidade enquanto tal: entre animais e deuses. Através dessa relação com a alteridade, o teatro de Eurípides alia-se ao feminino não para defender “os direitos da mulher”, mas para utilizá-lo no debate próprio a Tragédia: entre o real (vivido no cotidiano) e a cena, a imitação da ação humana que, nos quadros da 14 — Introdução — pólis democrática, compreende-se principalmente como deliberação, coloca-se frente à frente com o acaso, o destino. Para além da crença na correspondência entre “causa” e “consequência”, muito próximo ainda da potência das divindades e de seus caprichos, o ato de humano e político de deliberar comporta em si o indefinido. Neste “indefinido”, a Tragédia insere sua questão. O feminino surge, no teatro de Eurípides, com dois sentidos difer- entes. Em primeiro lugar, reatualizando a alteridade do feminino, tal qual é formulada nos poemas de Hesíodo, e confirmada por Semônides de Amorgos. Em segundo lugar, na perspectiva de sua relação com uma cidade ou coletividade. De acordo com este segundo sentido, percebe- se não apenas como, na Atenas do período clássico, se compreende a integração “normal” do feminino à cidade, mas ainda como o problema desta mesma integração não se resolve pela exclusão política e dominação social da mulher. Teatro, cidade, feminino. Esses três pontos, interligados, ou melhor, investigados de dentro do nó que os une, fornecem novas perspectivas para os temas da relação da cidade com o Outro, por um lado, e do femi- nino com a pólis, por outro lado. O teatro trágico de Eurípides constitui- se como uma das chaves para a abertura da possibilidade deste tipo de questionamento. A partir dele, é possível livrar-se, por um momento, do “fantasma” da passividade e exclusão da mulher na sociedade grega, para abordar a cidadania feminina do ponto de vista de sua positividade: onde o feminino é vital para a discussão da compreensão que a pólis fabrica, e oferece, de si mesma. A abordagem das comédias de Aristófanes demonstra, com clareza, que a exclusão da mulher não surge naturalmente, como um fato de menor importância. Ao contrário, a presença das mulheres na cidade, principalmente como esposas de cidadãos, engendra a possibilidade do governo feminino, da “ginecocracia”. Eis, então, a mais profunda relação do feminino, no Outro que representa em vista da cidadania masculina, com a mesma pólis dos atenienses. Cidadania e alteridade se unem, em — A “Cidade das Mulheres” — 15 Aristófanes, para dar os contornos da “cidade das mulheres”. O texto do econômico, de Xenofonte junta-se, por fim, ao grupo, para evidenciar o contraste entre a abordagem teatral e a abordagem política do feminino. O espaço que o discurso do econômico de Xe- nofonte abre ao papel do feminino na formação do “homem de bem”, modelo ideal de conduta do cidadão, é considerável. No tratado político, a mulher surge, entretanto, afastada de sua relação com a alteridade. O feminino é integrado: é a esposa, rainha do lar, rainhas das abelhas. Nela, apresenta-se um feminino apropriado, enquadrado no modelo da mulher- abelha. Na abordagem política de Xenofonte, portanto, a alteridade do feminino se oculta, e, com ela, esconde-se a própria possibilidade de cidadania feminina. Na trajetória que leva de Hesíodo a Xenofonte, o feminino perde-se da sua potência de presentificar o Outro dentro da própria cultura? Ou se- ria mais correto afirmar que é apanágio do teatro construir o feminino em sua alteridade, para melhor lançar a cidade e a cidadania como problemas ? O teatro ressalta, de fato, o Outro no feminino, enquanto ao discurso político interessa reforçar sua submissão, sua adequação ao projeto de vida do homem, do bom cidadão. O confronto de um e outro, para além do questionamento sobre a possibilidade do debate entre ambos, ajudou a comprovar as hipóteses de pesquisa. Primeiro, que na dissolução da cidadania instaura-se um debate, ao qual pertencem as obras de Eurípides, Aristófanes, e ainda Xenofonte. Este debate incide sobre a vivência da unidade, da percepção da pólis como efetivamente o conjunto anônimo de seus cidadãos, como cole- tividade, portanto. Segundo, que em cada um desses testemunhos, o papel da mulher é crucial para a construção de um “ideal” em relação à pólis. Enfim, que a cidadania feminina como possibilidade, e positivi- dade se compreende no reconhecimento da alteridade do feminino. Esse reconhecimento faz da figuração da mulher uma via de acesso para a pluralidade dos estatutos sociais, para além da condição de cidadão , que a pólis envolve. Se a alteridade feminina se perde, em Xenofonte, trata-se 16 — Introdução — ainda de utilizar a figuração do feminino para criar uma perspectiva de ação com relação a cidadania. Em todos os momentos, ressalta-se, portanto, a positividade e a cumplicidade da relação das “femininas mulheres” com a pólis. Seria ainda possível, então, insistir na interpretação da cidade democráticaateniense como um “clube de Homens”? A vantagem do estudo do imaginário do feminino situa-se neste ponto: ele desvenda o papel da mulher como muito mais amplo, muito mais abrangente, do que a mais comum afirmação de seu enquadramento social. Que as mulheres não tivessem direito à voz própria em Atenas, mais ainda no Vº século a.C., não se discute no âmbito deste estudo. Discute-se, por outro lado, que o estudo do feminino estabeleça para si mesmo este fato social como limite real do feminino. Para desenvolver a discussão das questões que o estudo suscita, foi estabelecida a divisão em partes. No capítulo 1, enfoca-se de forma mais abrangente o próprio fazer-se da pesquisa: a abordagem do teatro em sua relação com o imaginário, a noção de Imaginário, a questão da cidadania e do feminino na Atenas clássica. Para além do capítulo 1, o estudo foi dividido em duas partes, correspondendo às ambiguidades que envolvem o imaginário do feminino. A primeira parte apresenta e discute a alteridade do feminino, as formas de sua emergência, suas implicações. Inicia-se com a definição dos tópicos da relação da mulher com o Outro na cultura grega, através do mito de Prometeu e Pandora narrado na teogonia e nos trabalhos e os dias (capítulo 2). Como complementação a essa definição da alteridade do feminino, analisa-se os jambos do poeta Semônides de Amorgos, em que se escarnece da “tribo das mulheres” No capítulo seguinte, demonstra-se como Eurípides se apropria desses tópicos para construir a relação das figuras femininas com o estranhamento, e a ameaça que representa, entre os homens, a “raça das mulheres”. Na segunda parte, enfatiza-se a abordagem do teatro de Eurípides — A “Cidade das Mulheres” — 17 sobre a presença da mulher no universo da cidade (capítulo 4). Não ap- enas através do discurso que pronunciam contra as guerras entre póleis, mas também pela inserção do feminino em espaços que, na cidade, lhe são vedados: discussão política, areté do cidadão-soldado. No espaço aberto entre os dois pólos da abordagem de Eurípides inscreve-se o teatro de Aristófanes, que demonstra com clareza as vias de possibilidade da relação própria entre feminino e cidade (capítulo 5). A abordagem do tratado econômico, de Xenofonte, finaliza o estudo (capítulo 6) para mostrar que, na perda do Outro, o feminino torna-se mais “adequado”, mais integrado. Integração que só pode ser feita à custa da relação ativa entre o feminino e a pólis. A conclusão deste estudo aponta para a possibilidade da cidadania feminina na pólis ateniense. Isto significa que, apesar da exclusão do feminino em relação ao poder político, a mulher mantém uma relação ativa com a pólis ateniense, sem intermediários. Esta relação, que torna latente e legítima a “ginecocracia”, baseia-se na construção da alteridade do feminino. E evidencia, por isso, que a alteridade é constituinte da compreensão da pólis como universo de convívio humano. O estudo sugere, portanto, que a experiência política da democracia ateniense é inseparável, ao menos no final do Vº século a.C., da vivência do artifício e da alteridade intrínsecas a essa experiência. E que justamente porque a pólis supõe esse “fundo” onde o outro se introduz e habita, é que ela pode ser, com propriedade, a pólis das mulheres. CAPÍtulo 1 umA PrátiCA do imAGinário: o teAtro e A fABriCAção dA CidAdAniA “Os textos, sem dúvida, mas todos os textos […] documentos para nós, testemunhos de uma história viva e humana, satu- rados de pensamento e de ação em potência …” (FEBVRE, 1985,p.24). Certamente, a epígrafe retirada da obra de Lucien Febvre foi escrita em um outro contexto, no qual se defendia a inclusão dos textos — literários, teatrais, etc — no conjunto das fontes históricas possíveis. Não se discute mais com a mesma insistência que a história possa ser feita a partir de documentos “extra-oficiais”. Aquilo que nos concerne nessa afirmação é, sem dúvida, seu final: o texto, transformado em fonte pela escolha própria do historiador, testemunha. É testemunho de uma história viva e humana que, desde sua realidade, se desdobra em pensamento e ação “em potência”. É neste sentido que a abordagem do texto teatral deve privilegiar seu aspecto de produção cultural, ou antes, de prática. Para levar à discussão as questões importantes para a compreensão do percurso deste estudo, foram escolhidos três fios condutores. O primeiro diz respeito ao modo como o teatro grego se desdobra em sua produção, destinação, enfim, em seu alcance como obra, a partir da fabricação do imaginário. O segundo abre a discussão sobre o imaginário, ou sobre a tarefa de pesquisar a historicidade do “pensamento e ação em potência” de que nos fala Febvre. O terceiro procura introduzir o problema da cidadania feminina, em conexão com o paradigma da cidadania democrática ateniense. No final, apresentamos os textos pesquisados e a forma de abordagem do conjunto desses textos, que são nossas fontes: poemas de Hesíodo, fragmentos da elegia sobre as mulheres, de Semônides de Amorgos, tragédias de Eurípides, comédias de Aristófanes, diálogo do econômico, de Xenofonte. — A “Cidade das Mulheres” — 19 1.1- o teAtro e A PÓLIS: O teatro trágico e cômico do gregos é um fenômeno que, na pólis dos atenienses, se confunde com a história da democracia. Ele se estabelece como instituição cívica no mesmo processo que leva à consolidação das instituições democráticas, a partir do final do século VI a.C. Ele se transforma — perdendo a característica de profundo questionamento da ação humana nos quadros da pólis — quando a cidade passa pela crise e dissolução de seus fundamentos políticos: a autonomia, a isonomia, e a publicidade da vida. Mais do que ligado à história política da democracia em Atenas, o teatro como produção cultural e como espaço, não pode ser concebido como um simples “gênero” de entretenimento. Tratava-se de um evento religioso, mais precisamente de um concurso, parte principal das festividades urbanas (e rurais) em honra ao deus Dioniso. A ocasião das Grandes Dionísias concernia à coletividade dos atenienses, e, para além da cidade, atraía a Atenas uma grande quantidade de estrangeiros. As peças mais famosas ganhavam repercussão, sendo reapresentadas em teatros de outras cidades gregas, assim como em outros teatros na própria pólis ateniense. Do cortejo do ritual religioso à exposição do tesouro da Liga de Delos diante do público das Grande Dionísias, tratava-se da exaltação da grandeza da pólis, da proeminência da cidade como coletividade sobre os cidadãos, da fixação da hegemonia de Atenas frente aos aliados e a outras póleis gregas. Embora não fosse a única oportunidade para as apresentações teatrais em Atenas1, a festa das Grandes Dionísias era ocasião de primeira apresentação da maioria das peças da Tragédia grega que hoje 1-O tempo e espaço do teatro não se restringiam ao teatro de Dioniso, nas Grandes Dionísias, embora ganhassem, nela, sua repercussão. Havia ainda, em Atenas, as Lenéias, Dionísias rurais, e os concursos trágicos nos dêmoi. A existência dessas festividades de porte menor, no interior dos dêmoi, leva-nos a crer que inúmeros outros teatros existiam em Atenas no século V. Ao menos 20 — Capítulo 1: Uma Prática do Imaginário — são conhecidas. Este fato deve ser considerado: um teatro lotado para a representação das peças de um concurso, constitui um circuito cultural de proporções inigualáveis no mundo grego da época. Esta “popu-laridade” do teatro, trágico ou cômico, é um fator constituinte de sua destinação pública. Mas em que consiste a publicidade na Atenas clássica, senão na escrita, no debate das leis, no agôn entre oradores, na deliberação?Os temas propostos pelos poetas são ainda temas depostos para um debate, no mesmo sentido em que as leis são escritas, depostas nos templos, expostas ao olhar público, nos primórdios da civilização das póleis. No espaço do teatro, questões são levadas ao público, e, desta forma, à discussão. Nele, práticas sociais inscrevem-se em cena, formando, para os espectadores, uma imagem que lhes é de todo familiar, na comédia e na tragédia, posto que é imitação: imagem teatralizada da vida cotidiana, naquilo que dela se produz como comum ao conjunto dos atenienses. Por isso, entre o teatro e a prática do imaginário, como veremos, a relação é íntima, profunda. A imagem que o teatro oferece aos espectadores é uma interpretação da vida cotidiana, das práticas sociais que produzem o cotidiano. É neste sentido que se pode afirmar que o teatro fornece uma imitação da pólis: nele a cidade se faz teatro; e nele, a cidade é espectadora de sua própria imagem. Alguns dos principais instrumentos do teatro grego, trágico e cômico, nessa interpretação da vivência cotidiana por meio da imitação, eram a construção de exemplos, a inversão (caricatura, hipérbole, exacerbação de caracteres) e a contradição. A inversão, assim como a caricatura, é a obra da comédia. Mais próxima da linguagem corrente, forçando a interação do público com as peças, através das parabases (onde se inscrevem, muitas vezes, no teatro um desses teatros tinha uma importância comparável, pelo seu porte e pela assistência que recebia, formada por um grande número de estrangeiros, a do Teatro de Dioniso: o teatro do Pireu. Algumas peças foram representadas nele pela primeira vez. — A “Cidade das Mulheres” — 21 de Aristófanes, discussões políticas de acontecimentos contemporâneos), do improviso cômico dos atores, e mesmo da constituição do público, em determinados momentos, como personagem da cena, a comédia do século V a.C. diverte-se a inverter os valores da pólis. Neste sentido, formulou-se uma comparação da Comédia grega com um espelho; um “espelho invertido” da pólis. “”Representar o presente sobre o presente[…],tal é a tarefa de um Aristófanes. Tarefa propriamente cívica, se esta irrealidade, invertendo o real, o coloca no lugar […].” (LORAUX, 1990, p.1940). Fazendo a cidade rir de si mesma, a destinação da comédia é, segundo N. Loraux, preservar a ordem e a unidade da cidade “real”. Neste sentido, o teatro de Aristófanes andaria a passos de caranguejo: atirando ao escárnio, apresentando o ridículo, para melhor defender a pólis em seus valores fundamentais. Que o diga o agôn entre a Razão Justa e a Razão Injusta, em As nuvens, ou mesmo a disputa entre Ésquilo e Eurípides, em As rãs, onde o que entra em cena são a velha e a nova “ordens”: a velha paidéia dos ginásios e das palestras, formadora do caráter do cidadão hoplita, contra a nova educação particular, sofística, onde homens aprendem, ao abrigo da luz solar, como rebater um forte argumento através de argumentos fracos: “[Esq] Por que se faz necessário admirar um poeta? [Eur] Por sua inteligência, suas admoestações, e porque nós tornamos melhores os homens nas cidades” [RÃS, vv. 1000-1011] Na disputa entre Eurípides e Ésquilo, a comédia aristofânica deixa transparecer uma concepção da relação entre a Tragédia e a cidadania. A tragédia cumpre seu papel, apresentando aos homens exemplos de ação. Entretanto, tornar os homens melhores em uma cidade não tem um só sentido. A noção de educação2 do cidadão ateniense implica certamente 2- A paidéia grega tem um sentido profundamente relacionado ao sentido político da ação humana. Se a educação é a forma de tornar melhores os ho- mens, de exercitar-se para a areté, ela implica também a forma de ação política, ou seja, o debate e a deliberação. Por isso, aquilo que é constituinte do debate, 22 — Capítulo 1: Uma Prática do Imaginário — o orgulho, a honra do guerreiro, do mais forte. Em termos éticos, tornar melhores os homens é torná-los soldados, senhores da cidadania e dos destinos de sua cidade. Para o Eurípides de Aristófanes, a função do poeta é ainda a de tornar os homens melhores; função educativa, portanto. No entanto, ele introduz um novo argumento, que é bem peculiar do final do século V a.C.: permitir aos espectadores o raciocínio, o exame das questões propostas. Ainda é isto a poesia? No teatro de Aristófanes, a verdadeira arte trágica é reconhecida em Ésquilo. Em sua obra, na maneira com que ela apresenta ao público exemplos de ação e vida, encontra-se a identificação do cidadão com sua pólis. O cidadão identifica-se com a cidade: o cidadão é, efetivamente a cidade como um todo. Os atenienses serão atenienses, na medida em que o forem como soldados, como magistrados, como homens votados à publicidade exigida pelo modelo político e cívico de Atenas. Se os exemplos oferecidos pelas tragédias de Eurípides já não operam na proximidade entre o cidadão e a própria cidade, é, em princípio, porque eles incidem menos sobre aquilo que apaga, em cada cidadão, os laços com a vida privada; porque a ética que move o hoplita, plasmada na estrutura do modelo da pólis — isonomia, permutabilidade — não é a mesma que move o sofista. Este cresce com suas lições pagas, com a frequentação dos banquetes, a manutenção de lições particulares, as caminhadas pela ágora. É ainda com a sofística que a existência da vida privada como possibilidade da liberdade emerge à cena política (CASSIN, 1990, pp.130-145). Porém, não é ainda a desintegração da pólis como referencial de vida aquilo que Eurípides demonstra. São, ao contrário, indícios de que naquele momento do teatro e da cidade, a ou seja, o conflito, o agón é também o fundamento da paidéia. Não se trata de apresentar exemplos, mas de colocá-los na encruzilhada de um agón, forçando o desenlace, a decisão. Cf.. JAEGGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins fontes, 1983, pp 3-16; VERNANT, Jean Pierre & VIDAL-NAQUET, Pierre.Mito e Tragédia na Grécia Antiga. São Paulo: Bra- siliense, 1982, pp.13-19. — A “Cidade das Mulheres” — 23 identidade da cidadania abre-se ao questionamento. Isto equivale a dizer que a pólis como organização humana se dispõe como questão. Esse questionamento da cidadania não é um debate consciente e explícito. Ele se delineia, subrepticiamente, a partir do caráter ambíguo do teatro trágico. Em outras palavras, as tensões, as ambiguidades, presentes nas peças como na estrutura poética da tragédia grega, favorecem que a contradição atinja a própria a vivência da pólis: frente a frente com seu próprio “artifício” (isto é, eu caráter de nómos, grosso modo “convenção”). No teatro de Eurípides, por exemplo, esse movimento de se defrontar com o artifício da cidade produz-se na exploração do feminino como alteridade, e, por isso mesmo, dentro da contradição entre o si-mesmo da pólis e a alteridade, o estranhamento, o diferente. Dir-se-á isso inúmeras vezes: a mulher representa o Outro dentro da própria cultura. O que se ressalta na vivência da pólis, com a alteridade do feminino, é a possibilidade da diferença, ou, de forma restrita, as fronteiras da cidadania. O teatro é politikós, concerne ao “político”, por sua capacidade de colocar em questão, de discutir, e, por isso mesmo, tornar público, explicitando o conflito, em uma imitação da pólis. A comédia, pela caricatura que inverte os parâmetros do dia a dia, para melhor defendê-los, fundamentalmente. A Tragédia, oferecendo à cidade também um espelho, que toma de empréstimo suas imagens à mitologia e à epopéia helênica por excelência — ilíada, odisséia. Um espelho que purifica, modela, através da apresentação aos olhos públicos de seus heróis encarnados. Um espelho que se auto-destrói, pelas ferramentasdo acaso (tyché), e da necessidade (ananké). A modelagem, a purificação, se fazem no encontro da ação política com o destino. O herói da epopéia é um exemplo de honra, orgulho, e glória. Na Tragédia, entretanto, o herói, sem ser despojado de seu caráter exemplar, é focalizado no momento em que decide, partindo desse momento a ação que desencadeia o trágico, ao perder sua ligação necessária ao agente e inserir-se no acaso. A ação exemplar do herói, na Tragédia, 24 — Capítulo 1: Uma Prática do Imaginário — constitui-se, pois, como problema. Por apropriar-se da questão: “que fazer?”, a Tragédia se mescla a uma das coisas que a pólis traz de mais fundamental: a preocupação com as implicações humanas do ato de deliberar (VERNANT & VIDAL-NAQUET, 1988, p. 17). As consequências dessas implicações do teatro, para sua inserção na sociedade do período clássico, já se fazem notar. Descarta-se sua redução à continuidade de uma história religiosa; descarta-se, ainda, sua “transcendência”: fenômeno “cultural”, “artístico”, como sinônimos de “espiritual”. Pois enfatizar aqui somente a transcendência dos fenômenos da arte, provocaria uma limitação das perspectivas que esses fenômenos trazem para a abordagem histórica: como se a relação entre teatro e história fosse a tentativa de puxar um fio entre feixes paralelos — fio “econômico”, fio “político”, fio “social”. Com isto, perde-se aquilo que faz a especificidade do teatro como fenômeno social. O teatro é, efetivamente, uma parte da realidade, e não um fantasma que se sobrepõe ao todo social. O teatro, como prática social que é, apropria- se da totalidade da cultura: neste centro de densidade total, os fios se encontram. As fronteiras do reconhecimento que uma sociedade fabrica para si mesma, se cruzam no espaço do teatro. Ali, produzem-se as cenas. E, desta maneira, ao seu modo, como obra, as cenas devolvem à pólis a imagem que foi produzida, tal como o reflexo dos feixes de luz que incidem sobre um espelho. Ao estudar o teatro grego, deve-se estar atento à disposição que os feixes de luz tomam ao incidirem no espelho, aos componentes do espelho, à elaboração do produto final, que é a imagem. O espelho como prática, a prática de admirar a imagem produzida no espelho. Duas coisas que estão longe de ser o mesmo que, olhando para o espelho, querer reconstituir os feixes de luz, como se, na virada dos mundos — entre a luminosidade e a superfície polida — esses feixes permanecessem ilesos, e isolados. O teatro não é um reflexo da realidade social; ele é realidade social na medida em que é a própria realidade social que o fabrica, como um de seus mais atraentes produtos. Na medida em — A “Cidade das Mulheres” — 25 que é sobre as práticas sociais que ele incide, criando-as como imagem, como cena, como identidade ou alteridade. No debate que se instaura no espaço do teatro, a pólis se coloca em questão. Como na Tragédia, em que o homem se vê diante do destino que não pode controlar; como na Comédia, em que a inversão da cidade fornece a matéria do riso, mas também do confronto entre o que é a vida cotidiana da pólis, e o universo político da cidade. Das duas maneiras, o teatro devolve à cidade uma imagem, em que ela se vê. A imagem do teatro produz a identidade, mas ao mesmo tempo gera a alteridade. A produção do Mesmo só é possível na compreensão do Outro. 1.2 — A PrátiCA do imAGinário: Foi dito, de passagem, algumas linhas atrás, que a relação entre teatro e imaginário é profunda. Isto porque o teatro, como produção cultural, atualiza em uma perspectiva o conjunto das representações coletivas, como imagem e cena. Nesta realização das representações, produz-se imaginário . A assimilação da cena teatral aos reflexos da luz sobre a superfície do espelho traduz a perspectiva do teatro, na produção do imaginário. Mas o que significa propriamente “imaginário”? Em sua obra As Três Ordens, ou o Imaginário do Feudalismo, Georges Duby (1982) utiliza distintamente os conceitos de estruturas mentais, imaginário, e ideologia. Todos, entretanto, se aplicam à trifuncionalidade social. Como estrutura mental, a trifuncionalidade permanece como esquema de organização da sociedade de origem indo-européia, sobrevivente ainda em meio ao Antigo Regime francês do século XVIII. Como ideologia, intervém na formação dos discursos e das práticas políticas da Igreja, em sua pretensão de hierarquizar a sociedade medieval sob sua hegemonia. Como imaginário do feudalismo, a trifuncionalidade, não se busca apenas nos discursos oficiais, mas nas malhas da formação dos discursos, dos príncipes, dos padres, na literatura e na arte. 26 — Capítulo 1: Uma Prática do Imaginário — Neste sentido, as mentalidades não são a mesma coisa que o imaginário. As estruturas mentais são temas cuja duração pode ser longuíssima (e daí o uso do termo estrutura — visão de mundo persistente, inscrita na longa duração), que se impõem às práticas sociais como seus limites compreensivos (ARIÈS, 1990, p. 175). O imaginário deve algo ao conceito de estrutura, na medida em que instrumentaliza a formação dos discursos. Entretanto, ao contrário das “mentalidades”, ele não se impõe, ele se inscreve nas práticas sociais, em um espaço determinado, e em um momento determinado da vida em uma sociedade. O imaginário é inseparável da perspectiva sob a qual se realiza uma prática social, em sentido geral. A prática não se realiza no nada, por nada, desdobrando-se em um “vazio”. Práticas sociais implicam um lugar, um “quem”, que não é absolutamente o mesmo que um “eu”, e um “sobre o quê”, capazes de amplificação. O estudo de Nicole Loraux sobre a inscrição da autoctonia do cidadão ateniense no espaço da cidade (LORAUX, 1990.) pode ser citado, para demonstrar a ligação do imaginário a uma perspectiva, ou a um “lugar de produção”. Neste estudo, Atenas surge desdobrada em espaços heterogêneos, na maneira como neles se inscreve um tema: a autoctonia do cidadão. Em cada uma dessas regiões, as formas sob as quais a cidadania surge assentada na identificação do cidadãos ao solo da pátria (o operador, neste caso, é o conjunto das narrativas míticas sobre a fundação de Atenas e o nascimento de Erictônio) tomam aspectos diferentes. O imaginário da autoctonia se mostra na multiplicidade das variações sobre um tema, um modelo que informa a relação da pólis com a politeía. Passa como que por uma malha, um filtro, através do qual se formam as imagens e os discursos produzidos em regiões diferentes. Atenas não possui, como um “conjunto de idéias”, um imaginário, mas múltiplos. Pertence, portanto, à essência da noção de imaginário essa multiplicidade de variações, posto que se trata de perspectiva, e não de idéias ou modelos unívocos. O imaginário não tem sentido espiritual, ideal ou transcendente. Ele só existe no encontro entre prática e representação. — A “Cidade das Mulheres” — 27 Entre “pensamento” e “ação em potência”. Daí a expressão: prática do imaginário . Neste estudo, ao se fazer referência ao imaginário da cidadania, da alteridade, do feminino, a noção de topoi (Cf. LORAUX, op. cit, e ibid., 1981) surge muitas vezes como sinônimo de tema ou imagem. A noção é topográfica, e pressupõe a existência de pontos localizáveis em um espaço. Os topoi do imaginário são essas regiões localizáveis, esses “acidentes geográficos”, ou regiões de discursividade 3. Os tópicos do imaginário não se configuram como idéias expressas, nem como modelos através dos quais se representam a sociedade e suas instituições. O imaginário do feminino é formado por diversos topoi, que se manifestam como discursos, idéias, modelos na medida de sua apropriação cultural. Uma narrativamítica pode evidenciar topoi, presentes também em um discurso político, ou numa peça de Comédia, ou numa série de representações iconográficas. Mas é a prática do imaginário que confere o sentido de um topos, na perspectiva própria ao campo de uma obra, ou produção cultural. Portanto, o imaginário remete para a região em que se produz o discurso. O imaginário da cidadania constrói a peça de teatro, a figuração de um mito em uma ânfora, o discurso político de um orador ateniense. Mas só se apresenta nas características daquele âmbito da vida, da produção cultural como aquilo que uma sociedade, produzindo, diz de si mesma. Por isso, pode inverter-se a relação de derivação: a peça, a ânfora, o discurso, constróem o imaginário da cidadania. No teatro de Eurípides, o imaginário do feminino evidencia a relação do feminino com a representação da diferença e do Outro, na cultura grega. Mas, para além desta relação entre feminino e alteridade, que 3- “[…] a natureza dos topoi é sem dúvida a de desorganizar toda definição. Pois se eles são regra, eles são também para o discurso uma matéria, meio pensamento, meio forma. Repertório de palavras, de fórmulas e idéias, eles preexistem a todo discurso como um rascunho, ou mais exatamente, como um tipo de grau zero […], e sua existência testemunha a possibilidade de tomar ainda a palavra para se dizer a mesma coisa […]”. LORAUX, Nicole. L’Invention d’Athènes: histoire de l’oraison funèbre dans la la cité classique. Paris: Mouton, 1981, p. 246. 28 — Capítulo 1: Uma Prática do Imaginário — se repete em diversas ocasiões fora de suas obras, aquilo que confere a Eurípides sua singularidade é a configuração que os topoi de definição do feminino assumem em suas peças. Junto à construção da alteridade do feminino, emerge o problema da cidadania ateniense: há uma relação fundamental entre a mulher e a cidade, nas tragédias de Eurípides como nas comédias de Aristófanes. Se a mulher, malgrado a submissão de fato em que se encontra, com sua existência oficial relegada ao espaço doméstico, surge ligada à cidade, duas questões se colocam: primeiro, que relação é esta que ela mantém com a pólis? Trata-se de cidadania, tal como se define pela democracia? Segundo, se o imaginário do feminino pode admitir a cidadania da mulher, que consequências este fato traz para a própria configuração da cidadania, e da cidade, no imaginário político ateniense? Imaginário do feminino? Sim, mas no encontro entre os lugares de discurso que constróem o feminino, quer em sua alteridade, quer em sua integração pela via do espaço doméstico, e a construção da identidade da pólis, através dos topoi da cidadania ateniense. Este encontro faz a singularidade do teatro, de Eurípides e Aristófanes. 1.3 — CidAdAniA e feminino nA PÓLIS: 1.3.1- o feminino na Pólis: Algumas Abordagens: Uma afirmação muito comum sobre a presença da mulher na cidade grega consiste em dizer que a mulher é, na Atenas clássica, uma eterna menor; a própria Atenas seria um “clube de homens”. Encontra-se esta afirmação como opinião formada tanto em estudos clássicos sobre a cidade e a cidadania (VATIN, 1984, MOSSÉ, 1989), quanto em estudos que abordam a presença da mulher na cidade, em sua relação com a própria cidade (LORAUX, 1990, passim). A cidadania ateniense do século V a.C. exclui a mulher. Em atos jurídicos, por exemplo, a mulher deve ser representada por seu kyrios, responsável ou mais precisamente “senhor”, assim como metecos e — A “Cidade das Mulheres” — 29 escravos necessitam de um intermediário cidadão para interpelar a cidade. Pelo discurso político corrente, o feminino tem seu espaço de direito no universo doméstico, onde deve permanecer em silêncio, evitando apresentar-se, perguntar, escutar conversas. Esta construção política do feminino confere às mulheres uma atitude conveniente a seguir. Os estudos que reproduzem esta imagem do feminino acabam por recair na afirmação da eterna menoridade da mulher na sociedade grega. Esta imagem não esgota, de modo algum, nem a relação entre feminino e pólis, nem a presença da mulher na cidade. Para além das eupátridas, a quem o modelo mais facilmente se dirige, misturam-se à multidão da ágora, do teatro, do porto, centenas de mulheres do povo, e mesmo as próprias — e sempre “sábias” — hetairai. No que se refere a estas mulheres, o modelo politicamente correto do feminino dificilmente se encaixa. Supondo, entretanto, que se admita a imagem política do feminino apenas em seu caráter de “ideal” — paradigma do feminino — cria- se o paradoxo: a cidadania democrática, que informa a relação dos cidadãos com a pólis, exclui estrangeiros domiciliados — os metecos — e escravos. O cidadão, nascido de pai e mãe atenienses, é um homem e não uma mulher. A exclusão, intrínseca à compreensão da cidadania ateniense, deveria negar ao feminino não só a cidadania, mas ainda a relação mais íntima, sem mediação do sexo masculino, com a pólis. Em outras palavras, cidade e feminino seriam, por definição, figuras incompatíveis. Apesar disso, feminino e pólis, encontram-se interligados em diversos momentos da vida da cidade. Nas festas religiosas, por exemplo, a mulher atua de forma decisiva para garantir a permanência da cidade, sua hegemonia, seus cidadãos. Na compreensão mítica que Atenas elabora sobre suas origens, o voto da mulher garante o nome de Palas 30 — Capítulo 1: Uma Prática do Imaginário — Atena à cidade (Varrão, apud. AUSTIN & VIDAL-NAQUET, 1986.)4. No espaço do teatro, a comédia confere às mulheres sua utopia: o governo da cidade. Nessas, e em outras ocasiões, a exclusão de fato abre passagem para a “cumplicidade”. Além disso, se a mulher nascida em Atenas, de uma casa ateniense, não pode votar, nem sequer entrar no recinto da Assembléia, ela pode transmitir os direitos à propriedade fundiária, caso do epiclerato5, assim como conferir legitimidade à cidadania masculina (dependente do nascimento de “pai e mãe” atenienses, a partir de 451 a.C.). A cidadania democrática tal qual se define durante o “século de Péricles”, excluíndo do poder político as mulheres da cidade, não esgota, portanto, as possibilidades de relação íntima com a pólis, fora dos quadros do exercício das magistraturas, da deliberação, e da guerra. Seria essa relação uma forma de cidadania? Para responder a esta questão, C. Vatin (op. cit., pp. 117-142) sustenta uma diferenciação entre cidadania política, e uma cidadania civil. A cidadania política compreenderia o exercício das magistraturas, a armação como hoplita, a votação nas assembléias. Nela, estariam classificados os homens nascidos de pai e mãe atenienses, entre dezoito e sessenta anos. A cidadania civil abarcaria o conjunto da comunidade ateniense: os excluídos do poder político, cuja relação com a cidade seria, entretanto, demasiado estreita para que se lhes recusasse o título de cidadãos: os jovens, rapazes ou moças antes da efebia ou do casamento; e sem dúvida alguma as mulheres casadas, esposas de cidadãos, cujo papel em festas cívicas como as Tesmofórias era o da garantia da própria continuidade da cidade. Esta subdivisão da cidadania em política e civil pode ser admitida, 4- VARRÃO IN Santo Agostinho. A Cidade de deus, 18, 9. 5- A moça epíclera é aquela que, única herdeira, encontra-se literalmente instalada “sobre o cléros” paterno. Ela deve casar-se, preferencialmente, com o parente mais próximo em linhagem paterna, no caso, o irmão do pai. — A “Cidade das Mulheres” — 31 para representar a cidadania feminina como possível e diferente da cidadania masculina. Entretanto, há algumas considerações a serem feitas. Em primeiro lugar, a divisão — político/civil — pode significar uma projeção na cidade grega,de uma oposição que lhe é de todo anacrônica. Mesmo as ações que fazem do feminino uma instância crucial para a reprodução da sociedade não estão fora do político, se entendermos por esta palavra “aquilo que pertence à pólis, que lhe diz respeito”. Conferir ao feminino uma cidadania civil significa, então, reatualizar a afirmação de que “a cidade é um clube de homens”. Significa, por isso, resolver a questão da participação da mulher nos destinos da cidade fora da relação própria entre feminino e político. Incidindo justamente sobre a questão da relação entre feminino e pólis, Nicole Loraux baseia-se na análise da figura mítica da raça das mulheres (génos gynaikôn), para afirmar, com maior veemência, a exclusão da mulher. A cidade compreende-se na divisão entre os sexos. Não há palavra para designar a cidadania feminina (“a ateniense”), como existe “o ateniense”. A mulher não tem cidadania, da mesma forma que não é autóctone (op. cit., passim )6. Esta perspectiva, embora se afirme ainda na confirmação de que a cidade é um “clube de homens”, tem a vantagem de perceber o feminino como princípio de diferença. Em sua exclusão, as mulheres agrupam-se em um génos irredutível ao gênero humano, à sociedade dos homens. A mulher, sob essa perspectiva aparece em sua alteridade. Nicole Loraux ressalta o conflito, entre a presença da mulher na cidade e a sociedade dos homens. Mas não chega a formular, como questão, que na exclusão da mulher, a cidadania feminina seja ainda possível. Da interlocução entre C. Vatin e Nicole Loraux, pode-se colocar uma questão sobre a 6- Marcel Detienne e Giulia Sissa rebatem esta interpretação de Nicole Lo- raux, a partir de seu fundamento, ou seja, da autoctonia do feminino. Para isso, usam fragmentos de uma peça de Eurípides, erecteu, onde surge como heroína a figura de uma ateniense autóctone: Praxitéia. (Cf.. DETIENNE, Marcel. “A Força das Mulheres; Hera, Atena e Congêneres”. IN: DETIENNE, Marcel & SISSA, Giulia. Os Deuses Gregos. São Paulo: Cia das Letras, 1990, pp. 245-267.). 32 — Capítulo 1: Uma Prática do Imaginário — cidadania feminina: para compreendê-la não seria preciso restituir sua diferença, sua irredutibilidade à cidadania masculina? Uma cidadania fundada na própria oposição entre os sexos, e na alteridade do feminino. Uma cidadania do Outro, na medida que relaciona profundamente a alteridade do feminino com a própria pólis dos atenienses. O esforço que se empreende ao colocar-se a questão da cidadania feminina, realiza-se no sentido da compreensão desta cidadania em sua positividade. Não se descarta o fato de que a cumplicidade do feminino com relação a pólis é muitas vezes passiva: a mulher reproduz homens iguais a seus pais; realiza rituais religiosos para a manutenção do status quo, ou seja, do domínio masculino da cidade. Mas se afirma que esta passividade não esgota a cumplicidade entre o feminino e a cidade. Não é por acaso que os atenienses representaram, lado a lado na Acrópole, o primeiro ateniense autóctone — Erictônio — e a primeira mulher — Pandora — este imbatível ardil dos deuses. Da mesma forma como conferiu um habitat à alteridade do feminino, a cidade não teria, com isso, reconhecido no feminino a possibilidade da cidadania? 1.3.2 — A Vivência da Cidadania democrática: Para nossos propósitos no presente estudo, podemos mencionar os três fatores básicos que caracterizam a democracia em Atenas, de acordo com J-P. Vernant (1984). Em primeiro lugar, uma “extraordinária preeminência da palavra [grifo nosso] sobre todos os outros instrumentos de poder” (id., p. 34). Em segundo lugar, a publicidade da vida: acesso público às leis que regem a cidade, debate público das decisões, das idéias, da religião. Concebendo a centralização do poder de forma literal, ou seja, a arché encontra-se no meio a igual distancia de todos os cidadãos, estabelece-se, enfim, uma das mais importantes características do modelo político ateniense (aquela que define a democracia como poder do dêmos): a isonomia. Pelo princípio da isonomia, todos os cidadãos se concebem como semelhantes. — A “Cidade das Mulheres” — 33 A cidadania democrática assim construída caracterizou a relação entre a pólis e seus cidadãos no século V a.C.. Constituiu, deste modo, a forma ideal da cidadania ateniense do período clássico. Sua maior garantia foi a manutenção da hegemonia da cidade por meio dos tributos aliados da Liga de Delos. Graças a ele, um certo equilíbrio entre a dinâmica da cidadania e as forças sociais foi mantido: garantiu-se o acesso dos cidadãos à terra, de forma a estabelecer o equilíbrio entre a grande propriedade e a massa de pequenos proprietários, cidadãos ideais; garantiu-se, ainda, o acesso das classes censitárias às magistraturas, através de sua remuneração. Garantiu-se o enquadramento dos tetas através da remuneração das magistraturas e outras subvenções, e principalmente através de seu serviço na marinha. Com a derrota ateniense na Guerra do Peloponeso e a perda da hegemonia sobre a Liga de Delos, a cidadania democrática ateniense entra em confronto com as práticas sociais que tecem a trama de sua dissolução. A presença maciça dos cidadãos mais pobres na cidade aponta para a concentração da terra, no campo. As fileiras da marinha absorvem cidadãos, antigos pequenos proprietários e tetas. Se a política e a guerra se separam, como indica o afastamento do estratego com relação a liderança política, a ligação entre a infantaria hoplítica e a cidadania torna-se também cada vez mais tênue. As cidades encontram-se mais e mais em vias de sustentar exércitos de mercenários. Terra cívica, cidadania, guerra. Um quadro que delineia, para si mesma, a própria pólis, na medida em que ela é livre, autônoma. Se o que está em jogo é a cidadania, e se a identidade da pólis é dada pela mais profunda relação entre o cidadão — pequeno proprietário, soldado — e sua comunidade isonômica, se, enfim, não se diz Atenas, mas “os atenienses”, aquilo que se esvai com a experiência da cidadania democrática é a pólis mesma. A pólis como estrutura de organização social. Um dos sintomas de que a crise final do Vº século a.C. atua sobre a compreensão da cidadania ateniense, apresenta-se com relação a 34 — Capítulo 1: Uma Prática do Imaginário — publicidade. Durante todo o século V a.C., a força da ideologia da comunidade, da isonomia, do apagamento da família em nome da identificação do cidadão à pólis, foi capaz de silenciar (ou ao menos mascarar) possíveis manifestações de interesses individuais ou privados. O cidadão perdeu o nome de família, para ganhar o nome do dêmos ao qual pertencia. As leis contra a ostentação privada eram duras em seus princípios, embora se possa colocar em questão sua aplicação de fato. A suprema honra do cidadão, sua virtude, era reiterada nos funerais públicos, no elogio da “bela-morte” sem nome, da grandeza da cidade. Quando se inicia o século IV a.C., são também os avatares da publicidade que se encontram modificados. Ao diagnosticar os sintomas da crise da pólis durante o IV século a.C., Pierre Vidal-Naquet afirma: “ A elite social já não corresponde exatamente à elite política, ao contrário do século V. A política e as questões de Estado vão dando lugar pouco a pouco às questões privadas. A mudança de tom é manifesta na Comédia; a política acabará por ser totalmente excluída dela”(AUSTIN & VIDAL- NAQUET, op. cit., p 144). Não apenas a Comédia Nova, mas também a cultura material e a iconografia, sugerem que a demissão política do dêmos ateniense é acompanhada de uma importância maior conferida à vida privada: ao espaço interior da casa e as relações entre “amigos”, mais do que entre concidadãos. A importância da percepçãoda sensibilidade à vida privada supera a simples questão do “abandono” do interesse político, ao cuidado dos interiores, dos indivíduos, das casas particulares. A oposição entre a publicidade da vida na pólis, e a vida privada é da ordem dos fundamentos da própria cidade democrática. A cidade se forma, com efeito, a partir dos parâmetros do universo das famílias aristocráticas da sociedade arcaica, em que o círculo de pertença social gira e se fecha em torno do oîkos. Não é, portanto, como em nossa cultura, formada em longo processo que podemos remontar aos séculos XVI e XVII de nossa era, em que o “público” é da ordem do Estado, da política, da cidadania, — A “Cidade das Mulheres” — 35 e o “privado” é da ordem do íntimo, do verdadeiro, da pessoa em seu diálogo consigo mesma. Pólis e Oîkos opõem-se como duas formas antagônicas de agrupamento. Na gradativa dissolução da cidadania democrática, a cidade apresenta-se como questão. A obra de Eurípides e Aristófanes incide sobre esta questão fazendo emergir os elos que ligam o feminino à cidade. Xenofonte, seguindo os passos da filosofia socrática, constrói seu modelo de formação do cidadão, fundamentando em seu cidadão ideal a legitimidade do poder político (oligárquico?) sobre a cidade. A visibilidade da cidadania feminina inscreve-se, pois, na problemática do acesso ao poder político. Isto pode significar que o grupo dos isói se transforma. Que a unidade inicial da cidadania deixa transparecer por suas frestas uma pluralidade, presente na cidade, mas ausente da pólis ateniense, tal como é vivenciada no século V a.C.. A relação do feminino com a cidade e com o poder político é uma das questões colocadas pelo transparecer da multiplicidade. É talvez a questão mais próxima ainda da dinâmica da cidadania democrática: a cidade exclui do poder a mulher, mas integra o feminino, submetido, pela via do casamento legítimo, e da religião. Para formular a questão de forma radical, ou seja, em termos de cidadania feminina, é preciso ressaltar que a mulher, a esposa que participa das Tesmofórias, por exemplo, tem o caráter irredutível de um ardil dos deuses. Ela descende não da terra sobre a qual a pólis se inscreve, mas de Pandora, feminino universal, raça das mulheres. O teatro, de Eurípides e Aristófanes, formula nesses termos a questão. Xenofonte, no econômico, prefere trazer a natureza feminina para a complementaridade do gênero humano: assimilação das diferenças, para melhor fabricar o anèr kalòs kagathós. PArte i: o imAGinário do feminino e A rePresentAção do OUTRO “O Zeus, porque infligistes aos humanos esta praga frau- dulenta, as mulheres, fazendo-as aparecer à luz do dia? Se vossa intenção era a de propagar a raça mortal, não deveria ser necessário requisitar da mulher o meio” (EURÍPIDES, Hipólito, vv616-620). CAPÍtulo 2 AlteridAde e feminino A palavra alteridade substantiva um pronome demonstrativo. Outro, indicação daquilo que se encontra em descontinuidade com relação ao que somos, torna-se o Outro, condição daquilo que apontamos como diferente. A mesma operação que torna possível conceber o Outro inscreve também os parâmetros da igualdade: reconhecer-se, substantivar-se, definir para si aquilo que lhe é próprio. Não há constituição em separado do Mesmo em identidade, e do Outro em diferença. O estudo dos mecanismos de abordagem da diferença, em uma sociedade, é ainda o estudo das formas de reconhecimento, em que o grupo compreende-se e fabrica-se como unidade. Verso e reverso — identidade (definição dos quadros em que a sociedade cotidianamente se reconhece e se reproduz como grupo) e alteridade — constituem-se intimamente interligados. Ser grego. Ser ateniense. Não ser bárbaro. No período clássico da história dos gregos, uma das formas da invenção contínua de Atenas era precisamente esta: contraposição de gregos a bárbaros, do regime das póleis à realeza persa, da democracia à soberania de um só, da cidadania à submissão. Esta forma de constituição da alteridade é aquela que se reconhece, como diferente, nómoi de outras sociedades (HARTOG, 1991, pp. 224-271). Há, entretanto, uma outra forma de constituição da alteridade, uma outra forma de percepção da diferença na Grécia clássica, que também participa na construção da identidade entre os cidadãos, e a pólis. Trata- se da percepção do outro em relação ao nómos, daquilo que, emergindo no seio da Tradição e dos costumes, provoca uma desorganização, senão uma subversão, desses mesmos costumes. A alteridade do feminino enquadra-se nesta forma da alteridade, da presentificação da diferença. A alteridade que lança a diferença para fora, para as fronteiras do nómos grego, é estudada em sua forma religiosa por Jean Pierre Vernant — A “Cidade das Mulheres” — 39 (VERNANT, 1986). Investigando a relação entre a representação de potências divinas através de máscaras e a experiência do estranhamento, o estudo de Vernant demonstra como o estranhamento é uma forma de irrupção da alteridade absoluta no espaço delimitado pela cultura. Entende-se por alteridade absoluta a percepção daquilo que desafia a ordem normal das coisas, ao tornar evidentes as fronteiras dessa ordem: a natureza selvagem, o delírio, a morte. A cada uma destas representações, associa-se uma divindade “mascarada”: Ártemis, para os limites entre a natureza e o nómos; Gorgô, presentificação da morte; Dioniso, ou as fronteiras entre a razão e o delírio (mania). O feminino constitui-se a partir da alteridade absoluta, opondo uma “raça das mulheres” a uma cultura humana, na qual a mulher é intrusa. A intromissão do gênero feminino é experimentada da mesma forma com que se experimenta o “estranhamento”: irrupção do estranho à. Esta diferença, que o feminino instaura ao apresentar-se, tem origem na própria procedência da raça das mulheres — esta fabricação dos deuses, cujo sentido é enganar, pela aparência sedutora, enlaçar, pela persuasão, e prender os mortais ao pónos do dia a dia, espalhando entre os homens os sofrimentos, as doenças, a imprevidência. Esta representação do feminino como Outro do nómos, encontra- se presente em diversos textos do século V a.C. Está presente, principalmente, no teatro trágico e cômico da pólis dos atenienses. É preciso chamar a atenção para o fato de que o discurso que afirma no feminino um Outro, um ser diferente, nos quadros da cidade, convive com aquele que nega os estatutos intermediários, quando se trata de falar da relação entre os cidadãos e sua pólis. Na completa identificação dos cidadãos à cidade, “Atenas, são os atenienses “. Esta afirmação, bastante corrente nos estudos de história grega, demonstra até que ponto chega a importância do problema do Outro, na Grécia clássica. No limite, a pólis perde sua materialidade — a cidade, suas construções, bairros, sua população enorme de estrangeiros e escravos — transformando-se numa abstração: a pólis está onde estiverem seus cidadãos (MOSSÉ, 1962). 40 — Capítulo 2: Alteridade e Feminino — Para fazer da mulher um ser estranho à cidade e ao nómos, o discurso da época clássica, e mesmo o posterior a ela, reproduz o alarido de uma “estória do começo”: o discurso mitológico da teogonia e dos trabalhos e os dias já lembrava, com efeito, que o feminino nascia do estranho. A mulher tinha em sua origem algo irredutível à ordem humana: a fabricação divina, o imbatível ardil, armadilha de Zeus aos humanos. A fabricação de Pandora, narrada nesses dois poemas de Hesíodo mais de dois séculos antes do auge da civilização das póleis, é o acontecimento mítico que baliza os discursos em que a reprovação ao gênero feminino será a forma “oficial” de se falar da mulher, seja em Atenas, seja na pólis, seja para muito além dos limitesda Antiguidade Grega. Fazer do feminino um ser estranho é uma forma de conceber um espaço onde é possível irromper o outro da cultura, trazendo a diferença para dentro da cidade. Duas questões se impõem: em primeiro lugar, que outro é este em que se reconhece o feminino? Os poemas de Hesíodo e a elegia de Semônides de Amorgos delineiam uma resposta a esta questão. Em segundo lugar, que cidade é esta que, em um certo nível, dá lugar à percepção da diversidade no interior da unidade: “Atenas, são os atenienses”? Trata-se, nesta última questão, de um dos temas cujo debate será proposto na Terceira Parte desse trabalho: O Feminino e o Universo da Pólis. 2.1- PAndorA e A rAçA dAs mulheres: Os poemas de Hesíodo datam pelo menos do século VII a.C., quando o mundo grego ainda não vira o desenvolvimento pleno das póleis. Quando a poesia era ainda marcada pelo seu caráter oral e de Celebração, Hesíodo conta o estabelecimento da condição humana em meio ao surgimento do mundo dominado pelos deuses olímpicos. O tema da fabricação de Pandora, ou da primeira mulher, intervém tanto na teogonia, como em os trabalhos e os dias. As duas narrativas merecem, entretanto, ser abordadas separadamente. — A “Cidade das Mulheres” — 41 2.1.1- teogonia: A teogonia narra a gênese do cosmos, a proveniência dos deuses, e a repartição das tímai (“prerrogativas”) e das moîrai (“domínios”) entre as potências olímpicas. No poema, o mito de Prometeu conta a estória da diferenciação entre deuses e mortais, e da instauração da parte destes últimos: o sacrifício, o cultivo da terra, o casamento1. Este quinhão dos homens mortais se estabelece ao longo de um processo marcado pelo ardil, em que se sucedem ações artificiosas e armadilhas colocando em jogo a métis de Prometeu e de Zeus. Pode-se resumir a sucessão das armadilhas da seguinte forma: 1- Diferenciados homens e deuses no momento da divisão das partes do boi no sacrifício, Prometeu realiza uma dupla ocultação: sob as vísceras do animal ele esconde as carnes, sob a vistosa gordura, esconde os ossos, oferecendo ao Zeus métioeis a escolha. Com a escolha da parte de aparência mais atraente, estabelecem-se as atribuições de mortais e imortais no sacrifício: aos homens, o alimento cozido; aos deuses, a fumaça dos ossos. 2- Como contrapartida do dolo de Prometeu, Zeus esconde o fogo dos mortais, que não mais brotará ininterruptamente dos freixos. Mais uma vez, entretanto, Prometeu o engana, roubando o fogo ocultado em oca férula. 3- Ao ver o brilho do fogo entre os mortais, Zeus enfurecido cria para a “tribo dos homens” (phûl’anthrópon) o incombatível ardil: um mal oculto sob a aparência sedutora de um bem. Moldada da terra e da água por Hefesto, a mulher virgem não recebe nome. 1- Utilizamos aqui as análises do mito de Prometeu e Pandora apresentadas por J.P. Vernant, em “O Mito Prometéico em Hesíodo”, Mito e Sociedade na Grécia Antiga. RJ, José Olímpio, 1992, e Nicole Loraux, em “Sur la Race des Femmes et quelques unes de ses Tribus”, Les Enfants d’Athéna, Paris, La Découverte, 1990. 42 — Capítulo 2: Alteridade e Feminino — É adornada por Atena, como se enfeitam as jovens noivas para o casamento. Terminada a obra, a mulher é apresentada a deuses e mortais reunidos. Homens e deuses são tomados pelo ambíguo sentimento do espanto (thaûma), aplicado ao mesmo tempo para o maravilhoso e para o monstruoso. A bela mulher virgem leva na cabeça uma coroa de ouro, trabalhada por Hefesto, onde reluzem prodigiosamente talhadas as “feras que a terra e o mar nutrem”(v.581). A sedutora virgem fecha o circuito das tramas dolosas, como o último e grande dolo, fixando definitivamente a parte de força e de destino reservada aos homens: condenados a partir de então a casar-se para gerar filhos, os mortais são obrigados a aceitar, dia após dia, o “presente” de Zeus: kalòn kakòn ant’agathoîo (v.585, “...belo mal, reverso de um bem”). De acordo com a interpretação de Jean-Pierre Vernant para o mito, ver-se-á na narrativa hesiódica a ambiguidade do estatuto do homem mortal, “entre animais e deuses”. O sacrifício separa mortais e imortais, o cozimento e a reprodução pelo casamento separam os homens dos animais. Neste processo de separação, as carnes do boi sacrificado, o fogo, e a mulher correspondem-se. A mulher não é a contrapartida do homem. É uma das armadilhas, como o são os ossos do boi por debaixo da gordura branca e reluzente, que atrai os olhares; como o é o “longevisível brilho do fogo”, que Zeus esconde e Prometeu oculta sob a férula. Não se trata de explicar de onde vêm os homens, indistintamente chamados de “homens come-pão”, “homens mortais”, e “grei dos humanos”. A “humanidade de homens” já está lá. Explica-se porque à grei dos humanos é necessário dividir seu lugar e conviver com um ser que lhe é semelhante pela forma, mas que tem do humano e do monstruoso, de cada um uma parte. O espanto é o primeiro atributo, aquele que funda a relação da mulher com os seres que, no mito de Prometeu, definem suas prerrogativas: mortais e imortais. Como armadilha, embuste, thaûma, a mulher surge fora do humano. — A “Cidade das Mulheres” — 43 Ela é justaposta. Um logro aceito imprudentemente pelo reverso de Prometeu, seu irmão Epimeteu, do qual os homens se tornam prisioneiros: quem não traz para junto de si a mulher atinge velhice funesta, sem filhos que o sustentem, e morre vendo seus bens serem divididos por parentes longínquos; quem casa submete-se ao acaso (consequência da dupla derivação da mulher, bem e mal): ou consome-se em trabalho para sustentar o ventre esfomeado da mulher-zangão, ou, com alguma sorte, chega a união com uma boa esposa, garantia de sua descendência. Um mal necessário, jamais a “metade do homem”. A phûl’anthrópon não integrará o sexo feminino. Grei dos humanos afirmará o homem, não a mulher. Tal é o sentido da conclusão de Hesíodo, para a narrativa da fabricação da mulher na teogonia: “Dela descende a geração das femininas mulheres. [Dela é a funesta geração e grei das mulheres ] grande pena que habita entre os homens mortais” 2 Ao grupo dos homens justapõe-se um génos gynaikôn, uma raça das mulheres. O uso de génos e phûla, faz tanto do grupo dos homens mortais quanto do grupo das mulheres blocos separados, definidos ao mesmo tempo por seu fechamento e por sua relação com grupos semelhantes (BENVENISTE, apud. LORAUX, 1990, p. 90)3. O génos kaì; phûla gynaikôn opõe-se e relaciona-se a phûl’anthrópon, em uma convivência penosa, na maioria das vezes, não como dois gêneros de uma mesma espécie, mas como duas espécies que, no limite, não se misturam. Na justaposição dos grupos, a raça das mulheres singulariza-se. A 2-TEOG., vv. 590-592. O tradutor da versão utilizada optou por traduzir génos por “geração”, certamente para escapar da aparente tautologia em que incorre a expressão génos kaì phûla. Nicole Loraux (op. cit., p.77) oferece uma opção para considerar o verso: Dela saiu a raça maldita, as tribos de mulheres, em que “tribos” amplifica o traço funesto da “raça”, multiplicando-a internamente. O uso de phûla consagraria diversidade no interior da unidade. 3- BENVENISTE, Émile. Le Vocabulaire des Instituitions Indo-Européenes. Paris: Minuit, 1969. 2 vols. 44 — Capítulo 2: Alteridade e Feminino — teogonia narra a sucessão dos nascimentos divinos, estabelecendo para os deuses uma genealogia, explicando desta forma a proveniência das potências e do domínio de cada um dos olímpicos. O mito de Prometeu, ao mesmo tempo em que narra o estabelecimento da condição humana, explica o nascimento da mulher, em termos de proveniência e de genealogia. Unifica-se, desta maneira, fora do humano ou do divino,
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