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A Cidade das Mulheres - Marta Mega de Andrade (2001)

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Marta Mega de Andrade
A “CidAde dAs mulheres”
cidadania e alteridade feminina na atenas clássica
Rio de Janeiro
LHIA
2001
Copyright© 2001 Marta Mega de Andrade
Preparação: Marta M. de Andrade
Diagramação: Marta M. de Andrade
Ilustração da capa: Sérgio Barroso
Foto da Capa: Atena (sentada) e jovem mulher. Ânfora ática de figuras 
vermelhas, 475-425 a.C. London, British Museum, E 316; ARV2 857.6. 
Corpus Vasorum Antiquorum. Brittish Museum, 5, pr. 58, fig. 1 a-b
Revisão: Eduardo Corrêa do Prado
Impressão e acabamento: Fábrica de Livros
 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
 938. 05 Andrade, Marta Mega de - 1967 - 
A “cidade das mulheres”: cidadania e alteridade 
feminina na Atenas Clássica / Marta Mega de Andrade. 
– Rio de Janeiro: LHIA, 2001. 174 p.
 
 ISBN: 85-88211-01-7 
 Bibliografia: p. 171-174
 1. História Antiga. I. Título.
 
 CDD
2001
Proibida a reprodução total ou parcial.
Os infratores serão processados na forma da lei.
Laboratório de História Antiga da UFRJ / LHIA
1ª Edição
Largo de S. Francisco de Paula 1, Centro 
Rio de Janeiro - RJ CEP:20051070
http://www.lhiaufrj.com.br
info@lhiaufrj.com.br
A Eduardo
Por este livro, e por tudo 
mais.
Hermes Passa
PrefáCio:
 Ao abrir este livro, o leitor encontrará o estudo que defendi como 
dissertação de mestrado em 1994, na pós-graduação em História da 
Universidade Federal Fluminense. É claro que o retorno a este trabalho 
não podia deixar de ser crítico: seis anos depois, não há leitura mais 
implacável do que aquela de alguém que se “responsabiliza” pelo que 
escreveu, nos bons momentos, mas principalmente naquilo que gostaria 
de dizer de novo com outras palavras.
 De início, fazer uma “crítica de autor”: em 1994, desagradava-me a 
idéia de confundir este estudo sobre o imaginário da cidadania ateniense 
e sua construção a partir da figuração do feminino, com uma pesquisa de 
cunho “feminista”. Com efeito, eu não fazia uma “história da mulher”, 
mas uma história da cidadania como nómos, e do como essa “ordem 
política e social” da Atenas antiga não apenas aceitava como subenten-
dia a possibilidade de subversão. Esta possibilidade se configurava na 
aparição das mulheres como agentes ativas na dinâmica de re-produção 
de uma ideologia da unidade / diversidade na pólis. 
 Como negar, então, não propriamente intenções feministas, mas o 
pertencimento dos problemas levantados por este estudo a um projeto de 
afirmação da presença ativa das mulheres, e da positividade do gênero 
feminino, na história das póleis antigas? Não se trata de incluir as mul-
heres no “clube de homens”, mas de evidenciar que este tal “clube de 
homens” que, pretende-se, teria sido a cidade-estado grega, não era mais 
do que a ponta visível de um iceberg, e que a pólis era também uma pólis 
das mulheres.
 Uma pólis das mulheres: não a mesma, mas outra; não idêntica aos 
cidadãos, mas diferente deles. Uma cidade cotidiana, feita de múltiplos 
encontros e de múltiplas negociações entre habitantes, dentre os quais as 
mulheres, especialmente as cidadãs (para o caso da ideologia política), 
tinham um papel de destaque. As mulheres transitavam entre as duas 
cidades: aquela dos “incluídos”, dos cidadãos e suas famílias, e a dos 
outros, aqueles que habitavam um lugar conhecido como Atenas ou um 
território como a Ática, sem, no entanto, se ligarem a ele pelos laços 
exclusivistas da cidadania. Esta pólis das mulheres não corresponde, 
definitivamente, ao modelo de cidade ou de Estado, que os historiadores 
ainda não deixaram de reproduzir desde há muito. E essas mulheres, 
as descendentes de Pandora que habitam entre os homens mortais nos 
campos e nas cidades gregas, não se encaixam no modelo da boa mul-
her grega, aquela do silêncio, do recato, da reclusão doméstica, que nós 
nos acostumamos a apontar e dizer” “mirem-se nelas, as mulheres de 
Atenas”.
 Mirem-se nelas, porque elas não receberam a herança que nós re-
cebemos, e portanto tinham efetivamente uma posição relevante em sua 
cidade, sem ressentimentos. Porque, de fato, a questão mais importante 
não é a de esclarecer se elas ficavam presas em casa ou saiam às ruas, 
se elas eram ou não castas, recatadas, silenciosas. A questão é: como, na 
subordinação cultural e social das mulheres pelos homens, há mais do 
que passividade, ou aceitação; mais do que violência ou resistência, há 
criação, ou talvez fosse melhor dizer, há métis, astúcia, não somente para 
resistir, mas especificamente para enganar. Como se tira a ação da reação, 
da passividade? Como tirar a negociação cotidiana e profundamente 
política, da aceitação? Como perceber o temor de um não, embutido 
naquele que predomina?
 É verdade que, seis anos depois, teria sido preferível falar em gêne-
ros, ou em como masculino e feminino são posições de sujeitos, investidas 
nos processos (históricos) de reprodução cultural. No entanto, decidi 
publicar a dissertação sem alterações de conteúdo, porque o trabalho que 
teria feito hoje seria outro, e ainda, porque os estudos que realizo hoje 
têm na dissertação, tal como ela foi defendida, seu ponto de partida e seu 
ponto de retorno. Boa, má, bem ou mal escrita, em bom português ou 
— Prefácio —
não, o fato é que essa dissertação de mestrado abre e fecha um círculo.
 O leitor encontrará uma tentativa de evidenciar, primeiro, o caráter 
de profunda alteridade representada pelo gênero feminino na cultura 
clássica. Mesmo que se tenha dito que as mulheres cidadãs, em Atenas, 
eram enquadradas segundo certos modelos de conduta, os quais podiam 
ser aceitos ou transgredidos na prática social, é verdade que havia um 
outro “modelo”, não de boa esposa mas de mulher “feminina”, amada, 
desejada, mas sobretudo temida: porque a sedução feminina tira do 
homem a sua previdência, sua atenção, seu esforço. Antes mesmo de 
um modelo (cristão) de “queda” da humanidade, para a qual a respon-
sabilidade feminina seria inconteste e seu pecado constituinte, as filhas 
de Pandora na Grécia tinham que carregar o estigma da suspeita, do 
presente enganoso que não cessavam de representar na história dos 
homens. Lembremos, no entanto, que um presente é um presente, não 
uma tentação; e Pandora era um presente dos deuses, um belo presente, 
aceito porque desejado. Esse outro modelo do feminino, o do desejo e do 
temor, da atração e da suspeita, é muito frequentemente esquecido nos 
estudos sobre a mulher na Grécia; mas é aquele cujos tópicos procuramos 
explorar na representação de uma “raça das mulheres”.
 Depois, procura-se deixar claro que a relação das mulheres com a 
pólis, os avatares de uma participação feminina na construção dos ideais 
e das práticas políticas na Atenas clássica, não se restringiam apenas à 
ação largamente aceita (e aceitável, prevista mesmo nas instituições 
da pólis) da boa-esposa. Ao contrário, a grande importância ativa das 
práticas políticas femininas, aquilo que poderia ligar feminino a pólis, 
se configurava no encontro da “raça das mulheres” com a comunidade 
política e social (políade) da cidade. Tratava-se de algo que só o difer-
ente poderia fazer, algo que só um “outro” poderia articular: cidadania 
e artifício, cidadãos e não-cidadãos, cidade e família, etc. Enfim: não 
eram os homens que, no fundo, precisavam das mulheres, era a cidade, 
instituição política e de governo sobre os habitantes de um território, 
que se experimentava “no” feminino.
— A Cidade das Mulheres —
 Não poderia deixar de agradecer aqui o apoio daqueles que foram 
parte importante da elaboração desse trabalho. Minha ex-orientadora, 
profa. Vânia Fróes, e os profs. Ciro Cardoso e Ulpiano Meneses, são 
ainda hoje pontos de referênciadas pesquisas que realizo.
 Agradeço também a J-P. Vernant, pois esse estudo sobre feminino e 
política no teatro jamais teria sido realizado se não fossem as referências 
teóricas, metodológicas e de vida , de M. Vernant. 
Rio de Janeiro, 9 de novembro de 2000
sumário
introdução: ............................................................................... 11
CAPÍtulo 1: umA PrátiCA do imAGinário: o teAtro 
e A fABriCAção dA CidAdAniA .....................................18
1.1- o teAtro e A PÓlis: ...........................................................19
1.2 — A prática do imaginário: .......................................................25
1.3 — Cidadania e feminino na Pólis: ............................................28
1.3.1- O Feminino Na Pólis: Algumas Abordagens: ...........................28
1.3.2 — A Vivência da Cidadania Democrática: ................................32
PArte i: o imAGinário do feminino e A rePresen-
tAção do outro ................................................................37
CAPÍtulo 2: AlteridAde e feminino ..............................38
2.1- Pandora e a raça das mulheres: ..............................................40
2.1.1- Teogonia: ..................................................................................41
2.1.2- Os Trabalhos e os Dias: ............................................................45
2.2- GYnAiKÓs nÓon: ................................................................48
CAPÍtulo 3: eurÍPides e A Construção dA Alteri-
dAde do feminino .............................................................54
3.1- A métis das mulheres: ................................................................54
3.2- uma outra solidariedade: .......................................................62
3.3- A mAniA: ..................................................................................71
3.4- Palavras Vãs, ou o lógos gynaîkos: ...........................................76
3.5- o feminino, A ilusão, A Verdade: ............................................82
3.6- masculino e feminino: ..............................................................89
PArte ii: o feminino e o uniVerso dA PÓlis...............93
CAPÍtulo 4: eurÍPides, ou QuAndo A mulher fAlA 
dA CidAde ...............................................................................94
4.1- A Cidade como patrís: ...............................................................95
4.2- o discurso Político de hécuba: .............................................106
4.3- o sacrifício das Jovens Virgens: ............................................ 110
4.3.1- Kalòs tánathon: a morte do hoplita e o elogio de Atenas ....... 111
4.3.2- Macária e Polixena: ................................................................ 114
4.3.3- Ifigênia: ................................................................................... 116
CAPÍtulo 5: AristÓfAnes, ou QuAndo As mulheres 
GoVernAm A CidAde: ......................................................124
5.1- homens e mulheres, partes iguais: ........................................126
5.2- A intervenção nos destinos da Pólis: .....................................130
5.3- A Acrópole sitiada: unidade e diversidade na pólis..............133
5.3.1- Cidadania no feminino: .........................................................134
5.3.2- Unidade, Diversidade: ............................................................136
CAPÍtulo 6: A rAinhA dAs ABelhAs e A Arte de Bem- 
usAr ........................................................................................145
6.1- A oîkonomia e o anèr agathòs: ................................................146
6.2- hegemòn mélissa: ....................................................................149
6.2.1- Comunidade, complementaridade: .........................................150
6.2.2- O governo da casa: mulher-abelha. ........................................153
6.3- A rainha das Abelhas e a Alteridade do femini-no: ............157
ConClusão: ................................................................................161
BiBlioGrAfiA: ...........................................................................171
lista de Abreviaturas: *
 AGA Agamenon
 AND Andrômaca
 ASM Assembléia das Mulheres
 BAC As Bacantes
 ECO O Econômico
 FEN As Fenícias
 HEC Hécuba
 HEL Helena
 HER Os Heraclidas
 HIP Hipólito
 IFA Ifigênia em Áulis
 IFT Ifigênia em Taurida
 LIS Lisístrata
 MED Medéia
 TEO Teogonia
 TES As Tesmofórias
 TRA Os Trabalhos e os Dias
 TRO As Troianas
 SEM Elegia - Semônides de Amorgos
 RÃS As Rãs
 *A referência completa das obras abreviadas se encontra no item A 
da Bibliografia do presente estudo.
introdução:
 O estudo que ora se apresenta, abre-se para a construção da cida-
dania democrática no período clássico da história das póleis, no espaço 
do teatro ateniense. Desta perspectiva sob a qual a pólis se oferece ao 
olhar, emerge a relação entre a cidadania e o feminino. Oferece-se como 
espetáculo a propriedade que o feminino detém para atuar na construção 
da cidadania ateniense, de forma que a própria vivência da cidadania 
comporte, na formulação de seu paradigma, o reconhecimento de si e a 
delimitação do Outro. Este Outro são os não-atenienses, os não-cidadãos, 
mas também o Outro da própria cidadania democrática. Pode-se dizer 
que o feminino impõe à compreensão da cidadania, a presença, junto ao 
paradigma, daquilo que dele se exclui, mas que no entanto o fundamenta: 
a alteridade.
 Que é isso que, excluído, é entretanto fundamento? Uma das princi-
pais hipóteses discutidas ao longo do estudo, é a de que justamente por ser 
excluído da relação política com a cidade, o feminino constitui um Outro: 
outro do masculino, outro da cidadania, mas também outro da própria 
cultura (nómos). E por ser este outro, o feminino é chamado a traduzir, 
no espaço do teatro, uma experiência da alteridade que é constituinte da 
vivência da cidadania democrática do Vº século a.C.. Não se trata, por-
tanto, de desenvolver uma história da mulher, no sentido da abordagem 
dos vestígios e indícios da “voz” feminina, embora um dos resultados 
do estudo seja a afirmação da cidadania feminina como possibilidade. 
Trata-se de percorrer o imaginário do feminino; de compreender as linhas 
de força presentes neste imaginário, que se misturam e transformam a 
figura da mulher, em Eurípides e em Aristófanes, principalmente, para 
que o feminino seja aí lugar de encontro entre a alteridade e a pólis. 
12 — Introdução —
 Por feminino, compreende-se o conjunto das representações que 
inscrevem a presença da mulher na sociedade. Feminino é, portanto, 
uma construção do imaginário. O imaginário do feminino comporta, na 
apropriação que dele fazem as obras de Eurípides e Aristófanes, uma 
duplicidade. Por um lado, o feminino tem uma “função”. A mulher têm 
um papel social, no interior do qual se explica sua exclusão do espaço 
da cidadania. Por outro lado, o imaginário do feminino se abre para a 
possibilidade de uma relação fundamental entre a mulher e uma forma 
de alteridade, radical em relação ao universo masculino da cultura. Isto 
significa que, ao abordar a construção da cidadania pela via do imag-
inário do feminino, incide-se sobre ela no “interstício”, onde a identidade 
comporta sua possível dissolução. 
 As questões básicas apontadas acima delimitam a cronologia e a 
espacialidade recortadas para o estudo. Focaliza-se a pólis ateniense, 
na passagem do Vº para o IVº século a.C.. Trata-se de um momento 
de crise e transição para o mundo grego como um todo. Período da 
Guerra do Peloponeso, perdida por Atenas, em que a hegemonia da pólis 
democrática coloca-se em jogo. Momento apropriado para formular com 
maior insistência a questão da dissolução da experiênciademocrática da 
cidadania, e, com isso, da experiência da autonomia mesma da pólis. 
 O espaço de circunscrição do estudo é o território ateniense, primeiro 
porque é a partir deste território, bem como da experiência desta pólis, que 
o discurso do teatro se estrutura. Segundo, porque Atenas, assim como 
Esparta, é um paradigma do período clássico da história dos gregos; é 
um referencial. Um paradigma clássico para os povos da antiguidade 
grega e romana, mas também para nós mesmos. Torna-se de extrema 
importância, portanto, mesmo para a atualidade, mostrar como esse 
“modelo” da democracia investe sobre a relação com o Outro, trazendo 
para o espaço do teatro a alteridade — estranhamento e diferença, mas 
ainda pluralidade — como problema. Se a cidadania ateniense clássica foi 
durante muito tempo percebida através de seus próprios “filtros”, como 
a isonomia, a permutabilidade, a participação efetiva dos cidadãos, ao 
— A “Cidade das Mulheres” — 13
incidir sobre ela construindo-a como artifício, é possível perceber como, 
nesta mesma cidadania, a exclusão da diferença deve ser colocada como 
questão e não como fato.
 A questão do outro percebido no interior da cidade, é formulada pelo 
teatro do final do século V a.C., principalmente por Eurípides e Aristó-
fanes. Em ambos, parte-se da figuração do feminino como alteridade. 
Se o feminino na mulher faz dela um “outro” que habita dentro da pólis, 
como a diferença instaurada no seio da cidade, a ação dessas mesmas 
mulheres (ao participarem das festas cívicas, mas ainda procriando filhos 
legítimos) é imprescindível para a duração da pólis, para a renovação 
do ciclo ao fim do qual Atenas emerge em sua força, sua hegemonia. 
Devido a essa “cumplicidade”, a essa “intimidade”, o feminino faz surgir 
aos olhos públicos um campo em que, do interior, a cidadania começa a 
vivenciar o problema de sua dissolução pela guerra, pela stásis. Questão 
de alteridade, mas ainda questão da diferença no interior da cidadania e 
da cidade.
 O teatro é um espaço privilegiado para a discussão das imagens que 
a cidade produz de si mesma. Dentre todas as tragédias inteiramente 
conhecidas do teatro grego, entre Ésquilo, Sófocles e Eurípides, somente 
neste último a utilização de personagens femininas, aliada à preocupa-
ção com a construção de suas ações, decisões, de seu pathós, era peça 
chave para a estrutura das peças. Não que os dois primeiros tenham feito 
das personagens femininas figuras de pouca importância. Mas nenhum 
deles utilizou, com tanta frequência quanto Eurípides, e com a mesma 
preocupação em delimitar um campo isolado e próprio ao feminino, a 
figuração da mulher.
 A forma de alteridade que o feminino representa, é aquela que se 
estabelece na delimitação da própria humanidade enquanto tal: entre 
animais e deuses. Através dessa relação com a alteridade, o teatro de 
Eurípides alia-se ao feminino não para defender “os direitos da mulher”, 
mas para utilizá-lo no debate próprio a Tragédia: entre o real (vivido 
no cotidiano) e a cena, a imitação da ação humana que, nos quadros da 
14 — Introdução —
pólis democrática, compreende-se principalmente como deliberação, 
coloca-se frente à frente com o acaso, o destino. Para além da crença na 
correspondência entre “causa” e “consequência”, muito próximo ainda da 
potência das divindades e de seus caprichos, o ato de humano e político 
de deliberar comporta em si o indefinido. Neste “indefinido”, a Tragédia 
insere sua questão. 
 O feminino surge, no teatro de Eurípides, com dois sentidos difer-
entes. Em primeiro lugar, reatualizando a alteridade do feminino, tal 
qual é formulada nos poemas de Hesíodo, e confirmada por Semônides 
de Amorgos. Em segundo lugar, na perspectiva de sua relação com uma 
cidade ou coletividade. De acordo com este segundo sentido, percebe-
se não apenas como, na Atenas do período clássico, se compreende a 
integração “normal” do feminino à cidade, mas ainda como o problema 
desta mesma integração não se resolve pela exclusão política e dominação 
social da mulher. 
 Teatro, cidade, feminino. Esses três pontos, interligados, ou melhor, 
investigados de dentro do nó que os une, fornecem novas perspectivas 
para os temas da relação da cidade com o Outro, por um lado, e do femi-
nino com a pólis, por outro lado. O teatro trágico de Eurípides constitui-
se como uma das chaves para a abertura da possibilidade deste tipo de 
questionamento. A partir dele, é possível livrar-se, por um momento, do 
“fantasma” da passividade e exclusão da mulher na sociedade grega, para 
abordar a cidadania feminina do ponto de vista de sua positividade: onde 
o feminino é vital para a discussão da compreensão que a pólis fabrica, 
e oferece, de si mesma. 
 A abordagem das comédias de Aristófanes demonstra, com clareza, 
que a exclusão da mulher não surge naturalmente, como um fato de 
menor importância. Ao contrário, a presença das mulheres na cidade, 
principalmente como esposas de cidadãos, engendra a possibilidade do 
governo feminino, da “ginecocracia”. Eis, então, a mais profunda relação 
do feminino, no Outro que representa em vista da cidadania masculina, 
com a mesma pólis dos atenienses. Cidadania e alteridade se unem, em 
— A “Cidade das Mulheres” — 15
Aristófanes, para dar os contornos da “cidade das mulheres”.
 O texto do econômico, de Xenofonte junta-se, por fim, ao grupo, 
para evidenciar o contraste entre a abordagem teatral e a abordagem 
política do feminino. O espaço que o discurso do econômico de Xe-
nofonte abre ao papel do feminino na formação do “homem de bem”, 
modelo ideal de conduta do cidadão, é considerável. No tratado político, 
a mulher surge, entretanto, afastada de sua relação com a alteridade. O 
feminino é integrado: é a esposa, rainha do lar, rainhas das abelhas. Nela, 
apresenta-se um feminino apropriado, enquadrado no modelo da mulher-
abelha. Na abordagem política de Xenofonte, portanto, a alteridade do 
feminino se oculta, e, com ela, esconde-se a própria possibilidade de 
cidadania feminina.
 Na trajetória que leva de Hesíodo a Xenofonte, o feminino perde-se 
da sua potência de presentificar o Outro dentro da própria cultura? Ou se-
ria mais correto afirmar que é apanágio do teatro construir o feminino em 
sua alteridade, para melhor lançar a cidade e a cidadania como problemas 
? O teatro ressalta, de fato, o Outro no feminino, enquanto ao discurso 
político interessa reforçar sua submissão, sua adequação ao projeto de 
vida do homem, do bom cidadão. O confronto de um e outro, para além 
do questionamento sobre a possibilidade do debate entre ambos, ajudou 
a comprovar as hipóteses de pesquisa.
 Primeiro, que na dissolução da cidadania instaura-se um debate, ao 
qual pertencem as obras de Eurípides, Aristófanes, e ainda Xenofonte. 
Este debate incide sobre a vivência da unidade, da percepção da pólis 
como efetivamente o conjunto anônimo de seus cidadãos, como cole-
tividade, portanto. Segundo, que em cada um desses testemunhos, o 
papel da mulher é crucial para a construção de um “ideal” em relação à 
pólis. Enfim, que a cidadania feminina como possibilidade, e positivi-
dade se compreende no reconhecimento da alteridade do feminino. Esse 
reconhecimento faz da figuração da mulher uma via de acesso para a 
pluralidade dos estatutos sociais, para além da condição de cidadão , que 
a pólis envolve. Se a alteridade feminina se perde, em Xenofonte, trata-se 
16 — Introdução —
ainda de utilizar a figuração do feminino para criar uma perspectiva de 
ação com relação a cidadania. 
 Em todos os momentos, ressalta-se, portanto, a positividade e a 
cumplicidade da relação das “femininas mulheres” com a pólis. Seria 
ainda possível, então, insistir na interpretação da cidade democráticaateniense como um “clube de Homens”? A vantagem do estudo do 
imaginário do feminino situa-se neste ponto: ele desvenda o papel da 
mulher como muito mais amplo, muito mais abrangente, do que a mais 
comum afirmação de seu enquadramento social. Que as mulheres não 
tivessem direito à voz própria em Atenas, mais ainda no Vº século a.C., 
não se discute no âmbito deste estudo. Discute-se, por outro lado, que 
o estudo do feminino estabeleça para si mesmo este fato social como 
limite real do feminino. 
 Para desenvolver a discussão das questões que o estudo suscita, 
foi estabelecida a divisão em partes. No capítulo 1, enfoca-se de forma 
mais abrangente o próprio fazer-se da pesquisa: a abordagem do teatro 
em sua relação com o imaginário, a noção de Imaginário, a questão da 
cidadania e do feminino na Atenas clássica. Para além do capítulo 1, o 
estudo foi dividido em duas partes, correspondendo às ambiguidades 
que envolvem o imaginário do feminino.
 A primeira parte apresenta e discute a alteridade do feminino, as 
formas de sua emergência, suas implicações. Inicia-se com a definição 
dos tópicos da relação da mulher com o Outro na cultura grega, através do 
mito de Prometeu e Pandora narrado na teogonia e nos trabalhos e os 
dias (capítulo 2). Como complementação a essa definição da alteridade 
do feminino, analisa-se os jambos do poeta Semônides de Amorgos, 
em que se escarnece da “tribo das mulheres” No capítulo seguinte, 
demonstra-se como Eurípides se apropria desses tópicos para construir 
a relação das figuras femininas com o estranhamento, e a ameaça que 
representa, entre os homens, a “raça das mulheres”.
 Na segunda parte, enfatiza-se a abordagem do teatro de Eurípides 
— A “Cidade das Mulheres” — 17
sobre a presença da mulher no universo da cidade (capítulo 4). Não ap-
enas através do discurso que pronunciam contra as guerras entre póleis, 
mas também pela inserção do feminino em espaços que, na cidade, lhe 
são vedados: discussão política, areté do cidadão-soldado. No espaço 
aberto entre os dois pólos da abordagem de Eurípides inscreve-se o teatro 
de Aristófanes, que demonstra com clareza as vias de possibilidade da 
relação própria entre feminino e cidade (capítulo 5). A abordagem do 
tratado econômico, de Xenofonte, finaliza o estudo (capítulo 6) para 
mostrar que, na perda do Outro, o feminino torna-se mais “adequado”, 
mais integrado. Integração que só pode ser feita à custa da relação ativa 
entre o feminino e a pólis. 
 A conclusão deste estudo aponta para a possibilidade da cidadania 
feminina na pólis ateniense. Isto significa que, apesar da exclusão do 
feminino em relação ao poder político, a mulher mantém uma relação 
ativa com a pólis ateniense, sem intermediários. Esta relação, que torna 
latente e legítima a “ginecocracia”, baseia-se na construção da alteridade 
do feminino. E evidencia, por isso, que a alteridade é constituinte da 
compreensão da pólis como universo de convívio humano. O estudo 
sugere, portanto, que a experiência política da democracia ateniense é 
inseparável, ao menos no final do Vº século a.C., da vivência do artifício 
e da alteridade intrínsecas a essa experiência. E que justamente porque 
a pólis supõe esse “fundo” onde o outro se introduz e habita, é que ela 
pode ser, com propriedade, a pólis das mulheres.
CAPÍtulo 1
umA PrátiCA do imAGinário: o teAtro e A 
fABriCAção dA CidAdAniA
“Os textos, sem dúvida, mas todos os textos […] documentos 
para nós, testemunhos de uma história viva e humana, satu-
rados de pensamento e de ação em potência …” (FEBVRE, 
1985,p.24).
 Certamente, a epígrafe retirada da obra de Lucien Febvre foi escrita 
em um outro contexto, no qual se defendia a inclusão dos textos — 
literários, teatrais, etc — no conjunto das fontes históricas possíveis. Não 
se discute mais com a mesma insistência que a história possa ser feita 
a partir de documentos “extra-oficiais”. Aquilo que nos concerne nessa 
afirmação é, sem dúvida, seu final: o texto, transformado em fonte pela 
escolha própria do historiador, testemunha. É testemunho de uma história 
viva e humana que, desde sua realidade, se desdobra em pensamento e 
ação “em potência”. É neste sentido que a abordagem do texto teatral 
deve privilegiar seu aspecto de produção cultural, ou antes, de prática.
 Para levar à discussão as questões importantes para a compreensão do 
percurso deste estudo, foram escolhidos três fios condutores. O primeiro 
diz respeito ao modo como o teatro grego se desdobra em sua produção, 
destinação, enfim, em seu alcance como obra, a partir da fabricação do 
imaginário. O segundo abre a discussão sobre o imaginário, ou sobre a 
tarefa de pesquisar a historicidade do “pensamento e ação em potência” 
de que nos fala Febvre. O terceiro procura introduzir o problema 
da cidadania feminina, em conexão com o paradigma da cidadania 
democrática ateniense. No final, apresentamos os textos pesquisados 
e a forma de abordagem do conjunto desses textos, que são nossas 
fontes: poemas de Hesíodo, fragmentos da elegia sobre as mulheres, de 
Semônides de Amorgos, tragédias de Eurípides, comédias de Aristófanes, 
diálogo do econômico, de Xenofonte. 
— A “Cidade das Mulheres” — 19
1.1- o teAtro e A PÓLIS:
 O teatro trágico e cômico do gregos é um fenômeno que, na pólis dos 
atenienses, se confunde com a história da democracia. Ele se estabelece 
como instituição cívica no mesmo processo que leva à consolidação 
das instituições democráticas, a partir do final do século VI a.C. Ele se 
transforma — perdendo a característica de profundo questionamento da 
ação humana nos quadros da pólis — quando a cidade passa pela crise 
e dissolução de seus fundamentos políticos: a autonomia, a isonomia, e 
a publicidade da vida. 
 Mais do que ligado à história política da democracia em Atenas, o 
teatro como produção cultural e como espaço, não pode ser concebido 
como um simples “gênero” de entretenimento. Tratava-se de um evento 
religioso, mais precisamente de um concurso, parte principal das 
festividades urbanas (e rurais) em honra ao deus Dioniso. A ocasião 
das Grandes Dionísias concernia à coletividade dos atenienses, e, para 
além da cidade, atraía a Atenas uma grande quantidade de estrangeiros. 
As peças mais famosas ganhavam repercussão, sendo reapresentadas 
em teatros de outras cidades gregas, assim como em outros teatros 
na própria pólis ateniense. Do cortejo do ritual religioso à exposição 
do tesouro da Liga de Delos diante do público das Grande Dionísias, 
tratava-se da exaltação da grandeza da pólis, da proeminência da cidade 
como coletividade sobre os cidadãos, da fixação da hegemonia de Atenas 
frente aos aliados e a outras póleis gregas.
 Embora não fosse a única oportunidade para as apresentações 
teatrais em Atenas1, a festa das Grandes Dionísias era ocasião de 
primeira apresentação da maioria das peças da Tragédia grega que hoje 
1-O tempo e espaço do teatro não se restringiam ao teatro de Dioniso, nas 
Grandes Dionísias, embora ganhassem, nela, sua repercussão. Havia ainda, 
em Atenas, as Lenéias, Dionísias rurais, e os concursos trágicos nos dêmoi. A 
existência dessas festividades de porte menor, no interior dos dêmoi, leva-nos 
a crer que inúmeros outros teatros existiam em Atenas no século V. Ao menos 
20 — Capítulo 1: Uma Prática do Imaginário —
são conhecidas. Este fato deve ser considerado: um teatro lotado para a 
representação das peças de um concurso, constitui um circuito cultural de 
proporções inigualáveis no mundo grego da época. Esta “popu-laridade” 
do teatro, trágico ou cômico, é um fator constituinte de sua destinação 
pública. Mas em que consiste a publicidade na Atenas clássica, senão 
na escrita, no debate das leis, no agôn entre oradores, na deliberação?Os 
temas propostos pelos poetas são ainda temas depostos para um debate, 
no mesmo sentido em que as leis são escritas, depostas nos templos, 
expostas ao olhar público, nos primórdios da civilização das póleis. 
No espaço do teatro, questões são levadas ao público, e, desta forma, à 
discussão. Nele, práticas sociais inscrevem-se em cena, formando, para 
os espectadores, uma imagem que lhes é de todo familiar, na comédia e 
na tragédia, posto que é imitação: imagem teatralizada da vida cotidiana, 
naquilo que dela se produz como comum ao conjunto dos atenienses. Por 
isso, entre o teatro e a prática do imaginário, como veremos, a relação é 
íntima, profunda.
 A imagem que o teatro oferece aos espectadores é uma interpretação 
da vida cotidiana, das práticas sociais que produzem o cotidiano. É neste 
sentido que se pode afirmar que o teatro fornece uma imitação da pólis: 
nele a cidade se faz teatro; e nele, a cidade é espectadora de sua própria 
imagem. Alguns dos principais instrumentos do teatro grego, trágico e 
cômico, nessa interpretação da vivência cotidiana por meio da imitação, 
eram a construção de exemplos, a inversão (caricatura, hipérbole, 
exacerbação de caracteres) e a contradição.
 A inversão, assim como a caricatura, é a obra da comédia. Mais 
próxima da linguagem corrente, forçando a interação do público com as 
peças, através das parabases (onde se inscrevem, muitas vezes, no teatro 
um desses teatros tinha uma importância comparável, pelo seu porte e pela 
assistência que recebia, formada por um grande número de estrangeiros, a do 
Teatro de Dioniso: o teatro do Pireu. Algumas peças foram representadas nele 
pela primeira vez.
— A “Cidade das Mulheres” — 21
de Aristófanes, discussões políticas de acontecimentos contemporâneos), 
do improviso cômico dos atores, e mesmo da constituição do público, 
em determinados momentos, como personagem da cena, a comédia do 
século V a.C. diverte-se a inverter os valores da pólis. Neste sentido, 
formulou-se uma comparação da Comédia grega com um espelho; um 
“espelho invertido” da pólis.
“”Representar o presente sobre o presente[…],tal é a tarefa 
de um Aristófanes. Tarefa propriamente cívica, se esta 
irrealidade, invertendo o real, o coloca no lugar […].” 
(LORAUX, 1990, p.1940).
 Fazendo a cidade rir de si mesma, a destinação da comédia é, 
segundo N. Loraux, preservar a ordem e a unidade da cidade “real”. 
Neste sentido, o teatro de Aristófanes andaria a passos de caranguejo: 
atirando ao escárnio, apresentando o ridículo, para melhor defender a 
pólis em seus valores fundamentais. Que o diga o agôn entre a Razão 
Justa e a Razão Injusta, em As nuvens, ou mesmo a disputa entre Ésquilo 
e Eurípides, em As rãs, onde o que entra em cena são a velha e a nova 
“ordens”: a velha paidéia dos ginásios e das palestras, formadora do 
caráter do cidadão hoplita, contra a nova educação particular, sofística, 
onde homens aprendem, ao abrigo da luz solar, como rebater um forte 
argumento através de argumentos fracos:
“[Esq] Por que se faz necessário admirar um poeta? [Eur] 
Por sua inteligência, suas admoestações, e porque nós 
tornamos melhores os homens nas cidades” [RÃS, vv. 
1000-1011]
 Na disputa entre Eurípides e Ésquilo, a comédia aristofânica deixa 
transparecer uma concepção da relação entre a Tragédia e a cidadania. A 
tragédia cumpre seu papel, apresentando aos homens exemplos de ação. 
Entretanto, tornar os homens melhores em uma cidade não tem um só 
sentido. A noção de educação2 do cidadão ateniense implica certamente 
2- A paidéia grega tem um sentido profundamente relacionado ao sentido 
político da ação humana. Se a educação é a forma de tornar melhores os ho-
mens, de exercitar-se para a areté, ela implica também a forma de ação política, 
ou seja, o debate e a deliberação. Por isso, aquilo que é constituinte do debate, 
22 — Capítulo 1: Uma Prática do Imaginário —
o orgulho, a honra do guerreiro, do mais forte. Em termos éticos, tornar 
melhores os homens é torná-los soldados, senhores da cidadania e dos 
destinos de sua cidade.
 Para o Eurípides de Aristófanes, a função do poeta é ainda a de 
tornar os homens melhores; função educativa, portanto. No entanto, 
ele introduz um novo argumento, que é bem peculiar do final do século 
V a.C.: permitir aos espectadores o raciocínio, o exame das questões 
propostas. Ainda é isto a poesia? No teatro de Aristófanes, a verdadeira 
arte trágica é reconhecida em Ésquilo. Em sua obra, na maneira com 
que ela apresenta ao público exemplos de ação e vida, encontra-se a 
identificação do cidadão com sua pólis. O cidadão identifica-se com a 
cidade: o cidadão é, efetivamente a cidade como um todo. Os atenienses 
serão atenienses, na medida em que o forem como soldados, como 
magistrados, como homens votados à publicidade exigida pelo modelo 
político e cívico de Atenas.
 Se os exemplos oferecidos pelas tragédias de Eurípides já não 
operam na proximidade entre o cidadão e a própria cidade, é, em 
princípio, porque eles incidem menos sobre aquilo que apaga, em cada 
cidadão, os laços com a vida privada; porque a ética que move o hoplita, 
plasmada na estrutura do modelo da pólis — isonomia, permutabilidade 
— não é a mesma que move o sofista. Este cresce com suas lições pagas, 
com a frequentação dos banquetes, a manutenção de lições particulares, 
as caminhadas pela ágora. É ainda com a sofística que a existência da 
vida privada como possibilidade da liberdade emerge à cena política 
(CASSIN, 1990, pp.130-145). Porém, não é ainda a desintegração da 
pólis como referencial de vida aquilo que Eurípides demonstra. São, 
ao contrário, indícios de que naquele momento do teatro e da cidade, a 
ou seja, o conflito, o agón é também o fundamento da paidéia. Não se trata de 
apresentar exemplos, mas de colocá-los na encruzilhada de um agón, forçando 
o desenlace, a decisão. Cf.. JAEGGER, Werner. Paidéia: a formação do homem 
grego. São Paulo: Martins fontes, 1983, pp 3-16; VERNANT, Jean Pierre & 
VIDAL-NAQUET, Pierre.Mito e Tragédia na Grécia Antiga. São Paulo: Bra-
siliense, 1982, pp.13-19.
— A “Cidade das Mulheres” — 23
identidade da cidadania abre-se ao questionamento. Isto equivale a dizer 
que a pólis como organização humana se dispõe como questão.
 Esse questionamento da cidadania não é um debate consciente e 
explícito. Ele se delineia, subrepticiamente, a partir do caráter ambíguo 
do teatro trágico. Em outras palavras, as tensões, as ambiguidades, 
presentes nas peças como na estrutura poética da tragédia grega, 
favorecem que a contradição atinja a própria a vivência da pólis: 
frente a frente com seu próprio “artifício” (isto é, eu caráter de nómos, 
grosso modo “convenção”). No teatro de Eurípides, por exemplo, esse 
movimento de se defrontar com o artifício da cidade produz-se na 
exploração do feminino como alteridade, e, por isso mesmo, dentro da 
contradição entre o si-mesmo da pólis e a alteridade, o estranhamento, 
o diferente. Dir-se-á isso inúmeras vezes: a mulher representa o Outro 
dentro da própria cultura. O que se ressalta na vivência da pólis, com 
a alteridade do feminino, é a possibilidade da diferença, ou, de forma 
restrita, as fronteiras da cidadania.
 O teatro é politikós, concerne ao “político”, por sua capacidade 
de colocar em questão, de discutir, e, por isso mesmo, tornar público, 
explicitando o conflito, em uma imitação da pólis. A comédia, pela 
caricatura que inverte os parâmetros do dia a dia, para melhor defendê-los, 
fundamentalmente. A Tragédia, oferecendo à cidade também um espelho, 
que toma de empréstimo suas imagens à mitologia e à epopéia helênica 
por excelência — ilíada, odisséia. Um espelho que purifica, modela, 
através da apresentação aos olhos públicos de seus heróis encarnados. 
Um espelho que se auto-destrói, pelas ferramentasdo acaso (tyché), e da 
necessidade (ananké). A modelagem, a purificação, se fazem no encontro 
da ação política com o destino.
 O herói da epopéia é um exemplo de honra, orgulho, e glória. Na 
Tragédia, entretanto, o herói, sem ser despojado de seu caráter exemplar, 
é focalizado no momento em que decide, partindo desse momento a 
ação que desencadeia o trágico, ao perder sua ligação necessária ao 
agente e inserir-se no acaso. A ação exemplar do herói, na Tragédia, 
24 — Capítulo 1: Uma Prática do Imaginário —
constitui-se, pois, como problema. Por apropriar-se da questão: “que 
fazer?”, a Tragédia se mescla a uma das coisas que a pólis traz de mais 
fundamental: a preocupação com as implicações humanas do ato de 
deliberar (VERNANT & VIDAL-NAQUET, 1988, p. 17).
 As consequências dessas implicações do teatro, para sua inserção 
na sociedade do período clássico, já se fazem notar. Descarta-se sua 
redução à continuidade de uma história religiosa; descarta-se, ainda, sua 
“transcendência”: fenômeno “cultural”, “artístico”, como sinônimos de 
“espiritual”. Pois enfatizar aqui somente a transcendência dos fenômenos 
da arte, provocaria uma limitação das perspectivas que esses fenômenos 
trazem para a abordagem histórica: como se a relação entre teatro e 
história fosse a tentativa de puxar um fio entre feixes paralelos — fio 
“econômico”, fio “político”, fio “social”. Com isto, perde-se aquilo 
que faz a especificidade do teatro como fenômeno social. O teatro 
é, efetivamente, uma parte da realidade, e não um fantasma que se 
sobrepõe ao todo social. O teatro, como prática social que é, apropria-
se da totalidade da cultura: neste centro de densidade total, os fios se 
encontram. 
 As fronteiras do reconhecimento que uma sociedade fabrica para 
si mesma, se cruzam no espaço do teatro. Ali, produzem-se as cenas. 
E, desta maneira, ao seu modo, como obra, as cenas devolvem à pólis 
a imagem que foi produzida, tal como o reflexo dos feixes de luz que 
incidem sobre um espelho. Ao estudar o teatro grego, deve-se estar atento 
à disposição que os feixes de luz tomam ao incidirem no espelho, aos 
componentes do espelho, à elaboração do produto final, que é a imagem. 
O espelho como prática, a prática de admirar a imagem produzida no 
espelho. Duas coisas que estão longe de ser o mesmo que, olhando para 
o espelho, querer reconstituir os feixes de luz, como se, na virada dos 
mundos — entre a luminosidade e a superfície polida — esses feixes 
permanecessem ilesos, e isolados. O teatro não é um reflexo da realidade 
social; ele é realidade social na medida em que é a própria realidade social 
que o fabrica, como um de seus mais atraentes produtos. Na medida em 
— A “Cidade das Mulheres” — 25
que é sobre as práticas sociais que ele incide, criando-as como imagem, 
como cena, como identidade ou alteridade.
 No debate que se instaura no espaço do teatro, a pólis se coloca em 
questão. Como na Tragédia, em que o homem se vê diante do destino 
que não pode controlar; como na Comédia, em que a inversão da cidade 
fornece a matéria do riso, mas também do confronto entre o que é a vida 
cotidiana da pólis, e o universo político da cidade. Das duas maneiras, 
o teatro devolve à cidade uma imagem, em que ela se vê. A imagem do 
teatro produz a identidade, mas ao mesmo tempo gera a alteridade. A 
produção do Mesmo só é possível na compreensão do Outro.
1.2 — A PrátiCA do imAGinário:
 Foi dito, de passagem, algumas linhas atrás, que a relação entre teatro 
e imaginário é profunda. Isto porque o teatro, como produção cultural, 
atualiza em uma perspectiva o conjunto das representações coletivas, 
como imagem e cena. Nesta realização das representações, produz-se 
imaginário . A assimilação da cena teatral aos reflexos da luz sobre a 
superfície do espelho traduz a perspectiva do teatro, na produção do 
imaginário. Mas o que significa propriamente “imaginário”?
 Em sua obra As Três Ordens, ou o Imaginário do Feudalismo, 
Georges Duby (1982) utiliza distintamente os conceitos de estruturas 
mentais, imaginário, e ideologia. Todos, entretanto, se aplicam à 
trifuncionalidade social. Como estrutura mental, a trifuncionalidade 
permanece como esquema de organização da sociedade de origem 
indo-européia, sobrevivente ainda em meio ao Antigo Regime francês 
do século XVIII. Como ideologia, intervém na formação dos discursos 
e das práticas políticas da Igreja, em sua pretensão de hierarquizar a 
sociedade medieval sob sua hegemonia. Como imaginário do feudalismo, 
a trifuncionalidade, não se busca apenas nos discursos oficiais, mas nas 
malhas da formação dos discursos, dos príncipes, dos padres, na literatura 
e na arte. 
26 — Capítulo 1: Uma Prática do Imaginário —
 Neste sentido, as mentalidades não são a mesma coisa que o 
imaginário. As estruturas mentais são temas cuja duração pode ser 
longuíssima (e daí o uso do termo estrutura — visão de mundo persistente, 
inscrita na longa duração), que se impõem às práticas sociais como seus 
limites compreensivos (ARIÈS, 1990, p. 175). O imaginário deve algo 
ao conceito de estrutura, na medida em que instrumentaliza a formação 
dos discursos. Entretanto, ao contrário das “mentalidades”, ele não se 
impõe, ele se inscreve nas práticas sociais, em um espaço determinado, 
e em um momento determinado da vida em uma sociedade. 
 O imaginário é inseparável da perspectiva sob a qual se realiza 
uma prática social, em sentido geral. A prática não se realiza no nada, 
por nada, desdobrando-se em um “vazio”. Práticas sociais implicam um 
lugar, um “quem”, que não é absolutamente o mesmo que um “eu”, e 
um “sobre o quê”, capazes de amplificação. O estudo de Nicole Loraux 
sobre a inscrição da autoctonia do cidadão ateniense no espaço da 
cidade (LORAUX, 1990.) pode ser citado, para demonstrar a ligação 
do imaginário a uma perspectiva, ou a um “lugar de produção”. Neste 
estudo, Atenas surge desdobrada em espaços heterogêneos, na maneira 
como neles se inscreve um tema: a autoctonia do cidadão. Em cada uma 
dessas regiões, as formas sob as quais a cidadania surge assentada na 
identificação do cidadãos ao solo da pátria (o operador, neste caso, é o 
conjunto das narrativas míticas sobre a fundação de Atenas e o nascimento 
de Erictônio) tomam aspectos diferentes. O imaginário da autoctonia 
se mostra na multiplicidade das variações sobre um tema, um modelo 
que informa a relação da pólis com a politeía. Passa como que por uma 
malha, um filtro, através do qual se formam as imagens e os discursos 
produzidos em regiões diferentes. Atenas não possui, como um “conjunto 
de idéias”, um imaginário, mas múltiplos. 
 Pertence, portanto, à essência da noção de imaginário essa 
multiplicidade de variações, posto que se trata de perspectiva, e não de 
idéias ou modelos unívocos. O imaginário não tem sentido espiritual, ideal 
ou transcendente. Ele só existe no encontro entre prática e representação. 
— A “Cidade das Mulheres” — 27
Entre “pensamento” e “ação em potência”. Daí a expressão: prática do 
imaginário . 
 Neste estudo, ao se fazer referência ao imaginário da cidadania, 
da alteridade, do feminino, a noção de topoi (Cf. LORAUX, op. cit, e 
ibid., 1981) surge muitas vezes como sinônimo de tema ou imagem. A 
noção é topográfica, e pressupõe a existência de pontos localizáveis em 
um espaço. Os topoi do imaginário são essas regiões localizáveis, esses 
“acidentes geográficos”, ou regiões de discursividade 3. Os tópicos do 
imaginário não se configuram como idéias expressas, nem como modelos 
através dos quais se representam a sociedade e suas instituições. O 
imaginário do feminino é formado por diversos topoi, que se manifestam 
como discursos, idéias, modelos na medida de sua apropriação cultural. 
Uma narrativamítica pode evidenciar topoi, presentes também em 
um discurso político, ou numa peça de Comédia, ou numa série de 
representações iconográficas. Mas é a prática do imaginário que confere 
o sentido de um topos, na perspectiva própria ao campo de uma obra, 
ou produção cultural.
 Portanto, o imaginário remete para a região em que se produz o 
discurso. O imaginário da cidadania constrói a peça de teatro, a figuração 
de um mito em uma ânfora, o discurso político de um orador ateniense. 
Mas só se apresenta nas características daquele âmbito da vida, da 
produção cultural como aquilo que uma sociedade, produzindo, diz de 
si mesma. Por isso, pode inverter-se a relação de derivação: a peça, a 
ânfora, o discurso, constróem o imaginário da cidadania.
 No teatro de Eurípides, o imaginário do feminino evidencia a relação 
do feminino com a representação da diferença e do Outro, na cultura 
grega. Mas, para além desta relação entre feminino e alteridade, que 
3- “[…] a natureza dos topoi é sem dúvida a de desorganizar toda definição. 
Pois se eles são regra, eles são também para o discurso uma matéria, meio 
pensamento, meio forma. Repertório de palavras, de fórmulas e idéias, eles 
preexistem a todo discurso como um rascunho, ou mais exatamente, como um 
tipo de grau zero […], e sua existência testemunha a possibilidade de tomar ainda 
a palavra para se dizer a mesma coisa […]”. LORAUX, Nicole. L’Invention 
d’Athènes: histoire de l’oraison funèbre dans la la cité classique. Paris: Mouton, 
1981, p. 246.
28 — Capítulo 1: Uma Prática do Imaginário —
se repete em diversas ocasiões fora de suas obras, aquilo que confere a 
Eurípides sua singularidade é a configuração que os topoi de definição 
do feminino assumem em suas peças. Junto à construção da alteridade 
do feminino, emerge o problema da cidadania ateniense: há uma relação 
fundamental entre a mulher e a cidade, nas tragédias de Eurípides como 
nas comédias de Aristófanes. Se a mulher, malgrado a submissão de 
fato em que se encontra, com sua existência oficial relegada ao espaço 
doméstico, surge ligada à cidade, duas questões se colocam: primeiro, 
que relação é esta que ela mantém com a pólis? Trata-se de cidadania, tal 
como se define pela democracia? Segundo, se o imaginário do feminino 
pode admitir a cidadania da mulher, que consequências este fato traz para 
a própria configuração da cidadania, e da cidade, no imaginário político 
ateniense? Imaginário do feminino? Sim, mas no encontro entre os 
lugares de discurso que constróem o feminino, quer em sua alteridade, 
quer em sua integração pela via do espaço doméstico, e a construção 
da identidade da pólis, através dos topoi da cidadania ateniense. Este 
encontro faz a singularidade do teatro, de Eurípides e Aristófanes.
1.3 — CidAdAniA e feminino nA PÓLIS:
1.3.1- o feminino na Pólis: Algumas Abordagens:
 Uma afirmação muito comum sobre a presença da mulher na cidade 
grega consiste em dizer que a mulher é, na Atenas clássica, uma eterna 
menor; a própria Atenas seria um “clube de homens”. Encontra-se esta 
afirmação como opinião formada tanto em estudos clássicos sobre a 
cidade e a cidadania (VATIN, 1984, MOSSÉ, 1989), quanto em estudos 
que abordam a presença da mulher na cidade, em sua relação com a 
própria cidade (LORAUX, 1990, passim). 
 A cidadania ateniense do século V a.C. exclui a mulher. Em atos 
jurídicos, por exemplo, a mulher deve ser representada por seu kyrios, 
responsável ou mais precisamente “senhor”, assim como metecos e 
— A “Cidade das Mulheres” — 29
escravos necessitam de um intermediário cidadão para interpelar a 
cidade. Pelo discurso político corrente, o feminino tem seu espaço 
de direito no universo doméstico, onde deve permanecer em silêncio, 
evitando apresentar-se, perguntar, escutar conversas. Esta construção 
política do feminino confere às mulheres uma atitude conveniente a 
seguir.
 Os estudos que reproduzem esta imagem do feminino acabam por 
recair na afirmação da eterna menoridade da mulher na sociedade grega. 
Esta imagem não esgota, de modo algum, nem a relação entre feminino 
e pólis, nem a presença da mulher na cidade. Para além das eupátridas, 
a quem o modelo mais facilmente se dirige, misturam-se à multidão 
da ágora, do teatro, do porto, centenas de mulheres do povo, e mesmo 
as próprias — e sempre “sábias” — hetairai. No que se refere a estas 
mulheres, o modelo politicamente correto do feminino dificilmente se 
encaixa.
 Supondo, entretanto, que se admita a imagem política do feminino 
apenas em seu caráter de “ideal” — paradigma do feminino — cria-
se o paradoxo: a cidadania democrática, que informa a relação dos 
cidadãos com a pólis, exclui estrangeiros domiciliados — os metecos 
— e escravos. O cidadão, nascido de pai e mãe atenienses, é um homem 
e não uma mulher. A exclusão, intrínseca à compreensão da cidadania 
ateniense, deveria negar ao feminino não só a cidadania, mas ainda a 
relação mais íntima, sem mediação do sexo masculino, com a pólis. 
Em outras palavras, cidade e feminino seriam, por definição, figuras 
incompatíveis.
 Apesar disso, feminino e pólis, encontram-se interligados em 
diversos momentos da vida da cidade. Nas festas religiosas, por exemplo, 
a mulher atua de forma decisiva para garantir a permanência da cidade, 
sua hegemonia, seus cidadãos. Na compreensão mítica que Atenas 
elabora sobre suas origens, o voto da mulher garante o nome de Palas 
30 — Capítulo 1: Uma Prática do Imaginário —
Atena à cidade (Varrão, apud. AUSTIN & VIDAL-NAQUET, 1986.)4. No 
espaço do teatro, a comédia confere às mulheres sua utopia: o governo da 
cidade. Nessas, e em outras ocasiões, a exclusão de fato abre passagem 
para a “cumplicidade”. 
 Além disso, se a mulher nascida em Atenas, de uma casa ateniense, 
não pode votar, nem sequer entrar no recinto da Assembléia, ela pode 
transmitir os direitos à propriedade fundiária, caso do epiclerato5, 
assim como conferir legitimidade à cidadania masculina (dependente 
do nascimento de “pai e mãe” atenienses, a partir de 451 a.C.). A 
cidadania democrática tal qual se define durante o “século de Péricles”, 
excluíndo do poder político as mulheres da cidade, não esgota, portanto, 
as possibilidades de relação íntima com a pólis, fora dos quadros do 
exercício das magistraturas, da deliberação, e da guerra. Seria essa relação 
uma forma de cidadania?
 Para responder a esta questão, C. Vatin (op. cit., pp. 117-142) 
sustenta uma diferenciação entre cidadania política, e uma cidadania 
civil. A cidadania política compreenderia o exercício das magistraturas, 
a armação como hoplita, a votação nas assembléias. Nela, estariam 
classificados os homens nascidos de pai e mãe atenienses, entre dezoito 
e sessenta anos. A cidadania civil abarcaria o conjunto da comunidade 
ateniense: os excluídos do poder político, cuja relação com a cidade 
seria, entretanto, demasiado estreita para que se lhes recusasse o título de 
cidadãos: os jovens, rapazes ou moças antes da efebia ou do casamento; 
e sem dúvida alguma as mulheres casadas, esposas de cidadãos, cujo 
papel em festas cívicas como as Tesmofórias era o da garantia da própria 
continuidade da cidade.
 Esta subdivisão da cidadania em política e civil pode ser admitida, 
4- VARRÃO IN Santo Agostinho. A Cidade de deus, 18, 9.
5- A moça epíclera é aquela que, única herdeira, encontra-se literalmente 
instalada “sobre o cléros” paterno. Ela deve casar-se, preferencialmente, com o 
parente mais próximo em linhagem paterna, no caso, o irmão do pai.
— A “Cidade das Mulheres” — 31
para representar a cidadania feminina como possível e diferente da 
cidadania masculina. Entretanto, há algumas considerações a serem feitas. 
Em primeiro lugar, a divisão — político/civil — pode significar uma 
projeção na cidade grega,de uma oposição que lhe é de todo anacrônica. 
Mesmo as ações que fazem do feminino uma instância crucial para a 
reprodução da sociedade não estão fora do político, se entendermos por 
esta palavra “aquilo que pertence à pólis, que lhe diz respeito”. Conferir 
ao feminino uma cidadania civil significa, então, reatualizar a afirmação 
de que “a cidade é um clube de homens”. Significa, por isso, resolver a 
questão da participação da mulher nos destinos da cidade fora da relação 
própria entre feminino e político.
 Incidindo justamente sobre a questão da relação entre feminino 
e pólis, Nicole Loraux baseia-se na análise da figura mítica da raça 
das mulheres (génos gynaikôn), para afirmar, com maior veemência, a 
exclusão da mulher. A cidade compreende-se na divisão entre os sexos. 
Não há palavra para designar a cidadania feminina (“a ateniense”), como 
existe “o ateniense”. A mulher não tem cidadania, da mesma forma que 
não é autóctone (op. cit., passim )6.
 Esta perspectiva, embora se afirme ainda na confirmação de que a 
cidade é um “clube de homens”, tem a vantagem de perceber o feminino 
como princípio de diferença. Em sua exclusão, as mulheres agrupam-se 
em um génos irredutível ao gênero humano, à sociedade dos homens. A 
mulher, sob essa perspectiva aparece em sua alteridade. Nicole Loraux 
ressalta o conflito, entre a presença da mulher na cidade e a sociedade 
dos homens. Mas não chega a formular, como questão, que na exclusão 
da mulher, a cidadania feminina seja ainda possível. Da interlocução 
entre C. Vatin e Nicole Loraux, pode-se colocar uma questão sobre a 
6- Marcel Detienne e Giulia Sissa rebatem esta interpretação de Nicole Lo-
raux, a partir de seu fundamento, ou seja, da autoctonia do feminino. Para isso, 
usam fragmentos de uma peça de Eurípides, erecteu, onde surge como heroína a 
figura de uma ateniense autóctone: Praxitéia. (Cf.. DETIENNE, Marcel. “A Força 
das Mulheres; Hera, Atena e Congêneres”. IN: DETIENNE, Marcel & SISSA, 
Giulia. Os Deuses Gregos. São Paulo: Cia das Letras, 1990, pp. 245-267.).
32 — Capítulo 1: Uma Prática do Imaginário —
cidadania feminina: para compreendê-la não seria preciso restituir sua 
diferença, sua irredutibilidade à cidadania masculina? Uma cidadania 
fundada na própria oposição entre os sexos, e na alteridade do feminino. 
Uma cidadania do Outro, na medida que relaciona profundamente a 
alteridade do feminino com a própria pólis dos atenienses.
 O esforço que se empreende ao colocar-se a questão da cidadania 
feminina, realiza-se no sentido da compreensão desta cidadania em sua 
positividade. Não se descarta o fato de que a cumplicidade do feminino 
com relação a pólis é muitas vezes passiva: a mulher reproduz homens 
iguais a seus pais; realiza rituais religiosos para a manutenção do status 
quo, ou seja, do domínio masculino da cidade. Mas se afirma que esta 
passividade não esgota a cumplicidade entre o feminino e a cidade. Não 
é por acaso que os atenienses representaram, lado a lado na Acrópole, 
o primeiro ateniense autóctone — Erictônio — e a primeira mulher — 
Pandora — este imbatível ardil dos deuses. Da mesma forma como 
conferiu um habitat à alteridade do feminino, a cidade não teria, com 
isso, reconhecido no feminino a possibilidade da cidadania?
1.3.2 — A Vivência da Cidadania democrática:
 Para nossos propósitos no presente estudo, podemos mencionar 
os três fatores básicos que caracterizam a democracia em Atenas, de 
acordo com J-P. Vernant (1984). Em primeiro lugar, uma “extraordinária 
preeminência da palavra [grifo nosso] sobre todos os outros instrumentos 
de poder” (id., p. 34). Em segundo lugar, a publicidade da vida: acesso 
público às leis que regem a cidade, debate público das decisões, das idéias, 
da religião. Concebendo a centralização do poder de forma literal, ou 
seja, a arché encontra-se no meio a igual distancia de todos os cidadãos, 
estabelece-se, enfim, uma das mais importantes características do modelo 
político ateniense (aquela que define a democracia como poder do dêmos): 
a isonomia. Pelo princípio da isonomia, todos os cidadãos se concebem 
como semelhantes.
— A “Cidade das Mulheres” — 33
 A cidadania democrática assim construída caracterizou a relação 
entre a pólis e seus cidadãos no século V a.C.. Constituiu, deste modo, 
a forma ideal da cidadania ateniense do período clássico. Sua maior 
garantia foi a manutenção da hegemonia da cidade por meio dos tributos 
aliados da Liga de Delos. Graças a ele, um certo equilíbrio entre a 
dinâmica da cidadania e as forças sociais foi mantido: garantiu-se o 
acesso dos cidadãos à terra, de forma a estabelecer o equilíbrio entre a 
grande propriedade e a massa de pequenos proprietários, cidadãos ideais; 
garantiu-se, ainda, o acesso das classes censitárias às magistraturas, 
através de sua remuneração. Garantiu-se o enquadramento dos tetas 
através da remuneração das magistraturas e outras subvenções, e 
principalmente através de seu serviço na marinha.
 Com a derrota ateniense na Guerra do Peloponeso e a perda da 
hegemonia sobre a Liga de Delos, a cidadania democrática ateniense 
entra em confronto com as práticas sociais que tecem a trama de sua 
dissolução. A presença maciça dos cidadãos mais pobres na cidade 
aponta para a concentração da terra, no campo. As fileiras da marinha 
absorvem cidadãos, antigos pequenos proprietários e tetas. Se a política e 
a guerra se separam, como indica o afastamento do estratego com relação 
a liderança política, a ligação entre a infantaria hoplítica e a cidadania 
torna-se também cada vez mais tênue. As cidades encontram-se mais e 
mais em vias de sustentar exércitos de mercenários.
 Terra cívica, cidadania, guerra. Um quadro que delineia, para si 
mesma, a própria pólis, na medida em que ela é livre, autônoma. Se 
o que está em jogo é a cidadania, e se a identidade da pólis é dada 
pela mais profunda relação entre o cidadão — pequeno proprietário, 
soldado — e sua comunidade isonômica, se, enfim, não se diz Atenas, 
mas “os atenienses”, aquilo que se esvai com a experiência da cidadania 
democrática é a pólis mesma. A pólis como estrutura de organização 
social.
 Um dos sintomas de que a crise final do Vº século a.C. atua sobre 
a compreensão da cidadania ateniense, apresenta-se com relação a 
34 — Capítulo 1: Uma Prática do Imaginário —
publicidade. Durante todo o século V a.C., a força da ideologia da 
comunidade, da isonomia, do apagamento da família em nome da 
identificação do cidadão à pólis, foi capaz de silenciar (ou ao menos 
mascarar) possíveis manifestações de interesses individuais ou privados. 
O cidadão perdeu o nome de família, para ganhar o nome do dêmos ao 
qual pertencia. As leis contra a ostentação privada eram duras em seus 
princípios, embora se possa colocar em questão sua aplicação de fato. 
A suprema honra do cidadão, sua virtude, era reiterada nos funerais 
públicos, no elogio da “bela-morte” sem nome, da grandeza da cidade. 
Quando se inicia o século IV a.C., são também os avatares da publicidade 
que se encontram modificados. Ao diagnosticar os sintomas da crise da 
pólis durante o IV século a.C., Pierre Vidal-Naquet afirma:
“ A elite social já não corresponde exatamente à elite política, 
ao contrário do século V. A política e as questões de Estado 
vão dando lugar pouco a pouco às questões privadas. A 
mudança de tom é manifesta na Comédia; a política acabará 
por ser totalmente excluída dela”(AUSTIN & VIDAL-
NAQUET, op. cit., p 144).
 Não apenas a Comédia Nova, mas também a cultura material e 
a iconografia, sugerem que a demissão política do dêmos ateniense é 
acompanhada de uma importância maior conferida à vida privada: ao 
espaço interior da casa e as relações entre “amigos”, mais do que entre 
concidadãos. 
 A importância da percepçãoda sensibilidade à vida privada supera 
a simples questão do “abandono” do interesse político, ao cuidado 
dos interiores, dos indivíduos, das casas particulares. A oposição 
entre a publicidade da vida na pólis, e a vida privada é da ordem dos 
fundamentos da própria cidade democrática. A cidade se forma, com 
efeito, a partir dos parâmetros do universo das famílias aristocráticas 
da sociedade arcaica, em que o círculo de pertença social gira e se fecha 
em torno do oîkos. Não é, portanto, como em nossa cultura, formada em 
longo processo que podemos remontar aos séculos XVI e XVII de nossa 
era, em que o “público” é da ordem do Estado, da política, da cidadania, 
— A “Cidade das Mulheres” — 35
e o “privado” é da ordem do íntimo, do verdadeiro, da pessoa em seu 
diálogo consigo mesma. Pólis e Oîkos opõem-se como duas formas 
antagônicas de agrupamento.
 Na gradativa dissolução da cidadania democrática, a cidade 
apresenta-se como questão. A obra de Eurípides e Aristófanes incide 
sobre esta questão fazendo emergir os elos que ligam o feminino à 
cidade. Xenofonte, seguindo os passos da filosofia socrática, constrói 
seu modelo de formação do cidadão, fundamentando em seu cidadão 
ideal a legitimidade do poder político (oligárquico?) sobre a cidade. A 
visibilidade da cidadania feminina inscreve-se, pois, na problemática do 
acesso ao poder político. 
 Isto pode significar que o grupo dos isói se transforma. Que a 
unidade inicial da cidadania deixa transparecer por suas frestas uma 
pluralidade, presente na cidade, mas ausente da pólis ateniense, tal como 
é vivenciada no século V a.C.. A relação do feminino com a cidade e 
com o poder político é uma das questões colocadas pelo transparecer da 
multiplicidade. É talvez a questão mais próxima ainda da dinâmica da 
cidadania democrática: a cidade exclui do poder a mulher, mas integra o 
feminino, submetido, pela via do casamento legítimo, e da religião. Para 
formular a questão de forma radical, ou seja, em termos de cidadania 
feminina, é preciso ressaltar que a mulher, a esposa que participa das 
Tesmofórias, por exemplo, tem o caráter irredutível de um ardil dos 
deuses. Ela descende não da terra sobre a qual a pólis se inscreve, mas de 
Pandora, feminino universal, raça das mulheres. O teatro, de Eurípides e 
Aristófanes, formula nesses termos a questão. Xenofonte, no econômico, 
prefere trazer a natureza feminina para a complementaridade do gênero 
humano: assimilação das diferenças, para melhor fabricar o anèr kalòs 
kagathós.
PArte i: o imAGinário do feminino e 
A rePresentAção do OUTRO 
“O Zeus, porque infligistes aos humanos esta praga frau-
dulenta, as mulheres, fazendo-as aparecer à luz do dia? Se 
vossa intenção era a de propagar a raça mortal, não deveria 
ser necessário requisitar da mulher o meio” (EURÍPIDES, 
Hipólito, vv616-620).
CAPÍtulo 2
AlteridAde e feminino
 A palavra alteridade substantiva um pronome demonstrativo. Outro, 
indicação daquilo que se encontra em descontinuidade com relação ao que 
somos, torna-se o Outro, condição daquilo que apontamos como diferente. 
A mesma operação que torna possível conceber o Outro inscreve também 
os parâmetros da igualdade: reconhecer-se, substantivar-se, definir para 
si aquilo que lhe é próprio. Não há constituição em separado do Mesmo 
em identidade, e do Outro em diferença. O estudo dos mecanismos de 
abordagem da diferença, em uma sociedade, é ainda o estudo das formas 
de reconhecimento, em que o grupo compreende-se e fabrica-se como 
unidade. Verso e reverso — identidade (definição dos quadros em que 
a sociedade cotidianamente se reconhece e se reproduz como grupo) e 
alteridade — constituem-se intimamente interligados. 
 Ser grego. Ser ateniense. Não ser bárbaro. No período clássico da 
história dos gregos, uma das formas da invenção contínua de Atenas era 
precisamente esta: contraposição de gregos a bárbaros, do regime das 
póleis à realeza persa, da democracia à soberania de um só, da cidadania 
à submissão. Esta forma de constituição da alteridade é aquela que se 
reconhece, como diferente, nómoi de outras sociedades (HARTOG, 1991, 
pp. 224-271).
 Há, entretanto, uma outra forma de constituição da alteridade, uma 
outra forma de percepção da diferença na Grécia clássica, que também 
participa na construção da identidade entre os cidadãos, e a pólis. Trata-
se da percepção do outro em relação ao nómos, daquilo que, emergindo 
no seio da Tradição e dos costumes, provoca uma desorganização, senão 
uma subversão, desses mesmos costumes. A alteridade do feminino 
enquadra-se nesta forma da alteridade, da presentificação da diferença.
 A alteridade que lança a diferença para fora, para as fronteiras do 
nómos grego, é estudada em sua forma religiosa por Jean Pierre Vernant 
— A “Cidade das Mulheres” — 39
(VERNANT, 1986). Investigando a relação entre a representação de 
potências divinas através de máscaras e a experiência do estranhamento, 
o estudo de Vernant demonstra como o estranhamento é uma forma de 
irrupção da alteridade absoluta no espaço delimitado pela cultura. 
Entende-se por alteridade absoluta a percepção daquilo que desafia a 
ordem normal das coisas, ao tornar evidentes as fronteiras dessa ordem: a 
natureza selvagem, o delírio, a morte. A cada uma destas representações, 
associa-se uma divindade “mascarada”: Ártemis, para os limites entre 
a natureza e o nómos; Gorgô, presentificação da morte; Dioniso, ou as 
fronteiras entre a razão e o delírio (mania).
 O feminino constitui-se a partir da alteridade absoluta, opondo uma 
“raça das mulheres” a uma cultura humana, na qual a mulher é intrusa. 
A intromissão do gênero feminino é experimentada da mesma forma 
com que se experimenta o “estranhamento”: irrupção do estranho à. 
Esta diferença, que o feminino instaura ao apresentar-se, tem origem na 
própria procedência da raça das mulheres — esta fabricação dos deuses, 
cujo sentido é enganar, pela aparência sedutora, enlaçar, pela persuasão, 
e prender os mortais ao pónos do dia a dia, espalhando entre os homens 
os sofrimentos, as doenças, a imprevidência.
 Esta representação do feminino como Outro do nómos, encontra-
se presente em diversos textos do século V a.C. Está presente, 
principalmente, no teatro trágico e cômico da pólis dos atenienses. É 
preciso chamar a atenção para o fato de que o discurso que afirma no 
feminino um Outro, um ser diferente, nos quadros da cidade, convive 
com aquele que nega os estatutos intermediários, quando se trata de falar 
da relação entre os cidadãos e sua pólis. Na completa identificação dos 
cidadãos à cidade, “Atenas, são os atenienses “. Esta afirmação, bastante 
corrente nos estudos de história grega, demonstra até que ponto chega 
a importância do problema do Outro, na Grécia clássica. No limite, a 
pólis perde sua materialidade — a cidade, suas construções, bairros, sua 
população enorme de estrangeiros e escravos — transformando-se numa 
abstração: a pólis está onde estiverem seus cidadãos (MOSSÉ, 1962).
40 — Capítulo 2: Alteridade e Feminino —
 Para fazer da mulher um ser estranho à cidade e ao nómos, o discurso 
da época clássica, e mesmo o posterior a ela, reproduz o alarido de uma 
“estória do começo”: o discurso mitológico da teogonia e dos trabalhos 
e os dias já lembrava, com efeito, que o feminino nascia do estranho. 
A mulher tinha em sua origem algo irredutível à ordem humana: a 
fabricação divina, o imbatível ardil, armadilha de Zeus aos humanos. A 
fabricação de Pandora, narrada nesses dois poemas de Hesíodo mais de 
dois séculos antes do auge da civilização das póleis, é o acontecimento 
mítico que baliza os discursos em que a reprovação ao gênero feminino 
será a forma “oficial” de se falar da mulher, seja em Atenas, seja na pólis, 
seja para muito além dos limitesda Antiguidade Grega.
 Fazer do feminino um ser estranho é uma forma de conceber um 
espaço onde é possível irromper o outro da cultura, trazendo a diferença 
para dentro da cidade. Duas questões se impõem: em primeiro lugar, que 
outro é este em que se reconhece o feminino? Os poemas de Hesíodo 
e a elegia de Semônides de Amorgos delineiam uma resposta a esta 
questão. Em segundo lugar, que cidade é esta que, em um certo nível, dá 
lugar à percepção da diversidade no interior da unidade: “Atenas, são os 
atenienses”? Trata-se, nesta última questão, de um dos temas cujo debate 
será proposto na Terceira Parte desse trabalho: O Feminino e o Universo 
da Pólis.
2.1- PAndorA e A rAçA dAs mulheres:
 Os poemas de Hesíodo datam pelo menos do século VII a.C., 
quando o mundo grego ainda não vira o desenvolvimento pleno das 
póleis. Quando a poesia era ainda marcada pelo seu caráter oral e de 
Celebração, Hesíodo conta o estabelecimento da condição humana em 
meio ao surgimento do mundo dominado pelos deuses olímpicos. O 
tema da fabricação de Pandora, ou da primeira mulher, intervém tanto 
na teogonia, como em os trabalhos e os dias. As duas narrativas 
merecem, entretanto, ser abordadas separadamente.
— A “Cidade das Mulheres” — 41
2.1.1- teogonia:
 A teogonia narra a gênese do cosmos, a proveniência dos deuses, e 
a repartição das tímai (“prerrogativas”) e das moîrai (“domínios”) entre 
as potências olímpicas. No poema, o mito de Prometeu conta a estória 
da diferenciação entre deuses e mortais, e da instauração da parte destes 
últimos: o sacrifício, o cultivo da terra, o casamento1. Este quinhão dos 
homens mortais se estabelece ao longo de um processo marcado pelo 
ardil, em que se sucedem ações artificiosas e armadilhas colocando em 
jogo a métis de Prometeu e de Zeus. Pode-se resumir a sucessão das 
armadilhas da seguinte forma:
1- Diferenciados homens e deuses no momento da divisão 
das partes do boi no sacrifício, Prometeu realiza uma dupla 
ocultação: sob as vísceras do animal ele esconde as carnes, 
sob a vistosa gordura, esconde os ossos, oferecendo ao Zeus 
métioeis a escolha. Com a escolha da parte de aparência mais 
atraente, estabelecem-se as atribuições de mortais e imortais 
no sacrifício: aos homens, o alimento cozido; aos deuses, a 
fumaça dos ossos.
2- Como contrapartida do dolo de Prometeu, Zeus esconde o 
fogo dos mortais, que não mais brotará ininterruptamente dos 
freixos. Mais uma vez, entretanto, Prometeu o engana, roubando 
o fogo ocultado em oca férula.
3- Ao ver o brilho do fogo entre os mortais, Zeus enfurecido cria 
para a “tribo dos homens” (phûl’anthrópon) o incombatível ardil: 
um mal oculto sob a aparência sedutora de um bem. Moldada da 
terra e da água por Hefesto, a mulher virgem não recebe nome. 
1- Utilizamos aqui as análises do mito de Prometeu e Pandora apresentadas 
por J.P. Vernant, em “O Mito Prometéico em Hesíodo”, Mito e Sociedade na 
Grécia Antiga. RJ, José Olímpio, 1992, e Nicole Loraux, em “Sur la Race 
des Femmes et quelques unes de ses Tribus”, Les Enfants d’Athéna, Paris, La 
Découverte, 1990.
42 — Capítulo 2: Alteridade e Feminino —
É adornada por Atena, como se enfeitam as jovens noivas para o 
casamento. Terminada a obra, a mulher é apresentada a deuses e 
mortais reunidos. Homens e deuses são tomados pelo ambíguo 
sentimento do espanto (thaûma), aplicado ao mesmo tempo 
para o maravilhoso e para o monstruoso. A bela mulher virgem 
leva na cabeça uma coroa de ouro, trabalhada por Hefesto, onde 
reluzem prodigiosamente talhadas as “feras que a terra e o mar 
nutrem”(v.581).
 A sedutora virgem fecha o circuito das tramas dolosas, como o último 
e grande dolo, fixando definitivamente a parte de força e de destino 
reservada aos homens: condenados a partir de então a casar-se para gerar 
filhos, os mortais são obrigados a aceitar, dia após dia, o “presente” de 
Zeus: kalòn kakòn ant’agathoîo (v.585, “...belo mal, reverso de um 
bem”).
 De acordo com a interpretação de Jean-Pierre Vernant para o mito, 
ver-se-á na narrativa hesiódica a ambiguidade do estatuto do homem 
mortal, “entre animais e deuses”. O sacrifício separa mortais e imortais, 
o cozimento e a reprodução pelo casamento separam os homens dos 
animais. Neste processo de separação, as carnes do boi sacrificado, o 
fogo, e a mulher correspondem-se. A mulher não é a contrapartida do 
homem. É uma das armadilhas, como o são os ossos do boi por debaixo da 
gordura branca e reluzente, que atrai os olhares; como o é o “longevisível 
brilho do fogo”, que Zeus esconde e Prometeu oculta sob a férula.
 Não se trata de explicar de onde vêm os homens, indistintamente 
chamados de “homens come-pão”, “homens mortais”, e “grei dos 
humanos”. A “humanidade de homens” já está lá. Explica-se porque à grei 
dos humanos é necessário dividir seu lugar e conviver com um ser que 
lhe é semelhante pela forma, mas que tem do humano e do monstruoso, 
de cada um uma parte. O espanto é o primeiro atributo, aquele que funda 
a relação da mulher com os seres que, no mito de Prometeu, definem 
suas prerrogativas: mortais e imortais.
 Como armadilha, embuste, thaûma, a mulher surge fora do humano. 
— A “Cidade das Mulheres” — 43
Ela é justaposta. Um logro aceito imprudentemente pelo reverso de 
Prometeu, seu irmão Epimeteu, do qual os homens se tornam prisioneiros: 
quem não traz para junto de si a mulher atinge velhice funesta, sem 
filhos que o sustentem, e morre vendo seus bens serem divididos por 
parentes longínquos; quem casa submete-se ao acaso (consequência da 
dupla derivação da mulher, bem e mal): ou consome-se em trabalho para 
sustentar o ventre esfomeado da mulher-zangão, ou, com alguma sorte, 
chega a união com uma boa esposa, garantia de sua descendência. Um 
mal necessário, jamais a “metade do homem”. A phûl’anthrópon não 
integrará o sexo feminino. Grei dos humanos afirmará o homem, não a 
mulher.
 Tal é o sentido da conclusão de Hesíodo, para a narrativa da 
fabricação da mulher na teogonia:
“Dela descende a geração das femininas mulheres.
[Dela é a funesta geração e grei das mulheres ]
grande pena que habita entre os homens mortais” 2
 Ao grupo dos homens justapõe-se um génos gynaikôn, uma raça das 
mulheres. O uso de génos e phûla, faz tanto do grupo dos homens mortais 
quanto do grupo das mulheres blocos separados, definidos ao mesmo 
tempo por seu fechamento e por sua relação com grupos semelhantes 
(BENVENISTE, apud. LORAUX, 1990, p. 90)3. O génos kaì; phûla 
gynaikôn opõe-se e relaciona-se a phûl’anthrópon, em uma convivência 
penosa, na maioria das vezes, não como dois gêneros de uma mesma 
espécie, mas como duas espécies que, no limite, não se misturam.
 Na justaposição dos grupos, a raça das mulheres singulariza-se. A 
2-TEOG., vv. 590-592. O tradutor da versão utilizada optou por traduzir génos 
por “geração”, certamente para escapar da aparente tautologia em que incorre 
a expressão génos kaì phûla. Nicole Loraux (op. cit., p.77) oferece uma opção 
para considerar o verso: Dela saiu a raça maldita, as tribos de mulheres, em que 
“tribos” amplifica o traço funesto da “raça”, multiplicando-a internamente. O 
uso de phûla consagraria diversidade no interior da unidade. 
3- BENVENISTE, Émile. Le Vocabulaire des Instituitions Indo-Européenes. 
Paris: Minuit, 1969. 2 vols.
44 — Capítulo 2: Alteridade e Feminino —
teogonia narra a sucessão dos nascimentos divinos, estabelecendo para 
os deuses uma genealogia, explicando desta forma a proveniência das 
potências e do domínio de cada um dos olímpicos. O mito de Prometeu, 
ao mesmo tempo em que narra o estabelecimento da condição humana, 
explica o nascimento da mulher, em termos de proveniência e de 
genealogia. Unifica-se, desta maneira, fora do humano ou do divino,

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