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Obras Literarias_UEPG_2017 (1)


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UEPG – 2017
1. AMAR, VERBO INTRANSITIVO
2. A MORTE E A MORTE DE QUINCAS BERRO D’ÁGUA
3. O FILHO ETERNO
4. LIVRO SOBRE NADA
5. O OVO APUNHALADO
1. AMAR, VERBO INTRANSITIVO
Mário de Andrade (São Paulo, 1893 - 1945)
O AUTOR
Após os estudos iniciais, cursou o Conservatório Dra-
mático e Musical de São Paulo, de que foi mais tarde pro-
fessor. Dotado de cultura vastíssima, Mário sempre teve 
participação marcante na vida artística brasileira. 
Em 1917, apoiou a exposição de Anita Malfatti e pu-
blicou Há uma gota de sangue em cada poema, que can-
tava o lado desumano da primeira grande guerra. Apoiou 
e incentivou muitos jovens artistas e colaborou com todas 
as principais revistas da época (Klaxon, Estética, A Revista).
Apelidado de poeta de São Pulo e “Papa do Moder-
nismo”, foi um dos líderes do Movimento Modernista, 
que realizou a Semana de Arte Moderna, tornando-se por 
muitos anos a figura mais completa e representativa de 
nossas letras modernas. Tinha extraordinária probidade 
moral e intelectual, verdadeiro espírito de liderança, foi 
um filósofo da literatura, professor de estética, crítico de 
letras e de artes, poeta, ficcionista, ensaísta, erudito, fol-
clorista. Cultivou todos os gêneros de arte, destacando-se 
como um dos maiores mestres da Literatura Brasileira. Foi 
um mestre por excelência em toda a extensão da palavra.
O ESTILO 
• Mário de Andrade utiliza linguagem coloquial pró-
xima da oralidade.
• A pontuação acompanha o ritmo das emoções e 
do pensamento.
• O autor utiliza com frequência: a metalinguagem 
(o texto que se refere ao próprio texto); a intertex-
tualidade (referência a textos de outros autores); 
o discurso indireto livre (intercalação do discurso 
do narrador com o discurso direto); o monólogo 
interior, em que o personagem disserta consigo 
mesmo, seguindo um raciocínio lógico.
• Linguagem contida, acabada, que traz como resul-
tado um profundo mergulho na realidade social e 
psíquica do homem brasileiro.
• Os tipos humanos têm densidade psicológica, 
mostram uma consciência dividida e até contradi-
tória, exprimem claramente sua relação problemá-
tica com o mundo.
• O conteúdo de suas principais obras, Paulicéia 
Desvairada, Lira Paulistana, Amar Verbo Intransi-
tivo, Macunaíma , Contos Novos e outras, trazem 
poemas e histórias que acontecem em São Paulo, 
falam de São Paulo, de cultura, de amor, de Brasil.
• Criador e divulgador da Corrente Desvairista, Má-
rio de Andrade defende a liberdade de pesquisa, 
criação e expressão. Essa liberdade traz como fru-
to a poesia do inconsciente, o surrealismo, a escri-
ta automática, o verso livre, as associações de ima-
gens, a espontaneidade, a linguagem coloquial.
• Em resumo, Mário de Andrade coloca em prática os 
três princípios que ele julga fundamentais no Moder-
nismo: o direito permanente à pesquisa estética, a 
atualização da inteligência artística brasileira e o es-
tabelecimento de uma consciência criadora nacional.
A OBRA
Neste romance de técnicas inovadoras, o narrador 
(autor) chama a atenção do leitor por causa das cons-
tantes opiniões, dúvidas e questionamentos que ele se 
coloca, embora pareça ser um narrador onisciente.
O autor, de maneira criativa e maliciosa, brinca com 
o leitor, insinuando situações, manipulando conceitos 
freudianos, ironizando conceitos, convicções e atitudes da 
classe alta paulistana.
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UEPG – 2017
Publicado em 1927, Amar, verbo intransitivo chama 
a atenção, primeiramente por sua linguagem que imita o 
padrão coloquial brasileiro, a maneira de falar do povo. 
Outro aspecto é o constante emprego de digressões, al-
gumas metalinguísticas, outras de cunho sociológico, que 
fazem lembrar o estilo machadiano, pelas quais critica 
valores brasileiros, ao mesmo tempo em que deixa su-
bentendido um certo ar de “não tem jeito”, “somos assim 
mesmo”. 
Chama a atenção o emprego da teoria freudiana so-
bre a sexualidade humana segundo a qual a atração sexual 
se desenvolve num jogo de avanços e recuos, de desejos 
e de medos. Num episódio escrito de forma indireta, tan-
gencial, Fräulein se insinua e toca o rapazinho cada vez 
com mais frequência, levando o “aluno” a masturbar-se 
inspirado na “professora”. Talvez a intenção do narrador 
fosse, além de evitar o escândalo, mostrar como a questão 
era problemática na cabeça de Carlos. 
O tema do sexo como base de tudo e da iniciação se-
xual tranquila e segura, vista como garantia para uma vida 
madura e o estabelecimento de um lar sagrado, era inédi-
to em nossa literatura e foi motivo de escândalo na época. 
Fräulein, que em alemão significa “senhorita”, mas 
que também tem o peso do termo “professora”, realiza 
seu serviço com dignidade, exerce-o como uma missão, 
não vendo nele nenhuma relação com prostituição. 
A atitude de Sousa Costa de contratar uma profis-
sional do amor para prestar seus serviços debaixo do seu 
próprio teto ironiza determinados valores da burguesia da 
época. O personagem como o novo rico paulistano com 
mania de tentar ser o que não é ou de esconder o que no 
fundo é: sem estrutura moral para merecer seu status e 
achando que o dinheiro pode comprar tudo. Sousa Costa, 
ao usar brilhantina até no bigode, assemelha-se à esposa, 
que também usa produto para alisar o cabelo. Ambos que-
rem esconder que são tão mestiços quanto o resto do país.
AS PERSONAGENS
• Felisberto Sousa Costa – rico industrial, doutor em 
qualquer coisa, centro administrativo e patriarcal 
de seu lar. Chefe de uma família tranquila, sem 
problemas econômico-financeiros, muito bem si-
tuada na avenida Higienópolis, em São Paulo, um 
São Paulo da primeira metade do século, contem-
porâneo do autor.
• Dona Laura – esposa de Sousa Costa, senhora bem 
composta, acomodada e burguesa, mantendo 
muito bem as aparências da seriedade religiosa e 
familiar.
• Carlos – único filho homem do casal, com 15 para 
16 anos. Certamente, deverá ser o principal her-
deiro do nome, da fortuna e das realizações pater-
nas. Como era costume, possivelmente, deveria 
ser a projeção do pai, a sua continuação. Centra-
liza a narrativa, é personagem do pequeno drama 
amoroso do livro
• Elza – A governanta alemã, protagonista da histó-
ria, juntamente com o garoto Carlos. Ela é a perso-
nagem mais humana e real do romance, contrata-
da para iniciar o garoto Carlos na vida sexual.
O ENREDO
A história, classificada como idílio (história de amor 
leve e poética), trata da iniciação sexual do protagonista, 
Carlos Alberto.
Souza Costa (Felisberto...), homem burguês, bem 
posto na vida, contrata uma governanta alemã, de 35 
anos, para a educação do filho (Carlos), principalmente 
para a sua educação sexual. 
Elza é o nome da moça. Mas vai ficar conhecida e será 
chamada sempre pela palavra alemã Fräulein (= senhori-
ta). Chegou à mansão de Souza Costa, numa terça-feira. 
(Ganharia algum dinheiro... Voltaria para a Alemanha... 
Se casaria com um moço “comprido, magro”, muito alvo, 
quase transparente”...) 
A família era formada pelo pai, por D. Laura, o rapa-
zinho Carlos e as meninas: Maria Luísa, com 12 anos; Lau-
rita com 7 e Aldinha com 5. Havia também na casa um 
criado japonês: Tanaka. A criançada toda começou logo 
aprendendo alemão e chamando a governanta de Fräu-
lein. Carlos não está muito para o estudo. Fräulein logo se 
ajeitou na família, uma família “imóvel mas feliz”. Mas o 
papel principal da governanta é ensinar o “amor”. 
E o rapazinho aprendeu logo as lições. “O caso evo-
lucionava com rapidez”. “Agora? Vive na saia da Fräulein”. 
D. Laura percebe as intimidades do filho com a governan-
ta. Souza Costa não lhe dissera nada sobre os trabalhos 
dela com relação ao filho. Fräulein vai embora? Fica? O 
marido convence a mulher da necessidade de preservar o 
filho das explorações e das doenças das mulheres da vida. 
Precisava ser educado sexualmente. O tempo ia passan-
do. “Carlos estava homem.” A governanta agora é a sua 
eficiente professora de sexo: teoria e, principalmente, prá-
tica. “Professora de amor... porém nãonascera pra isso, 
sabia. As circunstâncias é que tinham feito dela a profes-
sora de amor, se adaptara...”. A narrativa se prolonga com 
uma ocasional viagem ao Rio: Maria Luísa esteve doente e 
o médico lhe recomendou outro clima. No passeio à Tiju-
ca, Fräulein se entrega à contemplação da natureza, com 
uma alma cheia de encantamentos... E de amor. A viagem 
de volta é um dos momentos mais vivos e interessantes 
da narrativa: as peripécias no trem da Central e o lado 
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humorístico de Laurita lendo os nomes das estações, em 
cada parada. A mãe perguntou o nome de uma estação. E 
Laurita, silabando: “É... é Mi... Miquitório! Mamãe! É Mi-
quitório!” Foi um desapontamento geral da família. E o pai 
falou: “- Não é Mictório não, minha filhinha... É Taubaté”. 
“Na volta do Rio recomeçaram os encontros notur-
nos, que bom!” Mas o curso de amor terminou. Fräulein 
tinha que ir embora. Para ensinar a outros alunos. “Cum-
priu a missão dela, o que sabia ensinou”. Para despedi-la, 
Souza Costa arma uma encenação: os amantes são surpre-
endidos no quarto da governanta. Dentro da armação, o 
pai dá uma bronca no filho, ensinando-o a tomar cuidado, 
pois sempre havia o risco de gravidez, casamento forçado 
e outros problemas. Fräulein, recebidos seus oito contos, 
parte, mergulhando Carlos num luto monstruoso. Faz par-
te de seu crescimento.
Após isso, a narrativa flagra Fräulein ensinando um 
outro garoto da burguesia de Higienópolis, Luís. Não sente 
prazer nesse serviço agora, talvez por ter em mente Car-
los, mas o está seduzindo, abrindo-lhe o caminho para o 
amor. É sua profissão. Precisa ser prática para juntar di-
nheiro e voltar para a Alemanha.
É Carnaval. Em meio à folia de rua, Elza vê Carlos. Ati-
ra-lhe uma serpentina para chamar sua atenção. O rapaz a 
vê e a cumprimenta formalmente. Parece estar mais ocu-
pado em curtir a garota que lhe faz companhia.
Fräulein tem um misto de emoções. Ao mesmo tem-
po em que seu lado sonhador sente-se frustrado – o ra-
paz, depois do tanto que ocorreu, mostrou-se frio –, sen-
te-se realizada ao lembrar de todos os que iniciou, os que 
ensinou o amar, intransitivamente, ou seja, a amar não 
importa qual seja o objeto, o alvo. É como se quisesse en-
sinar que o mais importante é aprender a amar intransiti-
vamente para depois poder amar alguém, transitivamen-
te. Vê-se, pois, como a mãe do amor. Transforma-se em 
um arquétipo, em um mito
2. A MORTE E A MORTE DE QUINCAS 
 BERRO D’ÁGUA 
 Jorge Amado
Jorge Amado é um dos escritores brasileiros mais co-
nhecido no exterior, senão o mais conhecido. Autor de ro-
mances ditos “regionalistas”, definiu-se certa vez como “ape-
nas um baiano romântico e sensual”. É bem mais que isso, 
nós sabemos: através de suas mãos, nasceram personagens 
inesquecíveis: Gabriela, Tieta e... Quincas Berro D’água. 
A morte e a morte de Quincas Berro D’água é, antes 
de tudo, uma crítica azeda aos comportamentos burgue-
ses. A par disso, Jorge Amado soube colocar sua imagina-
ção a serviço do humor e da ironia: criou, nas 12 partes da 
novela, um homem, Quincas, que, mesmo morto, vai ter 
sua noite de almirante. E já começa anunciando o enigma: 
“Até hoje permanece certa confusão em torno da 
morte de Quincas Berro D’água. Dúvidas por explicar, 
detalhes absurdos, contradições no depoimento das tes-
temunhas, lacunas diversas. Não há clareza sobre hora, 
local e frase derradeira. A família, apoiada por vizinhos e 
conhecidos, mantém-se intransigente na versão da tran-
quila morte matinal, sem testemunhas, sem aparato, sem 
frase.” 
A família de um lado, os amigos do outro... Segundo a 
versão de Mestre Manuel e Quitéria do Olho Arregalado, 
não foi nada disso. Mas que diabo de história é essa? A 
história de um homem que, nos últimos anos de sua exis-
tência tornara-se desgosto da família, que abandonara a 
partir da aposentadoria. 
Uma mulher chata e faladeira, uma filha que lhe se-
guira os passos, e o nosso Quincas debandou: de homem 
íntegro e cumpridor, caiu na vida e se transformou no bê-
bado mais famoso da Bahia, no frequentador da zona do 
cais do porto.
O narrador, em terceira pessoa, nos avisa que um ho-
mem pode ter muitas mortes. Inclusive aquela, a de que 
seu nome fosse pronunciado na frente dos netos, obser-
vando-se que o cabo Joaquim, homem bom e trabalhador, 
morrera cercado da estima e do respeito de todos. 
Os colegas de repartição de Leonardo Barreto, o genro 
de Quincas, e as amigas de Vanda, a filha envergonhada, to-
dos achavam que Quincas era homem justo e bom. 
Mas descobriram , por fim, de quem se tratava. En-
tão, quando um santeiro veio avisar que Quincas morrera 
de verdade, a filha e o genro acharam bom o fato: estavam 
finalmente livre das vergonhas públicas praticadas por 
ele. Mas precisavam enterrá-lo. Foram encontrá-lo naque-
le catre sujo, estendido, com o dedão do pé a sair da meia 
furada e um sorriso de escárnio a bailar no rosto. “Era o 
cadáver de Quincas Berro D’água, cachaceiro, debochado 
e jogador, sem família, sem lar, sem flores e sem rezas.” 
A mulher Otacília certamente morrera de desgos-
to quando o marido, aos 50 anos, abandonara a família, 
a casa e os hábitos distintos , os conhecidos e amigos e 
fora vagabundear pelas ruas, beber em botequins bara-
tos, frequentar a zona do meretrício, viver sujo e barba-
do, morar em infame pocilga e dormir em catre miserável. 
Enquanto esperavam o atestado de óbito, Vanda imagina 
que poderá pedir a aposentadoria do pai para si. E era pre-
ciso enterrá-lo. Na pocilga em que o pai morava, não havia 
nada para sentar, a não ser um caixão de querosene vazio. 
Expulsou os curiosos e esperou. Comprado o caixão, ima-
ginou levar o pai para casa e velá-lo como se fosse cristão. 
Tia Marocas, gorda de dar medo, achava melhor espalhar 
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que ele morrera no interior e que só fariam o convite para 
a missa de sétimo dia. E assim foi feito o velório, com os 
parentes se revezando. À tarde, Vanda ficou a sós com o 
pai; a humilhação de anos e anos, a morte da mãe e os no-
mes que davam ao pai: rei dos vagabundos da Bahia, ca-
chaceiro-mor de Salvador, senador das gafieiras... olhan-
do o pai morto, sentiu , finalmente, que domara Quincas. 
Mas, em meio a devaneios sobre a infância, lembrando-se 
depois de quando iria se casar e que o pai as abandonara, 
ouviu o desaforo sibilante de Quincas:
– Jararaca!
Pensou estar sonhando. Mas quando tia Marocas en-
trou, Quincas vingou-se: 
– Saco de peidos! E ajeitou-se no caixão...
A notícia da morte de Quincas espalhara-se pelas 
ruas de Salvador e se lembravam os amigos de que ele 
jamais admitia morrer numa cama e porque se desequili-
brasse sempre, depois de beber, dizia que era porque era 
um velho marinheiro, um homem do mar. Homem como 
poucos, diziam, que passara anos sem beber água e re-
conhecia uma pinga pelo cheiro ou cor. Mas que um dia 
berrara assustadoramente porque bebera água em lugar 
de pinga, num balcão imundo perto do Elevador Lacerda...
No começo da noite, foram os amigos mais ínti-
mos velar Quincas: Curió, Negro Pastinha , cabo Martim 
e Pé-de-Vento. Tinham chorado muito e estavam ainda 
sóbrios, ofereceram-se para tomar conta do morto. A fa-
mília aceitou, as mulheres se foram e os homens, um a 
um , também. Eduardo que deu aos amigos dinheiro para 
que comprassem sanduíches, prometendo voltar pela ma-
nhã, para o enterro. Os amigos puseram um sapo entre 
as mãos do defunto que se iluminou; deram-lhe depois a 
bebida, sentaram-no no caixão, vestiram-no com as rou-
pas velhas e o descalçaram. Quincas começou a falar, os 
amigos o puseram de pé e saíram com ele para a noite. 
Quincas divertiu-se por toda a noite, entre prosti-
tutas e bêbados, e terminou a noite entre as pernas de 
Quitéria, sentado na praia. Depois, no saveiro de Mestre 
Manuel, foi colhido por uma onda e desapareceu no mar, 
o velho marinheiro. Mas dizem que antes de desaparecer, 
ainda gritou, bem alto: 
“Me enterro como entender 
Na hora que resolver. 
Podem guardarmeu caixão 
Pra melhor ocasião. 
Não vou deixar me prender 
Em cova rasa do chão.” 
3. O FILHO ETERNO
Cristóvão Tezza
O AUTOR
Cristóvão Tezza nasceu em 21/08/1952, em Lages, SC. 
Romancista, ex-relojoeiro, radicado em Curitiba, ex-professor 
da Universidade Federal do Paraná, doutor em literatura. 
Escreveu seu primeiro livro, considerado “muito ruim” por 
ele mesmo, aos 13 anos. Em Curitiba, Tezza construiu dis-
cretamente uma das mais consistentes carreiras de escritor 
do Brasil atual, com catorze livros de ficção publicados.
Sua primeira obra, para valer mesmo, foi uma coletâ-
nea de contos: A cidade inventada de 1980. A partir daí, não 
parou mais de escrever, e na sequência vieram: O terrroris-
ta lírico (1981) e Ensaio da paixão (1982). 
Depois de uma pausa para refletir sobre sua carreira, 
publica Trapo (1988) que o projeta no cenário da literatura 
brasileira.
Nos anos seguintes, publicou os romances: Aventuras 
provisórias (1989), (Prêmio Petrobrás de Literatura), Julia-
no Pavollini (1989), A suavidade do vento (1991), O fan-
tasma da infância (1994), Uma noite em Curitiba (1995). 
Em 1998, seu romance Breve espaço entre cor e som-
bra foi contemplado com o Prêmio Machado de Assis da 
Biblioteca Nacional (melhor romance do ano); e O fotó-
grafo (2004) recebeu o Prêmio da Academia Brasileira de 
Letras de melhor romance do ano.
Tezza confessa ser um daqueles autores que, em nome 
da devoção incondicional à literatura, são capazes de engo-
lir durante anos a fio recusas de editoras e eventuais fracas-
sos de venda. Ainda assim, vão adiante, porque creem que 
o que conta é o embate original com as folhas de papel em 
branco (ou com a tela alva do computador): neste cenário 
íntimo, pessoal e intransferível, o escritor se entrega à aci-
dentada tarefa de tentar traduzir a vida em palavras, “dar 
nome às coisas”. Todo o resto é acidente, vaidade, desvio, 
perda de tempo, mera consequência.
A OBRA
Publicado em julho de 2007, O filho eterno, já foi pre-
miado quatro vezes: Prêmio da APCA (Associação Paulista 
dos Críticos de Arte) de melhor obra de ficção do ano, em 
2007; Prêmio Portugal Telecom, em 2008; Prêmio Jabuti, 
em 2008 e Prêmio São Paulo de Literatura 2008. Embora 
tenha recebido esses prêmios como obra de ficção, é um 
texto escancaradamente autobiográfico.
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Condenável no cotidiano, a crueldade pode ser uma 
virtude literária. Ela é a grande qualidade de O Filho Eter-
no. As limitações físicas e intelectuais de uma criança com 
síndrome de Down são descritas com objetividade clínica. 
Com um foco obsessivo nas percepções do pai, a narrati-
va explora os sentimentos mais mesquinhos desse alter 
ego de Tezza: a vergonha, o ressentimento que ele tantas 
vezes nutre em relação ao filho – e até o consolo vil que 
encontra fantasiando a morte da criança. 
Tezza descreve, sem jamais cair no melodrama ou na 
pieguice, esse acontecimento que o fez se sentir como se 
fosse um boi cabeceando inutilmente contra as paredes 
do corredor de um matadouro. 
“Ele recusava-se a ir adiante na linha do tempo; luta-
va por permanecer no segundo anterior à revelação, como 
um boi cabeceando no espaço estreito da fila do mata-
douro; recusava-se mesmo a olhar para a cama, onde to-
dos se concentravam num silêncio bruto, o pasmo de uma 
maldição inesperada. Isso é pior do que qualquer coisa, ele 
concluiu- nem a morte teria esse poder de me destruir. A 
morte são sete dias de luto, e a vida continua. Agora, não. 
Isso não terá fim. Recuou dois, três passos, até esbarrar 
no sofá vermelho e olhar para a janela, para o outro lado, 
para cima, negando-se, bovino, a ver e a ouvir”.
Referir-se a si próprio na terceira pessoa virou sinôni-
mo de vaidade, mas o autor de O Filho Eterno se enquadra 
na categoria dos que falam de si próprios na terceira pes-
soa por outro motivo: o excesso de pudor na hora de subir 
à ribalta para se expor aos olhos do público. É compreen-
sível. O fato de a narração ser feita na terceira pessoa é, 
provavelmente, o único detalhe que impede esta obra de 
se enquadrar na categoria de autobiografia. 
“Pai e mãe são tomados pelo silêncio. É preciso espe-
rar para que a pedra pouse vagarosamente no fundo do 
lago, enterrando-se mais e mais na areia úmida, no limo e 
no limbo, é preciso sentir a consistência daquele peso irre-
movível para todo o sempre, preso na alma, antes de dizer 
alguma coisa. Monossílabos cabeceantes, teimosos – os 
olhos não se tocam”.
O livro pode ser classificado também como uma bela 
reportagem autobiográfica de um pai que toma para si 
uma tarefa dificílima: a de narrar uma dor inenarrável ou, 
para usar uma palavra que é cara ao autor, “irredimível”.
“Em um átimo de segundo, em meio à maior vertigem 
de sua existência, a rigor a única que ele não teve tempo 
(e durante a vida inteira não terá) de domesticar numa re-
presentação literária, apreendeu a intensidade da expres-
são “para sempre” – a ideia de que algumas coisas são 
de fato irremediáveis, o sentimento absoluto, mas óbvio, 
de que o tempo não tem retorno, algo que ele sempre se 
recusava a aceitar. Tudo pode ser recomeçado, mas agora 
não: tudo pode ser refeito, mas isso não ; tudo pode voltar 
ao nada e se refazer, mas agora tudo é de uma solidez 
granítica e intransponível : o último limite, o da inocência, 
estava ultrapassado; a infância teimosamente retardada 
terminava aqui, sentindo a falta de sangue na alma, recu-
ando aos empurrões, sem mais ouvir aquela lengalenga 
imbecil dos médicos”.
Quem termina a travessia arrebatadora das 222 pági-
nas de “O Filho Eterno” haverá de sentir um alívio e uma 
alegria. O leitor concluirá que, feitas as contas, o poeta 
Drummond tinha toda razão ao dizer que nossa existência 
é “um sistema de erros”, “um vácuo atormentado”, “um 
teatro de injustiças e ferocidades”, mas, no caso de Cristo-
vão Tezza, tanta dor, tanto tormento, tanto espanto, tanto 
vácuo, tanto remorso, tanta incredulidade, tudo, enfim, 
foi recompensado com uma bela contrapartida, o melhor 
prêmio que um escritor poderia esperar : concebeu um 
livro que todos deveriam ler sobre um personagem que 
todos haverão de amar. Chama-se Felipe.
É este o nome do filho eterno.
“Se eu escrever um livro sobre ele, ou para ele, o pai 
pensa, ele jamais conseguirá lê-lo”
“Eu não posso ser destruído pela literatura; eu tam-
bém não posso ser destruído pelo meu filho – eu tenho um 
limite : fazer, bem-feito, o que posso e sei fazer, na minha 
medida. Sem pensar, pega a criança no colo, que se larga 
saborosamente sobre o pai, abraçando-lhe o pescoço, e 
assim sobem as escadas até a porta de casa”
“Durante todos esses anos sentiu o peso ridículo de 
ser escritor, alguém que publica livros aos quais não há 
resposta, livros que ninguém lê; e resistiu bravamente, e 
pelo menos nisso teve sucesso, ao consolo confortável, à 
coceira na língua, quase sempre calhorda, de despejar no 
mundo as culpas da própria escolha”
O momento em que os médicos revelam a condição 
do filho aos pais, os torturantes exercícios de estimulação 
a que o menino Down é submetido, o conflito do pai com 
a diretora de escola que não quer mais acolher a crian-
ça “especial” – todas essas cenas são narradas com um 
desencanto duro. A brutalidade das palavras, aliás, é um 
tema forte: nos anos 80, quando Felipe nasceu, os por-
tadores da síndrome de Down ainda eram chamados de 
“mongolóides”. Mas o romance também alcança uma de-
licadeza ímpar, ao retratar o progressivo envolvimento do 
pai literato com o filho que nunca aprendeu a ler.
Paralelamente à relação com o filho, Tezza reconstitui 
sua formação literária. O personagem do escritor fracas-
sado, meio marginal, já tinha suas ilusões desmontadas 
em livros anteriores como Trapo e O Fantasma da Infân-
cia. Em O Filho Eterno, o menino que não entende abstra-
ções temporais simples como “semana que vem” dá uma 
espécie de choque de realidade no pai meio hippie, que 
trazia dos anos 70 a pretensão de ser um artista “contra 
6
UEPG – 2017o sistema”. As páginas finais flagram pai e filho assistindo 
a um jogo do Atlético Paranaense na televisão. Um fugaz 
momento de felicidade doméstica que nenhuma utopia 
pode superar. 
O narrador, onipresente, alterna entre épocas, lem-
brando as desventuras do pai adolescente nos anos 70, 
vivendo o nascimento e crescimento do filho nas décadas 
de 80 e 90, terminando a história em 2006. A história prin-
cipal começa com o pai tendo 28 anos e termina com o 
filho perto dessa idade. Os primeiros capítulos são quase 
sequências de eventos, para depois ir se pulando dias, se-
manas, meses e anos.
O livro é escrito em capítulos que parecem contos 
reunidos, escritos aleatoriamente em épocas diferentes. 
Tanto é que capítulos poderiam ser retirados do livro sem 
que sentisse falta. Algumas características aparecem mais 
visíveis em alguns capítulos, indicando que foram escritos 
na mesma época. 
ENREDO
O principal fio narrativo da história começa nos anos 
80 com um aspirante a escritor, que nunca teve emprego 
fixo na vida, que é sustentado pela mulher durante o pe-
ríodo em que não publica nem vende nada, e que é sur-
preendido pela notícia do seu primeiro filho ter síndrome 
de Down. Já no hospital, no dia do nascimento, o pai as-
sume o papel de anti-herói calhorda, hipócrita e insensí-
vel (ou simplesmente politicamente incorreto) ao rejeitar 
e menosprezar aquele filho diferente, tratando-o como 
um estorvo para os seus planos de sucesso, liberdade e 
sociabilidade. Ele até torce para que o menino morra. E 
usa o repertório mais inimaginável de palavras para o filho 
que alguém em sã consciência jamais usaria: algo, a coisa, 
um ser insignificante, criança horrível, pequeno monstro, 
pedra inútil, deficiente mental, absolutamente nada, pe-
queno leproso, problema a ser resolvido, idiota, pequena 
vergonha, filho-da-puta.
A esposa, sempre chamada de ela, aparece em um 
papel secundário, ela é um meio para se chegar a um fim: 
sustentá-lo enquanto não ganha dinheiro. Ou é a culpada 
por o filho ser diferente e tola por insistir nos tratamen-
tos. Tanto é que o protagonista a toda hora se imagina lar-
gando a esposa e filho para recomeçar a vida sozinho, em 
outro lugar. Ele não conta como a conheceu, nem como se 
casaram, nem como ocorreu a gravidez e a gestação. Para 
ele, importa mais lembrar de uma paixonite adolescente 
que não deu certo. Mas a aversão dele não é só porque o 
menino é diferente, mas porque não queria filhos, indi-
cando que a gravidez provavelmente não foi planejada e 
confirmando a hipótese ao mesmo tratamento insensível 
dispensado para a filha caçula, normal.
“A primeira criança de um casamento é uma aporri-
nhação monumental – o intruso exige espaço e atenção, 
chora demais, não tem horário nem limites, praticamente 
nenhuma linguagem comum, não controla nada em seu 
corpo, que vive a borbulhar por conta própria, depende 
de uma quantidade enorme de objetos (do berço à mama-
deira, do funil de plástico às fraldas, milhares delas) até 
então desconhecidos pelos pais, drena as economias, o 
tempo a paciência, a tolerância, sofre males inexplicáveis 
e intraduzíveis, instaura em torno de si o terror da fragili-
dade e da ignorância, e afasta, quase que aos pontapés, 
o pai da mãe. É uma criança – como todo recém-nascido 
– feia . É difícil imaginar que daquela coisa mal-amassada 
surja como que por encanto algum ser humano, só pela 
força do tempo”.
Porém, a coisa muda, um pouco, antes da metade do 
livro. Tempo e a convivência fazem o pai olhar o filho dife-
rente, comparando características e limitações do menino às 
que ele possui como pai, pessoa e escritor. Ele não admite 
mudar por causa do filho, mas que se resignou com a situa-
ção, como sempre fez na vida.
Além da relação pai e filho, é contada paralelamen-
te as aventuras do pai quando jovem em Portugal (Coim-
bra), França (Paris) e Alemanha (Hauptbahnhof) como 
mochileiro que trabalhava em subempregos que con-
seguia só para ter o que comer e onde dormir, e que lia 
mais do que aproveitava o lugar. Ou, no Brasil, em um 
grupo de teatro interrogado por policiais durante a di-
tadura militar (em São Paulo) e quando se apaixona pla-
tonicamente pela primeira vez (em Antonina, Paraná). 
 O interessante é que muitas das limitações do filho são 
descritas como se fossem dele, como se o pai visse no fi-
lho exatamente aquilo que há dentro dele. As passagens 
a seguir são sobre o filho, mas poderiam ser sobre o pai.
“A criança parece não responder ao seu afeto; vive na 
sua própria redoma – parece que nada do que há em volta 
toca a ela de fato” .
“Ele não gosta do imperativo, nem mesmo para si pró-
prio, ao espelho: ninguém me dá ordens. Um orgulho idiota, 
um pequeno teatro: passou a vida obedecendo, tentando se 
ajustar a alguma coisa que ele não sebe o que é”.
O conformismo do pai, que durante a juventude de-
sejava ser um rebelde bem ao estilo Nietzsche de ser, ten-
ta justificar a perda de tempo que a sua vida sempre foi. 
Ser um marmanjo desempregado sustentado pela mulher 
é apresentado como não aderir ao sistema e persistir o 
sonho de tornar-se escritor. Mas cede ao sistema e vai tra-
balhar como professor público universitário. Não aceitar o 
filho deficiente, desejando que o menino morra ou aban-
donar a família para recomeçar sozinho em outro lugar 
são motivos para alegrá-lo em seus devaneios libertários. 
Mas só demonstram a vida e pensamento mesquinho do 
protagonista, quer ele reconheça ou não isso.
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UEPG – 2017
Nada do que não foi poderia ter sido. 
Esta é uma frase-chave deste belo romance de Cris-
tovão Tezza. De fato, quando olhamos para o passado, a 
ideia de que nada poderia ter sido diferente serve de con-
solo – talvez por isso a noção de destino nos seja tão cara. 
Mas há escolhas que fazemos diariamente, e são estas 
que traçam o curso da nossa vida.
ANÁLISE
O filho eterno é uma narrativa seca de desencanta-
mento, em terceira pessoa, onde os personagens não têm 
nome, com exceção do filho, Felipe, e são chamados de 
“ele”, “o pai”, “a mulher”, “a mãe”, “a filha”, “a irmã”. Mes-
mo Felipe frequentemente aparece como “o filho” em 
contraposição ao “pai”. Não encontramos o lugar-comum, 
o apelo ao sentimento de pena e empatia, e, acredito, ser 
isso uma das qualidades de uma história que prende o 
leitor por não fornecer respostas e soluções óbvias, pelo 
contrário, a surpresa é uma constante durante a leitura. 
Percorremos a trajetória do personagem pai e, dentro de 
sua história, acompanhamos a trajetória do personagem 
filho, Felipe. O treinamento neurológico nos primeiros 
anos de vida do filho é contrastado com o ‘treinamento’ 
do pai em relação às tentativas de publicar seus livros e as 
recusas das editoras: 
Eu também estou em treinamento, ele pensa, lem-
brando mais uma recusa de editora. A vida real começa a 
puxá-lo com violência para o chão, e ele ri imaginando-se 
no lugar do filho, coordenando braços e pernas para ficar 
em pé no mundo com um pouco mais de segurança. 
O crescimento e o desenvolvimento do filho são perce-
bidos pelo pai nas representações de papéis sociais que o fi-
lho se esforça em cumprir. Ao mesmo tempo, o pai descobre 
a alegria que a rotina traz e a tranquilidade conquistada com 
papéis sociais como “o professor universitário”, “o escritor”. 
É uma tendência natural tomarmos partido pelos fra-
cos e indefesos, ainda mais se o ataque é injusto. O hu-
mor (negro) que o protagonista repete várias vezes como 
a sua melhor característica, quando faz alguma observa-
ção mordaz, na verdade são sarcasmo e ironia egoístas 
de quem tem medo de enfrentar a realidade de frente. 
A antipatia que protagonista gera – fórmula perfeita com 
efeitos imediatos no leitor no começo – cai quando o foco 
da trama se desloca para a ingenuidade do filho.
4. LIVRO SOBRE NADA 
Manoel de Barros
MANOEL DE BARROS, poeta e fazendeiro mato-gros-
sense, nasceu em 1916 e teve seu primeiro livro publicado 
em 1937 – Poemas concebidos sem pecado. Passou a ser 
mais conhecidoa partir do ano de 1997, quando ganhou o 
prêmio Nestlé de Literatura. 
Livro sobre Nada, de Manoel de Barros, é um livro de 
poesia, prosa e de poesia em prosa, de “pensamentos” e 
fragmentos. Um livro diferente, sem um gênero definido.
Na abertura da obra, diz o poeta:
[...]o nada de meu livro é nada mesmo. É coisa nenhu-
ma por escrito: um alarme para o silêncio, um abridor de 
amanhecer, pessoa apropriada para pedras, o parafuso de 
veludo, etc etc. O que eu queria era fazer brinquedos com 
as palavras. Fazer coisas desúteis. O nada mesmo. Tudo 
que use o abandono por dentro e por fora.
O poeta assume a postura de uma criança, o olhar 
intangível do infante percebe o mundo muito grandiosa-
mente. O doutor formado e educado tornou-se adulto, 
perdeu a percepção do mundo real (sensacional).
A poesia, é uma organização muito especial de sig-
nos que se estabelece, particularmente, em função da 
subversão dos elementos componentes da ordem linguís-
tica. Nesta direção, o poeta trilha a senda da transgressão 
verbal, dos deslimites do discurso.
Livro sobre Nada é uma obra instigante, a começar 
pelo título. O autor demonstra, observa-se na leitura, 
segurança e orientação com respeito ao solo que pisa, o 
da linguagem, da palavra como negação da representação, 
como contradiscurso.
Neste decurso, o nada de Manoel gradativamente 
assume e se traveste de caminhos temáticos próprios e 
específicos (a infância, a utopia, o paradoxo, a loucura).
A partir desta geografia positiva, o poeta busca fazer 
o signo verbal encarnar, paradoxalmente, o nada.
No primeiro poema do livro o eu lírico diz: 
As coisas tinham para nós uma desutilidade poética. / 
Nos fundos do quintal era muito riquíssimo o nosso dessaber. 
O texto é denso, uma grande metáfora, para falar ape-
nas de uma das muitas figuras de linguagem usadas pelo 
autor. O fato de usar palavras desconhecidas de grande 
parte dos leitores é um laboratório no mínimo interessan-
te, pois além de forçar o leitor a ampliar o seu vocabulário, 
embora não vá usar aquelas palavras, os significados das 
figuras construídas são originais e singulares, beirando o 
incompreensível e resultam num estilo próprio, cumprin-
do o objetivo do autor de “fazer brinquedos com as pa-
lavras”. Ele inventa palavras, também, deixando a poesia 
ou a prosa mais incomum, ou, como ele mesmo diz, “coisa 
nenhuma por escrito” ou “um abridor de amanhecer”.
Livro sobre Nada nos conduz ao non sense, à seara do 
paradoxo, a um silêncio que se evidencia à medida que pro-
cedemos à leitura dos capítulos “Arte de infantilizar formi-
gas”, “Desejar ser”, “O livro sobre nada” e “Os Outros: o 
melhor de mim sou Eles”.
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UEPG – 2017
A ARTE DE INFANTILIZAR FORMIGAS 
Depois de ter entrado para rã, para árvore, para pedra
– meu avô começou a dar germínios
Queria ter filhos com uma árvore.
Sonhava de pegar um casal de lobisomem para ir
vender na cidade.
Meu avô ampliava a solidão.
No fim da tarde, nossa mãe aparecia nos fundos do
quintal : Meus filhos, o dia já envelheceu, entrem pra
dentro.
Um lagarto atravessou meu olho e entrou para o mato.
Se diz que o lagarto entrou nas folhas, que folhou.
Aí a nossa mãe deu entidade pessoal ao dia.
Ela deu ser ao dia,
e Ele envelheceu como um homem envelhece.
Talvez fosse a maneira
Que a mãe encontrou para aumentar
as pessoas daquele lugar
que era lacuna de gente.
Neste poema nota-se a forte carga emotiva que o 
“avô” possui em relação à natureza, mostrando a ideia 
de fertilidade (versos 3, 4 e 5), o isolamento (ampliava a 
solidão), a personificação do dia (prosopopeia), além do 
pleonasmo vicioso “entrem para dentro”, típico da lingua-
gem coloquial, nos versos nº 8 e 9: “Meus filhos, o dia já 
envelheceu, entrem para dentro”. Assim, “Arte de infanti-
lizar formigas” dá início à lista de “inconexos”, apresenta 
passagens da infância do autor. A relação com o universo 
infantil é essencial nesta parte do livro e vai insinuar 
vários fatores, entre eles, a valorização da pequenez, da 
simplicidade, das insignificâncias. Manoel dignifica “coi-
sinhas sem santidade” como os “urinóis enferrujados” 
apregoados pelo avô (que era, aliás, “o próprio indizível 
pessoal”), bem como garças, rolinhas, rãs, lagartos, tras-
tes, formigas, violetas e outras “coisas imprestáveis”.
O escritor se vale bastante do prefixo negativante 
“des” para caracterizar a ilogicidade, como se nota em:
As coisas tinham para nós uma desutilidade poética.
Nos fundos do quintal era muito riquíssimo o nosso 
dessaber.
A consciência do signo poético e de todo o seu poten-
cial irrompe, transborda pelos significantes de “Desejar 
Ser”. Na epígrafe deste capítulo, Barros invoca Vieira em 
suas “Paixões Humanas”:
O maior apetite do homem é desejar ser. Se os olhos 
veem com amor o que não é, tem ser, o que significa que 
o homem só será (homem), possibilidade inscrita na es-
fera do desejo e do alimento, isto é, daquilo que vai mo-
vimentar a condição humana, quando ele for capaz de 
enxergar não o que é, mas justamente o que não é. Esta 
parte da obra é metalinguística, isto é, a poesia fala, dá e 
apresenta a própria trama poética (conforme um duplo 
de linguagem), temos o homem falando de sua precisa 
humanidade, na proporção em que a tece e a demonstra 
na malha dos versos.
O primeiro poema se constitui de um único verso, e diz:
Com pedaços de mim eu monto um ser atônito. (per-
plexidade, espanto)
No sexto cântico, lemos:
Carrego meus primórdios num andor.
Minha voz tem um vício de fontes.
Eu queria avançar para o começo.
Chegar ao criançamento das palavras.
Lá onde elas ainda urinam na perna.
Antes mesmo que sejam modeladas pelas mãos.
Quando a criança garatuja o verbo para falar o que 
não tem.
Pegar no estame do som.
Ser a voz de um lagarto escurecido.
Abrir um descortínio para o arcano.
(referência aos primórdios, morte, caminho para um 
fim, retorno às origens, o reencontro com o universo in-
fantil ou dos homens primitivos). 
“Quando a criança garatuja o verbo para falar o que 
/ não tem.”, podemos abrir uma fresta para o mistério, 
fenda que nos desvela o que não se representa.
Do canto oito:
... Pertenço de fazer imagens.
Opero por semelhanças.
Retiro semelhanças de pessoas com árvores
de pessoas com rãs
de pessoas com pedras
etc etc.
Retiro semelhanças de árvores comigo.
Canto catorze, poema central da obra:
O que não sei fazer desmancho em frases
Eu fiz o nada aparecer
(Represente que o homem é um poço escuro
Aqui de cima não se vê nada
Mas quando se chega ao fundo do poço já se pode ver
o nada)
Perder o nada é um empobrecimento.
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UEPG – 2017
(menção explícita ao nada) Nos versos seguintes, la-
crados dentro de parênteses, o rumo para este nada: o 
homem como um poço escuro. De cima, na sua superfície, 
não se vê nada (observe a relevância desta negativa que 
afirma e confirma o nada, que o coloca como matéria de 
algo, de alguma coisa).
Mergulhemos agora na porção que nomeia o livro. 
Trata-se de uma série de aforismos em que estão expostos 
versos aparentemente ilógicos, paradoxais:
Tudo que não invento é falso.
Tem mais presença em mim o que me falta.
Meu avesso é mais visível que um poste.
Ao mesmo tempo, o autor tece considerações sobre 
seu fazer poético que parecem denotar firme consciência 
do solo linguístico, como em
As palavras me escondem sem cuidado.
Uma palavra abriu o roupão para mim. Ela deseja 
que eu a seja.
A terapia literária consiste em desarrumar a lingua-
gem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos.
O que sustenta a encantação de um verso (além do 
ritmo) é o ilogismo.
Livro sobre nada, é também um livro sobre as virtudes.
O melhor porém é que mais ainda do que antes, Ma-
noel de Barros aloja no seu livro várias máscaras, alguns 
alter-egos e personagens: seu pai, sua irmã Bugrinha, o 
avô insondavelmente teatral, que simulou um dia “cortar 
o phalo com o lado grosso da faca”, e povoa o seu mundo 
com eles.
Na última parte do livro, “Os Outros: o melhor de 
mim sou Eles”, a atenção está voltada paraa alteridade, 
a partir da identificação do poeta com os artistas e, espe-
cialmente, com os loucos, andores humanos da contrar-
representação, muitas vezes estereotipados e expurgados 
pelo corpo social.
Assim, nesta última seção, o poeta como que se dis-
solve em alguns desses alter egos: um pintor boliviano, 
Rômulo Quiroga, em cuja pintura em sacos de aniagem 
ele viu “latejar a cor psíquica e as formas incorporantes de 
Picasso”, e lhe ensinou que é preciso eliminar da natureza 
“as naturalidades”; Mário, um tipo do Pantanal que lia o 
seu futuro nas entranhas dos animais; o artista plástico 
Arthur Bispo do Rosário, cuja obra, “ardente de restos”, 
tem semelhança assombrosa com o melhor da poesia do 
próprio Barros, que estampou num livro: “Aceita-se entu-
lho para o poema”.
São interessantíssimos os casos em primeira pessoa, 
como o do filósofo de beco Bola-Sete, que afirmava que-
rer “fazer uma biografia do orvalho”, ou o do louco andari-
lho que dizia: “Andando devagar eu atraso o final do dia”. 
Inusitado outrar-se: o autor se traveste de louco para criar 
sua poesia, descolada, óbvio, do signo tradicional.
No poema intitulado “A. B. do R.”, surge um famoso 
personagem:
Artur Bispo do Rosário se proclamava Jesus. Sua obra 
era ardente de restos: estandartes podres, lençóis encar-
didos, botões cariados, objetos mumificados, fardões da 
Academia, Miss Brasil, suspensórios de doutores – coisas 
apropriadas ao abandono. Descobri entre seus objetos 
um buquê de pedras com flor. Esse Artur Bispo do Rosário 
acreditava em nada e em Deus.
O “condão de adivinhar” versus a linguagem infor-
mativa
A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um
sabiá
Mas não pode medir seus encantos.
A ciência não pode calcular quantos cavalos de força
Existem
Nos encantos de um sabiá. 
Quem acumula muita informação perde o condão de 
adivinhar: divinare. 
Os sabiás divinam.
No penúltimo verso deste poema, o eu-lírico diz: 
“Quem acumula muita informação perde o condão de 
advinhar: divinare”. Neste verso percebe-se uma outra 
nuança da poesia de Manoel de Barros, ou seja, a opo-
sição entre a linguagem informativa e a que poderíamos 
chamar criadora, “advinhativa
Inútil, nada, coisa, bichos. Essas são algumas das pa-
lavras-chave de uma obra que tenta reconstruir o mundo 
e a grande antítese formada por aqueles que só têm “en-
tidade coisal “ X “senhor doutor”.
I. ...As coisas tinham para nós uma desutilidade poéti-
ca. Nos fundos do quintal era riquíssimo o nosso dessabor. 
A gente inventou um truque para fabricar brinquedos com 
palavras...
II. o pai morava no fim de um lugar. Aqui é lacuna 
de gente – ele falou: Só quase que tem bicho andorinha e 
árvore. Quem aperta o botão do amanhecer é o arãquã. 
Um dia apareceu por lá um doutor formado: cheio de sus-
pensórios e ademanes. Na beira dos brejos gaviões-caran-
guejeiros comiam caranguejos. E era mesma distância en-
tre as rãs e a relva. A gente brincava com terra. O doutor 
apareceu. Disse: Precisam de tomar anquilostomina. Perto 
de nós sempre havia uma espera de rolinhas. O doutor es-
pantou as rolinhas.
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OUTROS POEMAS DO LIVRO
O APANHADOR DE DESPERDÍCIOS
Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.
RETRATO DO ARTISTA QUANDO COISA
A maior riqueza
do homem
é sua incompletude.
Nesse ponto
sou abastado.
Palavras que me aceitam
como sou
— eu não aceito.
Não aguento ser apenas
um sujeito que abre
portas, que puxa
válvulas, que olha o
relógio, que compra pão
às 6 da tarde, que vai
lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai. Mas eu
preciso ser Outros.
Eu penso
renovar o homem
usando borboletas.
O FAZEDOR DE AMANHECER
Sou leso em tratagens com máquina.
Tenho desapetite para inventar coisas prestáveis.
Em toda a minha vida só engenhei
3 máquinas
Como sejam:
Uma pequena manivela para pegar no sono.
Um fazedor de amanhecer
para usamentos de poetas
E um platinado de mandioca para o
fordeco de meu irmão.
Cheguei de ganhar um prêmio das indústrias
automobilísticas pelo Platinado de Mandioca.
Fui aclamado de idiota pela maioria
das autoridades na entrega do prêmio.
Pelo que fiquei um tanto soberbo.
E a glória entronizou-se para sempre
em minha existência.
TRATADO GERAL DAS GRANDEZAS DO 
ÍNFIMO
A poesia está guardada nas palavras — é tudo que 
eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insigni-
ficâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.
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UEPG – 2017
PREFÁCIO
Assim é que elas foram feitas (todas as coisas) —
sem nome.
Depois é que veio a harpa e a fêmea em pé.
Insetos errados de cor caíam no mar.
A voz se estendeu na direção da boca.
Caranguejos apertavam mangues.
Vendo que havia na terra
Dependimentos demais
E tarefas muitas —
Os homens começaram a roer unhas.
Ficou certo pois não
Que as moscas iriam iluminar
O silêncio das coisas anônimas.
Porém, vendo o Homem
Que as moscas não davam conta de iluminar o
Silêncio das coisas anônimas —
Passaram essa tarefa para os poetas.
Os deslimites da palavra
Ando muito completo de vazios.
Meu órgão de morrer me predomina.
Estou sem eternidades.
Não posso mais saber quando amanheço ontem.
Está rengo de mim o amanhecer.
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.
Atrás do ocaso fervem os insetos.
Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu destino.
Essas coisas me mudam para cisco.
A minha independência tem algemas
APRENDIMENTOS
O filósofo Kierkegaard me ensinou que cultura
é o caminho que o homem percorre para se conhecer.
Sócrates fez o seu caminho de cultura e ao fim
falou que só sabia que não sabia de nada.
Não tinha as certezas científicas. Mas que aprendera 
coisas
di-menor com a natureza. Aprendeu que as folhas
das árvores servem para nos ensinar a cair sem
alardes. Disse que fosse ele caracol vegetado
sobre pedras, ele iria gostar. Iria certamente
aprender o idioma que as rãs falam com as águas
e ia conversar com as rãs.
E gostasse mais de ensinar que a exuberância maior 
está nos insetos
do que nas paisagens. Seu rosto tinha um lado de
ave. Por isso ele podia conhecer todos os pássaros
do mundo pelo coração de seus cantos. Estudara
nos livros demais. Porém aprendia melhor no ver,
no ouvir, no pegar, no provar e no cheirar.
Chegou por vezes de alcançar o sotaque das origens.
Se admirava de como um grilo sozinho, um só pequeno
grilo, podia desmontar os silêncios de uma noite!
Eu vivi antigamente com Sócrates, Platão, Aristóteles 
— esse pessoal.
Eles falavam nas aulas: Quem se aproxima das ori-
gens se renova.
Píndaro falava pra mim que usava todos os fósseis lin-
guísticos que
achava para renovar sua poesia. Os mestres pregavam
que o fascínio poético vem das raízes da fala.
Sócrates falava que as expressões mais eróticas
são donzelas. E que a Beleza se explica melhor
por não haver razão nenhuma nela. O que mais eu sei
sobre Sócrates é que ele viveu uma ascese de mosca.
O menino que carregava água na peneira
Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.
A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e
sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.
A mãe disse que era o mesmoque catar espinhos na água.
O mesmo que criar peixes no bolso.
O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces
de uma casa sobre orvalhos.
A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio, do que do cheio.
Falava que vazios são maiores e até infinitos.
Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito,
porque gostava de carregar água na peneira.
Com o tempo descobriu que
escrever seria o mesmo
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UEPG – 2017
que carregar água na peneira.
No escrever o menino viu
que era capaz de ser noviça,
monge ou mendigo ao mesmo tempo.
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor.
A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta!
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os vazios
com as suas peraltagens,
e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!
UMA DIDÁTICA DA INVENÇÃO
I
Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:
a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca
b) O modo como as violetas preparam o dia para 
morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas 
têm devoção por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existência num 
fagote, tem salvação
e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais 
ternura que um rio que flui entre 2 lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.
 etc.
 etc.
 etc.
 Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.
II
Desinventar objetos. O pente, por exemplo.
Dar ao pente funções de não pentear. Até que
ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou
uma gravanha.
Usar algumas palavras que ainda não tenham
idioma.
III
Repetir repetir — até ficar diferente.
Repetir é um dom do estilo.
IV
No Tratado das Grandezas do Ínfimo estava
escrito:
Poesia é quando a tarde está competente para dálias.
É quando
Ao lado de um pardal o dia dorme antes.
Quando o homem faz sua primeira lagartixa.
É quando um trevo assume a noite
E um sapo engole as auroras.
V
Formigas carregadeiras entram em casa de bunda.
VI
As coisas que não têm nome são mais pronunciadas
por crianças.
VII
No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a cor dos
passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos —
O verbo tem que pegar delírio.
VIII
Um girassol se apropriou de Deus: foi em
Van Gogh.
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IX
Para entrar em estado de árvore é preciso
partir de um torpor animal de lagarto às
3 horas da tarde, no mês de agosto.
Em 2 anos a inércia e o mato vão crescer
em nossa boca.
Sofreremos alguma decomposição lírica até
o mato sair na voz .
Hoje eu desenho o cheiro das árvores.
X
Não tem altura o silêncio das pedras.
5. O OVO APUNHALADO (1975)
Caio Fernando Abreu
Talvez esse OVO sirva ainda como depoimento sobre 
o que se passava no fundo dos pobres corações e mentes 
daquele tempo. Depoimento amargo, às vezes violento, 
embora cheio de fé. (Caio Fernando Abreu)
O AUTOR 
Caio Fernando Loureiro de Abreu nasceu no dia 12 
de setembro de 1948, em Santiago, no Rio Grande do Sul. 
Jovem ainda mudou-se para Porto Alegre onde publicou 
seus primeiros contos. Cursou Letras na Universidade Fe-
deral do Rio Grande do Sul, depois Artes Dramáticas, mas 
abandonou ambos para dedicar-se ao trabalho jornalístico 
no Centro e Sul do país, em revistas como Pop, Nova, Veja 
e Manchete. 
No ano de 1968 — em plena ditadura militar — foi 
perseguido pelo DOPS (Departamento de Ordem Política 
e Social), tendo se refugiado no sítio da escritora e amiga 
Hilda Hilst, na periferia de Campinas, São Paulo. 
Considerado um dos principais contistas do Brasil, sua 
ficção se desenvolveu acima dos convencionalismos de 
qualquer ordem, evidenciando uma temática própria, jun-
tamente com uma linguagem fora dos padrões normais. 
Em 1973, querendo deixar tudo para trás, viajou para 
a Europa. Retornou a Porto Alegre em fins de 1974, sem 
parecer caber mais na rotina do Brasil dos militares: tinha 
os cabelos pintados de vermelho, usava brincos imensos 
nas duas orelhas e se vestia com batas de veludo cobertas 
de pequenos espelhos. Assim andava calmamente pela 
Rua da Praia, centro nervoso da capital gaúcha. 
Ao saber-se portador do vírus da AIDS, em setembro 
de 1994, Caio Fernando Abreu retorna a Porto Alegre, 
onde volta a viver com seus pais. Põe-se a cuidar de ro-
seiras, encontrando um sentido mais delicado para a vida. 
Foi internado no Hospital Menino Deus, onde posterior-
mente veio a falecer. 
ANÁLISE DA OBRA
Os 21 contos, divididos em três partes, Alfa, Beta, 
Gama, são ricos em fantasia e são habitat de criaturas 
como anjos, homenzinhos verdes e gravatas assassinas. 
Parece surreal de início, mas, naquela época de censura, 
o sobrenatural não passava de um pretexto para dizer coi-
sas que jamais seriam ditas em termos realistas. Mais do 
que um simples pretexto, o fantástico acabava por ser um 
combate sutil a uma ou outra censura.
Os textos presentes nesse livro conversam com os 
principais acontecimentos como, por exemplo, o movi-
mento tecnológico e a ascensão das indústrias no conto 
Ascensão e Queda de Robhéa, Manequim e Robô; o mo-
vimento hippie nos contos Retratos, Eles; e os aspectos 
da ditadura militar e todo o medo e angústia que impera-
va entre as pessoas naquele momento, isso fica claro em 
contos como Cavalo Branco no Escuro, Iniciação e no con-
to Oasis que conta a história de três crianças que brincam 
numa rua em que há um quartel militar, eles chegam a 
entrar nesse lugar, são presos.
Os contos falam também de amor, mas amores não re-
alizados, de esperança e de redenção num mundo comum 
e medíocre, como no conto “Eles” em que aparecem seres 
de fora que prometem a salvação e a mudança para quem 
quiser compreendê-los, no entanto as pessoas têm medo 
da novidade, poucos são escolhidos e se salvam. Nesse 
conto há um bonito fazer poético, principalmente nas falas 
finais: “O que eles deixaram foram estes três postulados: 
importa é a luz, mesmo quando consome; a cinza é mais 
digna que a matéria intacta e a salvação pertence àqueles 
que aceitarem a loucura escorrendo em suas veias”.
ENREDOS
NOS POÇOS
(Texto integral)
Nos poços. Primeiro você cai num poço. Mas não é ruim 
cair num poço assim de repente? No começo é. Mas você 
logo começa a curtir as pedras do poço. O limo do poço. A 
umidade do poço. A água do poço. A terra do poço. O cheiro 
do poço. O poço do poço. Mas não é ruim a gente ir entran-
do nos poços dos poços sem fim? A gente não sente medo? 
A gente sente um pouco de medo mas não dói. A gente não 
morre? A gente morre um pouco em cada poço. E não dói? 
Morrer não dói. Morrer é entrar noutra. E depois: no fundo 
do poço do poço do poço do poço você vai descobrir quê.
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RÉQUIEM PARA UM FUGITIVO
Dentro do guarda-roupa do quarto da mãe, entre os 
casacos e vestidos dela havia alguém. Um anjo, que bateu 
asas e foi-se quando a mãe morreu. A relação dele com a 
mãe não era das melhores, talvez por isso aquela figura se 
escondesse no guarda-roupa e só tivesse coragem de sair 
voando depois que ela morreu.
A GRAVATA
Ela a viu na vitrine de uma loja chique, apaixonou-se 
por ela, fez economias durante dias e dias e comprou-
-a. Seus ternos baratos e comuns não eram dignos de a 
acompanharem. Entre dúvidas, medos e sensação de es-
tar ficando louco, conversava com a gravata. Até que um 
dia resolveu usá-la. Diante do espelho, a gravata foi aper-
tando sem pescoço e sufocou-o até a morte.
OÁSIS
O narrador e os amigos Jorge e Luiz inventaram uma 
brincadeira. Em dias de calor, nas horas mais quentes, dei-
tavam-se no meio da rua fingindo ter seu avião caído no 
deserto. Cambaleandocomo acidentados dirigiam-se até 
o quartel no final da rua, onde as árvores e os jardins eram 
o “oásis” que os salvaria. Conseguiam subornar o guar-
da do portão mentindo que uma moça lindíssima estava 
apaixonada por ele e lhe mandava bilhetes em versos. Na 
verdade, a moça era Djanira, e os bilhetes eram escritos 
pelos meninos. Um dia, sem saber que estourara a revo-
lução, foram pegos por dois oficiais dentro do escritório 
do quartel. O oficial, para dar-lhes um susto, deixou-os 
trancados numa cela até a noite. Levaram uma tremenda 
surra depois de ouvirem os pais discutindo e se culpando 
uns aos outros e com Djanira. No dia seguinte, Djanira foi 
embora.
VISITA
O narrador visita a casa onde vivera um amigo seu. 
A mãe do amigo, velha e solitária, às tardes, toca piano 
e toma chá. Ele entra, sobe as escadas e, no quarto onde 
fica só, relembra o convívio, os sonhos e as fantasias que 
curtia junto ao amigo.
ASCENSÃO E QUEDA DE ROBHÉA
MANEQUIM & ROBÔ
I
A população de robôs estava sendo destruída por 
uma contaminação chamada de Peste tecnológica. Tom-
bavam pelas praças e ruas, os olhos de vidro explodindo 
em pedacinhos coloridos, as engrenagens enferrujadas 
não obedecendo às ordens dos cérebros enfraquecidos. 
Não adiantaram estimulantes, nem oficinas, nem ferra-
rias. E o poder público, sob o aplauso do povo, determi-
nou a reciclagem da sucata, transformando tudo em brin-
cos, colares e lembrancinhas para os turistas.
II
Depois de tempos um jornalista começou a publicar 
artigos investigando as causas daquela Peste tecnológica. 
Rejeitadas inicialmente, em poucos dias as ideias do jor-
nalista passaram a ser valorizadas e se tornaram inspira-
ção para o surgimento da moda-robô. Roupas, acessórios 
e maquiagens metálicas: manequins com movimentos en-
durecidos. O jornalista tornou-se ídolo, casou-se com atriz 
famosa, ilustrou capas de revistas. O Movimento tecnoló-
gico passou a influenciar a moda, a música, a literatura e 
as artes plásticas, e outras formas de expressão. Espalhou-se 
pelo mundo inteiro, aumentou as exportações e trouxe 
progresso para o país.
III
Enquanto isso, em porões de um beco escuro, repro-
duziam-se como coelhos os remanescentes da epidemia. 
Quatro deles haviam-se isolado de rumores e máquinas, 
levando consigo uma grande quantidade de latas de óleo 
e estimulantes para sua manutenção e, como não fossem 
descobertos, organizaram aos poucos outro sistema de 
vida. Já eram mais de meia centena apertados em meio às 
paredes sujas de graxa, fazendo amor em ranger de me-
tais e cintilações dos olhos de vidro. Dispunham-se a sair à 
superfície para tomarem o Poder quando foram inexplica-
velmente descobertos e denunciados.
Todos foram destruídos, menos uma bela modelo-ro-
bô que fez imenso sucesso, protagonizou filmes, ganhou 
prêmios e eleita rainha do carnaval. De repente retirou-se 
para uma ilha deserta, onde viveu até o fim de seus dias. 
Disseram que era homossexual.
Sua biógrafa ganhou o prêmio Nobel da Paz e de Li-
teratura. 
Muitos anos depois, os jornais publicaram uma peque-
na nota comunicando que Robhéa, ex-manequim, ex-atriz 
de cinema e robô de sucesso em passadas décadas, suici-
dara-se em sua ilha deserta e inacessível tomando um fatal 
banho de chuveiro. Seus restos enferrujados e mumificados 
foram colocados na Praça da Matriz no planalto central.
RETRATOS
Na praça em frente do edifício do narrador, todo dia 
se reunia um grupo de tipos “descolados”, cabeludos, rou-
pas coloridas, colares, ar sujo e drogado. 
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Era sábado. Um deles pintou seu retrato, que ficou 
bom. No domingo, ele ofereceu para pintar outro retrato 
seu dizendo que se fizesse sete, um por dia, saberia como 
é seu rosto durante toda a semana. Sentiu-se meio ridí-
culo mas aceitou e sentou-se. O de sábado tinha ficado 
melhor. E assim na segunda, terça, quarta, quinta-feira e 
a cada dia seu rosto desenhado aparecia mais velho, aba-
tido, feio, cada vez mais parecendo um cadáver. Na sex-
ta-feira o artista não apareceu. No sábado, procurou-o na 
praça e não o encontrou, perguntou aos outros: ninguém 
sabia. No domingo passou o dia na praça. O pintor não 
apareceu. Levou os seis retratos. O último parecia um ca-
dáver. Então descobriu que estava morto.
UMA VESTE PROVAVELMENTE AZUL
(texto integral)
Eu estava ali sem nenhum plano imediato quando vi os 
dois homenzinhos verdes correndo sobre o tapete. Um deles 
retirou do bolso um minúsculo lenço e passou-o na testa. 
Pensei então que o lenço era feito de finíssimos fios e que 
eles deviam ser hábeis tecelões. Ao mesmo tempo, lembrei 
também que necessitava de uma longa veste: uma muito 
longa veste provavelmente azul. Não foi difícil subjugá-los 
e obrigá-los a tecerem para mim. Trouxeram suas famílias 
e levaram milênios nesse trabalho. Catástrofes incríveis: 
emaranhavam-se nos fios, sufocavam no meio do pano, as 
agulhas os apunhalavam. Inúmeras gerações se sucede-
ram. Nascendo, tecendo e morrendo. Enquanto isso, minha 
mão direita pousava ameaçadora sobre suas cabeças.
ELES
— Deixa que a loucura escorra em tuas veias. E quan-
do te ferirem, deixa que o sangue jorre enlouquecendo 
também os que te feriram. 
Narrativa surrealista. Três seres iluminados, estra-
nhos, amorosos escolhem uma vila para transformar as 
pessoas, trazendo luz, entendimento, amor. Aquele me-
nino da vila, diferente dos outros, foi o único que teve a 
coragem de entrar na mata para se encontrar com eles: 
três seres estranhos. Não sabia dizer se homens ou mu-
lheres, eram altos, claros, tinham grandes olhos azuis e 
gestos compassados, cabelos compridos até os ombros, 
movimentavam-se mansos dentro de vestes brancas com 
amuletos sobre o peito. Falavam uma língua estranha e 
sorriam fazendo círculos em torno do menino e tocando-o 
de leve às vezes nos ombros, no peito, na testa.
Esses seres representam uma nova maneira de ver, de 
amar, de viver. E as pessoas da vila tentaram acabar com 
eles. Enfurecidas as pessoas atacaram os seres. O sangue 
que escorria de seus ferimentos tinha um perfume que 
causava alucinações. Depois os seres se foram com o me-
nino e nunca mais voltaram. Foram levar a luz para outros.
Os habitantes da vila levaram muitos dias para vol-
tarem ao normal — depois dos homens terem provado do 
sexo de outros homens, e também dos peitos das mães e 
das irmãs, e de terem bebido dos pais o mesmo líquido 
de que foram feitos, e de terem cruzado com animais e se 
submetido à luxúria dos cães e dos cavalos e dos touros, e 
de terem possuído a terra e a palha como se fossem mu-
lheres ou o reverso de homens iguais a eles —, mas não 
voltaram.
SARAU
O narrador revela em suas fantasias o secreto desejo 
de estraçalhar os próprios pais. Convidado a jogar cartas 
com os pais, ele se recusa. A lentidão dos gestos jogan-
do cartas, a maneira com que olham para ele, levam o 
narrador a imaginar uma cimitarra no ar fazendo movi-
mentos circulares. Retira-se e na cozinha debruça-se na 
mesa. Sonha. Cinco cimitarras aparecem empunhadas por 
cinco seres estranhos: todos baixos, musculosos, de cabe-
ças raspadas, narinas largas e olhos inteiramente verdes, 
sem pupila, íris ou esclerótica, seus lábios eram grossos e 
traziam argolas nas orelhas.
De volta para a sala, percebeu que o tempo não passara. 
Curvados sobre a mesa, os meus pais continuavam 
seu espaçado jogo. Cruzei os braços e me recostei à janela, 
abrindo-a para que entrasse um pouco de ar. Quando senti 
que tudo estava preparado, fiz um sinal em direção aos dois 
velhos e esperei. Os cinco seres deixaram-se cair sobre eles. 
Dois seguraram meu pai enquanto outros dois seguravam 
minha mãe e o quinto cortava-os rapidamente com golpes 
de cimitarra. Cortaram-nos em inúmeros pedaços que caí-
ram espalhados pelo chão, sem sangue nem gritos. Em se-
guida reuniram-se em torno da carne e banquetearam-se 
fartamente, sem deixar vestígios. Antes de terminarem, um 
deles me ofereceu um pedaço das costas de meu pai, mas 
preferi ir até a geladeira e beberum copo de leite.
O AFOGADO
Um médico vive isolado, no silêncio e na solidão jun-
to com a solidão e silêncio dos habitantes de uma vila de 
pescadores.
Uma vila de pescadores. Numa tarde quente ouviu-se o 
alarme na voz de um menino gritando que havia um mor-
to na praia. O médico levantou-se lentamente da sesta e 
lentamente dirigiu-se à praia com o menino. O rapaz afo-
gado não estava morto e acordou apenas dois dias depois. 
Pediu água, muita água. E o doutor sentiu naquele rosto 
jovem a mesma ausência que sentia dentro de si. Havia 
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uma dissimulada ferocidade no jeito como cerrava os ma-
xilares, uma contida agressividade nos dedos fortes esma-
gando o lençol, uma sede além daquela água que bebera: 
certa vibração que exigia, intimidava e penalizava, aban-
donada. A mulher gorda que entrou no quarto manifestou 
o temor de o rapaz ser um criminoso e revelou que na 
vila comentavam que o médico já conhecia aquele rapaz. 
Encostou a cabeça na madeira, e por um momento temeu 
que o descobrissem. Mas não tenho nada a esconder, es-
pantou-se.
O médico passava as noites sentado à beira da cama 
do desconhecido. Sentia que devia protegê-lo. Ele mesmo 
levou a bandeja de café e quando saiu trancou o quarto a 
chave. Na praça, foi abordado pelo padre exigindo que lhe 
desse informações sobre o afogado e provocou a cólera do 
reverendo ao nada dizer.
Quando retornou, o rapaz, já de pé, disse que se cha-
mava Alfa, nome de paz, não de guerra. O médico sente 
que o desconhecido veio para fazê-lo cumprir seu destino, 
para dar-lhe consciência de sua inutilidade e da necessida-
de de se destruir.
O afogado confirma que veio com uma missão. Trago 
em mim o princípio e o fim de todas as coisas. Sabes por 
ventura que te farei meu cúmplice e despertarei teu ódio 
esse ódio calado que consome as vísceras por que de todos 
és o único que sabes da absoluta inutilidade de todas as 
coisas?
O povo, liderado pelo padre, aglomerou-se diante da 
casa do médico. Este sentiu medo diante do inevitável. O 
padre, com voz autoritária exige que ele desça.
– Queremos que ele nos diga por que depois de sua 
chegada os pescadores não trouxeram mais peixes, por 
que o leite coalhou todas as manhãs, por que morreram as 
crianças nos ventres das mulheres prenhes, por que todas 
as donzelas perderam a pureza, por que sopra esse vento 
desde a sua chegada, por que não caíram mais estrelas, 
por que todas as plantações secaram e os animais morrem 
de sede pelas ruas, por que esta sede. Esse homem traz 
a destruição e o demônio dentro de si. O senhor protege 
esse homem. O senhor é cúmplice da destruição. Um há-
lito de morte percorre a vila. E o senhor é o culpado disso. 
Por que não o deixou morrer? Por que não nos deixa ver a 
face dele?
O médico manda o rapaz fugir pelos fundos e es-
perá-lo na praia. Mas a empregada denuncia o plano ao 
povo. O médico correu em direção à praia e, abraçado ao 
náufrago, insistiu para que fugissem. O povo, o padre, as 
mulheres e o menino, armados de paus e pedras, mata-
ram o rapaz. O médico volta, pega o cadáver nos braços e 
caminha mar adentro.
PARA UMA AVENCA PARTINDO
No ponto de ônibus, antes de ela partir, ele tenta 
dizer tudo o que sente, tudo o que pensa sobre eles e a 
relação dos dois. Mas como sempre acontecera antes, ele 
não consegue expressar seus sentimentos. E ele fica repe-
tindo: olha eu tenho uma porção de coisas para te dizer, 
não me interrompa, só escute. E ela embarca. Conversam 
ainda pela janela do ônibus sem que ele consiga coorde-
nar e expressar o que sempre teve intenção de dizer a ela 
e nunca conseguiu.
INICIAÇÃO
Foi numa dessas manhãs sem sol que percebi o quan-
to já estava dentro do que não suspeitava. E a tal ponto 
que tive a certeza súbita que não conseguiria mais sair.
... Não que houvesse fotografias ou qualquer coisa de 
muito concreto — certamente havia o concreto em algu-
mas roupas, uma escova de dentes, alguns discos, um li-
vro: as miudezas se amontoavam pelos cantos. Mas o que 
marcava e pesava mais era o intangível.
O narrador relata sua relação homoafetiva com um 
robô humanizado.
Manhã chuvosa. Na cama, olhando o teto branco, fu-
mando, apalpando um lugar vazio ao lado. Nunca pensara 
que sentiria tanto uma ausência.
Conheceram-se num circo, sentiram algo estranho 
como se estivessem condenados a se perder. Olhou aquele 
corpo envolto em renda vermelha: A renda escorregou aos 
poucos revelando um corpo talvez masculino, o sexo oculto 
por um pequeno retalho preto. A conformação suave dos 
ombros, uma fragilidade inesperada no plexo liso equili-
brado sobre uma bacia de ossos salientes como facas e 
pernas fortes nascendo e pés de longos dedos magros e 
pobres com suas unhas rentes, brancas, limpas. Depois 
escorregou o capuz e desvendou súbito um emaranhado 
de cabelos crespos civilizados por gestos bruscos que os 
afastavam para trás libertando uma testa lisa de enormes 
olhos claros desenhados e um sorriso de mil anos atrás da 
estrutura mansa de uma boca feita em dentes brancos e 
língua terna.
Depois do espetáculo, aproximou-se do tablado. 
Olharam-se, tocaram-se, abraçaram-se e trocaram sussur-
ros incompreensíveis.
Tempos depois no lugar agora vazio a seu lado na 
cama. Contou-lhe histórias. Era um robô de outra galáxia 
que se rebelara e se reprogramara conforme sua própria 
vontade e instalara-se neste mundo. Os escolhidos, para 
se reconhecerem tinham uma mancha na testa.
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E calando e sorrindo pouco depois de falar em amor, 
ganhou uma inesperada doçura: suas palavras deixaram 
de ser frias, e dispôs sinais estranhos sobre minha fronte, 
e pela última vez penetramos um no outro através dos de-
dos e dos raios emitidos pelos dedos e a mesma luz roxa 
se fez novamente e novamente me senti caminhando em 
direção à sua túnica branca.
A brasa do cigarro trouxe-o de volta à realidade. Dian-
te do espelho, percebeu a marca em sua testa.
CAVALO BRANCO NO ESCURO
O que me assusta é justamente essa respiração de 
animal. Essa coisa grossa, azeda, estranhamente flácida e 
morna, da mesma consistência dos lençóis sujos.
No escuro do quarto as fantasias, as impressões sen-
sitivas misturam-se aos sons e sensações externas. Ruídos 
de pata de cavalo no cascalho lá fora. A imagem de alguém 
que se desprende da parede azul e vem sentar-se na beira 
de sua cama. A sensação de alguém quebrando os vidros 
e entrando em seu quarto para violentá-lo. Sensações de 
perfumes, de flores e de um cavalo branco galopando na 
escuridão.
HARRIET
Harriet era quieta, ossuda, grande, não brincava com 
as outras crianças embora todos gostassem dela. No dia 
em que a família se mudou para a capital ela desceu do 
trem e deu um beijo no rosto dele.
Tempos depois apareceu no jornal. Era manequim de 
sucesso. O narrador, agora jornalista, foi entrevistá-la e 
soube do amor secreto dela por ele desde a infância. Mais 
uns tempos e chegou a noticia do suicídio de Harriet.
O DIA DE ONTEM
Monólogo sobre a pobreza, a solidão, as drogas, a 
amizade e o amor
Eu te disse que estava cansado de cerzir aquela ma-
téria gasta no fundo de mim, exausto de recobri-la às ve-
zes de veludo, outras de cetim, purpurina ou seda — mas 
sabendo sempre que no fundo permanecia aquela pobre 
estopa desgastada.
Como um tecelão, o narrador vai tecendo o tecido do 
cotidiano. A companhia do companheiro de quarto, a es-
pera por um telefonema do amigo que nunca liga, o ciúme 
ao perceber que a moça prefere a companhia do outro. 
Enevoado, visionário sob o efeito das drogas, o narrador 
dirige-se a um amigo, relembrando suas aventuras e des-
venturas durante um feriado no Rio de Janeiro.
UNS SÁBADOS UNS AGOSTOS
O narrador fala de um longo, frio e chuvoso agosto, 
da vida solitária e de uma visita que recebia todos os sába-
dos. Não esclarece nem quantos nem quem era. Apenas 
que sempre chegavam. Não tinham interesses em comum 
e por isso as conversas eram poucas e os silêncios longos. 
Às vezes os odiava, mas sempre esperava por elesaos sá-
bados. E chegou um dia em que não vieram mais.
Não que os odiasse, isto é, odiava-os sim, mas só às 
vezes: o que me desagradava neles era principalmente se-
rem um atestado tão veemente da minha profunda falta 
de assunto, do meu absoluto não ter aonde ir aos sábados 
e em todos os outros dias. Mas era bom sentir a tarde do-
brando o meio-dia e depois ouvir o portão batendo e o 
barulho de seus passos no cimento da entrada e logo após 
o som da campainha: então eu me interrompia no que não 
estava fazendo e me preparava para a visita, como quem 
espera que algo aconteça. 
Aqueles silêncios eram como lascas de madeira, ás-
peras, incômodas.
Mas desde que não vieram mais, meus sábados in-
teiros são feitos de duras lascas que vou arrancando com 
movimentos desajeitados pelas salas e escadas desta casa 
vazia, à espera de que um daqueles ruídos antigos e inú-
teis como o portão batendo ou os passos deles no cimento 
ou a campainha tocando me puxe do centro desse agosto 
que não acaba.
NOÇÕES DE IRENE
O marido de Irene, homem maduro, metódico, com 
situação financeira definida, não entende por que foi 
abandonado. Irene, mais jovem, meio hippie e usuária 
de drogas acha-o careta, chato, monótono. Por isso sai de 
casa para viver com um cabeludo, de barbas manchadas 
pelo sol e pelo fumo, de jeans rasgados, pintor que expõe 
em logradouros públicos. O texto é um diálogo (monólo-
go) do marido de Irene com este pintor, na sala de sua 
própria casa, onde, conversando, se embebeda de uísque.
A MARGARIDA ENLATADA
O grande empresário colheu aquela margarida no 
canteiro da avenida e colocou-a no bolso. Mais tarde, teve 
a grande ideia: destruiu todos os canteiros de margarida, 
comprou todas as sementes existentes e plantou milha-
res de hectares da flor. Após grande campanha publicitá-
ria cujo slogan era “ponha uma margarida na sua fossa” 
sempre ligado a notícias alarmantes sobre violência, po-
luição, suicídio destruição, lanço seu produto, portador de 
paz, alegria e amor: margarida enlatada. Ganhou fortunas 
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imensas, separou-se da mulher para ter caso com atrizes 
famosas. Foi quando surgiu nova campanha: Margarida já 
era, amizade. Saca essa transa: o barato é avenca.
Desmoronou o reinado da margarida. Ele não se 
importou pois era dono de milhares de propriedades 
e de imensas fortunas depositadas nos bancos suíços. 
Destruiu as plantações, recolheu os estoques e incine-
rou tudo. Foi quando se lembrou que não havia deixado 
semente nenhuma de margarida no mundo. A margarida 
era uma flor extinta. Começou então a procurar marga-
ridas no aterro onde um dia encontrou sua ex-mulher.
– Procuras margaridas?
Ela respondeu:
– Já era.
Ele perguntou:
– Avencas?
Ela respondeu:
– Falou.
DO OUTRO LADO DA TARDE
Mas de repente não havia depois: eu estava parado à 
beira da janela (olhando uma roda-gigante na chuva) en-
quanto lembranças obscuras começavam a se desenrolar. 
Era dessas lembranças que eu queria te dizer.
Durante todo o tempo em que pensei, sabia apenas 
que você vinha todas as tardes, antes. Era tão natural você 
vir que eu nem sequer esperava ou construía pequenas 
surpresas para te receber. Não construía nada — sabia 
o tempo todo disso —, assim como sabia que você vinha 
completamente em branco para qualquer palavra que fos-
se dita ou qualquer ato que fosse feito. E muitas vezes, 
nada era dito ou feito, e nós não nos frustrávamos porque 
não esperávamos mesmo, realmente, nada. Disso eu sa-
bia o tempo todo.
A lembrança mais forte era a daquela tarde, numa das 
visitas dela, em que fora ao parque e entraram na roda-gi-
gante. Lá em cima a roda parou, as luzes se apagaram, foi 
quando mais conversaram, disseram que se amavam, mas 
o que ficou mais gravado foi o medo que ela sentiu agar-
rando-se ao braço dele.
Mas nada disso tem nenhuma importância, o que eu 
queria te dizer é que chegando na janela, há pouco, vi a 
chuva caindo e, atrás da chuva, difusamente, uma roda-
-gigante. E que então pensei numas tardes em que você 
sempre vinha, e numa tarde em especial, não sei quan-
to tempo faz, e que depois de pensar nessa tarde e nessa 
chuva e nessa roda-gigante, uma frase ficou rodando níti-
da e quase dura no meu pensamento. Qualquer coisa as-
sim: depois daquela nossa conversa depois daquela nossa 
conversa na chuva, você nunca mais me procurou.
O OVO APUNHALADO
Para ler ao som de 
Lucy in the Sky with Diamonds, 
de Lennon & McCartney.
Numa galeria de arte um ovo saiu da moldura e ca-
minhou para o seu lado. Pensou gritar, mas não gritou. Já 
perto dele, o ovo virou-se e mostrou o punhal enterrado 
em suas costas.
A dona da galeria se aproxima, abraça o ovo e como 
se fossem um só corpo rolam pelo chão.
Aos encontrões e empurrões ele conseguiu passar 
pelas pessoas que se aglomeravam na porta e saiu para a 
rua e voltou a si diante de um cinema, com seus cartazes 
e músicas.
Começou então a contar para si mesmo a história da-
queles meninos bonitos que, o dia inteiro, ouviam a lin-
da música Imagine, de John Lennon. E ele, sentado ao sol 
numa cadeira de balanço, quando olhou para a janela da 
casa dos meninos viu uma menina que levantou a blusa e 
mostrou-lhe os pequenos seio entre os quais estava o ovo 
apunhalado escorrendo sangue que escorria pelo umbigo 
da menina e vinha pingar a seus pés.
— Meu nome é Lúcia — ela disse. — Eu estou no céu 
com os diamantes.
Seus cabelos começam a crescer sem parar e pesso-
as enfurecidas com foices tesouras e facas vão cortando 
seus cabelos que crescem sem parar. Ele pega um táxi com 
bancos forrados de napa vermelha. O vermelho do banco 
suga o tomate que se esborrachou no banco. Ele está sen-
tado sobre tomates esborrachados. É preciso que o moto-
rista não perceba.
Mas julgo perceber um brilho assassino nos olhos que 
me espreitam pelo espelho retrovisor. Fecho o livro (Wer-
ther, do qual leu um trecho para o motorista), sorrio um 
sorriso compreensivo, bem-educado, discreto, tolerante — 
é, eu sou assim quase o tempo todo, compreensivo, bem-
-educado, discreto, tolerante. Cruzo as pernas e os braços, 
sei que é preciso tentar novamente, prendo no bolso o 
tentáculo que insiste em escapar de minha cintura e digo 
que Cleópatra era apenas uma prostituta, bem como dois 
e dois são cinco, também como a soma do quadrado dos 
catetos, o próprio binômio de Newton que, dizem, é mais 
bonito que a Vênus de Milo, apesar de Angela Davis ter 
sido a melhor aluna de Marcuse, para ser bem claro, exa-
tamente como aquele umbu no pátio da casa de minha 
avó e, concluindo, para dizer a verdade, bem, não costumo 
ser assim o tempo todo...
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O carro pára, o motorista é um ovo com um punhal enfiado nas costas. Paga e desce. Em casa nele vê sobre o muro, 
um ovo sentado de pernas cruzadas.
Ele se tranca no banheiro com medo do ovo.
Olho meu rosto espavorido no espelho: a gota de suor não é uma gota de suor, é uma gota de sangue. As minhas 
narinas ofegantes não são narinas ofegantes, são o cabo de bronze de um punhal. E meu rosto espavorido não é um rosto 
espavorido. É um ovo.
O ovo sai do espelho e vem em sua direção. Tenta brincar, distrair o ovo.
Está parado à minha frente e volta-se devagar para que eu fique cara a cara com o punhal cravado em suas costas. É 
quando julgo perceber nele uma espécie de súplica: socorra-me, poupe-me, abrevie-me. Agora é um ovo delicado, tenro, 
humilde, e não tenho medo, e sinto pena dele, quase ternura. Então estendo os meus muitos braços coloridos e toco no 
cabo de bronze do punhal. A sua casca está manchada pelo fio de sangue coagulado. Hesito um pouco, mas fecho os olhos 
no mesmo momento em que meus dedos se cerram em torno do punhal. Meus olhos são janelas, minhas pálpebras gra-
des, minhas mãos tentáculos, meus dedos ferro. Uma breve hesitação, depois empurro lento, firme. E sinto uma lâmina 
penetrando fundo em minhas costas, até o pesado cabo de bronze onde dedos comprimem com força, perdidos entre as 
espáduas. Lúcia grita, mas é tarde demais. Vejo minha