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· Pergunta 1 0 em 1 pontos Leia o trecho a seguir, retirado do conto Viagem à semente, do escritor cubano Alejo Carpentier. “I − O que você quer, velho? Várias vezes a pergunta caiu do alto dos andaimes. Mas o velho não respondia. Andava de um lado para o outro, bisbilhotando, arrancando da garganta um comprido monólogo de frases incompreensíveis. Já haviam descido as telhas, cobrindo os canteiros mortos com seu mosaico de barro cozido. Em cima, os cumes desprendiam pedras de alvenaria, fazendo-as rodar por calhas de madeira, com grande agitação de cal e gesso. E pelas ameias sucessivas que iam desdentando as paredes apareciam – despojados de seu segredo – céus planos ovais ou quadrados, cornijas, grinaldas, dentículos, astrágalos, e papéis colados que se penduravam dos testeiros como velhas peles de serpente em muda. Presenciando a demolição, uma Ceres com o nariz quebrado e a túnica desbotada, listado de preto o penteado de plantas, erguia-se no pátio, sobre sua fonte de máscaras borradas. Visitados pelo sol em horas de sombra, os peixes cinza do tanque bocejavam em água musgosa e morna, olhando com o olho redondo aqueles trabalhadores, negros sobre céu claro, que iam baixando a altura secular da casa. O velho tinha se sentado, com o cajado apontando para a barba, ao pé da estátua. Olhava o subir e baixar de baldes em que viajavam restos apreciáveis. Ouviam-se, em surdina, os rumores da rua enquanto, acima, as polias faziam um concerto, sobre ritmos de ferro com pedras, de seus gorjeios de aves desagradáveis e peitudas.” (CARPENTIER, Alejo. Viagem à semente. In: CARPENTIER, Alejo. Concerto barroco. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 50-59.) Considerando que os procedimentos formais do texto em destaque replicam-se em todo o conto, assinale a alternativa que indica o tipo de narrador que melhor se encaixa neste tipo de narração. Resposta Selecionada: Narrador protagonista. Resposta Correta: Câmera. Feedback da resposta: Resposta incorreta. Considerando que a mesma estrutura narrativa se replica por todo o conto, observamos os procedimentos de um narrador câmera - ou observador - que busca por sua própria omissão dentro do texto literário, descrevendo muito mais do que sumarizando. Logo, este tipo de narrador também tende à cena em relação à digressão e sumário. Por fim, as formas verbais utilizadas, na terceira pessoa do plural, também nos dão uma pista sobre que tipo de narrador está narrando o conto. · Pergunta 2 1 em 1 pontos Leia o trecho a seguir, de Esperando Godot, obra de Samuel Beckett. “Vladimir: Temos que comemorar, mas como? (Pensa) Levante que lhe dou um abraço. (Oferece a mão a Estragon). Estragon (irritado): Daqui a pouco, daqui a pouco. Silêncio. Vladimir (magoado, com frieza)> Pode-se saber onde o senhor passou a noite? Estragon: Numa vala. Vladimir (espantado): Numa vala! Onde? Estragon (sem indicar): Logo ali. Vladimir: E eles não bateram em você? Estragon: Bateram, mas não demais. Vladimir: Os mesmos de sempre? Estragon: Os de sempre? Não sei. Silêncio. Vladimir: Quando paro para pensar… estes anos todos… não fosse eu… o que teria sido de você…? (Com firmeza) Não seria mais do que um montinho de ossos, neste exato momento, sem sombra de dúvida. Estragon (ofendido): E daí? Vladimir (melancólico): É demais para um homem só. (Pausa. Com vivacidade) Por outro lado, qual a vantagem de desanimar agora, é o que eu sempre digo. Deveríamos ter pensado nisso milênios atrás, em 1900. Estragon: Chega. Ajude aqui a tirar esta porcaria. Vladimir: De mãos dadas, pular do alto da torre Eiffel, os primeiros da fila. Éramos gente distinta, naquele tempo. Agora é tarde demais. Não nos deixariam nem subir. (Estragon luta com a bota) O que você está fazendo?” (BECKETT, Samuel . Esperando Godot. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. Trad. Fábio de Souza Andrade.) Indique qual tipo de narrador está categorizado no texto. Resposta Selecionada: Modo dramático. Resposta Correta: Modo dramático. Feedback da resposta: Resposta correta. A apresentação das características, sentimentos e percepções das personagens, no trecho, se dá exclusivamente pelas falas e apresentações de cenário. De certa maneira, o modo dramático se aproxima muito das peças teatrais. · Pergunta 3 1 em 1 pontos Baseando-se em seus conhecimentos a respeito da tipologia da narração proposta por Norman Friedman e também da classificação de Gerard Genette, assinale a alternativa que estabelece adequadamente uma relação entre os conceitos de ambos teóricos. Resposta Selecionada: O narrador personagem é sempre autodiegético. Resposta Correta: O narrador personagem é sempre autodiegético. Feedback da resposta: Resposta correta. O narrador personagem, por se tratar de um tipo de narrador que é, também, protagonista da história narrada, narrando a mesma a partir do centro, é sempre autodiegético. · Pergunta 4 1 em 1 pontos Leia os trechos a seguir, retirados do romance A menina morta , de Cornélio Penna. “- Não dona Frau, vancê não pode mais costurar êsse babado no vestido, neste vestido (...). (...) Considerou com grave atenção a roupa posta diante dela pela escrava a reconheceu tristemente ter esquecido de não se tratar de vestuário de gala destinado a figurar nas reuniões da Côrte longínqua, apenas entrevista quando de sua vinda da Europa para ‘As Américas’. Aquêle pesado estofo de pregas duras não iria revestir o corpinho quente e agitado da criança que recebera com tanto carinho e crescera tão diferente da imperiosa e morena imaginada por ela… (...)” Capítulo I. “(...) Era ali que devia ser posto o pequenino caixão de cetim branco, nesse momento quase terminado por José Carapina, e fôra esse trabalho demorado porque o escravo o fazia sem enxergar bem o que tinha diante de si, de tal modo seus olhos estavam nublados. (...) Não era o suor que lhe caía do rosto, e abria pequenas manchas no pinho de Riga, muito branco e marmoreado por desenhos em sépia, mas sim lágrimas puras e cristalinas, em contraste luminoso com a pele negra e enrugada. Na alma do velho carpinteiro cativo enovelavam-se pequenos e confusos problemas, que se formavam e desapareciam sem que êle pudesse perceber onde estava a verdade e até onde ia a tentação do demônio, pois parecia-lhe grande crime estar a fazer o caixão onde seria aprisionada a Sinhazinha. (...)” Capítulo II. “(...) Mas agora Bruno sabia que o passeio seria bem triste… Ia buscar o padre que viria abençoar a Sinhazinha, para que ela pudesse partir para sempre. Como não iria ela para o Céu, se os anjos deviam estar ansiosos para tê-la em sua companhia? Pensou, pois sempre imaginara que os serafins deviam ter aquêle rosto pequeno e redondo (...). As bestas olharam para êle, e pôde ler naquelas pupilas luminosas compreensão de tal modo perfeita que não lhe foi possível resistir, e deixou as lágrimas correrem, sem ao menos espiar para todos os lados se alguém o via nesse estado (...).” Capítulo III. (PENNA, Cornélio. A menina morta. Rio de Janeiro: José Olympio, 1970.) Indique a que tipo de narrador o texto parece aderir. Resposta Selecionada: Onisciência seletiva múltipla. Resposta Correta: Onisciência seletiva múltipla. Feedback da resposta: Resposta correta. Como podemos observar nos trechos transcritos, o narrador acompanha as reflexões, sentimentos e percepções de diversas personagens (Dona Frau, José Carapina, Bruno), sem se ater a uma em específico, mostrando o que se passa na mente destas personagens hora utilizando o discurso indireto livre, hora sumarizando as experiências. · Pergunta 5 0 em 1 pontos Leia o trecho a seguir, do romance A Hora da Estrela, de Clarice Lispector. “Proponho-me a que não seja complexo o que escreverei, embora obrigado a usar palavras que vos sustentam. A história – determino com falso livre-arbítrio – vai ter uns sete personagens e eu sou um dos mais importantes deles, é claro.Eu, Rodrigo S. M. Relato antigo, este, pois não quero ser mordenoso e inventar modismos à guisa de originalidade. Assim é que experimentarei contra os meus hábitos uma história com começo, meio e “gran finale” seguido de silêncio e de chuva caindo. (...) Quem antes afiançar que essa moça não se conhece senão através de ir vivendo à toa. Se tivesse a tolice de se perguntar “quem sou eu?” Cairia estatelada em cheio no chão. É que “quem sou eu?” Provoca necessidade. E como satisfazer a necessidade? Quem se indaga é incompleto. A pessoa de quem vou falar é tão tola que às vezes sorri para os outros na rua. Ninguém lhe responde ao sorriso porque nem ao menos a olham. (...) De uma coisa tenho certeza: essa narrativa mexerá com uma coisa delicada: a criação de uma pessoa inteira que na certa está tão viva quanto eu. Cuidai dela porque meu poder é só mostrá-la para que vós a reconheçais na rua, andando de leve por causa da esvoaçada magreza. E se for triste a minha narrativa? Depois na certa escreverei algo alegre, embora alegre por quê? Porque também sou um homem de hosanas e um dia, quem sabe, cantarei loas que não as dificuldades da nordestina.” (LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. São Paulo: Rocco, 1998.) Indique que tipo de narrador está sendo desenvolvido no trecho. Resposta Selecionada: “Eu” como testemunha. Resposta Correta: Narrador onisciente intruso. Feedback da resposta: Resposta incorreta. No trecho, percebemos que a obra está narrada na terceira pessoa: Rodrigo S. M. narra a história da nordestina (Macabéa), realizando diversos comentários a respeito de si mesmo, do próprio ato de escrever e da personagem, dialogando com o leitor ao dizer “Cuidai dela (...)”. · Pergunta 6 1 em 1 pontos Leia o trecho a seguir: “Uma voz chega a alguém no escuro. Imaginar. A alguém deitado de costas no escuro. Isso ele pode dizer pela pressão nas partes traseiras e pela mudança do escuro quando ele fecha os olhos e de novo quando os abre de novo. Só uma pequena parte do que é dito pode ser verificada. Como por exemplo quando ele ouve, Você está deitado de costas no escuro. Então ele deve reconhecer a verdade do que é dito. Mas de longe a maior parte do que é dito não pode ser verificada. Como por exemplo quando ouve, Você viu a luz primeiro em tal e tal dia. Às vezes os dois se combinam como por exemplo, Você viu a luz primeiro em tal e tal dia e agora está deitado de costas no escuro. Um expediente talvez da incontrovertibilidade de um para ganhar crédito para o outro. Aquela então é a proposição. A alguém deitado de costas no escuro uma voz conta de um passado. Com alusões ocasionais a um presente e mais raramente a um futuro como por exemplo, Você acabará como está agora. E num outro escuro ou no mesmo um outro imaginando tudo por companhia. Depressa deixa-lo. (...) Inventor da voz e do seu ouvinte e dei si mesmo. Inventor de si mesmo por companhia. Deixar.assim. Ele fala de si mesmo como de um outro. Ele diz falando de si mesmo, Ele fala de si mesmo como de um outro. A si mesmo ele inventa também por companhia. Deixar assim. Confusão também é companhia até certo ponto Melhor esperança adiada que nenhuma. Até certo ponto Até o coração começar a desgostar-se. Companhia também até certo ponto. Melhor um coração desgostoso que nenhum. Até começar a partir-se. Então falando de si mesmo ele conclui por enquanto, Por enquanto deixar assim.” (BECKETT, Samuel. Companhia. In: BECKETT, Samuel. Companhia e outros textos. São Paulo: Globo, 2012. p. 27-64.) No conto Companhia, obra de Samuel Beckett, a interpretação do tipo de narrador é crucial para a apreensão de sentido. Pensando nisso, leia o trecho a seguir e indique que tipo de narrador foi escolhido para este texto. Resposta Selecionada: Onisciência seletiva. Resposta Correta: Onisciência seletiva. Feedback da resposta: Resposta correta. Apesar da questão do narrador ser uma dificuldade em quase toda obra beckettiana, neste trecho podemos observar um funcionamento que categoriza o texto na onisciência seletiva comum, visto que seguimos a mente de um único personagem a partir de uma voz que é, simultaneamente, a percepção de seu duplo. Neste caso, não estamos falando do “eu” como personagem justamente porque, em determinado momento, não há mais delimitação clara sobre quem é o enunciador de determinados pensamentos e falas. · Pergunta 7 1 em 1 pontos Leia o trecho a seguir, do romance A Hora da Estrela, de Clarice Lispector. “Quem antes afiançar que essa moça não se conhece senão através de ir vivendo à toa. Se tivesse a tolice de se perguntar “quem sou eu?” Cairia estatelada em cheio no chão. É que “quem sou eu?” Provoca necessidade. E como satisfazer a necessidade? Quem se indaga é incompleto. A pessoa de quem vou falar é tão tola que às vezes sorri para os outros na rua. Ninguém lhe responde ao sorriso porque nem ao menos a olham. Voltando a mim: o que escreverei não pode ser absorvido por mentes que muito exijam e ávidas de requintes. Pois o que estarei dizendo será apenas nu. Embora tenha como pano de fundo – e agora mesmo – a penumbra atormentada que sempre há nos meus sonhos quando de noite atormentado durmo. Que não se esperem, então, estrelas no que se segue: nada cintilará, trata-se de matéria opaca e por sua própria natureza desprezível por todos. É que a esta história falta melodia cantabile. O seu ritmo é às vezes descompasso. E tem fatos. Apaixonei-me subitamente por fatos sem literatura – fatos são pedras duras e agir está me interessando mais do que pensar, de fatos não há como fugir. Pergunto-me se eu deveria caminhar à frente do tempo e esboçar logo um final. Acontece porém que eu mesmo ainda não sei bem como isto terminará. E também porque entendo que devo caminha passo a passo de acordo com um prazo determinado por horas: até um bicho lida com o tempo. E esta é também a minha mais primeira condição: a de caminhar paulatinamente apesar da impaciência que tenho em relação a essa moça.” (LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. São Paulo: Rocco, 1998.) Assinale a alternativa correta em relação ao modo de enunciação observado. Resposta Selecionada: A digressão é o modo enunciativo amplamente explorado nesta obra, assim como em outras de Clarice Lispector. No trecho em destaque, observa-se que as reflexões a respeito da construção de personagem desencadeiam reflexões sobre o ato da escrita e sobre o próprio narrador, e vice-versa. Resposta Correta: A digressão é o modo enunciativo amplamente explorado nesta obra, assim como em outras de Clarice Lispector. No trecho em destaque, observa-se que as reflexões a respeito da construção de personagem desencadeiam reflexões sobre o ato da escrita e sobre o próprio narrador, e vice-versa. Feedback da resposta: Resposta correta. Conhecida pela ampla utilização de digressões, Clarice Lispector não poderia escrever sua última obra diferente. Na leitura de A Hora da Estrela, percebemos em diversos momentos a relação de espelhamento entre a personagem de quem o narrador conta a história (a nordestina Macabéa) e a personagem que cria para si próprio, de nome Rodrigo S. M. Isto torna-se possível na narração através do uso do modo digressivo, uma vez que as reflexões sobre um aspecto puxam reflexões sobre os demais aspectos, em um contínuo até o fim da história. · Pergunta 8 0 em 1 pontos Leia o trecho a seguir: “Uma voz chega a alguém no escuro. Imaginar. A alguém deitado de costas no escuro. Isso ele pode dizer pela pressão nas partes traseiras e pela mudança do escuro quando ele fecha os olhos e de novo quando os abre de novo. Só uma pequena parte do que é dito pode ser verificada. Como por exemplo quando ele ouve, Você está deitado de costas no escuro. Então ele deve reconhecer a verdade do que é dito. Mas de longe a maior parte do que é dito não pode ser verificada. Como por exemplo quando ouve, Você viu a luz primeiro em tal e tal dia. Às vezes os dois se combinam comopor exemplo, Você viu a luz primeiro em tal e tal dia e agora está deitado de costas no escuro. Um expediente talvez da incontrovertibilidade de um para ganhar crédito para o outro. Aquela então é a proposição. A alguém deitado de costas no escuro uma voz conta de um passado. Com alusões ocasionais a um presente e mais raramente a um futuro como por exemplo, Você acabará como está agora. E num outro escuro ou no mesmo um outro imaginando tudo por companhia. Depressa deixa-lo. (...) Inventor da voz e do seu ouvinte e dei si mesmo. Inventor de si mesmo por companhia. Deixar assim. Ele fala de si mesmo como de um outro. Ele diz falando de si mesmo, Ele fala de si mesmo como de um outro. A si mesmo ele inventa também por companhia. Deixar assim. Confusão também é companhia até certo ponto Melhor esperança adiada que nenhuma. Até certo ponto Até o coração começar a desgostar-se. Companhia também até certo ponto. Melhor um coração desgostoso que nenhum. Até começar a partir-se. Então falando de si mesmo ele conclui por enquanto, Por enquanto deixar assim.” (BECKETT, Samuel. Companhia. In: BECKETT, Samuel. Companhia e outros textos. São Paulo: Globo, 2012. p. 27-64.) No conto Companhia, obra de Samuel Beckett, a interpretação do tipo de narrador é crucial para a apreensão de sentido. Pensando nisso, leia o trecho a seguir e assinale a alternativa correta em relação aos recursos formais utilizados pelo autor quanto ao modo de enunciação. Resposta Selecionada: No trecho, são utilizados recursos do estilo direto e do estilo indireto livre a fim de que não se saiba ao certo quem fala e sobre quem fala. Resposta Correta: O modo enunciativo predominante em Companhia é a cena, pois como visto no trecho em destaque, são descritos cenários e percepções a todo momento. Feedback da resposta: Resposta incorreta. Observamos no trecho que em nenhum momento a voz do narrador resume o que está acontecendo - pelo contrário, todo o desenvolvimento da narrativa é muito elíptico, quase sem chegar a conclusão alguma sobre qualquer coisa. Logo, o modo predominante quanto à enunciação é o da cena. Também, quanto ao estilo, predomina o indireto livre, sendo a ferramenta que permite que, no texto, a voz do narrador e as percepções do “alguém” narrado sejam, em certo momento, indissociáveis. · Pergunta 9 0 em 1 pontos Leia o trecho a seguir, retirado do romance Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. “– NONADA. TIROS QUE O SENHOR ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvores no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser – se viu –; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de cão: determinaram – era o demo. Povo prascóvio. Mataram. Dono dele nem sei quem for. Vieram emprestar minhas armas, cedi. Não tenho abusões. O senhor ri certas risadas... Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir, instantaneamente – depois, então, se vai ver se deu mortos. O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucuia vem dos montões oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá – fazendões de fazendas, almargem de vargens de bom render, as vazantes; culturas que vão de mata em mata, madeiras de grossura, até ainda virgens dessas lá há. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... O sertão está em toda a parte.” (ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. São Paulo: Nova Aguilar, 1994. Disponível em: <http://stoa.usp.br/carloshgn/files/-1/20292/GrandeSertoVeredasGuimaresRosa.pdf>. Acesso em: 03 ago. 2019.) Leia as afirmações a seguir: 1. Considerando-se que este é o parágrafo de abertura do romance, é possível afirmar que o leitor é colocado in medias res (ou seja, sem explicações sobre as motivações que vieram antes do que está sendo dito) no discurso. 2. Observam-se procedimentos estéticos que visam a aproximação do leitor, tais como a criação, evocação e construção desta figura do senhor, interlocutor da história, como em “o senhor tolere” e “o senhor ri certas risadas…”; e a utilização de formas verbais no presente indicativo. 3. Uma hipótese possível, com base na análise do texto, é de que estabelece-se um paralelo entre o narrador a partir da construção da figura do interlocutor: o evidenciamento de certos aspectos da personalidade deste senhor que ouve os causos opera de maneira a contrastar estes mesmos aspectos em relação ao narrador, estabelecendo uma cisão entre eu x outro. Assinale a alternativa que possui apenas afirmações corretas: Resposta Selecionada: Apenas I e II. Resposta Correta: I, II e III. Feedback da resposta: Resposta incorreta. A definição de in medias res é observada no primeiro parágrafo de Grande sertão: veredas, pois enquanto leitores somos colocados no meio da narração, com a sensação de que perdemos alguma contextualização. Em outras palavras, quando começamos a ler o romance, o efeito estilístico produzido é de estranhamento. Mas logo somos atraídos à história enquanto leitores pela utilização de formas verbais no presente do indicativo e vocativos direcionados a este senhor - uma possível interpretação a respeito desta figura é a de que o senhor evoca ao público da época, da mesma forma que, nos romances de Machado de Assis, o narrador dirige-se ao público feminino. Por contraste, estabelece-se uma cisão entre o eu que narra e o outro que ouve/lê, de modo que as características evidenciadas a respeito deste senhor são evidenciadas justamente para mostrar as diferenças entre eu x outro. · Pergunta 10 1 em 1 pontos Leia o trecho a seguir, retirado do texto O ponto de vista na ficção , de Norman Friedman: Já que o problema do narrador é a transmissão apropriada de sua estória ao leitor, as questões devem ser algo como: 1) Quem fala ao leitor? (...); 2) De que posição (ângulo) em relação à estória ele a conta? (de cima, da periferia, do centro, frontalmente ou alternando); 3) Que canais de informação o narrador usa para transmitir a estória ao leitor? (palavras, pensamentos, percepções e sentimentos do autor; ou palavras e ações do personagem; pensamentos, percepções e sentimentos do personagem: através de qual - ou de qual combinação - destas três possibilidades as informações sobre estados mentais, cenário, situação e personagem vêm?); e 4) A que distância ele coloca o leitor da estória? (próximo, distante ou alternando?). O PONTO DE VISTA NA FICÇÃO: O desenvolvimento de um conceito crítico. São Paulo: Revista Usp , maio 2002. Norman Friedman. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/33195>. Acesso em: 30 ago. 2019. Com base em seus conhecimentos a respeito da tipologia de Norman Friedman, assinale a alternativa correta. Resposta Selecionada: A câmera destaca-se em relação aos outros tipos de narrador pelo apagamento da figura do narrador, pretendendo-se, então, esvaziada de intenção. Neste tipo de narração, predomina o modo de elocução de cena. Resposta Correta: A câmera destaca-se em relação aos outros tipos de narrador pelo apagamento da figura do narrador, pretendendo-se, então, esvaziada de intenção. Neste tipo de narração, predomina o modo de elocução de cena. Feedback da resposta: Resposta correta. De acordo com Friedman(2002), o narrador tipo câmera seria o último estágio do apagamento de sua figura, caracterizando-se então pelo registro de uma cena. Ainda segundo o autor, ambos os narradores oniscientes acontecem, em geral, na terceira pessoa. Entretanto, há de se considerar que “(...) A ausência de intromissão não implica necessariamente, contudo, que o autor negue a si mesmo uma voz ao usar o Narrador Onisciente Neutro” (FRIEDMAN, 2002, p. 174). Já em relação aos narradores personagem e protagonista, estes diferenciam-se em relação ao ângulo em que posicionam-se na história: o narrador protagonista, como o próprio nome sugere, narra do centro (e se não estiver narrando do centro, pode ser considerado, então, personagem). Quanto à onisciência seletiva comum e a onisciência seletiva múltipla, a diferença está justamente no modo de elocução, visto que na onisciência seletiva comum o narrador costuma sumarizar o que está se passando na mente dos personagens, enquanto que na onisciência seletiva múltipla o narrador mostra em cena o que cada personagem está sentindo. Terça-feira, 29 de Setembro de 2020 17h51min08s BRT