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8. A filosofia do direito como parte da filosofia A Filosofia do Direito é parte da Filosofia.50 Essa afirmação, de grande gravidade, parece não intimidar a maioria dos autores que se dedica a seu estudo. No entanto, por sua importância, essa afirmação deve ser avaliada, com vista, inclusive, na melhor compreensão das próprias finalidades e propostas da jusfilosofia. A princípio, trata-se-ia de se compreender a Filosofia do Direito como mero desdobramento dos saberes filosóficos já estabelecidos, de modo que a esta somente caberia observar as mesmas conquistas, as mesmas técnicas, os mesmos métodos e seguir cautelosamente os mesmos passos daquela à qual se vincula como matriz, inclusive por ser anterior e mais genérica. Para isso muito contribuiu a própria história do pensamento, pois, até o advento do hegelianismo, toda a história das ideias sobre o Direito encontra-se mesclada a sistemas e pensamentos de filósofos (dos sofistas a Immanuel Kant). Então, esses eram, a um só tempo, pensadores dos problemas éticos, sociais, políticos, metafísicos, estéticos, lógicos… e, inclusive, jurídicos. Todavia, a Filosofia do Direito desgarrou-se de maiores atrelamentos com sua matriz, produzindo sua própria autonomia, podendo-se mesmo falar da existência de uma Filosofia do Direito implícita como algo diferenciado de uma Filosofia do Direito explícita.51 A Filosofia do Direito explícita ramifica-se da Filosofia Geral. De fato, a partir de Hegel, nota-se crescente movimento de investigação exclusivamente jurídica que acentua a especificidade do pensamento do Direito. Percebia-se que pensar o Direito, em virtude da própria complexização dos direitos positivos, demandava do teórico compreensão específica das injunções, das práticas, das técnicas jurídicas… Com isso, formou-se toda uma corrente de especialistas na Filosofia do Direito, que, sem serem filósofos de formação, dedicavam-se a pensar seu próprio objeto de atuação prática (Savigny, Puchta, Ihering, Windscheid, Stammler, Hans Kelsen…). No entanto, toda forma de especialização que acantone o conhecimento de sua matriz genérica acaba significando apenas um modo de alienação, determinado pela ideologia positivismo. O saber jusfilosófico, portanto, não é exclusividade do jurista, mas o filósofo não pode menosprezar o conhecimento adquirido na área do Direito, de onde se extrai a ideia de que a Filosofia do Direito é parte da filosofia. Aí está a chave para a compreensão das atuais medidas do pensar filosófico do Direito. Ao mesmo tempo que se reconhece que o pensador do Direito não pode prescindir de conhecer o ramo ao qual se dedica, não pode muito menos estar despreparado para pensar filosófica e adequadamente os problemas. Em outras palavras, quer-se dizer que se reconhece importância ao fato de que a Filosofia lance luzes sobre a Filosofia do Direito, e vice-versa, mas não se pode afirmar que a Filosofia do Direito esteja atrelada, perdendo sua autonomia, à Filosofia. O que ocorre é que, por especialização, a Filosofia do Direito tornou-se, historicamente, um conjunto de saberes acumulados sobre o Direito (objeto específico), distanciando-se da Filosofia, como a Semiótica se distanciou da Lógica. Ocorrendo isso, não significa que se deva menosprezar a sede primígena do contato histórico, ou muito menos a importância da ligação teórica ou, ainda, a necessidade de a espécie relacionar-se com o gênero. Deve-se, no entanto, ressaltar o fato de que o saber filosófico continua influenciando a história das ideias jusfilosóficas; pense-se que as filosofias do agir comunicativo de Jürgen Habermas e da arqueologia das práticas humanas de Michel Foucault têm sido motivo de largo impacto intelectual e reflexão entre os juristas. Saliente-se que, por vezes, as metodologias jusfilosóficas (Stammler como jusfilósofo neokantiano) aperfeiçoam-se na medida dos aperfeiçoamentos filosóficos (Immanuel Kant como filósofo), e que, por vezes, as metodologias jusfilosóficas aperfeiçoam-se independentemente das contribuições filosóficas. Colha-se no pensamento de Chaim Perelman, com sua nova retórica, o exemplo de uma metodologia que, não obstante a matriz aristotélica, mostrou- se numa projeção inversa, partindo do jurídico para o filosófico, assim como tem ocorrido com o pensamento de Ronald Dworkin. Pode-se mesmo dizer que é do convívio e do diálogo constantes que se obterão melhores e mais salutares produtos nessa área do saber humano. 12 Filosofia do direito: conceito, atribuições, funções Ao tentar definir os quadrantes filosóficos, devem-se apontar os elementos que diferenciam a sabedoria filosófica de outras experiências humanas com o conhecimento. De fato, a filosofia distancia-se da mitologia (fantasia e cultura), da religião (crença e fé), do saber vulgar (prejulgamentos e limitações analíticas)… A filosofia é, a princípio: saber racional,131 saber sistemático,132 saber metódico,133 saber causal e lógico.134 Para alguns autores, a Filosofia do Direito deve ocupar-se do justo e do injusto, e é esse seu objeto.135 Para outros, o justo e o injusto estão fora do alcance do jurista, e são objeto de estudo da Ética.136 Para outros, ainda, a Filosofia do Direito deve ser um estudo combativo, politicamente, uma vez que inata é sua função de lutar contra a tirania.137 Existem propostas que enfatizam que a tarefa filosófica deve consistir na escavação conceitual do Direito.138 Muitas vezes, autores atribuem à Filosofia do Direito a tarefa de fazer derivar da razão pura a estrutura do próprio Direito, ao estilo dedutivo- kantiano.139 Há quem faça participar de toda a especulação filosófica a necessidade crítico-valorativa das instituições jurídicas.140 Daí surgirem as mais diversificadas propostas, a saber: (1) disciplina tendente a estudar a justiça (jusnaturalistas); (2) disciplina tendente a estudar o dever-ser, verificando sua autonomia existencial (positivistas); (3) disciplina tendente a estudar e criticar o método jurídico utilizado cientificamente pelos juristas (formalistas); (4) disciplina tendente a estudar questões jurídicas históricas, assim como contribuir para o aperfeiçoamento do direito positivo (normativistas); (5) disciplina tendente a estudar os fatos jurídicos (sociologistas).141 E, assumindo posturas teóricas, como decorrência mesma do sistema adotado e da lógica encadeada de construção do sistema teórico, muitas vezes se propõe compreender a Filosofia do Direito como dividida em partes. Miguel Reale vislumbra na Filosofia do Direito as seguintes partes: ontognoseologia (compreensão conceitual do Direito); epistemologia (lógica e ciência jurídicas); deontologia (valores éticos); culturologia (história e eficácia jurídicas).142 É essa uma proposta que atrela os pressupostos de seu pensamento ao tipo de investigação que pretende desenvolver, e isso representa já uma postura teórica individual, que, a princípio, não se poderia universalizar. Aqui, o indagar filosófico debruça-se sobre si mesmo. Será necessário dividir a Filosofia em áreas de atuação? Não terá ela amplitude tão grande quanto a do próprio objeto que assume como problema, o Direito?143 Não se confundindo com as práticas científicas do direito, é-lhes superior,144 não qualitativamente, mas pelo fato de pairar para além da visão que possuem do fenômeno jurídico. As ciências jurídicas partem da norma para seus resultados aplicativos e/ou consequências; a especulação filosófica volve da norma a seus princípios, a suas causas, a sua utilidade social, a sua necessidade, as suas deficiências…145 De qualquer forma, possui comprometimentos com a história,146 com a ideologia, com a sociedade, com a política…, destacando-se por suas preocupações universais e não setoriais. A Filosofia do Direito é um saber crítico a respeito das construções jurídicas erigidas pela Ciência do Direito e pela própria práxis do Direito. Mais que isso, é sua tarefa buscar os fundamentos do Direito, seja para cientificar-se de suanatureza, seja para criticar o assento sobre o qual se fundam as estruturas do raciocínio jurídico, provocando, por vezes, fissuras no edifício que por sobre as mesmas se ergue. A Filosofia do Direito possui um objeto tão universal, e um método que faculta que a investigação se prolongue tamanhamente, que abre mão da possibilidade de circunscrever seus umbrais. Aliás, fazê-lo seria o mesmo que podar o alcance crítico da filosofia sobre determinado problema ou grupo de problemas de interesse jusfilosófico. Por isso, deve-se dizer que a reflexão filosófica sobre o Direito não pode extenuar-se. De fato, seu compromisso é manter-se acesa e atenta às modificações quotidianas do Direito, à evolução ou à involução dos institutos jurídicos e das instituições jurídico-sociais, às práticas de discurso do Direito, às realizações político-jurídicas, ao tratamento jurídico que se dá à pessoa humana… Então, a Filosofia do Direito é sempre atual, é sempre de vanguarda, pois reserva para si esse direito-dever de estar sempre impregnada da preocupação de investigar as realizações jurídicas práticas e teóricas. Não se pode olvidar que a filosofia é o exercício do pensamento que tem por finalidade o próprio exercício do pensamento. Não visando a outro resultado senão à interpretação pela interpretação, seu exercício é desprovido de pretensões finalistas.147 Causas de causas, razões, fundamentos, explicações e justificações são buscados no próprio iter do pensamento. É, portanto, no próprio caminho de investigação que reside a ratio essendi da filosofia. A contribuição está na perene abertura que proporciona, diferenciando-se das demais ciências por fazer-se prática teórica desvinculada de pressupostos (dogmas, o que está na raiz da diferença entre dogmática e zetética).148 Por vezes, a ênfase na resposta somente torna ainda mais obtusa a possibilidade de se questionarem os fundamentos de uma prática jurídica, humana ou social; aí a ênfase na investigação serve como forma de abrir os horizontes para outras possibilidades de sentido, para outras alternativas, para outras propostas e entendimentos.149 À parte qualquer tipo de querela teórica, ou ainda acadêmica, é ineludível o fato de que a Filosofia do Direito possui metas e tarefas que estão compreendidas em suas perspectivas de investigação. São elas: 1. proceder à crítica das práticas, das atitudes e atividades dos operadores do direito; 2. avaliar e questionar a atividade legiferante, bem como oferecer suporte reflexivo ao legislador; 3. proceder à avaliação do papel desempenhado pela ciência jurídica e o próprio comportamento do jurista ante ela; 4. investigar as causas da desestruturação, do enfraquecimento ou da ruína de um sistema jurídico; 5. depurar a linguagem jurídica, os conceitos filosóficos e científicos do Direito, bem como analisar a estrutura lógica das proposições jurídicas; 6. investigar a eficácia dos institutos jurídicos, sua atuação social e seu compromisso com as questões sociais, seja no que tange a indivíduos, seja no que tange a grupos, seja no que tange a coletividades, seja no que tange a preocupações humanas universais; 7. esclarecer e definir a teleologia do Direito, seu aspecto valorativo e suas relações com a sociedade e os anseios culturais; 8. resgatar origens e valores fundantes dos processos e institutos jurídicos, identificando a historicidade e a utilidade das definições, das práticas e das decisões jurídicas; 9. por meio da crítica conceitual institucional, valorativa, política e procedimental, auxiliar o juiz no processo decisório; 10. insculpir a mentalidade da justiça como fundamento e finalidade das práticas jurídicas; 11. estudar, discutir e avaliar criticamente a dimensão aplicativa dos direitos humanos; 12. abalar a estrutura de conceitos arcaicos, de hábitos solidificados no passado, de práticas desenraizadas e desconexas com a realidade sociocultural, na qual se inserem, de normas desconexas, e que atravancam a melhor e mais escorreita aplicação do sistema jurídico. 13. proceder à discussão das bases axiológicas, econômicas e estruturais que moram atrás das práticas jurídicas; 14. desmascarar as ideologias que orientam a cultura da comunidade jurídica, os pré- conceitos que orientam as atitudes dos operadores do Direito e descortinar as críticas necessárias para a reorientação da função de responsabilidade ético-social que repousa nas profissões jurídicas; 15. disseminar a cultura do humanismo, como forma ético-filosófica de resistência à tecnificação e pragmatização, à materialização e à alienação próprias da vida hodierna. 4.3 Idealismo ético e mito de Er O platonismo, ao contrário do que faz o aristotelismo, como se verá adiante, prima pelo idealismo e não pelo realismo, não obstante sua obra caminhar paulatinamente em direção à maturidade mais realista, o que se nota na diferença de sua teoria política entre os textos A república e As leis. Isso porque o núcleo da teoria platônica repousa na noção de ideia (eîdos), que penetra inclusive o entendimento do que seja o bem supremo do homem. A eîdos, por distanciada dos mais vulgares desejos e tendências humanas realizáveis, inscreve-se, portanto, no quadro das especulações humanas, mas jamais das realizações humanas. Isso porque a ideia do que seja o Bem Supremo não pode ser atingida pelo homem, nem realizada concretamente. Enfim, a ideia do Bem que está a governar todo cosmo (kósmos) representa a grande prioridade do sistema de Ideias concebido por Platão.12 Às ideias de ética e de virtude liga-se diretamente a ideia de conhecimento como algo necessário.13 De fato, o platonismo não nega sua herança socrática, e faz o conhecimento derivar dos altiplanos do Mundo Ideal. É por reminiscência que se podem recuperar as ideias que estão latentes na alma humana, mas que foram esquecidas pela passagem da alma de sua condição no Hades para a Terra. Recuperar o conhecimento latente na alma humana é reacender labaredas de vidas precedentes, uma vez que dessas vivências anteriores se podem extrair os conceitos primordiais já aprendidos e efetivamente adquiridos pela alma. Assim, incumbe à alma logística a contemplação da verdadeira Realidade, de onde se extraem os conhecimentos certos e definitivos para serem seguidos pelos homens. Essa questão é ilustrada pelo Mito da Caverna (República, livro V), mas pode ser esclarecida, ainda, a partir do Mito de Er, apresentado em meio a uma exposição de Sócrates a Glauco sobre arte e técnica, no final livro X do diálogo República (525 a-621 d) de Platão.14 A narrativa do mito15 detém-se fundamentalmente na figura de Er, guerreiro originário da Panfilia (Ásia Menor), que, morto em uma batalha, teve seu corpo posteriormente encontrado entre outros cadáveres de guerreiros, mas na espantosa condição de cadáver são e íntegro. Uma vez encontrado, reconduzido a sua pátria e velado por doze dias (dwdekataîos) (Rep., 614 a), no último desses doze dias, recobrou a vida e contou aos circunstantes o que havia visto no Hades. A partir de então, advém seu relato pessoal, tudo narrado por Sócrates, baseado nas tradições populares a respeito de como seria a vida no Além, contando que, ao deixar o corpo, sua alma foi para um lugar maravilhoso, uma grande pradaria, onde se aglomeravam inúmeras almas, e onde se avistavam quatro buracos, dois no solo e dois no céu. Os juízes, que ali se encontravam, avistavam os justos, e a estes recomendavam seguir à direita e para o céu, por uma das aberturas,16 e avistavam, da mesma forma, os injustos, e a estes recomendavam seguir à esquerda e para baixo, por uma das aberturas.17 Esses mesmos juízes, que selecionavam os justos e os injustos, recomendaram a Er que não tomasse nenhuma das direções, mas que retornasse ao mundo e servisse de testemunha aos homens do que havia visto ali. De uma das aberturas da terra, conta Er ter visto surgir almas sujas e empoeiradas, que contavam sofrimentos e dores, e, pelo contrário,de uma das aberturas do céu, almas puras, que contavam das maravilhas que haviam visto,18 todas vindas de uma longa viagem. Sócrates, em sua narrativa do relato de Er sobre o supraterreno, insiste em contar apenas o essencial a Gláuco, atribuindo ainda a Er outras informações acerca da vida no Além. Assim, as almas injustas pagavam, para cada injustiça cometida, dez vezes mais (dekákis); a duração de cada punição é de cem anos (vida humana); para cada boa ação, na mesma medida, a recompensa é decuplicada. A narrativa de Er sobre o sistema de punições e recompensas baseia-se no testemunho de almas que, além de terem visto coisas feias e padecido coisas ruins, presenciaram grandes criminosos (parricidas, tiranos...) serem impedidos de deixar as entranhas da terra ao tentarem delas sair. Logo em seguida a uma permanência de sete dias nessa pradaria, onde tais fatos narrados foram presenciados por Er, as almas dela se deslocaram por quatro dias, caminhando em direção a uma coluna luminosa, que se vertia em direção ao céu. Ali se avistavam Lachésis (passado), Clotho (presente) e Atropos (futuro), filhas da Necessidade, responsáveis pelo movimento dos arcos celestes. Apresentando-se, relata Er, diante de Lachésis (futuro), cada alma recebia sua sorte no porvir, e isto tendo-se em vista o reencontro próximo com um corpo carnal,19 mas tudo não por intervenção e responsabilidade da divindade, mas por sua própria liberdade de escolha (aitía eloménou; Theòs analtios) (Rep., 617 e Timeu, 42 d); escolhendo os modelos de vida (tà twn bíwn paradeígmata) (Rep., 618 a), as almas o faziam com base em experiências e hábitos de vidas anteriores,20 selecionando o que melhor lhes conviesse num futuro próximo. Nesse sentido, tendo em vista a liberdade de escolha de cada alma, podiam ser escolhidas vidas animais ou humanas;21 após a escolha, cada alma recebia seu demônio, que lhes encaminharia nas dificuldades da vida.22 Feito isso, o demônio de cada alma encarregava-se de conduzir sua pupila diante de Clotho e, em seguida, de Atropos, tornando irrevogável o destino por ela escolhido livremente, dentro de seu cabedal de responsabilidades e experiências anteriores. Em seguida, todas as almas apresentavam-se diante do trono da Necessidade, para, posteriormente, passarem pela grande planície do Léthes, onde, pela noite, beberiam da água do rio Amelete, responsável pelo esquecimento do que viram e vivenciaram. Feito esse ritual, em meio à noite, após fortes estrondos e relâmpagos luminosos, cada alma é conduzida ao local onde renascerá. Er, por sua vez, não tendo bebido da água do rio Amelete (responsável pelo esquecimento das vivências anteriores), e tendo recebido a orientação de retornar ao mundo para contar sua experiência no Além, recobrou sua consciência, e, tomando novamente posse de seu corpo, que foi retirado de campo em meio aos andrajos de guerra, pôde, liberto do adormecimento que acomete todas as almas, trazer seus relatos sobre o que seria a responsabilidade de cada qual por seus atos e pelo próprio destino. Sócrates, então, conclui diante de Gláuco sua dissertação sobre o mito, encerrando seu diálogo, afirmando que se pode ser feliz, bem como agradar aos deuses, neste mundo, bem como no Além (Rep., 621 d). 4.4 Ética, justiça e metafísica A admissão de uma Realidade (divina) para além da realidade (humana), importa, também, a admissão de que existe uma Justiça (divina) para além daquela conhecida e praticada pelos homens. O que é inteligível, perfeito, absoluto e imutável pode ser contemplado, e é do resultado dessa atividade contemplativa que se devem extrair os princípios ideais para o governo da politeia, tarefa delegada ao filósofo.23 Mesmo estando a Ideia da Justiça distante dos olhos do comum dos homens, sua presença se faz sentir desde o momento presente na vida de cada indivíduo. Existe, para além da ineficaz e relativa justiça humana (a mesma que condenou Sócrates à morte!), uma Justiça, infalível e absoluta, que governa o kósmos, e da qual não se pode furtar qualquer infrator. A justiça não pode ser tratada unicamente do ponto de vista humano, terreno e transitório; a justiça é questão metafísica, e possui raízes no Hades (além-vida), onde a doutrina da paga (pena pelo mal; recompensa pelo bem) vige como forma de Justiça Universal. O homem justo, por suas razões singulares, participa da ideia do justo e, por isso, é virtuoso. A cosmovisão platônica, que segue rigorosamente passos pitagóricos, permite a abertura da questão da justiça a caminhos mais largos que aqueles tradicionalmente trilhados no sentido de se determinar seu conceito. O que a proposta platônica contém é uma redução dos efeitos racionais da investigação, e uma maximização dos aspectos metafísicos do tema.24 Nesse sentido, toda alma que perpassa a sombra e a incógnita da morte encontrará seu julgamento, que será feito de acordo com os impecáveis mandamentos da Justiça. A doutrina da paga no Além dos males causados a outrem, deuses e homens, possui caráter essencialmente órfico-pitagórico,25 e é o cerne da justiça cósmica platônica. A conduta ética e seu regramento possuem raízes no Além (Hades), de modo que o sucesso terreno (homicidas, tiranos, libertinos...) e o insucesso terreno (Sócrates…) não podem representar critérios de mensurabilidade do caráter de um homem (se justo ou se injusto). No reino das aparências (mundo terreno, sensível), o que parece ser justo, em verdade, não o é; o que parece ser injusto, em verdade, não o é. A inversão ético-valorativa operada por Platão26 faz com que todo o equilíbrio das relações humanas baseie-se em critérios palpáveis, acessíveis aos sentidos, passíveis de serem discutidos pela opinião (dóxa); o que há é que se cria uma expectativa de justiça, somente realizável no Além apesar de, por vezes, imediatizarse na vida terrena. Nos textos do Górgias, das Leis, da República, a retribuição aparece como a forma providencial de justiça cósmica. Nas Leis, sobretudo, a ordem do mundo é dada pela justiça retributiva (Leis, 903).27 Esta é infalível.28 O melhor à alma que se separa do corpo é nada dever a ninguém, pois aquele que algo dever, ainda que se esconda (Leis, 905) sob a justiça encaminhada pela providência divina, haverá de sucumbir. De fato, a retribuição é o modo de justiça metafísica (República, 613), que ocorre desde o aqui e também no Além. A justiça agrada a Deus, e a injustiça o desagrada; mais que isso, a justiça é causa de bem para aquele que a pratica, e causa de mal para aquele que a transgride.29 Passam à direita e para cima de Deus as almas que se destinam a fruir os gozos celestes, e passam à esquerda e para baixo de Deus as almas destinadas ao cumprimento de penas;30 as almas cumprem seus ciclos num longo período de provas, durante o qual permanecem indo e vindo entre duas realidades. Toda alma que retorna de seu ciclo tem o direito de escolher, diante de três moiras, a sorte que deseja cursar, em um vasto leque de opções, podendo optar por profissões e posições sociais as mais variadas, levando-se em conta as aptidões que já possui e que já adquiriu em vivências passadas; logo em seguida, submete-se a alma a beber a água do rio Ameles para o esquecimento do que viu e posterior renascimento.31 O próprio renascimento, momento de união do corpo com a alma, que está presa como a um cárcere àquele, significa a justiça em funcionamento, mecanismo que responsabiliza cada alma por sua conduta aqui e no Além.32 A conclusão não é outra senão a de que não se pode ser justo ou injusto somente para esta vida, pois se a alma preexiste ao corpo, é porque também subsiste à vida carnal, de modo que ao justo caberá o melhor e ao injusto o pior. Aqui residem esporos da doutrina órfico-pitagórica e de um dualismo escatológico. Ao justo, a Ilha dos bem-aventurados; ao injusto, o Tártaro (Górgias, 447).33 Nesse sentido, o mecanismo é implacável, pois toda alma comparecerá diante de um tribunal, quesentenciará os acertos e os erros, determinando o fim de cada qual no Além.34 4.5 Ética, alma e ordem política A ordem política platônica estrutura-se como uma necessidade para a realização da justiça, um imperativo para o convívio social,35 onde governados obedecem e governantes ordenam.36 E, nesta ordem, onde uns obedecem e outros ordenam, deve haver uma cooperação entre as partes para que se realize a justiça. A alma tripartite, cuja estrutura é dada pelo Fédon, é feita paradigma funcional para a explicação da estrutura do próprio Estado (Rep., 368 ss), em que a razão deve imperar sobre a paixão, sob pena de o cocheiro não conseguir corrigir o curso da alma desgarrada pelos instintos, como narrado no Fedro, 246. A divisão do trabalho é a regra de justiça no Estado Ideal; três classes dividem-se em três atividades (política; defesa; economia), não podendo haver interferência de uma classe na atividade da outra (Rep., 592); a interferência representa a injustiça,37 pois cada classe corresponde a uma parte da alma, e a alma racional, aliada à epitimética, deve governar. Nesse sentido, a justiça na cidade é ordem; a desordem é sinônimo de injustiça.38 A justiça é a saúde do corpo social, pois onde cada um cumpre o que lhe é dado fazer, o todo beneficia-se dessa complementaridade. O Estado Ideal platônico descrito sistematicamente na República é apenas meio para a realização da justiça.39 De fato, porém, esse Estado não existe na Terra, e sim no Além, como modelo a se inspirar (Rep., 592). Nesse Estado, a Constituição (politeia) é apenas instrumento da justiça, pois estabelece uma ordem jurídica. De qualquer forma, para Platão, o Estado Ideal deve ser liderado não por muitos (democracia), uma vez que a multidão não sabe governar,40 mas por um único (teocracia), o filósofo, o sábio, pois este contemplou a Verdade, e está apto a realizála socialmente. Aqui, poder e filosofia (platônica) aliam-se. ARISTÓTELES: JUSTIÇA COMO VIRTUDE 5.1O tema da justiça e a ética O desenvolvimento do tema da justiça1 na teoria de Aristóteles (384-322 a.C.), discípulo de Platão, fundador do Liceu e preceptor de Alexandre Magno, tem sede no campo ético, ou seja, no campo de um saber que vem definido em sua teoria como saber prático.2 A síntese operada pelo pensador permitiu, por meio de seus textos, que se congregassem inúmeros elementos doutrinários reunidos ao longo dos séculos, pelos quais se espalharam os conhecimentos gregos anteriores a ele (pré-socráticos, socratismo, sofistas, platonismo…). É da reunião das opiniões dos sábios, da opinião do povo, da experiência prática, avaliados e analisados criticamente, dentro de uma visão de todo do problema (justiça da cidade, justiça doméstica, justiça senhorial…) que surgiu uma concepção propriamente aristotélica.3 Os principais conceitos sobre o tema da justiça, sua discussão, sua exposição e sua crítica na teoria de Aristóteles encontram-se analisados e apresentados no livro intitulado Ethica Nicomachea (livro V), texto dedicado à ética (ação prática, vícios, virtudes, deliberação, decisão, agir voluntário, educação…); é aqui, nesta sede textual, que o tema vem desdobrado em minúcias, com todos os contornos principais. Falar de justiça, porém, é comprometer-se com outras questões afins, quais sejam, as questões sociais, políticas, retóricas… Por isso, Aristóteles também se lança na análise pontual do problema da justiça, dedicando algumas páginas de seus principais textos (Politica, Rethorica…) a seu tratamento, sem se falar no diálogo de autenticidade duvidosa intitulado Acerca da justiça (Perì dikaiosýnes), que versa sobre o tema. A obra de Aristóteles é vasta, espraiando-se por diversos domínios do saber (ética, poética, política, física, metafísica, biologia, lógica…), e engloba inclusive três trabalhos sobre a ética (Ethica Nicomachea, Magna Moralia, Ethica Eudemia), mas a pesquisa que ora se enceta restringir-se-á às dimensões assumidas, fazendo-se das fontes citadas os limites de trabalho e levantamento de conceitos e ideias sobre o tema. No entanto, não é apenas a natureza ética do livro (Ethica Nicomachea) que faz com que a justiça ganhe imbricações éticas na teoria de Aristóteles. Fato é que o mestre do Liceu tratou a justiça entendendo-a como uma virtude,4 assemelhada a todas as demais tratadas no curso da obra (coragem, temperança, benevolência…). A justiça, assim definida como virtude (dikaiosýne), torna-se o foco das atenções de um ramo do conhecimento humano que se dedica ao estudo do próprio comportamento humano; à ciência prática, intitulada ética, cumpre investigar e definir o que é o justo e o injusto, o que é ser temerário e o que é ser corajoso, o que é ser jactante... Dentro da filosofia aristotélica é que se encontra referência à tripartição das ciências em práticas, poéticas, ou produtivas, e teoréticas.5 De acordo com essa divisão, dos conhecimentos humanos científicos, a investigação ética não se destina à especulação (ciências teoréticas) ou à produção (ciências produtivas), mas à prática; o conhecimento ético, o conhecimento do justo e do injusto, do bom e do mau, é uma primeira premissa para que a ação converta-se em uma ação justa ou conforme à justiça, ou em uma ação boa ou conforme o que é melhor. O que se quer dizer é que, em poucas palavras, não somente o conhecimento do que seja justo ou injusto faz do indivíduo um ser mais ou menos virtuoso, praticamente. E é nesse ponto mesmo que se deposita toda a excelência do estudo ético, perquirição em torno do fim da ação humana, pois este também é objeto da investigação política, a mais importante das ciências práticas; é sua a tarefa de traçar as normas suficientes e adequadas para orientar as atividades da pólis, e dos sujeitos que a compõem, para a realização palpável do Bem Comum.6 E esta ciência preocupa-se com os desdobramentos individuais e sociais dos comportamentos humanos. Nesse sentido, pode-se dizer, os conceitos éticos e políticos aparecem condicionados um pelo outro; a imbricação entre ambas as esferas é clara na teoria aristotélica; o Bem que a todos alcança afeta o bem de cada indivíduo, assim como o bem de cada indivíduo acaba convertendo-se no Bem de toda a comunidade quando comungado socialmente. Assim, uma vez que o bem do todo é coincidente com o bem das partes, não se encontra o indivíduo inteiramente absorvido pelo Estado ao ponto do sacrifício da esfera particular em prol da esfera pública. Em verdade, há que se dizer, ocorre que, pela própria natureza racional do homem, ser gregário que é (o homem como um animal político por natureza, politikon zoon, é um postulado fundamental da teoria política aristotélica), só pode haver realização humana plena em sociedade.7 A verdade conceptual, de acordo com essa orientação, apreende-se por meio do raciocínio indutivo, método adequado à demonstração daquilo que é afeto a todos os indivíduos, e não de conhecimento específico de alguns poucos (matemáticos, astrônomos...), que capta o objeto de estudo em sua singular manifestação fenomênica, fundando-se, para tanto, na experiência de vida e na vivência do homem. É a observação do homem em sua natural instância de convívio, a sociedade, que consente a formulação de juízos éticos; é dessa experiência, pois, que se extrairão os conceitos explorados dentro da temática que se abeira das noções do justo e do injusto. A peculiaridade do estudo ético reside no fato de que os juízos baseados em leis fixas não lhe são aplicáveis, como ocorre, por exemplo, com o conhecimento matemático,8 as quais asseguram a obtenção de resultados constantes. Então, o estudo ético está marcado por esse tipo de preocupação: definir sem constranger com conceitos, pois fica sempre aberta uma margem de variabilidade que torna a principiologia ética flexível de indivíduo a indivíduo. Em outras palavras, os princípios éticos não se aplicam a todos de forma única (a coragem não é a mesma para todos, a justiça nãoé a mesma para todos…), estando condicionados ao exame do caso particular para que, a cada um, de maneira personalizada e singularizada, se aplique o justo meio (mesótes).9 O conceito de justo meio (mesótes) não comporta de forma alguma uma compreensão genérica e indiferente às qualidades específicas dos indivíduos; é, pelo contrário, sensível, dentro das ambições teóricas de Aristóteles, à dimensão individual. 5.2 Justiça como virtude A justiça, compreendida em sua categorização genérica, é uma virtude (areté),10 e, como toda virtude, qual a coragem, a temperança, a liberalidade, a magnificência…, é um justo meio (mesótes).11 Não se trata de uma simples aplicação de um raciocínio algébrico para a definição e a localização da virtude (um meio algébrico com relação a dois polos opostos), mas da situação desta em meio a dois outros extremos equidistantes com relação à posição mediana, um primeiro por excesso, um segundo por defeito.12 Somente a educação ética, ou seja, a criação do hábito do comportamento ético, o que se faz com a prática à conduta diuturna do que é deliberado pela reta razão (ortòs lógos) à esfera das ações humanas, pode construir o comportamento virtuoso.13 A semântica do termo ética (éthos) indica o caminho para sua compreensão: ética significa hábito, em grego. Aqui, o importante é a reiteração da prática virtuosa; nesse sentido, ser justo é praticar reiteradamente atos voluntários de justiça.14 Está-se, destarte, a recorrer, novamente, ao capital valor da educação (paideia) como bem maior de todo Estado (pólis). A justiça, em meio às demais virtudes, que se opõem a dois extremos (um por carência: temeroso; outro por excesso: destemido), caracteriza-se por uma peculiaridade: trata-se de uma virtude à qual não se opõem dois vícios diferentes, mas um único vício, que é a injustiça (um por carência: injusto por carência; outro por excesso: injusto por excesso).15 Dessa forma, o que é injusto ocupa dois polos diversos, ou seja, é ora injustiça por excesso, ora injustiça por defeito. O justo meio na relação entre dois polos é a equilibrada situação dos envolvidos numa posição mediana, ou seja, de igualdade, seja ela proporcional, seja ela absoluta. Esse equilíbrio reside no fato de ambos compartilharem de um medium, não se invadindo o campo do que é devido ao outro, não ficando com algo para mais ou para menos. Deve- se grifar, no entanto, que apenas a atividade do injusto, ou seja, o reter uma porção maior de bens e menor de males, constitui propriamente um vício, sendo que sofrer a injustiça, estado de passividade por excelência, não pode ser considerado uma situação viciosa. Portanto, não são dois vícios que se contrapõem por um meio-termo, como ocorre com as outras virtudes, mas se trata de uma posição mediana entre o possuir mais e o possuir menos, relativamente a todo e qualquer bem que se possa conceber.16 Aristóteles está sobretudo preocupado em demonstrar, por suas investigações, que a noção de felicidade (eudaimonía) é uma noção humana, e, portanto, humanamente realizável. O caminho? A prática ética. A ciência prática, que cuida da conduta humana, tem esta tarefa de elucidar e tornar realizável, factível, a harmonia do comportamento humano individual e social. O meio de aquisição da virtude é ponto de fundamental importância nesse sentido. De fato, não sendo a virtude nem uma faculdade, nem uma paixão inerente ao homem, encontra-se neste apenas a capacidade de discernir entre o justo e o injusto, e de optar pela realização de ações conformes a um ou a outro. Deve-se renovar a ideia de que a virtude, assim como o vício, adquire-se pelo hábito, reiteração de ações em determinado sentido, com conhecimento de causa e com o acréscimo da vontade deliberada. A própria terminologia das virtudes chamadas éticas deve-se ao termo hábito (éthos). Ao homem é inerente a capacidade racional de deliberação, o que lhe permite agir aplicando a razão prática na orientação de sua conduta social. Conhecer em abstrato (teoricamente) o conteúdo da virtude não basta, como à exaustão já se disse, ao phrónimos, sendo de maior valia a atualização prática e a realização da virtude.17
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