Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
275274 Teoria do Fato Punível Capítulo 10 Capítulo 11 Culpabilidade e exCulpação I. Conceito de culpabilidade A dogmática penal contemporânea edifica o conceito de fato punível com base nas categorias elementares do tipo de injusto e da culpabilidade, que concentram todos os elementos da definição analítica de crime1. Essas categorias elementares do fato punível se relacionam como objeto de valoração e juízo de valoração, segundo a conhecida fórmula de GRAF ZU DOHNA2: o injusto como objeto de valoração, a culpabilidade como juízo de valoração3. A culpabilidade, como juízo de reprovação, tem por objeto o tipo de injusto, e por fundamento: a) a imputabilidade, como con- junto de condições pessoais mínimas que capacitam o sujeito a saber (e controlar) o que faz, excluída ou reduzida em hipóteses de menoridade ou de doenças e anomalias mentais incapacitantes; b) o conhecimento do injusto, como conhecimento concreto do valor que permite ao autor imputável saber, realmente, o que faz, excluído ou reduzido em casos de erro de proibição; c) a exigibilidade de conduta diversa, como expressão 1 Ver, por exemplo, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 39, I, 1, p. 425; OTTO, Grundkurs Strafrecht, 1996, § 5, III, 1, n. 23, p. 46. 2 GRAF ZU DOHNA, Zum neuesten Stande der Schuldlehre, ZStW, 32, 1911, p. 323. 3 No Brasil, JESUS, Direito Penal I, 1999, p. 454, bem como DOTTI, Curso de Direito Penal: parte geral, 2001, p. 336, não consideram a culpabilidade como elemento do crime, mas como “pressuposto da pena”. Esse conceito é incomum na dogmática contem- porânea: primeiro, todos os “requisitos” ou “elementos” do crime são pressupostos da pena, desde a ação típica até as condições objetivas de punibilidade, e não parece existir qualquer razão para isolar a culpabilidade como único pressuposto da pena; segundo, a proposição confunde crime com tipo de injusto que, em conjunto com a culpabilidade, constitui o conceito de fato punível, na moderna teoria do Direito Penal. o barco emborca sob a violência das ondas (ver O tipo dos crimes de imprudência, acima). O consentimento presumido do ofendido exclui a antijuridicidade da ação: operação urgente no local do acidente, necessária para salvar a vida de vítima inconsciente, mas com ins- trumental inadequado e medidas de cuidado insuficientes, em que a concreta violação da lex artis determina danos à saúde do paciente183. 183 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 24, n. 100-101, p. 955. 276 277 Teoria do Fato Punível Capítulo 11 Capítulo 11 Culpabilidade e Exculpação de normalidade das circunstâncias do fato e concreta indicação do poder de não fazer o que fez, excluído ou reduzido nas situações de exculpação. Esse conceito de culpabilidade, como juízo de reprovação do autor pela realização do tipo de injusto, parece representar a expressão contemporânea dominante do conceito normativo de culpabilidade: um juízo de reprovação sobre o sujeito (quem é reprovado), que tem por objeto a realização do tipo de injusto (o que é reprovado) e por fundamento (a) a capacidade geral de saber (e controlar) o que faz, (b) o conhecimento concreto que permite ao sujeito saber realmente o que faz, e (c) a normalidade das circunstâncias do fato que confere ao sujeito o poder de não fazer o que faz (porque é reprovado). 1. Desenvolvimento do conceito de culpabilidade O conceito normativo de culpabilidade é o produto de mais de um século de controvérsia sobre sua estrutura, que começa com o conceito psicológico de culpabilidade do século 19, evolui para o conceito psicológico-normativo no início do século 20, transforma-se em conceito exclusivamente normativo durante o século 20 – e hoje, no início do século 21, parece imerso em profunda crise. 1.1. Conceito psicológico de culpabilidade A atribuição dos elementos objetivos do fato punível à antiju- ridicidade típica, como lesão causal do bem jurídico, e a atribuição dos elementos subjetivos do fato punível à culpabilidade, como relação psíquica do autor com o fato, próprio do modelo causal de LISZT/BELING/RADBRUCH4, dominante na primeira metade do século 20, indica as duas bases do conceito de fato punível: o 4 LISZT, Strafrechtliche Vorträge und Aufsätze, 1905; BELING, Die Lehre von Verbrechen, 1906, p. 112 s.; RADBRUCH, Uber den Schuldbegriff, ZStW, 24 (1904), p. 333. injusto, como dimensão objetiva, e culpabilidade, como dimensão subjetiva do fato punível5. O conceito psicológico de culpabilidade é formado por dois elementos: a) a capacidade de culpabilidade (ou imputabilidade), como capacidade geral ou abstrata de compreender o valor do fato e de querer conforme a compreensão do valor do fato, excluída ou reduzida em situações de imperfeição (imaturidade) ou de defecção (doença mental) do aparelho psíquico; b) a relação psicológica do autor com o fato, exis- tente como consciência e vontade de realizar o fato ou como causação de um resultado típico por imprudência, imperícia ou negligência. Os defeitos do conceito psicológico de culpabilidade determi- naram seu abandono: a culpabilidade como relação psíquica do autor com o fato é incapaz de abranger a imprudência inconsciente, em que não existe relação psicológica do autor com o fato; além disso, a es- trutura psicológica do conceito é insuficiente para valorar situações de anormal motivação da vontade, hoje definidas como hipóteses de inexigibilidade de comportamento diverso6. 1.2. Conceito normativo de culpabilidade 1.2.1. Culpabilidade e reprovação. A redefinição de culpabilidade como reprovabilidade, proposta por FRANK em 1907, introduz um componente normativo no conceito de culpabilidade, sob o argumento de que “um comportamento proibido só pode ser atribuído à culpabili- dade de alguém se é possível reprovar-lhe sua realização”7. Em seguida, 5 BELING, Die Lehre von Verbrechen, 1906, p. 112 s. 6 Nesse sentido, CIRINO DOS SANTOS, Teoria do crime, 1993, p. 59; também, FRAGOSO, Lições de Direito Penal, 1985, n. 177, p. 201-203; MACHADO, Direito criminal: parte geral, 1987, p. 138-139; MESTIERI, Manual de Direito Penal I, 1999, p. 157-158; RODRIGUES, Teoria da culpabilidade, 2004, p. 31-37. 7 FRANK, Uber den Aufbau des Schuldbegriffs, 1907, p. 14. 278 279 Teoria do Fato Punível Capítulo 11 Capítulo 11 Culpabilidade e Exculpação GOLDSCHMIDT propõe a célebre distinção entre norma de direito (Rechtsnorm), como exigência objetiva de comportamento exterior, e norma de dever (Pflichtnorm), como exigência subjetiva de atitude pessoal conforme a norma de direito8 – o que permite reprovar o autor pela violação da norma de dever, mas admite exculpar o autor por inexigibilidade de motivação conforme a norma de dever. 1.2.2. Inexigibilidade e exculpação. No começo do século 20, FREU- DENTHAL concebe o conceito de inexigibilidade como fundamento geral supralegal de exculpação, sob um argumento poderoso: se evitar fatos puníveis pressupõe uma capacidade de resistência inexigível do homem do povo, então a incapacidade de agir conforme a norma de dever exclui a exigibilidade de comportamento diverso, permitindo um juízo de exculpação9. Hoje, a inexigibilidade como fundamento geral supralegal de exculpação é admitida nos crimes de imprudência e de omissão de ação10, mas ainda excluída dos crimes dolosos de ação, sob alegação de criar insegurança jurídica11. A introdução do componente normativo no conceito de cul- pabilidade produziu o conceito psicológico-normativo de culpabili- dade, dominante na primeira metade do século 20, assim definido: a) capacidade de culpabilidade; b) relação psicológica concreta do autor com o fato, sob as formas de dolo ou de imprudência; c) exi- gibilidade de comportamento diverso, fundada na normalidade das circunstâncias do fato12. 8 GOLDSCHMIDT, Normativer Schuldbegriff, Frank-FS, v. I, 1930, p. 442; do mesmo, Der Notstand, ein Schuldproblem, ÖstZStr, 1913, p. 129. 9 FREUDENTHAL, Schuld und Vorwurf im geltenden Strafrecht, 1922, p. 7. 10 ROXIN, Strafrecht,1997, § 19, n. 13, p. 730. 11 Nesse sentido, por exemplo, SCHAFFSTEIN, Die Nichtzumutbarkeit als allgemeiner ubergesetzlicher Schuldausschliessungsgrund, 1933. 12 Ver FRANK, Uber den Aufbau des Schuldbegriffs, 1907, p. 14. No Brasil, o conceito psicológico-normativo da culpabilidade, dominante até a reforma da parte geral do Código Penal, ainda possui defensores, como, por exemplo, COSTA JÚNIOR, Comentários ao código penal I, 1989, p. 170. 1.2.3. Conceito normativo de culpabilidade. Na segunda metade do século 20, a teoria finalista e o conceito pessoal de injusto de WELZEL13 revolucionariam, simultaneamente, a teoria do tipo e a teoria da culpabilidade, mediante deslocação do dolo (consciência e vontade do fato) e da imprudência (lesão do cuidado objetivo exigi- do), da categoria da culpabilidade para a categoria do tipo de injusto (subjetivo), excluindo os componentes psicológicos da culpabilidade, reduzida aos componentes normativos dos juízos de reprovação e de exculpação14. Assim, o conceito normativo de culpabilidade inaugura- do pela teoria finalista da ação caracteriza-se pela seguinte estrutura: a) capacidade de culpabilidade; b) conhecimento real ou possível do injusto; c) exigibilidade de comportamento conforme a norma15. A universalidade dessa estrutura do conceito não é gratuita: define culpabilidade como reprovação de um sujeito imputável (o sujeito pode saber [e controlar] o que faz) que realiza, com consciência da antijuridicidade (o sujeito sabe, realmente, o que faz) e em condições de normalidade de circunstâncias (o sujeito tem o poder de não fazer o que faz), um tipo de injusto. Todavia, a redefinição de culpabilidade como reprovabilidade tem a natureza de uma definição formal, com a substituição de uma palavra por outra palavra, sem explicar porque o sujeito é culpável ou porque o sujeito é reprovável. Explicar porque o sujeito é culpável ou porque é reprovável significa mostrar a gênese real do juízo de reprovação, uma tarefa atribuída às definições materiais do conceito de culpabilidade. 13 WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, p. 140. 14 MAURACH/ZIPF, Strafrecht 1, 1992, § 30, ns. 22-23, p. 421-422. 15 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, § 19, n. 13-14, p. 729-730. No Brasil, BRANDÃO, Introdução ao Direito Penal, 2002, p. 141-149; FRAGOSO, Lições de Direito Penal, 1985, n. 177, p. 201-203; MACHADO, Direito criminal: parte geral, 1987, p. 140; MESTIERI, Manual de Direito Penal I, 1999, p. 157-159; RODRIGUES, Teoria da culpabilidade, 2004, p. 37-47; comparar ZAFFARONI/PIERANGELI, Manual de Direito Penal brasileiro, 1997, n. 345-348, p. 605-608. 280 281 Teoria do Fato Punível Capítulo 11 Capítulo 11 Culpabilidade e Exculpação 2. Definições materiais do conceito normativo de culpabilidade O fundamento material da culpabilidade (também chamado fundamento ontológico da culpabilidade) é definido pela capacidade de livre decisão do sujeito – e aqui está o problema: a tese da liberdade de vontade do conceito de culpabilidade é indemonstrável16. Se a pena criminal pressupõe culpabilidade e se a reprovação de culpabilidade tem por fundamento um dado indemonstrável, então a culpabilidade não pode servir de fundamento da pena. Por essa razão, o juízo de culpabilidade não pode ser um conceito ontológico, que descreveria uma qualidade do sujeito, mas um conceito normativo, que atribui uma qualidade ao sujeito17. Hoje, a tese da culpabilidade como fundamento da pena foi substituída pela tese da culpabilidade como limitação do poder de punir, com a troca de uma função metafísica de legitimação da punição por uma função política de garantia da liberdade individual18. Essa substituição não representa simples variação terminológica, mas uma mudança de sinal no conceito de culpabilidade, com consequências político-criminais relevantes: a culpabilidade como fundamento da pena legitima o poder do Estado contra o indivíduo; a culpabilidade como limitação da pena garante a liberdade do cidadão contra o poder do Estado porque se não existe culpabilidade não pode existir pena, nem intervenção estatal com fins exclusivamente preventivos19. A definição de culpabilidade como limitação do poder de punir contribui para redefinir a dogmática 16 Ver BARATTA, Imputación de responsabilidad en proceso penal, in Capítulo Criminológico, n. 16, p. 69; CIRINO DOS SANTOS, Direito Penal, 1985, p. 161; ver, também, MESTIERI, Manual de Direito Penal I, 1999, p. 161-162; TAVARES, As controvérsias em torno dos crimes omissivos, 1996, p. 100. 17 SACK, Neue Perspektiven in der Kriminologie, in KÖNIG, R./SACK, F., Kriminalsoziologie, 1968, p. 469-470. 18 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, § 19, n. 9, p. 727; também, WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, p. 114. 19 Comparar ALBRECHT, Kriminologie, 1999, p. 49-50. penal como sistema de garantias do indivíduo em face do poder pu- nitivo do Estado, capaz de excluir ou de reduzir a intervenção estatal na esfera de liberdade do cidadão. As principais teorias construídas para definir o conceito material da culpabilidade são as seguintes: a) teoria do poder de agir diferente; b) teoria da atitude jurídica reprovada ou defeituosa; c) teoria da res- ponsabilidade pelo próprio caráter; d) teoria do defeito de motivação jurídica; e) teoria da dirigibilidade normativa. 2.1. A teoria do poder de agir diferente (andershandelnkönnen) de WELZEL, ARTHUR KAUFMANN e outros, dominante na literatura e na jurisprudência alemã, fundamenta a reprovação de culpabilidade no poder atribuído ao sujeito de agir de outro modo20: o autor é re- provado porque se decidiu pelo injusto, tendo o poder de se decidir pelo direito. A base interna desse poder do autor reside na atribuída capacidade de livre decisão, que assume como verdade a hipótese indemonstrável da liberdade de vontade21, de início em perspectiva concreta, depois em perspectiva abstrata: a) na variante concreta, o poder de agir diferente atribuído ao autor individual é, simplesmente, indemonstrável; b) na variante abstrata, o poder de agir diferente é atribuído a uma pessoa imaginária colocada no lugar do autor real22. 2.2. A teoria da atitude jurídica reprovada (rechtlich missbilligte Gesinnung) de JESCHECK/WEIGEND23 ou da atitude defeituosa (fehlerhafte Einstellung) de WESSELS/BEULKE24 fundamentam a 20 WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, p. 138; ARTHUR KAUFMANN, Das Schuldprinzip, 1976, p. 279. 21 Ver, entre outros, a crítica de ROXIN, Strafrecht, 1997, § 19, n. 20-22, p. 732-734; também instrutivo, HASSEMER, Einfuhrung in die Grundlagen des Strafrechts, 1990, p. 226-234. 22 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 19, n. 22, p. 733-734; também, CEREZO MIR, Der materiele Schuldbegriff, ZStW, 108 (1996), 9. 23 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 39, II, p. 426-427. 24 WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 397, p. 114, e n. 401, p. 115-116. 282 283 Teoria do Fato Punível Capítulo 11 Capítulo 11 Culpabilidade e Exculpação reprovação de culpabilidade na livre autodeterminação de uma atitude reprovada ou defeituosa do autor na realização do tipo de injusto. Esse critério, uma variante da teoria do poder de agir diferente, também assume como verdade a hipótese indemonstrável da liberdade de vontade, igualmente sem mostrar a gênese real do juízo de reprovação – porque o autor é reprovado –, parecendo outra definição formal de culpabilidade por simples substituição de palavras: atitudes defeituosas ou atitudes reprováveis podem descrever, mas não podem explicar o conteúdo do juízo de culpabilidade25. 2.3. A teoria da responsabilidade pelo próprio caráter (Einstehenmussen fur den eigenen Charakter), cujas bases deterministas remontam a SCHOPENHAUER26, fundamenta: a) a responsabilidade pelo compor- tamento em características da personalidade; b) segundo ENGISCH27, a responsabilidade pelo caráter implica o dever de tolerar a pena; c) con- forme HEINITZ28, todos respondem pelo que são, independentemente da multiplicidade de fatores condicionantes.O propósito louvável de excluir a base metafísica do juízo de reprovação não evita problemas em face do princípio da culpabilidade: primeiro, culpabilidade pelo caráter é cul- pabilidade sem culpa; segundo, culpabilidade pelo caráter parece supor um Direito Penal com finalidades preventivas; terceiro, punição com finalidades preventivas anula o significado político de garantia individual (limitação do poder de punir) atribuído ao princípio da culpabilidade29. 2.4. A teoria da culpabilidade como defeito de motivação jurídica (Manko an rechtlich Motivierung), de JAKOBS30, vinculada ao sistema funcional de LUHMANN, fundamenta o Direito Penal na prevenção 25 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, § 19, n. 23-24, p. 734. 26 SCHOPENHAUER, Uber die Freiheit des Willens, 1839. 27 ENGISCH, Die Lehre von der Willensfreiheit in der strafrechtsphilosophischen Doktrin der Gegenwart, 1965, p. 54. 28 HEINITZ, Strafzumessung und Persönlichkeit, ZStW, 63 (1951), 74. 29 Assim, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 19, n. 29-32, p. 736-737. 30 JAKOBS, Strafrecht, 1993, 17/18, p. 480-481. geral positiva atribuída à pena criminal, consistente na estabilização das expectativas normativas da comunidade, obtida mediante punição exemplar de fatos puníveis. O conceito de defeito de motivação jurídica parece próximo da teoria da atitude defeituosa de WESSELS/BEULKE ou da teoria do poder de agir diferente de WELZEL, igualmente sem explicar a gênese real da culpabilidade31. 2.5. A teoria da dirigibilidade normativa (normative Ansprechbarkeit), cunhada por NOLL32, fundamenta a reprovação de culpabilidade (a) na normal determinabilidade através de motivos, segundo LISZT33, ou (b) no estado psíquico disponível ao apelo da norma existente na maioria dos adultos saudáveis, conforme a fórmula moderna de ALBRECHT34, ou (c) na capacidade de comportamento conforme a norma, segundo ROXIN35 – situações que constituiriam dados da experiência científica independentes da hipótese indemonstrável da liberdade e, em princípio, aceitáveis por deterministas e indeterministas. A culpabilidade seria um conceito formado pelo elemento empírico da capacidade de autodireção e pelo elemento normativo de autodireção conforme normas, cumprindo as tarefas simultâneas de fundamento da responsabilidade pelo compor- tamento social e de garantia política de limitação do poder punitivo, no moderno Estado Democrático de Direito. Mas existem críticas de ambas direções: de deterministas, sobre a identidade conceitual entre dirigibilidade normativa e liberdade de vontade36; de indeterministas, porque a liberdade de vontade, definida como capacidade de autodeter- 31 Sobre esse aspecto, ver ROXIN, Strafrecht, 1997, § 19, n. 34-35, p. 739-740. 32 NOLL, Schuld und Prävention unter dem Gesichtspunkt der Rationalisierung des Strafrechts, H. Mayer-FS, 1966, 219. 33 LISZT, Strafrechtliche Vorträge und Aufsätze, 1905, 43 s. 34 ALBRECHT, Unsicherheitszonen des Schuldstrafrechts, GA, 1983, p. 193. 35 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 19, n. 36-46, p. 740-745. No Brasil, TAVARES, As controvér- sias em torno dos crimes omissivos, 1996, p. 100: “Na verdade, o fundamento do juízo de cen- sura da culpabilidade deve residir na capacidade de motivação do agente conforme às exigências da ordem jurídica e não no seu a priori indemonstrável poder agir de outro modo.” 36 FRISTER, Die Struktur des “voluntativen schuldelements”, 1993, p. 99 s. 284 285 Teoria do Fato Punível Capítulo 11 Capítulo 11 Culpabilidade e Exculpação minação espiritual, pode ser concretamente indemonstrável, mas seria elemento de reconstrução comunitária da realidade37, acima de qualquer questionamento38. Não obstante, a definição de culpabilidade como dirigibilidade normativa parece digna de registro: preservaria a função de garantia política do princípio da culpabilidade, como limitação do poder de punir, e indicaria as bases empíricas e normativas da responsabilidade pessoal pelo comportamento social, sem necessidade de pressupostos metafísicos indemonstráveis. 3. O princípio da alteridade como base da responsabilidade social A responsabilidade pessoal pelo comportamento social – e o reconhecimento do mérito por ações socialmente úteis – parece im- prescindível à sobrevivência da sociedade contemporânea, mas juízos de culpabilidade ou de reprovação fundados na liberdade de vontade perderam toda e qualquer base científica: a ideia de livre-arbítrio como expressão de absoluto indeterminismo foi excluída da Psicologia e da Sociologia modernas e representaria, na melhor das hipóteses, um sentimento pessoal, segundo a Psicanálise39. Por outro lado, a respon- sabilidade pelo próprio comportamento não pode ser uma questão metafísica, dependente de pressupostos indemonstráveis, porque é um problema prático ligado à realidade da vida social. Na verdade, o homem é responsável por suas ações porque vive em sociedade40, um lugar marcado pela existência do outro, em que o sujeito é, ao mesmo tempo, ego e alter, de modo que a sobrevivência do ego só 37 SCHUNEMANN, Die Funktion des Schuldprinzips im Präventionsstrafrecht, in: Schunemann (Hrsg.). Grundfragen des modernen Strafrechtssystems, 1984, 163-166. 38 ARTHUR KAUFMANN, Unzeitgemässe Betrachtungen zum Schuldgrundsatz im Strafrecht, Jura, 1986, p. 226. 39 Ver, por todos, POTHAST, Die Unzulänglichkeit der Freiheitsbeweise, 1987, p. 321 s. 40 Assim, FERRI, Das Verbrechen als sociale Erscheinung, 1896, p. 297. é possível pelo respeito ao alter e não por causa do atributo da liberdade de vontade: o princípio da alteridade – e não a presunção de liberdade – deve ser o fundamento material da responsabilidade social41 e, portanto, de qualquer juízo de reprovação pessoal pelo comportamento social. O princípio da alteridade permitiria fundamentar a responsa- bilidade pelo comportamento social na normalidade de formação da vontade do autor de um tipo de injusto: em condições normais o sujeito imputável sabe o que faz (conhecimento do injusto) e, em princípio, tem o poder de não fazer o que faz (exigibilidade de comportamento diverso); logo, condições anormais de formação da vontade concretizada no tipo de injusto podem excluir a consciência da antijuridicidade (erro de proibição) ou a exigibilidade de comportamento diverso (situações de exculpação). Em última instância, o estudo da culpabilidade consiste na pesquisa de defeitos na formação da vontade antijurídica: a) na área da capacidade de vontade, a pesquisa de defeitos orgânicos ou funcio- nais do aparelho psíquico; b) na área do conhecimento do injusto, a pesquisa de condições internas negativas do conhecimento real do fato, expressas no erro de proibição; c) na área da exigibilidade, a pesquisa de condições externas negativas do poder de não fazer o que faz: as situações de exculpação produzidas por conflitos, pressões, perturbações, medos etc.42. II. Estrutura do conceito de culpabilidade A estrutura do conceito de culpabilidade é constituída por um 41 Ver a feliz intuição de BATISTA, Matrizes ibéricas do sistema penal brasileiro I, 2000, p. 22: “Relações jurídicas são sempre relações entre mais de um sujeito. A categoria da alteridade mereceria ter-se deslocado da metafísica de Aristóteles para um bairro central da filosofia do direito, levando consigo a diferença (que não a constitui mas a assimila) e a diversidade (que, ao romper a identidade a inaugura), até porque essa filosofia se construiu muito sobre o solo sempre intersubjetivo do direito privado; um filosofar que principiava pelo Meu e pelo Teu, como em Kant.” 42 Ver CIRINO DOS SANTOS, Teoria do Crime, 1993, p. 66-67. 286 287 Teoria do Fato Punível Capítulo 11 Capítulo 11 Culpabilidade e Exculpação conjunto de elementos capazes de explicar porque o sujeito é reprovado: primeiro, a capacidade de culpabilidade (ou imputabilidade), excluída ou reduzida pela menoridade ou por doenças e anomalias mentais; segundo, o conhecimento do injusto, excluído ou reduzido pelo erro de proibição; eterceiro, a exigibilidade de conduta diversa, excluída ou reduzida por anormalidades configuradas nas situações de exculpação. 1. Capacidade de culpabilidade O estudo do conceito de capacidade de culpabilidade (ou impu- tabilidade) é necessário para esclarecer as situações de incapacidade de culpabilidade ou de capacidade relativa de culpabilidade, bem como os problemas político-criminais da emoção e da paixão e da chamada actio libera in causa. A capacidade de culpabilidade é atributo jurídico de indivíduos com determinados níveis de desenvolvimento biológico e de normalidade psíquica, necessários para compreender a natureza proibida de certas ações e orientar o comportamento conforme essa compreensão. A lei penal brasileira exige a idade de 18 anos como marco de desenvolvi- mento biológico mínimo para a capacidade de culpabilidade (art. 27, CP) – um critério cronológico empírico, mas preciso; em complemen- to, a lei penal pressupõe indivíduo portador de aparelho psíquico livre de defeitos funcionais ou constitucionais, excludentes ou redutores da capacidade de compreender a natureza proibida de suas ações ou de orientar o comportamento de acordo com essa compreensão (art. 26 e parágrafo único, CP) – um critério científico controvertido, por causa do conflito da Psiquiatria sobre o conceito de doença mental43. 43 Ver THOMAS S. SZASZ, The myth of mental illness, Paladin, 1975, p. 37. No Brasil, MESTIERI, Manual de Direito Penal I, 1999, p. 169-173, sobre limitações e insuficiências do conceito de doença mental. Por esses critérios, indivíduos com 18 anos de idade completos, em condições de normalidade psíquica, são portadores da capacidade geral ou abstrata de culpabilidade; a capacidade penal é excluída ou reduzida em indivíduos portadores de psicopatologias constitucionais ou adquiridas determinantes da exclusão ou da redução da capacidade de compreender a proibição de ações ou de orientar o comportamen- to de acordo com essa compreensão. Em conclusão: a capacidade de culpabilidade é presumida em indivíduos com 18 anos de idade e excluída ou reduzida em indivíduos portadores de psicopatologias ex- cludentes ou redutoras da capacidade de compreensão da proibição ou de orientação correspondente. Assim, o critério legal para determinar a capacidade de culpabilidade é negativo, funcionando como regra/ exceção: o Estado presume a capacidade de culpabilidade de indivídu- os maiores de 18 anos (regra), excluída ou reduzida em hipóteses de psicopatologias constitucionais ou adquiridas (exceção). 1.1. Incapacidade de culpabilidade A incapacidade de culpabilidade (ou inimputabilidade penal), como ausência das condições pessoais mínimas de desenvolvimento biológico e de sanidade psíquica, ocorre nas seguintes hipóteses: 1. Indivíduos menores de 18 anos não possuem o desenvolvimento biopsicológico e social necessário para compreender a natureza cri- minosa de suas ações ou para orientar o comportamento de acordo com essa compreensão: Art. 27. Os menores de 18 (dezoito) anos são penalmen- te inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial. O critério político-criminal do legislador é correto: menores de 18 anos são capazes de compreender o injusto de crimes graves, como homicídio, lesões corporais, roubo, furto, estupro, por exemplo, mas são incapazes de compreender o injusto da maioria dos crimes comuns 288 289 Teoria do Fato Punível Capítulo 11 Capítulo 11 Culpabilidade e Exculpação definidos no Código Penal e, praticamente, de nenhum dos crimes definidos em leis especiais (crimes contra o meio ambiente, a ordem econômica e tributária, as relações de consumo, o sistema financeiro etc.); mais importante ainda: em todas as hipóteses acima referidas são incapazes de comportamento conforme a eventual compreensão do injusto, por insuficiente desenvolvimento do poder de controle dos instintos, impulsos ou emoções44. 2. Igualmente, a doença mental e o desenvolvimento mental incompleto ou retardado determinantes de incapacidade de compreender o injusto do fato ou de agir conforme essa compreensão constituem hipóteses de exclusão da capacidade de culpabilidade: Art. 26. É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, intei- ramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. A doença mental compreende as hipóteses de patologias consti- tucionais ou adquiridas do aparelho psíquico, definidas como psicoses exógenas e endógenas: a) as psicoses exógenas compreendem (1) as psicoses produzidas por traumas (lesões) e por tumores ou inflamações do órgão cerebral, (2) a epilepsia, e (3) a desagregação da personali- dade por arteriosclerose ou atrofia cerebral; b) as psicoses endógenas compreendem, fundamentalmente, a esquizofrenia e a paranoia45. 3. O desenvolvimento mental incompleto ou retardado compreende todas as hipóteses de oligofrenias, como defeitos constitucionais do órgão cerebral: a) as debilidades mentais, que admitem frequência a escolas especiais ou realização de atividades práticas, mas não o exercício de profissões; b) as imbecilidades, com exigência de cuidados especiais da 44 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, § 20, n. 52, p. 780. 45 Ver WITTER, Handbuch der forensischen Psychiatrie, editado por Göppinger e Witter, 1972, v. I, p. 477 s. e v. II, p. 1.039. família ou de instituições, mas sem possibilidade de vida independente; c) as idiotias, marcadas pela necessidade de custódia e, frequentemente, pela incapacidade de falar46. 4. A embriaguez completa por caso fortuito ou força maior, pelo álcool ou substâncias análogas, também constitui estado psíquico patológico excludente da capacidade de culpabilidade. Art. 28, § 1°. É isento de pena o agente que, por embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou força maior, era, ao tempo da ação ou da omissão, in- teiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. 5. Enfim, a atual lei de drogas também considera o efeito fortuito ou de força maior de droga sobre o aparelho psíquico, e a dependência de droga (estados psíquicos de angústia pela privação da droga, com profundas mudanças da personalidade) como situações patológicas agudas ou crônicas excludentes da capacidade de culpabilidade. Art. 45 (Lei 11.343/06). É isento de pena o agente que, em razão da dependência, ou sob o efeito, prove- niente de caso fortuito ou força maior, de droga, era, ao tempo da ação ou da omissão, qualquer que tenha sido a infração penal praticada, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. Parágrafo único. Quando absolver o agente, reconhe- cendo, por força pericial, que este apresentava, à época do fato previsto neste artigo, as condições referidas no caput deste artigo, poderá determinar o juiz, na sentença, o seu encaminhamento para tratamento médico adequado. 46 Assim, NEDOPIL, Forensische Psychiatrie, 1996, p. 60 s. No Brasil, ver MESTIERI, Manual de Direito Penal I, 1999, p. 173. 290 291 Teoria do Fato Punível Capítulo 11 Capítulo 11 Culpabilidade e Exculpação A exclusão da capacidade de culpabilidade nas hipóteses (a) de doença mental ou de desenvolvimento mental incompleto ou retardado, (b) de embriaguez completa por caso fortuito ou força maior, (c) de efeito fortuito ou por força maior de droga sobre o aparelho psíquico, e (d) de dependência de droga, pressupõe dois momentos: primeiro, identificação da patologia constitucional ou adquirida do aparelho psíquico ou de outro estado patológico, crônico ou agudo, produzido pelo álcool, pela droga ou pela dependência da droga; segundo, verifi- cação do efeito excludente da capacidade de compreender o injusto do fato ou de agir conforme essa compreensão, produzido pela patologia constitucional ou adquirida respectiva,pelo álcool, pela droga ou pela dependência da droga. Em teoria, ocorre divisão de trabalho entre peritos e juízes: os peritos identificam a patologia psíquica e verificam seu efeito sobre as funções de representação e de vontade do aparelho psíquico; os juízes formulam um juízo definitivo sobre a capacidade de compreensão do injusto e de controle do comportamento conforme essa compreensão47; na prática, os peritos são verdadeiros juízes para- lelos, cujo poder reside no exercício de um saber especializado, imune à crítica de leigos48. 6. A consequência legal da incapacidade de culpabilidade por doença mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado é a aplicação de medida de segurança de internação em casa de custódia e de tratamento psiquiátrico ou de tratamento ambulatorial (artigos 96, I-II, e 97, CP); no caso de incapacidade de culpabilidade por dependência de droga, a consequência legal é o tratamento em regime de internação hospitalar ou em regime extra-hospitalar (art. 52, pa- rágrafo único, da Lei 11.343/06); enfim, na hipótese de incapacidade 47 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 20, n. 27, p. 768. 48 FOUCAULT, Vigiar e punir, 1977, p. 21-25. No Brasil, ver o estudo crítico de GOMES DA SILVA, Transtornos mentais e crime: reflexões sobre o complexo diálogo entre a Psiquiatria e o Direito Penal, in Direito e Sociedade (Revista do Ministério Público do Estado do Paraná), v. 2, n. 2, jul./dez. 2001, p. 81-121. de culpabilidade por efeito do álcool ou de droga, fortuito ou de força maior, não há aplicação de nenhuma medida de segurança. 1.2. Capacidade relativa de culpabilidade A capacidade relativa de culpabilidade indica redução da capa- cidade de compreender o injusto do fato ou de agir conforme essa compreensão, caracterizada pela maior ou menor dificuldade de dirigi- bilidade normativa, e determinada (a) por perturbação da saúde mental (art. 26, parágrafo único, CP), e (b) por todas as demais hipóteses descritas no item 1.1, acima: desenvolvimento mental incompleto ou retardado, restrito aos casos leves de debilidade mental (art. 26, parágrafo único, CP); embriaguez pelo álcool ou análogos, fortuita ou de força maior (art. 28, § 2º, CP); efeito de droga, fortuito ou de força maior, e dependência de droga (art. 46, da Lei 11.343/06), cuja reprodução é desnecessária. Art. 26. Parágrafo único. A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude e pertur- bação da saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. 1. O conceito de perturbação da saúde mental designa psicopatologias menos graves do que a doença mental, como estados patológicos do aparelho psíquico constituídos por defeitos esquizofrênicos, manifesta- ções de demência senil, arteriosclerose ou atrofia cerebral, formas leves de epilepsia, traumas cerebrais de efeitos psíquicos mínimos, formas leves de debilidade mental, psicopatias e neuroses49. 2. A consequência legal da capacidade relativa de culpabilidade 49 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, § 20, n. 32, p. 771. 292 293 Teoria do Fato Punível Capítulo 11 Capítulo 11 Culpabilidade e Exculpação por perturbação da saúde mental ou por outros estados patológicos, transitórios ou permanentes, do aparelho psíquico, é a redução da pena de um a dois terços: a redução da pena é obrigatória, pois se a pena não pode ultrapassar a medida da culpabilidade, então a re- dução da capacidade de culpabilidade determina, necessariamente, a redução da pena50. Argumentos contrários à redução da pena são inconvincentes e desumanos: a) a reduzida sensibilidade à pena de psicopatas e débeis mentais aconselharia aplicação de pena integral; b) a reduzida capacidade de autocontrole de psicopatas e débeis mentais deveria ser compensada com circunstâncias de elevação da culpabilidade, em casos de crueldade, por exemplo. A lógica do argumento é circular e contraditória porque o mesmo fator deter- minaria, simultaneamente, a redução da culpabilidade (psicopatias ou debilidades mentais explicariam a crueldade) e a agravação da culpabilidade (a crueldade do psicopata ou débil mental como fator de agravação da pena)51. 1.3. Problemas político-criminais especiais A disciplina jurídica da legislação penal brasileira sobre duas situações psíquicas anormais ligadas à capacidade de culpabilidade está, para dizer o menos, em relação de tensão com o princípio da culpabilidade. Art. 28. Não excluem a imputabilidade penal: I - a emoção e a paixão; II - a embriaguez, voluntária ou culposa, pelo álcool ou substância de efeitos análogos. 50 Ver BAUMANN/WEBER, Strafrecht, 1995, § 19, n. 25; também, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 20, n. 36, p. 773; STRATENWERTH, Strafrecht, 1981, n. 546. 51 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 20, n. 38-42, p. 774-776. 1.3.1. Emoção e paixão. A emoção e a paixão, na lei penal brasileira, não excluem a capacidade de culpabilidade, mas podem privilegiar o tipo de injusto ou atenuar a pena. A emoção define excitações psicos- somáticas ligadas à sobrevivência individual, produzidas por reações químico-neurônicas complexas, como impulsos, instintos ou afetos, que os gregos denominavam pathos e os romanos, passio – donde a popularização do termo paixão para indicar sentimento ou amor intensos. As emoções ou sentimentos informam os pensamentos e as decisões da psicologia individual e coletiva, como forças motoras primárias e mais ou menos inconscientes das ações humanas52, cuja inevitável influência nos atos psíquicos e na conduta social do ser humano precisa ser compatibilizada com o princípio da culpabilidade nos programas político-criminais contemporâneos. Originalmente, WUNDT classificou as emoções em 3 pares fundamentais: prazer/desprazer, excitação/inibição, tensão/solução53; hoje, existe uma lista adicional de 16 emoções distintas: alegria, tris- teza, raiva, medo, nojo, gratidão, vergonha, amor, orgulho, compai- xão, ódio e susto – e ainda algumas outras, como satisfação, alívio e sentimento de culpa.54 Na verdade, a dinâmica de formação, agravação e descarga agres- siva de emoções ou afetos representa grave perturbação psíquica não patológica que, assim como outras situações extremas de esgotamento ou fadiga, pode excluir ou reduzir a capacidade de culpabilidade, como prevê, por exemplo, a legislação penal alemã55. Atitudes de repressão intransigente às pulsões fundamentais do homem parecem inadequa- das: as manifestações da afetividade humana devem ser avaliadas no 52 Ver FREUD, O ego e o id, Imago, v. XIX, p. 25-83, esp. 80-83; do mesmo, Além do princípio do prazer, Imago, v. XVIII, p. 17-85. 53 WUNDT, Grundriss der Psychologie, 2004. 54 PRECHT, Wer bin Ich – und wenn ja, wie viele?, Goldmann, 2005, p. 74-84. 55 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, § 20, n. 13-18, p. 761-764; também, WESSELS/ BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 410, p. 117-118. 294 295 Teoria do Fato Punível Capítulo 11 Capítulo 11 Culpabilidade e Exculpação contexto das aquisições da moderna psicologia, que o sistema de justiça criminal não pode ignorar56. Por exemplo, não é possível confundir afetos fortes (ou estênicos), fundados no instinto de destruição, como ira ou ódio, por um lado, e afetos fracos (ou astênicos), fundados no instinto de sobrevivência, como medo, susto ou perturbação psíquica, por outro lado, cujo poder determinante das ações humanas não pode ser desconsiderado pelo Direito Penal. 1.3.2. Actio libera in causa. O conceito de actio libera in causa pres- supõe capacidade de culpabilidade na ação precedente, em que o autor se coloca em estado de incapacidade de culpabilidade, com intenção de realizar (dolo) ou sendo previsível a possibilidade de realizar (im- prudência) fato típico posterior determinado: no caso de dolo, o autor ingere grande quantidade de álcool para superar inibições e agredir a vítima; no caso de imprudência, o autor ingere grande quantidadede álcool sem representar a possibilidade de agredir alguém ou confiando levianamente na hipótese de não agredir ninguém57. Assim, a actio libera in causa consiste na autoincapacitação temporária (a) com o propósito de praticar crime determinado ou (b) em situação de previsibilidade de praticar crime determinado (ação anterior) – crime realmente praticado no estado subsequente de incapacitação temporária (ação posterior)58. Existem duas teorias sobre a actio libera in causa: a) a teoria da exceção considera a actio libera in causa uma exceção ao princípio da capacidade de culpabilidade no momento do fato, justificada com 56 Ver, especialmente, a crítica de MESTIERI, Manual de Direito Penal I, 1999, p. 178- 179, com esta magnífica conclusão: “Ora, o problema, como é bem de ver, não se resolve pela simples desconsideração da emoção e da paixão, negando-se-lhes eficácia no plano da imputabilidade; se há dificuldades em estabelecer, com maior precisão, o conteúdo e natureza desses estados, aprimore-se a ciência. Se, por outro lado, a pesquisa empírica judiciária é deficiente ou superficial, permitindo absolvições inaceitáveis, aprimore-se o sistema, a técnica judiciária. Mas, simplesmente, negar efeitos a realidades tão importantes como a emoção e a paixão é comportar-se como o avestruz diante de uma situação de perigo. Aqui, o perigo é a nossa ainda superlativa ignorância dos fenômenos da alma humana.” 57 Comparar ROXIN, Strafrecht, 1997, § 20, n. 55, p. 781. 58 WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 415, p. 119-120. base no direito costumeiro59: essa teoria parece incompatível com o princípio da legalidade, que exclui o direito costumeiro como incri- minação de condutas, e com o princípio da culpabilidade, porque dolo e imprudência não determinam o fato, nem fundamentam a reprovação de culpabilidade60; b) a teoria do tipo fundamenta a atri- buição do resultado típico ao autor no momento de capacidade de culpabilidade anterior ao fato, como determinação de resultado típico doloso ou imprudente – e não no momento posterior (de incapacidade de culpabilidade) do fato – e, assim, não abre exceção ao princípio da coincidência entre capacidade de culpabilidade e realização dolosa ou imprudente de um tipo de injusto61. a) Em fatos imprudentes a teoria da actio libera in causa não encontra difi- culdades, pela identidade estrutural entre ambos os conceitos: a lesão do dever de cuidado ou do risco permitido é anterior em relação à produção do resultado típico62. Por exemplo: se o marido, encolerizado contra a mulher, embriaga-se e a agride, mas sem ter pensado previamente em agredir a mulher em estado de incapacidade de culpabilidade, o ato de embriagar-se representaria simples criação de risco não permitido contra a integridade física da mulher – e, nesse caso, a agressão à mulher seria a realização do risco criado, caracterizando o tipo de lesão corporal im- prudente63. Aqui, é necessário um esclarecimento da maior significação prática: se o autor, na ação precedente, não tem o propósito (dolo direto) ou não admite a possibilidade (dolo eventual) de realizar determinado tipo de crime em estado de incapacidade de culpabilidade, então o resul- tado típico produzido na ação posterior não pode ser atribuído por dolo, independentemente de ser intencional (o sujeito quer se embriagar) ou 59 HRUSCHKA, Strafrecht nach logisch-analytischer Methode, 1988, p. 39 s. 60 Assim, PUPPE, Grundzuge der actio libera in causa, JuS, 1980, p. 346. 61 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 20, n. 56, p. 782; para uma visão geral dos modelos, NEUMANN, Zurechnung und “Vorverschulden”, 1985, p. 24 s. 62 HORN, Actio libera in causa – eine notwendige, eine zulässige Rechstfigur?, GA, 1969, p. 289 s. 63 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, § 20, n. 58, p. 783. 296 297 Teoria do Fato Punível Capítulo 11 Capítulo 11 Culpabilidade e Exculpação imprudente (o sujeito se embriaga, progressiva mas inadvertidamente) o ato de se embriagar. Por isso, o princípio da culpabilidade determina a seguinte interpretação do art. 28, II, do Código Penal: a embriaguez, voluntária ou culposa, não exclui a imputabilidade penal, mas a imputa- ção do resultado por dolo ou por imprudência depende, necessariamente, da existência real (nunca presumida) dos elementos do tipo subjetivo respectivo no comportamento do autor. b) Em fatos dolosos, a teoria dominante da actio libera in causa diz o seguinte: a) o elemento intelectual do dolo deve representar as caracte- rísticas de um tipo de crime determinado (homicídio, lesão corporal etc.), cujo resultado deve ser produzido em estado de incapacidade de culpabilidade (embriaguez); b) o elemento emocional do dolo deve querer a realização de crime determinado (dolo direto) ou conformar- -se com a realização de crime determinado (dolo eventual) no estado posterior de embriaguez, no sentido de autocolocação em estado de incapacidade temporária de culpabilidade. Desse modo, na ação prece- dente o dolo tem por objeto a autocolocação em estado de incapacidade de culpabilidade e, nesse estado, a realização de fato determinado; na ação posterior, o autor realiza, em estado de incapacidade de culpabi- lidade, o fato determinado objeto do dolo64. Outra interpretação é incompatível com o princípio da culpabilidade. 2. Conhecimento do injusto e erro de proibição A correlação conhecimento do injusto e erro de proibição, na teoria da culpabilidade, corresponde à correlação conhecimento do fato e erro de tipo, na teoria do tipo, porque conhecimento e erro constituem esta- 64 Assim, JAKOBS, Strafrecht, 1993, 17/65-66, p. 507-508; também, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 20, n. 65-67, p. 786-788; SCHÖNCKE/SCHRÖDER/LENCKNER, Strafgesetzbuch, Kommentar, 1991, § 20, n. 36; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 417-418, p. 120-121. dos psíquicos em relação de lógica exclusão: o conhecimento exclui o erro e o erro indica desconhecimento sobre objetos. No Direito Penal existem duas espécies de erro: o erro de tipo, incidente sobre circuns- tâncias ou elementos objetivos, fáticos ou normativos, do tipo legal; o erro de proibição, incidente sobre a proibição do tipo de injusto, no sentido de valoração jurídica geral. Mas a moderna dogmática identi- fica uma terceira espécie de erro, que participa, simultaneamente, da natureza do erro de tipo e do erro de proibição: o chamado erro de tipo permissivo, incidente sobre pressupostos objetivos de causa de justifi- cação, consistente em errônea representação da situação justificante65. O estudo da matéria do conhecimento do injusto (ou da consciên- cia da antijuridicidade) tem por fim identificar as situações negativas desse conhecimento, representadas pelo erro de proibição direto, pelo erro de proibição indireto e pelo erro de tipo permissivo, segundo a teoria limitada da culpabilidade adotada pelo legislador. 2.1. Conhecimento do injusto A legislação anterior à reforma penal de 1984, em conformidade com o modelo causal de crime, distinguia entre erro de fato exclu- dente do dolo e erro de direito sem relevância penal, generalizado sob o brocardo error juris nocet. A rigidez do critério seria atenuada por outra distinção no âmbito do erro de direito, entre erro de direito penal, igualmente irrelevante, e erro de direito extrapenal (por exemplo, coisa alheia, no furto), com efeito excludente do dolo66. Os problemas desse sistema eram esses: a) dificuldades de diferenciação entre erro de direito penal e erro de direito extrapenal porque o conceito de coisa alheia, por exemplo, é igualmente de direito penal e de direito extrapenal; b) 65 Comparar ROXIN, Strafrecht, 1997, § 21, n. 1-2, p. 793; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 457, p. 133. 66 Assim, KOHLRAUSCH, Irrtum und Schuldbegriff im Strafrecht, 1903, p. 118. 298 299 Teoria do Fato Punível Capítulo 11 Capítulo 11 Culpabilidade e Exculpação a relevância do erro de direito (penal ou extrapenal) dependeria de um fator acidental: a posição do conceito respectivo dentroou fora do Direito Penal67; c) a tensão entre o caráter irrelevante do erro de direito penal inevitável e o princípio da culpabilidade68. 2.1.1. Teorias sobre conhecimento do injusto e erro de proibição. A posição sistemática do conhecimento do injusto (ou da consciência da antijuridicidade) como integrante do conceito de dolo ou como elemento do conceito de culpabilidade está na base, respectivamente, da teoria do dolo e da teoria da culpabilidade. 1) A teoria do dolo considera o conhecimento do injusto elemento do dolo, constituído pela consciência (e vontade) do fato e pela consci- ência (e vontade) do desvalor do fato, com as seguintes consequências: a) a consciência e vontade do fato e do desvalor do fato configura o chamado dolus malus, que fundamenta a definição do crime doloso como rebeldia contra o direito; b) o erro sobre o fato ou o desvalor do fato exclui o dolo – não existe a correlação dicotômica (a) erro de fato/ erro de direito e (b) erro de tipo/erro de proibição69. 2) A teoria da culpabilidade, vinculada à teoria finalista da ação, se- para conhecimento do fato e conhecimento do injusto do fato, desse modo: a) a consciência e vontade do fato constituem o dolo, como elemento subjetivo geral dos crimes dolosos; b) a consciência do injusto é o ele- mento especial da culpabilidade, como fundamento concreto do juízo de reprovação. A separação entre conhecimento do fato e conhecimento do injusto do fato determina a distinção entre erro de tipo, que exclui o dolo, e erro de proibição, que exclui ou reduz a reprovação, uma neces- 67 FRANK, Das Strafgesetzbuch fur das Deutsche Reich, 1931, § 59, III, 2. 68 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, § 21, n. 5, p. 794. 69 Partidários da teoria do dolo, BINDING, Die Normen und ihre Ubertretung, v. II, 1916, § 125; BAUMANN/WEBER, Strafrecht, 1985, p. 424; SCHMIDHÄUSER, Strafrecht, Studienbuch, 1984, 7/89 s., o grande defensor da teoria do dolo na atualidade. sidade lógica da estrutura dos conceitos de dolo e de culpabilidade70. O erro de proibição, como erro sobre injusto do fato, tem por objeto a natureza proibida ou permitida da ação típica: o autor sabe o que faz, mas pensa, erroneamente, que é permitido, ou por crença positiva na permissão do fato, ou por falta de representação da proibição do fato71. A teoria da culpabilidade apresenta duas variantes, a teoria rigorosa (ou extrema) da culpabilidade e a teoria limitada da culpabilidade. 2.1) A teoria rigorosa da culpabilidade, desenvolvida por WELZEL e predominante entre finalistas, atribui as mesmas consequências a to- das as modalidades de erro de proibição: o erro de proibição inevitável exclui a reprovação de culpabilidade; o erro de proibição evitável reduz a reprovação de culpabilidade, na medida da evitabilidade do erro72. 2.2) A teoria limitada da culpabilidade, dominante na literatura e jurisprudência contemporâneas, atribui consequências diferentes ao erro de proibição: a) o erro de proibição direto, que tem por objeto a lei penal, considerada do ponto de vista da existência, da validade e do significado da norma, exclui ou reduz a reprovação de culpabilidade; b) o erro de proibição indireto (ou erro de permissão), que tem por objeto os limites jurídicos de causa de justificação legal ou a existência de causa de justificação não prevista em lei, também exclui ou reduz a reprovação de culpabilidade; c) o erro de tipo permissivo, que tem por objeto os pressupostos objetivos de justificação legal – portanto, existe como errônea representação da situação justificante –, incide sobre a realidade do fato e, por isso, exclui o dolo – e não apenas a reprovação de culpabilidade –, funcionando como verdadeiro erro de tipo, com 70 Ver JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 41, I, 1-2, p. 452-453. 71 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 41, II, 1, p. 456. 72 Assim, WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, p. 168; MAURACH/GÖSSEL/ZIPF, Strafrecht 2, § 44, n. 61, p. 165; comparar ROXIN, Strafrecht, 1997, § 21, n. 63-64, p. 527. No Brasil, ver RODRIGUES, Teoria da culpabilidade, 2004, p. 95-102. 300 301 Teoria do Fato Punível Capítulo 11 Capítulo 11 Culpabilidade e Exculpação punição alternativa por imprudência, se existir o tipo respectivo73. A equiparação do erro de tipo permissivo ao erro de tipo realizada pela teoria limitada da culpabilidade baseia-se no argumento de que o autor quer agir conforme a norma jurídica – e, nessa medida, a re- presentação do autor coincide com a representação do legislador ou com o direito objetivo existente74 –, mas erra sobre a verdade do fato: a representação errônea da situação justificante exclui o dolo, como decisão fundada no conhecimento das circunstâncias do tipo legal e no desconhecimento da inexistência da situação justificante – cuja errônea admissão significa que o autor não sabe o que faz –, ao contrário das outras espécies de erro de proibição, cujo autor sabe o que faz, mas erra sobre a juridicidade do fato75. Esse tratamento diferencial do erro de proibição é explicado por critérios objetivos de valoração do comportamento: a) se o comportamento real do autor é orientado por critérios iguais aos do legislador, os defeitos de representação do autor podem ter por objeto a situação típica (erro de tipo) ou a situa- ção justificante (erro de tipo permissivo): ambas as hipóteses excluem o dolo e admitem a possibilidade de punição por imprudência; b) se o comportamento real do autor é orientado por critérios desiguais aos do legislador, os defeitos de representação do autor somente podem ter por objeto a valoração jurídica geral do fato (erro de proibição), com o efeito de excluir ou de reduzir a reprovação de culpabilidade, conforme a natureza inevitável ou evitável do erro76. Como esclarecimento complementar, a teoria das características 73 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 41, II-IV, p. 456-467; ROXIN, Strafrecht, 1997, § 14, n. 54-55, p. 523 e § 21, n. 20-24, p. 802-804; também, WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 469-470, p. 137-138 e n. 482 e 484, p. 142- 143. No Brasil, ver RODRIGUES, Teoria da culpabilidade, 2004, p. 102-112. 74 Comparar JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 41, IV, 1d, p. 464. 75 Nesse sentido, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 14, n. 62-68, p. 526-529. 76 Nesse sentido, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 41, I-IV, p. 452-467; ROXIN, Strafrecht, 1997, § 21, n. 8, p. 796; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 471, p. 138. negativas do tipo77 resolve o problema do erro sobre a situação justi- ficante do mesmo modo que a teoria limitada da culpabilidade, mas com fundamentos diferentes: considera os componentes do tipo legal como elementos positivos e as justificações como elementos negativos do tipo de injusto e, por consequência, define o erro sobre a situação justificante como erro de tipo, excludente do dolo – e, por extensão, do tipo de injusto –, se inevitável, admitindo imprudência, se evitável78. A legislação penal brasileira disciplina o erro de tipo (art. 20, CP), o erro de tipo permissivo (art. 20, § 1º, CP) e o erro de proibição (art. 21, CP) segundo os critérios da teoria limitada da culpabilidade (ver Erro de proibição na lei penal brasileira, adiante). 2.1.2. Objeto da consciência do injusto. Definir o objeto da consciência do injusto permite responder a seguinte pergunta: o que o autor deve saber para conhecer o injusto do fato? Sem definir o objeto da consciência do injusto, qualquer pesquisa sobre erro de proibição é inútil. A definição do objeto da consciência do injusto – ou seja, do substrato psíquico mínimo de conhecimento do injusto necessário para configurar a consciência da antijuridicidade do fato – é contro- vertida na literatura penal contemporânea, distinguindo-se, pelo menos, três teorias: a) a teoria tradicional, representada por JESCHECK/ WEIGEND79, indica a antijuridicidade material como objeto da 77 Ver, entre outros, SCHROTH, DieAnnahme und das “Fur-Möglich-Halten” von Umständem, die einen anerkannten Rechtfertigungsgrund begrunden, Arthur Kaufmann-FS, 1993, p. 595; SCHUNEMANN, Die deutschsprachige Strafrechtswissenschaft nach der Strafrechtsreform im Spiegel des Leipziger Kommentars und des Wiener Kommentars, 1. Teil: Tatbestands- und Unrechtslehere, GA, 1985, p. 341. 78 Ver JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 41, IV, 1c, p. 464; ROXIN, Strafrecht, 1997, § 14, n. 70, p. 529. 79 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 41, I, 3a, p. 453-454: consciência do injusto significa conhecer que “o comportamento contradiz as exigências da ordem comunitária e, por esse motivo, é juridicamente proibido”, ou seja, é suficiente 302 303 Teoria do Fato Punível Capítulo 11 Capítulo 11 Culpabilidade e Exculpação consciência do injusto, definida como conhecimento da contradição entre comportamento real e a ordem comunitária, que permitiria ao leigo saber que seu comportamento infringe o ordenamento jurídico (público, civil, penal etc.) ou moral, independentemente de conhecer a lesão do bem jurídico lesionado ou a punibilidade do fato; b) a teoria moderna, representada por OTTO80, apresenta a punibilidade do fato como objeto do conhecimento do injusto, ou seja, consciência do injusto significa “conhecimento da punibilidade do comportamento através de uma norma legal penal positiva” e, portan- to, consciência “de infringir uma prescrição penal”, embora não exija “conhecimento preciso dos parágrafos da lei” infringidos; c) a teoria talvez dominante, representada por ROXIN81, situa-se em posição intermediária, sob a alegação de que conhecer a danosidade social ou a imoralidade do comportamento, segundo a teoria tradicio- nal, seria insuficiente, mas conhecer a punibilidade do fato, conforme a teoria moderna, seria desnecessário: assim, objeto da consciência do injusto seria a chamada antijuridicidade concreta, como conhecimento da específica lesão do bem jurídico compreendido no tipo legal respectivo, ou seja, o conhecimento da proibição concreta do tipo de injusto. Na conhecer “a antijuridicidade material”, como conhecimento leigo “de lesionar uma norma jurídica penal, civil ou pública”, sem necessidade de consciência “da norma jurídica lesionada ou da punibilidade do fato”; no mesmo sentido, WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, p. 17. 80 OTTO, Grundkurs Strafrecht, 1996, § 13, IV, 1b, n. 41, p. 203: “conhecimento do injusto, no sentido de conhecimento da antijuridicidade, é conhecimento da punibilidade do comportamento através de uma norma legal penal positiva”, em que “não é necessário o conhecimento preciso dos parágrafos da lei, mas o conhecimento de infringir uma prescrição penal” (grifado no original); no mesmo sentido, GROTHEGUT, Norm- und Verbots(un)kenntnis, 1993, § 17, p. 111; também, NEUMANN, Der Verbotsirrtum (§ 17 StGB), JuS, 1993, p. 795. 81 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, § 21, n. 12-16, p. 798-800, esp. n. 16, p. 800: “a antijuridicidade é objeto da consciência do injusto (...) não como proibição abstrata, mas apenas em relação com o injusto concreto do tipo respectivo. Existe consciência do injusto se o autor conhece como injusto a específica lesão do bem jurídico compreendida no tipo legal considerado”; no mesmo sentido, RUDOLPHI, Unrechtsbewusstsein, Verbotsirrtum und Vermeidbarkeit des Verbotsirrtums, 1969, p. 56. verdade, a teoria dominante aproxima-se da teoria moderna porque conhecer a específica lesão do bem jurídico compreendido no tipo legal equivale ao conhecimento da punibilidade do fato e, assim, a teoria tradicional aparece em posição isolada e oposta em relação às outras. A literatura brasileira geralmente não menciona a controvérsia sobre o objeto da consciência do injusto, limitando-se à difusão parcial da teoria tradicional82, cuja amplitude excede os limites do objeto do conhecimento do injusto: assim, essa literatura não apresenta a teoria dominante, do conhecimento da lesão específica do bem jurídico com- preendido no tipo legal, e ignora a teoria moderna do conhecimento da punibilidade do comportamento através de norma legal penal positiva, ou seja, do conhecimento de infringir uma prescrição penal e, portanto, do conhecimento da punibilidade do fato – na verdade, o conceito mais compatível com o princípio da culpabilidade que caracteriza o Direito Penal no moderno Estado Democrático de Direito. 2.1.3. Divisibilidade e formas de conhecimento do injusto. A consciência do injusto pode ser divisível em tipos que protegem diferentes bens jurídicos: no roubo, se o autor toma com violência coisa própria em poder do devedor em mora, existe conhecimento do injusto relativo à violência do constrangimento ilegal, mas pode existir erro de proibição em relação à subtração; em tipos qualificados, o autor pode conhecer o injusto do tipo básico, mas encontrar-se em erro de proibição quanto à circunstância qualificadora83 – o problema subsistente é definir a natureza evitável ou inevitável do erro. Por outro lado, reflexão específica sobre a antijuridicidade do comportamento durante a realização do fato punível é incomum porque autores de fatos puníveis raramente são atormentados por 82 Ver, por exemplo, JESUS, Direito Penal I, 1999, p. 485; MIRABETE, Manual de Direito Penal, 2000, p. 202. 83 Assim, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 41, I, 3d, p. 455; também, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 21, n. 16, p. 800-801; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 428, p. 124. 304 305 Teoria do Fato Punível Capítulo 11 Capítulo 11 Culpabilidade e Exculpação escrúpulos ou outros sentimentos altruístas. Não obstante, a consci- ência ou conhecimento do injusto deve ser atual, sendo insuficiente conhecimento atualizável, embora esse conhecimento possa existir na forma da chamada co-consciência, que também é suficiente para a consciência atual do dolo, cuja defecção produz o erro de tipo. Assim, em crimes patrimoniais, a consciência do autor pode não estar na proi- bição do furto ou do roubo, mas no sucesso da ação ou nas vantagens dela resultantes: a chamada co-consciência consiste, precisamente, na influência desse conteúdo sobre a realização da ação, através de cuida- dos ou precauções para evitar suspeitas ou, especialmente, a prisão84. 2.1.4. Dúvida sobre a proibição. Entre as situações psíquicas extremas de conhecimento (do injusto) e de erro (de proibição) existe toda uma escala de estados psíquicos intermediários, de progressiva redução da nitidez das representações do significado de determinados fatos, até o estado oposto de pleno erro, como ausência de conhecimen- to do significado – ou, em sentido inverso, de progressiva ampliação da clareza das representações do significado de determinados fatos, até o estado oposto de plena consciência, como conhecimento integral do significado, que constituem o espaço de existência psicológica do fenômeno da dúvida na atividade humana. Esses estados de dúvida se inserem, portanto, nos limites entre o conhecimento e o erro so- bre o injusto do fato, indicando situações que já não poderiam ser definidas como pleno erro de proibição, mas que ainda não podem ser definidas como pleno conhecimento do injusto. Como resolver as situações psíquicas da dúvida, em face do conhecimento do injusto pressuposto na reprovação de culpabilidade? A teoria e a jurisprudência ainda dominantes definem a dúvida sobre proibição como hipótese de conhecimento condicionado ou even- tual do injusto, sob o argumento de incompatibilidade entre dúvida e 84 Nesse sentido, PLATZGRUMMER, Die Bewusstseinsform des Vorsatzes, 1964; também, SCHEWE, Bewusstsein und Vorsatz, 1967. erro – ou seja, quem está em dúvida sobre a proibição, não pode alegar erro de proibição. Do ponto de vista dogmático, essa posição pode ser assim formulada: se a dúvida equivale a conhecimento eventual ou con- dicionado do injusto, então o erro de proibição seria sempre evitável, com extensão práticada proibição a fatos de dúvida, ou exigência de omissão de condutas permitidas. Essa posição repressiva foi desafiada pelo jovem jurista brasileiro ALAOR LEITE, que ousou romper com a teoria dominante na literatura e na jurisprudência, demonstrando que toda dúvida sobre a proibição configura autêntico erro de proibi- ção.85 Assim, começa mostrando que a teoria dominante é incoerente, porque não leva suas premissas às últimas consequências: por exemplo, aceita a tese contrária da dúvida como erro de proibição nas hipóteses de (a) erro sobre validade da lei penal, (b) erro de proibição indireto, (c) erro por informações jurídicas equivocadas e (d) erro determinado por jurisprudência contraditória ou vacilante.86 Além disso, confunde a questão conceitual do conhecimento do injusto (eventual ou condicio- nado) com a questão empírica da evitabilidade do erro, na medida em que a dúvida, como conhecimento eventual ou condicionado do injusto, determina ou implica erro evitável sobre o injusto do fato, ressuscitando o arcaico error juris nocet, enterrado pelo princípio da culpabilidade.87 De fato, definir a dúvida como conhecimento do injusto condicio- nado (submetido a condição) ou eventual (assumido como possível) significa admitir como existente uma cognição inexistente; e deduzir da situação psíquica de inexistente cognição do injusto a conclusão empírica sobre a natureza evitável do erro perverte a coerência lógica entre premissas e conclusão do silogismo jurídico. 85 Ver LEITE, Alaor. Dúvida e erro sobre a proibição no direito penal. São Paulo: Atlas, 2ª edição, 2014. Dissertação aprovada com a nota máxima na Universidade Ludwig- Maximilians, em Munique, orientada por CLAUS ROXIN, com a qual o autor obteve o título de Mestre em Direito. 86 Ver LEITE, Dúvida e erro sobre a proibição no direito penal, 2ª edição, 2014, cap. 6, p. 100 e s. 87 LEITE, Dúvida e erro sobre a proibição no direito penal, 2ª edição, 2014, cap. 3 e 4, p. 25 s. 306 307 Teoria do Fato Punível Capítulo 11 Capítulo 11 Culpabilidade e Exculpação O mérito do trabalho de LEITE está em descobrir o caminho inverso: define a dúvida como erro de proibição a partir da natureza evitável ou inevitável do erro. Em outras palavras: não é a definição da dúvida como eventual ou condicionado conhecimento do injusto que determina a evitabilidade do erro, mas a natureza evitável ou inevitável do erro que permite definir a dúvida como erro de proibi- ção. O critério jurídico para medir a evitabilidade do erro é definido pelo dever de informação sobre a natureza da ação futura, sob dois pressupostos básicos: a) garantia do Estado de que o cumprimento do dever de informação produz seguro conhecimento do injusto; b) dever de informação individual prévio em situações de ação rápida ou instantânea, com a culpabilidade pela omissão ou negligência do dever de informação no comportamento anterior. Destacando as vantagens da proposta, pela simplicidade teórica e pela coerência do desenvolvimento das premissas, o autor paranaense discute casos esclarecedores:88 a) X, portador de arma de fogo registrada, atende pedido da vítima Z para perseguir Y, que fugia com o boné subtraído daquele. X está na dúvida se atira ou não em Y: a) se não atira, o ladrão foge; b) se atira para não ferir, está justificado; c) se atira para ferir a perna, não há justificação pela desproporção entre as lesões, mas existe erro de proibição evitável; d) se atira para matar, não há justificação, nem erro de proibição. b) X, policial em função na fronteira, percebe Y cometer furto em loja e fugir em direção à fronteira. X está na dúvida se dispara a arma ou não: a) se dispara para não ferir, ou para ferir na perna, as soluções são idênticas às do problema anterior; b) se dispara para matar, há erro de proibição evitável por decisão instantânea fundada em violação do dever de informação na conduta anterior. 88 Ver, para discussão dos casos, LEITE, Dúvida e erro sobre a proibição no direito penal, 2ª edição, 2014. cap. 6, IV, p. 98 s. c) X, empresário de importação/exportação, está em dúvida sobre a tributação de determinada operação e, cumprindo o dever de informação, solicita parecer de advogado especialista na área, que conclui pela não tributação. Confiando no parecer, realiza a opera- ção, sendo processado por descaminho: a hipótese configura erro de proibição inevitável. d) X, sócio-gerente de indústria de cosméticos na área rural, em dúvida sobre a licitude do tratamento de resíduos industriais, pela possibilidade de poluição ambiental das águas de um rio próximo, (art. 54, da Lei 9.605/98), cumpre o dever de informação solicitando esclarecimentos do departamento jurídico da empresa, que conclui pela inconstitucionalidade do art. 54, por indeterminação da proibição legal, lesionando o princípio da legalidade. Nessa hipótese, haveria erro de proibição, inevitável ou evitável, conforme as circunstâncias concretas, diz o autor; se a conclusão de inconstitucionalidade fosse baseada na reflexão pessoal do empresário, haveria erro de proibição evitável, por- que questões jurídicas complexas não podem ser decididas por leigos. e) X, sócio-administrador de instituição financeira privada, em dúvida sobre a licitude de negócio de risco cujo êxito produziria grandes lucros e seria considerado obra de gênio, mas cujo fracasso produziria grande prejuízo e seria considerado gestão temerária, cumpre o dever de informação consultando a jurisprudência dos tri- bunais, encontrando decisões divergentes: a) para o TRF seria gestão temerária, mas não para o STF: erro de proibição inevitável; b) para o TRF não seria gestão temerária, mas sim para o STF: erro de proi- bição evitável; c) decisões divergentes entre turmas do STF: erro de proibição inevitável. Em todas hipóteses, o cumprimento do dever de informação não produz seguro conhecimento do injusto – e o Estado não pode punir, se o cidadão se orienta por critérios oficiais. 308 309 Teoria do Fato Punível Capítulo 11 Capítulo 11 Culpabilidade e Exculpação 2.2. Consequências legais do erro de proibição As consequências legais do erro de proibição, segundo o critério legislado da teoria limitada da culpabilidade, são diferenciadas con- forme a categoria do erro de proibição, por sua vez determinada pelo objeto do erro respectivo: 1) o erro de proibição direto, que tem por objeto a lei penal, e o erro de proibição indireto, que tem por objeto a existência de justificação inexistente ou os limites jurídicos de justificação existente excluem ou reduzem a reprovação de culpabilidade porque o comportamento real do autor é orientado por critérios desiguais aos do legislador: o erro inevitável exclui e o erro evitável reduz a reprovação de culpabilidade89. 2) o erro de tipo permissivo, que tem por objeto a situação justifican- te, constitui exceção à regra: o erro inevitável (plenamente justificado pelas circunstâncias) exclui o dolo e, por extensão, o crime e a pena; o erro evitável exclui o dolo, mas admite a atribuição por imprudência, se prevista em lei (art. 20, § 1º) –, em ambos os casos, porque o compor- tamento real do autor é orientado por critérios iguais aos do legislador. Art. 20, § 1º. É isento de pena quem, por erro plena- mente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo. 2.3. Natureza evitável ou inevitável do erro de proibição O erro de proibição evitável reduz a reprovação de culpabilidade no erro de proibição direto e no erro de proibição indireto, e pode con- duzir à punição por imprudência no erro de tipo permissivo porque se 89 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 21, n. 69-70, p. 824. existe possibilidade de conhecer o injusto do fato, mediante reflexão ou informação, então o autor é alcançável pela determinação da norma e seria capaz de dirigibilidade normativa. O erro deproibição inevitável exclui a reprovação de culpa- bilidade no erro de proibição direto e no erro de proibição indireto, e exclui o dolo e a imprudência no erro de tipo permissivo porque se não existe possibilidade de conhecer o injusto do fato, mediante reflexão ou informação, então o autor não é alcançável pela determinação da norma e não seria capaz de dirigibilidade normativa90. A possibilidade de conhecimento do injusto, que indica a evita- bilidade do erro de proibição, depende de múltiplas variáveis, como a posição social, a capacidade individual, as representações de valor do autor91 etc. e deve ser medida por critérios normais de reflexão ou de informação, e não por critérios rigorosos, incompatíveis com a vida social92. A certeza ou, até mesmo, a existência de fundamentos razo- áveis sobre a permissibilidade do fato seriam argumentos suficientes para admitir a inevitabilidade do erro de proibição porque ninguém pode conhecer a infinidade das proibições da lei penal: se o dolo de tipo, em grande parte dos crimes dolosos do Direito Penal comum, e na maioria dos crimes dolosos do Direito Penal especial, aparece desacompanhado da consciência da antijuridicidade, então a maioria dos casos de erro de proibição deve ser considerada inevitável e, assim, excluir a reprovação de culpabilidade93. 90 Assim, ARMIN KAUFMANN, Die Dogmatik der Unterlassungsdelikte, 1959, p. 144 e seguintes; HORN, Verbotsirrtum und Vorwerfbarkeit, 1969, p. 60; RUDOLPHI, Unrechtsbewusstsein, Verbotsirrtum und Vermeidbarkeit des Verbotsirrtums, 1969, p. 196 e seguintes. 91 WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 466, p. 136. 92 Ver JAKOBS, Strafrecht, 1993, 19/35, p. 557-558; também, MAURACH/ZIPF, Strafrecht, 1992, § 38, n. 37, p. 549. 93 Nesse sentido, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 21, n. 37-44, p. 810-812; assim, também, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 41, II, 2c, p. 459-460. 310 311 Teoria do Fato Punível Capítulo 11 Capítulo 11 Culpabilidade e Exculpação Art. 21, parágrafo único. Considera-se evitável o erro se o agente atua ou se omite sem a consciência da ilicitude do fato, quando lhe era possível, nas circuns- tâncias, ter ou atingir essa consciência. 2.4. Meios de conhecimento do injusto 1. O método primitivo do esforço de consciência para conhecer o injusto do fato poderia, na melhor das hipóteses, permitir o conhecimento de violações morais, mas era inadequado para conhecer o injusto de tipos penais – aliás, outro entendimento significaria reconhecer a inu- tilidade do estudo jurídico94. Hoje, o método para conhecer o injusto de tipos penais é o da reflexão e informação: a natureza evitável ou inevitável do erro de proibição dependem do nível de reflexão e de informação do autor sobre o injusto específico do tipo legal95. Esse método corresponde à exigência da lei, que define o erro evitável pela possibilidade de ter (reflexão) ou de atingir (informação) o conheci- mento do injusto (art. 21, CP). 2. Em regra, a reflexão do autor no momento do fato é suficiente para conhecer a antijuridicidade concreta do injusto específico: a lesão corporal grave produzida pelo pai no filho, sob a convicção errônea de exercer direito de educação, poderia ser evitada pela reflexão; ex- cepcionalmente, o conhecimento do injusto do fato pode depender de informações especializadas, que devem ser obtidas anteriormente, como as regras de tráfego, por exemplo: produzir acidente no tráfego urbano, por falta de conhecimento anterior da regra de circulação violada, configura erro de proibição evitável, como reprovabilidade do fato ligada à lesão anterior do cuidado96. 94 Ver BAUMANN/WEBER, Strafrecht, 1995, § 21, n. 60. 95 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 21, n. 45-51, p. 813-815. 96 Assim, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 21, n. 46-48, p. 813-814. Algumas teorias sobre o exame da juridicidade da ação sus- tentam posições extremas: ou são rigorosas demais, exigindo exame antecipado da juridicidade de cada ação97 – uma exigência irrealista capaz de paralisar a vida social; ou são muito tolerantes, ao excluir a possibilidade prática de informação no caso de ausência de dúvida sobre a proibição no psiquismo do autor98. Um critério intermedi- ário parece razoável: existiria motivo para exame da juridicidade da ação nas hipóteses (a) de dúvida sobre sua juridicidade concreta, (b) de consciência de atuação em área regida por normas especiais, e (c) de consciência da possibilidade de dano individual ou coletivo99. Na hipótese de dúvida sobre a juridicidade, a atitude de não levar a sério a dúvida ou de leviana admissão da juridicidade da ação é suficiente para configurar erro evitável; na hipótese de atuação em áreas regidas por normas especiais (crimes contra o meio ambiente, o consumidor etc.), o erro de profissionais ou de empresários da área é, normalmente, evitável, mas o erro do cidadão comum seria, normalmente, inevitá- vel; na hipótese de consciência da possibilidade de dano individual ou coletivo (por exemplo, a consciência de que determinada ação na esfera negocial poderá prejudicar número indeterminado de pessoas), qualquer lesão a normas sociais elementares configura erro evitável100. 3. O erro de proibição inevitável é mais provável no Direito Penal especial, em que o cidadão comum tem maior dificuldade de reco- nhecer o injusto concreto do tipo respectivo e os próprios profissionais especializados não conhecem a totalidade das incriminações respecti- vas; por outro lado, o erro de proibição evitável é mais frequente no Direito Penal comum, exceto quando não há motivo para exame da 97 É a posição do Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal Federal) alemão. 98 Assim, HORN, Verbotsirrtum und Vorwerfbarkeit, 1969, p. 105; também, ZACZYK, Der Verschuldete Verbotsirrtum, JuS, 1990, p. 893. 99 Assim, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 21, n. 53, p. 816; também, STRATENWERTH, Strafrecht, 1981, n. 585. 100 Ver JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 41, II, 2b, p. 458; ROXIN, Strafrecht, 1997, § 21, n. 53-57, p. 816-818. 312 313 Teoria do Fato Punível Capítulo 11 Capítulo 11 Culpabilidade e Exculpação juridicidade da ação, como mostra um caso da jurisprudência alemã: dois trabalhadores rurais foram absolvidos da acusação de relações sexuais consentidas com mulher doente mental, por erro de proibição inevitável, porque não tinham dúvida sobre a juridicidade da ação, não tinham consciência de dano contra a mulher e, finalmente, o consentimento da mulher afastava qualquer motivo de preocupação sobre a juridicidade do comportamento101. 4. A confiança em informações de jurisprudência ou de profissionais da área jurídica (advogados, professores de direito) pode ser decisiva: erro de proibição inevitável no caso de tipo de injusto realizado com base em jurisprudência unânime ou dominante dos tribunais e erro de proibição evitável no caso de divergência de tribunais de igual jurisdição; igualmente, a confiança na orientação de advogados ou outros profissionais do direito pode fundamentar erro de proibição inevitável: primeiro, porque são profissionais legalmente habilitados para o exercício da profissão; segundo, porque o leigo não tem con- dição de avaliar a capacidade geral, os conhecimentos específicos e a correção ou não das informações. Entretanto, a reflexão do cidadão comum não oferece o mesmo nível de confiabilidade, por causa de uma contradição aparentemente insolúvel: por um lado, o leigo é incapaz de resolver questões jurídi- cas que não conhece; por outro, a lei penal não pode ser inacessível à compreensão do homem do povo102. Por isso, em sociedades com elevadas taxas de exclusão do mercado de trabalho e do sistema escolar – ou seja, marcadas pela pobreza e pela ignorância, como é o caso da sociedade brasileira –, a frequência do erro de proibição e a imprecisão dos critérios de evitabilidade/inevitabilidade do erro reclamam atitudes democráticas na sua avaliação: bitola larga para a inevitabilidade, bitola estreita para a
Compartilhar