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A MORFOSSINTAXE A SERVIÇO DAS RELAÇÕES SEMÂNTICO-ESTILÍSTICAS1 Claudio Cezar HENRIQUES 2 RESUMO Este artigo aborda questões referentes aos estudos morfossintáticos, semânticos e estilísticos, propondo uma aplicação dos conhecimentos em torno desses três campos de investigação para mostrar uma interligação produtiva e proveitosa para os estudos linguísticos. Apresentam-se textos de configuração diferente e faz-se uma análise dos aspectos significativos e expressivos a partir de observações das estruturas morfossintáticas. PALAVRAS-CHAVE: morfossintaxe, semântica, estilística ABSTRACT This article broaches themes refering morphosyntactic, semantic and stylistic studies and proposes that knowledge can be applyed to these three fields of investigation in order to show a productive and benefic interconnection to the linguistic studies. Texts of different species are shown and analyzed from the significative and expressive aspects of their morphosyntactic structures. KEY-WORDS: morphosyntax, semantics, stylistics 1 Algumas das passagens deste artigo são adaptações e expansões de trechos usados pelo autor no livro Língua Portuguesa: morfossintaxe (capítulo e videoaula 11). 2 Prof. Titular de Língua Portuguesa da UERJ com Pós-Doutoramento em Letras na USP. 54 IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 24, 1º. Sem.: 53-64, 2013 Neste artigo pretendemos aprofundar um pouco o tema da articulação que a morfossintaxe, a semântica e a estilística mantêm entre si na construção de sentido de textos de variada natureza. Falaremos do processo de encadeamento de componentes discursivos, o que inclui a presença de operadores que se encarregam de revelar as relações de adição, reiteração, restrição, contraste, causa, efeito, contradição, conclusão, condição, fim e muitas outras. Quando escrevemos um texto argumentativo, descritivo ou narrativo (para nos restringirmos apenas aos três gêneros mais trabalhados no ambiente escolar), usamos estruturas que precisam combinar os conceitos de idas e vindas, causas e efeitos, ênfases e abrandamentos, sempre expressos de forma diferenciada e variados pontos de vista. Queremos insistir em dizer que o estudo das relações existentes entre palavras e entre orações de um período é um dos caminhos para quem pretende ter domínio e visão crítica do texto que lê e que escreve. Afinal, se sabemos que os sintagmas de uma oração ou as orações coordenadas e subordinadas de um período têm características peculiares, também sabemos que a língua não é um conjunto de relações binárias isoladas. Vale lembrar as palavras de Maria Helena Moura Neves (2006, p. 13), que afirma: numa visão da língua em uso (...) ativam-se dois sistemas de regras: as que regem a constituição das expressões linguísticas (regras sintáticas, semânticas, morfológicas e pragmáticas) e as que regem o modelo de interação verbal no qual as expressões são usadas (regras pragmáticas). Nesses termos, podemos dizer que cada frase é um universo aberto para que nós possamos fazer as combinações que quisermos, desde que nossas escolhas sejam compatíveis com as estruturas morfossintáticas da língua. 1 APLICAÇÃO NUM TEXTO EM PROSA Para mostrar um pouco das relações entre morfossintaxe, semântica e estilística, tomaremos primeiro um dos parágrafos de crônica de João do Rio (1994, p. 16), publicada no livro Momento Literário: A Arte não é, como ainda querem alguns sonhadores ingênuos, uma aspiração e um trabalho à parte, sem ligação com as outras preocupações da existência. Todas as preocupações humanas se enfeixam e misturam de modo inseparável. As torres de ouro e marfim, em que os artistas se fechavam, ruíram desmoronadas. A Arte de hoje é aberta e sujeita a todas as influências do meio e do tempo: para ser a mais bela representação da vida, ela tem de ouvir e 55 IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 24, 1º. Sem.: 53-64, 2013 guardar todos os gritos, todas as queixas, todas as lamentações do rebanho humano. Somente um louco – ou um egoísta monstruoso – poderá viver e trabalhar consigo mesmo, trancado a sete chaves dentro do seu sonho, indiferente a quanto se passa, cá fora, no campo vasto em que as paixões lutam e morrem, em que anseiam as ambições e choram os desesperos, em que se decidem os destinos dos povos e das raças... Destaquemos alguns dados relevantes acerca do entrelaçamento das opções redacionais do cronista, ora apresentadas no modelo da estrutura coordenativa, ora no modelo da estrutura subordinativa – ou pela combinação de ambas. A intenção do autor é falar da Arte em seus aspectos contemporâneos e em suas ligações com o meio e o tempo. Ele quer contestar a opinião dos que colocam a Arte num espaço à parte. A solução sintática adotada reforça essa dupla pretensão: primeiro, encabeçando o parágrafo com o sujeito “a Arte” para definir o que ela “não é”; segundo, acrescentando logo após o sujeito o argumento a ser derrotado (para isso nada melhor do que o sintagma “sonhadores ingênuos”). O combate ao passadismo segue em dois períodos curtos (e categóricos): Todas as preocupações humanas se enfeixam e misturam de modo inseparável. As torres de ouro e marfim, em que os artistas se fechavam, ruíram desmoronadas. Em vez de estabelecer elos lexicais (causais, conclusivos, temporais) entre ambos, o cronista opta pela concisão sintática de dois períodos compostos: o primeiro por coordenação, o segundo por subordinação. A mesma estratégia morfossintática usada na junção de “se enfeixam e misturam” é repetida no longo período que encerra o trecho. Essa passagem mostra duas vezes o uso da conjunção aditiva “e” para marcar outra intrínseca ligação de verbos: poderá viver e (poderá) trabalhar // as paixões lutam e morrem. A sustentação do ponto de vista do redator se vale de recursos de reiteração sintática, como se vê nos dois predicativos (trancado e indiferente), ambos representados por adjetivos regentes – o segundo deles acompanhado de oração completiva nominal (a quanto se passa, cá fora, no campo vasto). No desfecho do período, a mesma conjunção “e” volta a dar paralelismo à construção subordinada, ligando dois segmentos em ordem inversa (anseiam as ambições + choram os desesperos), estrategicamente colocados numa sucessão que se vale da locução relativa “em que”: no campo vasto em que as paixões lutam e morrem, em que anseiam as ambições e choram os desesperos, em que se decidem os destinos dos povos e das raças... Enfaticamente repetidas na sequência final, as orações ligadas por “em que” mostram a combinação da ordem direta do primeiro trecho (em que as paixões lutam e morrem) com a já mencionada ordem inversa 56 IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 24, 1º. Sem.: 53-64, 2013 dos três últimos (em que anseiam as ambições e [em que] choram os desesperos, em que se decidem os destinos dos povos e das raças...). Tudo isso atua como um reforço discursivo dos argumentos oracionais adjetivos, pois as paixões lutam e morrem, as ambições anseiam, os desesperos choram e os destinos dos povos e das raças se decidem... Observamos nessa série final a presença de verbos cujos significados são nucleares para a compreensão do trecho: lutar, morrer, ansiar, chorar e decidir-se. O coroamento do ponto de vista do autor sobre as relações da Arte com a realidade e com a sociedade está representado nessa sequência qualificativa, pois toda ela se refere ao “campo vasto” de que fala João do Rio. O mesmo “campo vasto” a que ele chama de “cá fora” e para o qual ninguém pode ficar indiferente, exceto um louco ou um egoísta monstruoso. 2 APLICAÇÃO NUM TEXTO EM VERSO O segundo exemplo a ser examinado é um belo poema sobre nossa língua. Seu autor, Adriano Espínola (2001, p. 13), é um poeta contemporâneo nascido no Ceará, que já publicou vários livros de poesia e antologias. LÍNGUA-MAR A língua em que navego, marinheiro,na proa das vogais e consoantes, é a que me chega em ondas incessantes à praia deste poema aventureiro. É a Língua Portuguesa, a que primeiro transpôs o abismo e as dores velejantes, no mistério das águas mais distantes, e que agora me banha por inteiro. Língua de sol, espuma e maresia, que a nau dos sonhadores-navegantes atravessa a caminho dos instantes, cruzando o Bojador de cada dia. Ó língua-mar, viajando em todos nós, No teu sal, singra errante a minha voz. “Língua-mar” é um poema metalinguístico escrito em 1995, que enaltece a Língua Portuguesa falando de uma das marcas de nossa história, a navegação. Metafórico nas relações entre a natureza e a língua, o texto de Espínola se vale de uma sequência de versos rimados com palavras paroxítonas, exceto os 57 IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 24, 1º. Sem.: 53-64, 2013 dois últimos – com rima de monossílabos tônicos. Coincidentemente, termina o poema um verso escrito em ordem inversa, com uma oração cujo sujeito está ao final da frase. Vejamos a estrutura sintática desse verso, comparando a ordem usada no poema com a ordem direta: ORDEM INVERSA: No teu sal, singra errante a minha voz. ORDEM DIRETA: A minha voz singra errante no teu sal. Notamos diferenças estilísticas entre ambas. Aparentemente, o poeta fez apenas uma inversão entre o sujeito e o adjunto adverbial, mas devemos reparar que o predicativo “errante” continua à direita do verbo intransitivo, na posição habitual dentro do predicado verbo-nominal. O poeta não optou por começar a frase pelo predicativo e dizer: “Errante, a minha voz singra no teu sal” (ordem inversa encabeçada pelo predicativo). Se lembrarmos que a topicalização é o processo que antecipa um termo para dar-lhe destaque (aqui é o adjunto adverbial de lugar “no teu sal” o termo topicalizado), podemos dizer que o sujeito “a minha voz”, colocado como o último sintagma do poema, é uma espécie de topicalização ao contrário, pois é inegável que se concentra nessa expressão um componente-chave no poema, ou seja, a voz do poeta. Os versos de Espínola são bastante expressivos e nos oferecem material para falarmos também da coocorrência de parataxe e hipotaxe no âmbito do período. Não podemos deixar de considerar que a construção dos sentidos de um texto depende fundamentalmente da capacidade de seu autor relacionar e concatenar as ideias de maneira inteligível para o leitor. Para que esse trabalho seja bem-sucedido, é necessário dominar as articulações que existem entre os termos da oração e entre as orações do período. Mas essa articulação não é apenas sintática. Também é semântica, pois é preciso dar sentido ao que se escreve, e é estilística, pois deve resultar numa resposta afetivo-impressiva por parte do destinatário. Voltemos ao poema de Adriano Espínola para destacar o segundo período do texto, que vai do verso cinco ao verso oito. Ei-lo de novo: É a Língua Portuguesa, a que primeiro transpôs o abismo e as dores velejantes, no mistério das águas mais distantes, e que agora me banha por inteiro. No início de Língua-Mar, o poeta tinha nos dito que a língua em que navega como marinheiro é aquela que chega até ele em ondas incessantes. Esse primeiro período nos diz quem é o sujeito da segunda 58 IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 24, 1º. Sem.: 53-64, 2013 frase. Afinal, essa língua em que navego como marinheiro (trecho da primeira frase do poema) é a Língua Portuguesa (trecho da segunda frase do poema). Isso quer dizer que o sujeito do verbo “ser” que inicia o segundo período está sintaticamente oculto, mas discursivamente claro: é “ela” (a língua em que navego). Ou seja: a língua em que navego é a Língua Portuguesa, a que primeiro transpôs o abismo e as dores velejantes, no mistério das águas mais distantes, e que agora me banha por inteiro. Essa rearrumação sintática nos permite revelar a operação semântico-estilística de ênfase pretendida pelo poeta: a língua em que ele navega é a Língua Portuguesa. Com isso temos mais uma chave para explicar o título que escolheu para sua poesia, “língua-mar” (ela transpôs o abismo e as dores velejantes, ela fez esse percurso no mistério das águas mais distantes e ela agora me banha por inteiro). Na segunda parte dos versos que estamos analisando, vemos um pronome demonstrativo importante para a estrutura da frase. É o demonstrativo A, empregado em “a que primeiro transpôs o abismo e as dores velejantes” (AQUELA que primeiro transpôs o abismo e as dores velejantes). A operação de identificação semântica desse demonstrativo nos levará ao substantivo ao qual ele se refere (a = aquela = língua). Reparamos aqui, além disso, que o demonstrativo está acompanhado de um pronome relativo “que” (aquela A QUAL primeiro transpôs o abismo). Isso nos revela a oração adjetiva restritiva: “que primeiro transpôs o abismo e as dores velejantes, no mistério das águas mais distantes”. Orações adjetivas são qualificações em forma de oração. Observamos então como o poeta faz a série qualificativa da Língua Portuguesa, a língua em cuja proa das vogais e das consoantes ele navega. Colhemos esses dados apenas na segunda frase do poema, que transcrevemos ainda há pouco. Três são as qualificações para a Língua Portuguesa, todas introduzidas por pronomes relativos. A primeira, em que navego, se refere ao próprio substantivo língua. Foi a informação dada pela primeira frase do texto: “a língua em que navego”. As outras duas qualificações se referem ao demonstrativo “aquela”, no texto sob a forma do monossílabo A: “aquela que primeiro transpôs o abismo e as dores velejantes no mistério das águas mais distantes” e “aquela que agora me banha por inteiro”. O que temos de interessante nesse trecho do poema? Para o estudo morfossintático e semântico- estilístico do texto importam duas coisas que estão combinadas: o poeta usou a conjunção aditiva “e” para interligar as duas qualificações dadas ao demonstrativo “aquela”. Não há oração coordenada aqui, mas duas subordinadas iguais em tudo, dependentes do demonstrativo. Falamos, neste caso, em duas orações subordinadas adjetivas restritivas, coordenadas entre si. 59 IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 24, 1º. Sem.: 53-64, 2013 Em consequência dessas preferências sintáticas, nossa observação nos mostrará também que, ao longo do poema, Espínola segue nessas qualificações que vinculam a Língua Portuguesa ao que ele mesmo sente e ao que ela mesma representa, na sua dimensão de língua-mar. As três qualificações desse trecho são relevantes para a temática do texto. Senão vejamos: - QUALIFICAÇÃO 1: a Língua Portuguesa é a língua em que ele navega como marinheiro; - QUALIFICAÇÃO 2: a Língua Portuguesa foi a primeira a transpor o abismo e as dores velejantes no mistério das águas mais distantes; e, por fim - QUALIFICAÇÃO 3: a Língua Portuguesa agora o banha por inteiro. A construção dos significados de um texto não se dá por obra do acaso, pois ele (o significado) não é uma entidade e sim uma relação, mas não é propriamente uma relação entre um item lexical e um objeto do mundo, mas uma relação entre uma expressão linguística e algo não linguístico (cf. Henriques, 2011b, p. 121). No caso do poema de Adriano Espínola, temos em suma: língua, mar, poeta, a integração do homem e da língua pelos sentidos do substantivo “mar”. 3 APLICAÇÃO NUM TEXTO MUSICAL Para encerrar, vejamos outro tipo de texto, a letra de uma canção composta por João Bosco e Aldir Blanc. Ela vai nos servir para ilustrar mais um pouco como podem ser ricas as combinações de nossa língua- mar. Caía a tarde feito um viaduto E um bêbado trajando luto me lembrou Carlitos A lua tal qual a dona do bordel Pedia a cada estrela fria um brilho de aluguel E nuvens lá no mata-borrão do céu Chupavam manchas torturadas, que sufoco louco! O bêbado com chapéu coco fazia irreverências mil Pra noite do Brasil, meu Brasil (...) A gravaçãoque Elis Regina fez de “O Bêbado e a Equilibrista”, um dos maiores sucessos de João Bosco, foi incluída em 1979 no LP “Linha de Passe”. Aldir Blanc é o autor de seus versos, compostos durante um dos períodos mais conturbados da história do Brasil: a ditadura militar. A primeira parte da música descreve metaforicamente o cenário da época, a noite do Brasil. 60 IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 24, 1º. Sem.: 53-64, 2013 No trecho que transcreveremos a seguir, Aldir faz referência explícita a um dos exilados políticos daqueles tempos de insaudosa lembrança: o sociólogo Betinho, irmão do cartunista Henfil. A campanha pela abertura estava no auge, e a Lei da Anistia acabaria sendo assinada naquele mesmo ano. (...) Que sonha com a volta do irmão do Henfil Com tanta gente que partiu num rabo de foguete Chora a nossa pátria mãe gentil Choram Marias e Clarices no solo do Brasil Mas sei que uma dor assim pungente não há de ser inutilmente A esperança dança na corda bamba de sombrinha E em cada passo dessa linha pode se machucar Azar, a esperança equilibrista Sabe que o show de todo artista tem que continuar. É nesse contexto político que se coloca a manifestação dos compositores quando dizem que o Brasil sonhava “com a volta do irmão do Henfil, com tanta gente que partiu num rabo de foguete”. Mas a música contém uma mensagem de otimismo, de confiança para o povo brasileiro. Isso fica evidenciado nos versos finais, que falam na esperança dançando na corda bamba, mas sempre se equilibrando para que o show possa continuar. Como dissemos há pouco, a letra nos mostra o cenário da época. Ele é descrito com metáforas bem expressivas e estruturas frasais que combinam a hipotaxe e a parataxe. A paisagem é contraditória, um pouco bêbada, um pouco equilibrista. Por exemplo: ao dizer que “a tarde caía” parece que vamos ouvir uma corriqueira mensagem romântica, mas não é o que acontece, pois a tarde caía feito um viaduto. Como negar a pertinência da comparação entre o cair da tarde e o cair de um viaduto – menção indireta a um acidente de graves consequências ocorrido no Rio de Janeiro nos anos 70 (a queda de um trecho do elevado Paulo de Frontin durante sua construção)? Logo em seguida, a canção faz uma citação a Carlitos. Outra vez parece que teremos uma ideia singela a partir do “adorável vagabundo” do cinema. Outra vez o autor nos surpreende, pois quem traz a lembrança de Carlitos é um bêbado trajando luto. Tudo segue nesse contraste original. A lua é comparada a uma dona de bordel, pois cobra pelo brilho de aluguel de cada estrela. E logo em seguida encontramos a imagem das nuvens como um mata- borrão do céu chupando manchas torturadas, que cria uma alegoria metonímica à paisagem brasileira dos anos de chumbo, um sufoco louco! 61 IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 24, 1º. Sem.: 53-64, 2013 Toda a construção desses sentidos contraditórios, no pequeno longo trecho que inicia a canção, ocorre a partir de escolhas sintáticas propícias para isto. Caía a tarde feito um viaduto E um bêbado trajando luto me lembrou Carlitos A lua tal qual a dona do bordel Pedia a cada estrela fria um brilho de aluguel E nuvens lá no mata-borrão do céu Chupavam manchas torturadas, que sufoco louco! Estivéssemos aqui fazendo um estudo específico de análise sintática, teríamos de ver quantos verbos há nesse período. Cinco deles estão escritos: caía, trajando, lembrou, pedia e chupavam. E, se quiséssemos identificar os conectores oracionais, veríamos a conjunção “e” duas vezes, a conjunção comparativa “feito” (sinônima de “como”) e a locução comparativa “tal qual”. Além disso, também seria preciso lembrar que toda comparação tem dois componentes e, portanto, os dois conectores comparativos introduzem orações cujos verbos estão subentendidos: (a) A tarde caía do mesmo modo que um viaduto cai. (b) A lua pede a suas estrelas um brilho de aluguel, tal qual a dona do bordel faz. Na contagem feita nos moldes de uma análise sintática tradicional, contabilizaríamos então sete verbos e sete orações. Essas são as marcações de praxe para se analisar a estrutura de um período – e cabe esclarecer que consideramos esse trecho todo como um único período por conta da interpretação que escolhemos. Como se trata de poesia, a ausência dos sinais de pontuação nos oferece a possibilidade de fazermos essa leitura. Mas voltemos ao nosso esquema para examinar agora as relações sintáticas interoracionais. (a) A primeira oração do período é “Caía a tarde feito um viaduto” (b) A segunda é “feito um viaduto (cai)” (c) A terceira começa em “E um bêbado” e segue em “me lembrou Carlitos” (d) Essa oração está quebrada em duas partes por causa da oração reduzida “trajando luto” (equivalente a “que trajava luto”), adjetiva restritiva – eis aí a quarta oração, “trajando luto”, igual a “que trajava luto” (e) A quinta começa em “A lua” e continua em “pedia a cada estrela fria um brilho de aluguel” (f) A quinta oração também está quebrada, mas agora por causa da antecipação da oração comparativa “tal qual a dona do bordel (faz)” – e a sexta é esta 62 IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 24, 1º. Sem.: 53-64, 2013 (g) A última das sete é a que começa na conjunção E: “E nuvens lá no mata- -borrão do céu chupavam manchas torturadas, que sufoco louco!” O período combina orações adverbiais comparativas (as duas que têm verbos subentendidos), uma oração adjetiva reduzida de gerúndio (o verbo é “trajando”) e orações coordenadas sem conjunção (duas assindéticas) ou iniciadas pela conjunção “e” (duas sindéticas aditivas). Cada uma das três subordinadas obviamente tem a sua principal, e isso significa que o trecho tem três orações principais. Nossa conta não pode passar de sete orações, mas precisamos lembrar que as relações sintáticas são binárias. Por isso, nossa conta de somar tem de chegar a um número par. Revendo nossos cálculos matemático-sintáticos, teremos o seguinte resultado: 03 principais + 03 subordinadas + 02 assindéticas + 02 sindéticas = 10. Dez orações? Não! Dez respostas! É preciso lembrar que o trecho que analisamos continha orações acumulando funções. Vejamos de novo o esquema: (a) “Caía a tarde” se relaciona com “feito um viaduto (cai)” = a primeira oração é principal da segunda, que é subordinada adverbial comparativa. Mas... (b) “Caía a tarde” também se relaciona com “E um bêbado me lembrou Carlitos”. A relação que há entre essas duas orações é de independência sintática e está marcada pela conjunção aditiva “e”. Nesse caso, acrescentamos à classificação da primeira oração que ela é coordenada assindética da terceira. E esta é coordenada sindética aditiva da primeira. Mas... (c) “E um bêbado me lembrou Carlitos” também se relaciona com “trajando luto”. Agora temos uma relação de dependência entre essas duas orações: “trajando luto”, ou seja, “que trajava luto”, é uma oração subordinada adjetiva restritiva. Nesse caso, acrescentamos à classificação da terceira oração que ela é principal da quarta. E assim prosseguirá a análise, mostrando outra dupla sindética aditiva e assindética e outra dupla de principal e adverbial comparativa. (d) A quinta oração é “A lua pedia a cada estrela fria um brilho de aluguel”, coordenada assindética da sexta, “E nuvens lá no mata-borrão do céu chupavam manchas torturadas, que sufoco louco”, que é coordenada sindética aditiva da quinta. Mas... 63 IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 24, 1º. Sem.: 53-64, 2013 (e) A quinta oração também é principal de “tal qual a dona do bordel (faz)”, que é sua subordinada adverbial comparativa. Se juntarmos os primeiros comentários que fizemos sobre “O Bêbado e a Equilibrista” com os últimos, poderemos perceber que, embora usando palavras diferentes, focalizamos as mesmas questões. Ao interpretar os sentidos, falamos em comparações implícitas, em contradições, em metáforas e metonímias. Mas precisamosreparar que, de certo modo, a análise das orações não ficou muito longe disso. Embora mexendo com as “roldanas do texto”, pudemos perceber que foram as orações aditivas que compuseram o cenário de contradições que se acumulam no cenário apresentado por Aldir Blanc. Foram as orações comparativas que criaram o inusitado de suas metáforas. Foi a oração adjetiva que qualificou de modo original o trecho que fala de Carlitos. Nos versos finais, se experimentássemos juntar esses dois modos de observar as tramas do texto, poderíamos alcançar conclusões sobre os contatos entre morfossintaxe, semântica e estilística. (Meu Brasil) Que sonha com a volta do irmão do Henfil Com tanta gente que partiu num rabo de foguete Chora a nossa pátria mãe gentil Choram Marias e Clarices no solo do Brasil Mas sei que uma dor assim pungente não há de ser inutilmente A esperança dança na corda bamba de sombrinha E em cada passo dessa linha pode se machucar Azar, a esperança equilibrista Sabe que o show de todo artista tem que continuar. O compositor diz que o Brasil (o seu Brasil, não o da ditadura) sonha com a volta dos exilados políticos (Betinho, irmão do Henfil, é a metonímia da liberdade). Há também a referência às lágrimas da mãe gentil dos filhos deste solo que partiram num rabo de foguete. Os períodos desse trecho não são longos: o primeiro termina em “foguete”; o segundo termina em “pode se machucar”; e o terceiro segue até o desfecho que se abre na certeza de que o show (a luta) de todo artista (de todo brasileiro) não pode ser interrompido, tem que continuar. 4 CONCLUSÃO A análise sintática não é uma interpretação apenas para as aulas de morfossintaxe. Ela é uma ferramenta muito importante na compreensão dos sentidos de um texto. Alguém pode dizer que consegue 64 IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 24, 1º. Sem.: 53-64, 2013 entender um texto, mesmo sem saber ou querer fazer a observação de suas estruturas morfossintáticas. Não é que se deva discordar dessa perspectiva, mas seria o caso de verificar se a interpretação de um texto fica ou não mais interessante quando chamamos a atenção para as escolhas linguísticas do redator: as palavras, a ordem em que ele as dispõe na frase, as orações e períodos que ele usa para compor sua mensagem. Morfossintaxe, semântica e estilística são palavras que representam a parceria que existe entre os estudos gramaticais e a produção de textos. E os comentários sobre os três textos que aqui apresentamos podem comprovar que as relações entre a morfossintaxe, a semântica e a estilística têm relevância. O conhecimento da morfologia e da sintaxe, associado à sensibilidade linguística e ao prazer de examinar um texto, faz da matéria gramatical algo que tem aplicação na vida real, nas múltiplas linguagens do dia a dia. Como declara Flávia Carone (1993, p. 77), quase ao final de seu livro, a “sintaxe [eu expandiria: a morfossintaxe] tem sua economia interna, suas leis próprias. A essa grande senhora, sem a qual não pode passar, recorre o homem para realizar seu fascinante jogo na armação do pensamento.” REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOSCO, João & BLANC, Aldir. “O Bêbado e a Equilibrista” – in: Linha de Passe. LP: RCA Victor, 1979. CARONE, Flávia. Subordinação e Coordenação. São Paulo: Ática, 1993. ESPÍNOLA, Adriano. Beira-Sol. Rio de Janeiro: Topbooks, 2001. HENRIQUES, Claudio Cezar. Estilística e Discurso: estudos produtivos sobre texto e expressividade. Rio de Janeiro: Campus/Elsevier, 2011a. ______. Léxico e Semântica: estudos produtivos sobre palavra e significação. Rio de Janeiro: Campus/Elsevier, 2011b. ______. Língua Portuguesa: morfossintaxe. Curitiba: IESDE, 1999. ______. Sintaxe: estudos descritivos da frase para o texto. Rio de Janeiro: Campus/Elsevier, 2011c. NEVES, Maria Helena de Moura. Texto e Gramática. São Paulo: Contexto, 2006. RIO, João do. Momento Literário. Rio de Janeiro: Fund. Bibl. Nacional, 1994. Data de submissão: out./2012 Data de aceitação: jan./2013
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