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Apresentação à Edição Brasileira A presentar este livro do Dr. Otto F. Kernberg ao público especializado brasileiro é uma dupla satisfação. Primeiro, porque, devido a uma estratégia editorial inusitada da Editora Artes Médicas, esta edição vem a público bem antes de sua publicação em língua inglesa, visto que Love Rdations: Normality and Pathology está programado para ser publicado pela Yale University Press somente no final do próximo semestre, o que faz desta edição brasileira a primeira publicação em nível mundial deste livro. Segundo, porque seu lançamento, neste momento, vindo a servir como base para a discussão do Tema Oficial da XVII Jornada Sul- Riograndense de Psiquiatria Dinâmica, promovida pelo Centro de Estudos Luís Guedes, do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da UFRGS, confirma a amizade e o vínculo afetivo significativos que ligam os Drs. Otto e Paulina Kernberg à psiquiatria e à psicanálise do Rio Grande do Sul. Otto F. Kernberg é, sem dúvida, atualmente um dos mais distinguidos personagens da cena psicanalítica internacional, tendo se destacado com importantes contribuições nas áreas da contratransferência, da teoria das relações de objeto e da descrição, compreensão e tratamento das organizações de personalidade narcisistas e fronteiriças (borderliné). A amplitude e, ao mesmo tempo, a profundidade e a erudição dos seus interesses levaram o Dr. Kernberg a também pesquisar a aplicação da psicanálise a várias áreas afins de interface, como a psicoterapia de orientação analítica, a psiquiatria dinâmica (incluindo tratamentos hospitalares) e a dinâmica de grupos e instituições (o que lhe conferiu, entre diversas outras distinções já recebidas, o Presidential Awardfor Leadership in Psychiatry ofthe National Association ofHealth Care Systems, de 1993, nos Estados Unidos). vn Predestinado e estimulado talvez por uma peculiaridade biográfica (nasceu em Viena, na Europa, emigrou jovem para a América do Sul, Chile, onde se graduou como médico, psiquiatra e psicanalista; transferiu-se após para os Estados Unidos, onde desenvolveu e consolidou a maior parte de sua carreira psicanalíti- ca), um dos aspectos mais importantes das contribuições do Dr. Kernberg foi o de trazer o trabalho de psicanalistas europeus e latino-americanos para conviver com a psicanálise norte-americana e o movimento inverso: apresentar e salientar, aos psicanalistas europeus e latinos, as principais contribuições da psicanálise ameri- cana, especificamente da psicologia do ego, e de suas variações. Esta talvez seja a marca mais distintiva de sua produção científica, incluindo o presente livro: a de avançar ideias, formular conceitos, propor hipóteses, que tendem a integrar, por um lado, contribuições de duas das mais fortes correntes do pensamento psicanalítico atual, como o são a psicologia do ego e a teoria das relações de objeto, e, de outro, não desconhecer e nem descartar aspectos de vários outros enfoques que tensionam, enriquecem e de certa forma conflagram o cenário psicanalítico contemporâneo. Nos vários capítulos deste livro, o leitor poderá apreciar a convivência crítica da psicologia dos impulsos instintivos e do conflito libidinal-agressivo do Freud clássico, com teóricos americanos não menos clássicos como M. Mahler, E. Jacobson ou R. Stoller, lado a lado com autores fundamentais das relações de objeto anglo-saxões, como Fairbairn, M. Klein, H. Resenfeld, W. Bion, D. Meltzer - ou franceses como J. McDougall, J. Chasseguet-Smirgel, B. Grunberger, J. Laplanche, A. Green, entre outros. Tais aportes americanos e europeus integram e são integrados pelas personalíssimas contribuições do próprio Kernberg, que esboça neste livro uma original teoria dos afetos para dar suporte básico aos desenvolvimentos teórico-clínicos, não menos originais, que constituem a essência desta sua mais recente obra, isto é, as conceptualizações que Kernberg faz da função e evolução da excitação sexual, do desejo erótico e do amor sexual maduro, nas suas variantes normais e patológicas. A passagem desses fenómenos sexuais-eróticos do universo intrapsíquico, individual e da primeira interação mãe-bebê para a constituição do casal adulto, bem como a dinâmica da interação dos casais entre si, com outros casais e com o que Kernberg denomina as pressões do convencionalismo dos grandes grupos são outros dos momentos mais instigantes deste texto, que se expõem à reflexão do leitor interessado e que provavelmente farão da leitura do mesmo uma experiência certamente criativa e enriquecedora. Sidnei S. Schestatsky Gramado, novembro de 1994. Agradecimentos oi o Dr. John D. Sutherland, antigo diretor-médico da Clínica Tavistock, em Londres, e por muitos anos o consultor-sênior da Fundação Menninger, quem primeiro dirigiu a minha atenção ao trabalho de Henry Dicks. A aplicação da teoria das relações objetais de Fairbairn ao estudo dos conflitos conjugais, realizada por Dicks, proporcionou-me uma estrutura referencial que se tornou essencial quando comecei a desenredar as complexas interações que os pacientes com organização de personalidade borderline mantinham com seus amantes e parceiros conjugais. O trabalho dos drs. Michel Fain e Denise Braunschweig sobre a dinâmica de grupo, no qual as tensões eróticas são acionadas nos primeiros anos de vida e por toda a idade adulta, iniciou meu contato com as contribuições francesas ao estudo psicanalítico das relações amorosas normais e patológicas. No curso de dois períodos sabáticos em Paris, quando comecei a desenvolver os estudos incluídos neste livro, tive o privilégio de consultar importantes psicanalistas interessados no estudo das relações amorosas normais e patológicas, incluindo os Drs. Didier Anzieu, Denise Braunschweig, Janine Chasseguet-Smirgel, Christian David, Michel Fain, Pierre Fedida, André Green, Bela Grunberger, Joyce McDougall e François Roustang. Os drs. Serge Lebovici e Daniel Widlocher ajudaram muito a esclarecer minhas ideias sobre a teoria do afeto; mais tarde, os drs. Rainer Krause, de Saarbrucken, e Ulrich Moser, de Zurique, auxiliaram a esclarecer ainda mais a patologia da comunicação afetiva nas relações íntimas. Também tive o privilégio de contar, entre meus maiores amigos, com alguns dos mais importantes colaboradores ao estudo psicanalítico das relações amorosas nos Estados Unidos: os drs. Martin Bergman, Ethel Person e Robert Stoller. Ethel Person ajudou- me a reconhecer as importantes contribuições que ela e o Dr. Lionel Ovesey fizeram sobre a identidade de género nuclear e a patologia sexual; Martin ix F x Agradecimentos Bergman auxiliou-me a obter uma perspectiva histórica da natureza das relações amorosas e sua expressão na arte; e Robert Stoller encorajou-me a continuar a análise da íntima relação entre o erotismo e a agressão, da qual ele foi tão brilhantemente o pioneiro. Os drs. Leon Altman, Jacob Arlow, Martha Kirkpatrick e John Munder Ross proporcionaram-me úteis oposições às minhas ideias e o estímulo de suas próprias contribuições nesta área. Como sempre, um grupo de amigos próximos e colegas na comunidade psi-canalítica ajudou-me imensamente com suas reflexões e críticas, mas sempre encorajadoras e estimulantes, ao meu trabalho: os drs. Maria Bergman, Harolc Blum, Arnold Cooper, William Frosch, William Grossman, Donald Kaplan, Paulina Kernberg, Robert Michels, Gilbert Rose, Joseph e Anne-Marie Sandler e Ernst e GertrudeTicho. Também, como sempre, sou profundamente grato à Srta. Louise Traitt e à Srta. Becky Whipple por seu trabalho alegre e paciente nas muitas etapas que conduziram, desde os primeiros rascunhos, à versão final.A firme preocupação da Srta. Whipple com os pequenos detalhes deste original foi essencial à sua produ- ção. A Sra. Rosalind Kennedy, minha assistente-administrativa, continuou a proporcionar o cuidado, organização e coordenação totais do trabalho em meu escritório, o que permitiu a emergência deste rascunho em meio a muitas tarefas e prazcí conflitantes. Este é o terceiro livro que escrevi com a estreita colaboração de minha editora de muitos anos, a Sra. Natalie Altman, e a editora- sênior da Yale University Press, l Sra. Gladys Topkis. Sua revisão competente e sempre encorajadora, habilmente l crítica, foi, mais uma vez, uma experiência esclarecedora. Sou profundamente grato a todos os amigos e colegas que mencionei, e aos meus pacientes e alunos, que me proporcionaram maisinsight em um número relativamente limitado de anos do que eu esperaria adquirir na minha vida inteira, i Eles também me ensinaram a aceitar os limites de meu entendimento desta vasta i e complexa área da experiência humana. Também sou grato aos editores originais pela permissão de reimprimir material nos capítulos abaixo listados. Deve-se enfatizar que este material foi amplamente reformulado e modificado. Capítulo 2: Adaptado de "New Perspectives in Psychoanalytic Affect Theory". Em: Emotion: Theory, Research and Experience, ed. R. Plutchik e H. Kellerman. NOVÍ Iorque: Academic Press, 11-130,1989. Publicado com a permissão da Academicl Press, e de "Sadomasochism, Sexual Excitement and Perversion". Journal o/the| American Psychoanalytic Association. 39:333-362,1991. Publicado com a permissão c Journal ofthe American Psychoanalytic Association. Capítulo 3: Adaptado de "Mature Love: Prerequisites and Characteristics".,| Journal ofthe American Psychoanalytic Association. 22:743-768,1974, e de "Boundaries j Agradecimentos xi and Structure in Love Relations" .Journal ofthe American Psychoanalytic Association. 25: 81-114,1977. Publicado com a permissão dojournal ofthe American Psychoanalytic Association. Capítulo 4: Adaptado de "Sadomasochism, Sexual Excitement and Perversion" .Journal ofthe American Psychoanalytic Association. 39:333-362,1991, e de "Boundaries and Structure in Love Relations". Journal ofthe American Psychoanalytic Association. 25:81- 114,1977. Publicado com a permissão do Journal ofthe American Psychoanalytic Association. Capítulo 5: Adaptado de "Barriers to Falling and Remaining in Love" .Journal ofthe American Psychoanalytic Association. 22:486- 511,1974. Publicado com a permissão do Journal ofthe American Psychoanalytic Association. Capítulo 6: Adaptado de "Agression and Love in the Relationship of the Couple". Journal ofthe American Psychoanalytic Association. 39:4-70,1991. Publicado com a permissão dojournal ofthe American Psychoanalytic Association. Capítulo 7: Adaptado de "The Couple's Constructive and Destructive Superego Functions". Journal ofthe American Psychoanalytic Association. 41:653-677, 1993. Publicado com a permissão dojournal ofthe Psychoanalytic Association. Capítulo 8: Adaptado de "Love in the Analytic Setting". Aceito para publicação. Journal ofthe American Psychoanalytic Association. Publicado com a permissão do Journal ofthe Psychoanalytic Association. Capítulo 11: Adaptado de "TheTemptationsofConventionality".íntemfltional Review of Psychoanalysis. 16: 191-205, 1989. Publicado com a permissão de The International Review of Psychoanalysis e de "The Erotic Element in Mass Psychology and in Art". Bulletin ofthe Menninger Clinic. Vol. 58, Número l, Inverno de 1994. Publicado com a permissão doEulletin ofthe Menninger Clinic. Capítulo 12:" Adolescent Sexuality in the Light of Group Processes." The Psychoanalytic Quarterly. Vol. 49,1:27-47,1980, e de "Love, the Couple and the Group: A PsychoanalyticFrame".Tfe Psychoanalytic Quarterly. Vol. 49,1:78-108, 1980. Publicado com a permissão doPsychoanalytic Quarterly. Prefácio í alguns anos, quando meus escritos sobre pacientes com organização de ersonalidade borderline enfatizavam a importância da agressão em sua sicodinâmica, um colega e bom amigo disse-me, meio brincando: "Por que você não escreve sobre o amor — todo mundo tem a impressão de que você se preocupa apenas com a agressão!" Prometi a ele que faria isso quando as respostas a algumas das intrigantes perguntas nessa área estivessem mais claras para mim. O presente trabalho é o resultado das minhas reflexões sobre aquelas questões, embora eu deva admitir que de modo algum tenha encontrado as respostas a todas as perguntas. Mas acredito que avancei suficientemente em minhas ideias para partilhá-las, e espero que, assim fazendo, contribua para que outros venham a iluminar o que ainda está obscuro. A psicologia e a patologia das relações amorosas começaram a chamar a minha atenção quando percebi que era quase impossível predizer o destino de uma relação amorosa, ou de um casamento, com base na psicopatologia individual do paciente. Às vezes, diferentes tipos e graus de psicopatologia nos parceiros pareciam resultar numa combinação confortável para o casal; outras vezes, estas diferenças tornavam-se a fonte das incompatibilidades. As perguntas "O que mantém os casais juntos? O que destrói seu relacionamento?" me perseguiam, e foram o ímpeto para que eu estudasse a dinâmica presente nos relacionamentos íntimos dos casais. Ao longo dos séculos, o assunto do amor recebeu muita atenção por parte dos poetas e filósofos. Em épocas mais recentes, ele foi estudado por sociólogos e psicólogos. Mas, com raras exceções, encontramos surpreendentemente pouco sobre o amor na literatura psicanalítica. xiii H xiv Prefácio Repetidamente, em minhas tentativas de estudar a natureza do amor, me obrigado a confrontar a relação do erótico com a sexualidade. Descobri que, e contraste com os abundantes estudos sobre a resposta sexual de uma perspectr biológica, muito pouco fora escrito sobre ela como uma experiência subjetiva. LOJ me descobri lidando com fantasias inconscientes e suas raízes na sexualidade: f antil—em resumo, de volta a Freud. Clinicamente, também descobri que era p meio da mútua identificação projetiva que os casais reencenavam "cenários" pá sados (experiências e/ou fantasias inconscientes) em seu relacionamento, e qu« "perseguição" mútua, fantasiada e real (derivada da projeção de aspectos inf ar; do superego), assim como o estabelecimento de um ego ideal conjunto, influe ciavam poderosamente a vida de um casal. Minha base de dados foram pacientes tratados por psicanálise e psicoterap psicanalítica, a avaliação e o tratamento de casais com conflito conjugal, e partic larmente os estudos de seguimento, a longo prazo, de casais através da "janela"; psicanálise e da psicoterapia psicanalítica de pacientes individuais. Logo descobri que era impossível estudar as vicissitudes do amor sem tai bem estudar as vicissitudes da agressão, independentemente de o foco ser o rtí cionamento do casal ou o indivíduo. Os aspectos agressivos do relacionamer, erótico do casal emergiram como uma importante característica de todas as rd coes sexuais íntimas, uma área em que o trabalho pioneiro de Robert Stoller p: porcionou um esclarecimento significativo. Mas achei que os aspectos agressiv da ambivalência universal das relações objetais íntimas eram igualmente impe tantes, assim como os componentes agressivos das pressões do superego, desenc deados na vida íntima de um casal. A teoria psicanalítica das relações objet; facilitou o estudo da dinâmica ligando os conflitos intrapsíquicos e as relacõ interpessoais, as mútuas influências entre o casal e seu grupo social circundar; assim como a interaçãodo amor e da agressão em todos esses campos. Assim, apesar da melhor das intenções, as evidências indiscutíveis me oh garam a focar, nitidamente, também a agressão neste tratado sobre o amor. Ma justamente por isso, o reconhecimento da maneira complexa pela qual o amor e agressão se fundem e interagem na vida do casal também destaca os mecanisrn pelos quais o amor pode integrar e neutralizar a agressão, e, em muitas circunstá cias, triunfar sobre ela. Sumário Apresentação à Edição Brasileira................................................... vii SidneiS. Schestatsky Agradecimentos .............................................................................. ix Prefácio .................................................................................... xiii Capítulo l Determinantes e Constituintes da Experiência Sexual 3 Capítulo 2 Excitação Sexual e Desejo Erótico ......................... 17 Capítulo 3 Do Desejo Erótico ao Amor Sexual Maduro ........... 33 Capítulo 4 Amor Sexual Maduro, Édipo e o Casal .................. 48 Capítulo 5 Experiência Sexual e Psicopatologia ...................... 63 Capítulo 6 Agressão, Amor e o Casal .................................... 79 Capítulo 7 Funções Superegóicas Construtivas e Destrutivas do Casal... 94 Capítulo 8 O Amor no Setting Analítico 109 Capítulo 9 Patologia Masoquista e Relações Amorosas.......................................... 122 Capítulo 10 Narcisismo e Relações Amorosas ......................................................... 137 Capítulo 11 Sexualidade da Latência, Processos de Grupo e Convencionalidade ..................................................................................................... 156 Capítulo 12 Desafio Externo do Casal: Processos Grupais Adolescentes e Adultos .............................................................................................. 171 Referências Bibliográficas .......................................................................................... 185 C a p í t u l o l Determinantes e Constituintes da Experiência Sexual Jue o sexo e o amor estão estreitamente associados é uma afirmação quase ndiscutível. Portanto, não deve causar surpresa que um livro sobre o amor :omece com uma discussão sobre as raízes biológicas e psicológicas da ex-.a sexual, as quais estão intimamente relacionadas. Já que os aspectos biológicos constituem a matriz em que os aspectos psicológicos podem se desenvol- ver, comecemos explorando esses fatores biológicos. As Raízes Biológicas da Experiência e do Comportamento Sexual Ao investigarmos o desenvolvimento das características sexuais humanas, observamos que, conforme avançamos na escala biológica do reino animal (particularmente quando comparamos mamíferos inferiores com os primatas e os seres humanos), as interações psicossociais entre o bebé e seu cuidador desempenham um papel cada vez mais significativo na determinação do comportamento sexual, associadas a uma relativa diminuição no controle por fatores genéticos e hormonais. Minhas principais fontes para o resumo que se segue são o trabalho pioneiro de Money e Ehrhardt (1972), e os subsequentes avanços obtidos, talvez mais bem resumidos por Kolodny e colaboradores (1979), Bancroft (1989) e McConaghy (1993). Nos primeiros estágios de seu desenvolvimento, o embrião mamífero tem o potencial para ser homem ou mulher. Gônadas indiferenciadas se transformam em testículos ou ovários, dependendo do código genético representado pelas diferentes características do padrão cromossômico 46, XY para os homens e XX para as mulheres. Gônadas primitivas no ser humano podem ser detectadas desde aproximadamente a sexta semana de gestação, quando, sob a influência genética, são Q£ 4 Otto F. Kernberg segregados hormônios testiculares nos homens: o hormônio inibidor dos dutos de Muller (MIH), que possui um efeito desfeminizador na estrutura dos genitais internos femininos, e a testosterona, que promove o crescimento dos órgãos masculinos internos e externos, particularmente os dutos bilaterais de Wolff. Se estiver presente um código genético feminino, a diferenciação ovariana começa na décima segunda semana gestacional. A diferenciação sempre ocorre na direção feminina, independentemente da programação genética, a menos que esteja presente um nível adequado de testosterona. Em outras palavras, mesmo que o código genético seja masculino, uma quantidade inadequada de testosterona resultará no desenvolvimento de características sexuais femininas. O princípio da feminização tem prioridade em relação à masculinização. Durante a diferenciação feminina normal, o primitivo sistema de dutos de Muller se transforma em útero, trompas de Falópio e no terço interno da vagina. Nos homens, o sistema de dutos de Muller regride, e o sistema de dutos de Wolff se desenvolve, transformando-se nos vasos deferentes, vesículas seminais e dutos ejaculatórios. Embora os precursores internos dos órgãos sexuais masculinos e femininos estejam ambos presentes para desenvolvimento potencial, os precursores dos genitais externos são de um único tipo, podendo se transformar ou em órgãos sexuais externos masculinos ou em femininos. Sem a presença de níveis adequados de andrógenos (testosterona e di-hidrotestosterona) durante o período crítico de diferenciação, começando na oitava semana gestacional, irão desenvolver-se um clitóris, vulva e vagina. Mas com a presença de níveis adequados de estimulação andrógena, formar-se-á o pênis, incluindo suas glândulas e o saco escrotal, e os testículos irão desenvolver- se como órgãos intra-abdominais, que normalmente migram para sua posição escrotal durante o oitavo ou nono mês de gestação. Sob a influência dos hormônios fetais circulantes, ocorre um desenvolvimento dimórfico de certas áreas do cérebro após a diferenciação dos genitais internos e externos. O cérebro é ambitípico e, nele, o desenvolvimento das características femininas também prevalece, a menos que haja um nível adequado de andrógenos circulantes. As funções hipotalâmicas e pituitárias específicas que serão diferenciadas no sentido do funcionamento cíclico nas mulheres, e não- cíclico nos homens, são determinadas por esta diferenciação. A diferenciação masculino/feminino do cérebro ocorre somente no terceiro trimestre, após ter ocorrido a diferenciação dos órgãos externos, e possivelmente continua seu desenvolvimento durante o primeiro trimestre pós-natal. Nos mamíferos não-primatas, a diferenciação hormonal pré-natal do cérebro predetermina o subsequente comportamento de acasalamento. Nos primatas, entretanto, a comunicação e aprendizagem social inicial são extremamente importantes na determinação do comportamento sexual, de modo que o controle do comportamento concreto de acasalamento é determinado amplamente pelas primeiras interações sociais. As características sexuais secundárias—a distribuição da gordura corporal e pêlos, mudança na voz, desenvolvimento dos seios e um significativo crescimento Psicopatologia das Relações Amorosas 5 dos genitais —, que emergem durante a puberdade, são desencadeadas por fatores do sistema nervoso central e controladas por um significativo aumento de andrógenos e estrógenos circulantes, como o são as funções femininas específicas da menstruação, gestação e lactação. Os desequilíbrios hormonais podem alterar as características sexuais secundárias, provocando, na falta de andrógenos, a ginecomastia nos homens e, no caso de andrógenos excessivos, ohirsutismo, engrossamento da voz e hipertrofia clitoridiana nas mulheres. Mas as influências das alterações dos níveis hormonais no desejo e no comportamento sexual são muito menos claras. Exatamente como o sistema nervoso central afeta o início da puberdade também não está claro ainda; a redução na sensibilidade do hipotálamo ao feedback negativo foi considerada um dos mecanismos envolvidos (Bancroft, 1989). Nos homens, a disponibilidade inadequada de andrógenos circulantes reduz a intensidade do desejo sexual; mas quando os andrógenos circulantes estão em níveis normais, ou acima do normal, o desejo e o comportamento sexual são notavelmente independentes dessas flutuações. A castração pré-puberal nos meninos que não recebem reposição de testosterona leva à apatia sexual. A testosterona exógena durante a adolescência, nos homens com fracasso primário de androgenização, restaura o desejo e o comportamento sexual normal. A resposta à terapia de reposição com testosterona nos anos posteriores, todavia, quando a apatia tornou-se estabelecida, é menos satisfatória: aqui, sequências críticas no tempo parecem desempenhar um papel. Da mesma forma, embora estudos em mulheres indiquem um desejo sexual aumentado imediatamente antes e depois do fluxo menstrual, a dependência do desejo sexual determinada pelas flutuações hormonais é insignificante quando comparada aos estímulos psicossociais. De fato, McConaghy (1993) julga que o desejo sexual feminino é mais influenciado por fatores psicossociais do que o masculino. Nos primatas e em formas inferiores de mamíferos, o interesse sexual, assim como o comportamento sexual, é fortemente controlado pelos hormônios. Nos roedores, o comportamento de acasalamento é determinado apenas pelo estado hormonal, e uma injeção pós-natal inicial de hormônios pode influenciar crucialmente tal comportamento. A castração pós- puberal leva a um decréscimo gradual da ereção e do interesse sexual, um decréscimo que progride por semanas ou anos; a administração de testosterona reverte imediatamente esta indiferença. Injeções de andrógenos em mulheres na pós-menopausa aumentam seu desejo sexual, sem modificar de maneira nenhuma sua orientação sexual. Em resumo, no ser humano os andrógenos parecem influenciar a intensidade do desejo sexual tanto nos homens quanto nas mulheres, mas no contexto de uma clara predominância dos determinantes psicossociais na excitação sexual. Embora nos mamíferos inferiores, como os roedores, o comportamento sexual seja controlado amplamente pelos hormônios, os primatas apresentam certa modificação desse controle pelos estímulos psicossociais. Os macacos Rhesus são estimulados pelo odor de um hormônio vaginal segregado pela fêmea na época da ovulação; as 6 Ofío F. Kernberg macacas Rhesus ficam muito interessadas em acasalar-se na época da ovulação, mas também se interessam em outros momentos; aqui, novamente, os níveis de andrógenos influenciam a intensidade do comportamento sexual apresentado pelas fêmeas. A injeção de testosterona na área pré-ótica dos ratos machos desperta neles um comportamento maternal e de acasalamento, mas sua copulação com as fêmeas persiste. A testosterona parece liberar o comportamento maternal, uma capacidade que o macho contém em seu cérebro e o que fala a favor do controle do sistema nervoso central sobre diversos aspectos do comportamento sexual. Este achado biológico sugere que o potencial para comportamentos sexuais habitualmente característicos de um género, ou característicos de mais de um género, também existem no outro género. A intensidade da excitação sexual, a atenção centrada nos estímulos sexuais, as respostas fisiológicas de excitação sexual caracterizadas pelo fluxo sanguíneo aumentado, tumescência e lubrificação dos órgãos sexuais, estão todas sob influência hormonal. A. Fatores Psicossociais A discussão precedente abrange aquilo que é quase inequivocamente aceito como biológico; passaremos agora a áreas mais controversas, e a áreas ainda longe de ser bem entendidas, em que os determinantes biológicos e psicológicos se sobrepõem ou interagem entre si. Uma dessas áreas centrais é a que envolve a identidade de género nuclear e a identidade de papel de género. No ser humano, a identidade de género nuclear (Stoller, 1975) — isto é, o sentimento do indivíduo de ser ou homem ou mulher—é determinado pelo género atribuído a ele por seus cuidadores durante os primeiros dois a quatro anos de vida, e não por suas características biológicas. Money (1980,1986,1988; Money e Ehrhardt, 1972) e Stoller (1985) ofereceram evidências convincentes a este respeito. Da mesma forma, a identidade de papel de género—isto é, a identificação do indivíduo com certos comportamentos típicos em homens ou em mulheres numa dada sociedade — é também fortemente influenciada por f afores psicossociais. Além disso, a exploração psicanalítica revela que a seleção do objeto sexual — o alvo do desejo sexual—também é fortemente influenciada pelas experiências psicossociais iniciais. No que segue, examino evidências importantes referentes às raízes desses constituintes da experiência sexual humana. Em resumo, elas são: — Identidade de género nuclear: se a pessoa se considera homem ou mu lher. — Identidade de papel de género: as atitudes psicológicas e os comporta mentos interpessoais específicos — padrões gerais de interação social, assim como padrões específicos referentes às interações sexuais — que Psicopatologia das Relações Amorosas 7 são característicos ou dos homens ou das mulheres, e portanto os diferenciam. A seleção de um objeto sexual, quer heterossexual quer homossexual, quer centrada numa ampla variedade de interações sexuais com o objeto sexual, quer restrita a uma determinada parte da anatomia humana, não-humana ou objeto inanimado. A intensidade do desejo sexual, expressada pela dominância de fantasias sexuais, estado de alerta aos estímulos sexuais, desejos de se engajar em comportamentos sexuais e excitação fisiológica dos órgãos genitais. B. Identidade de Género Nuclear Money e Ehrhardt (1972) oferecem evidências de que os pais, em circunstâncias comuns, mesmo que acreditem estar tratando um bebé do sexo masculino ou um bebé do sexo feminino exatamente da mesma maneira, apresentam diferenças determinadas pelo género no seu comportamento em relação ao bebé. Embora existam diferenças homem/mulher baseadas na história hormonal pré-natal, estas diferenças não predeterminam automaticamente a diferenciação pós-natal homem/ mulher: a patologia hormonal f eminizadora nos homens ou a patologia hormonal masculinizante nas mulheres, exceto em condições de um grau extremo de anor- malidade hormonal, podem influenciar mais a identidade de papel de género do que a identidade de género nuclear. Andrógenos em excesso, no período pré-natal da menina, podem ser responsáveis, por exemplo, por molecagens mais características de meninos e maior gasto de energia em recreação e agressão. Uma inadequada estimulação androgênica pré-natal nos meninos pode provocar uma certa passividade e não-agressividade, mas não influencia a identidade de género nuclear. Além disso, as crianças hermafroditas que são criadas sem nenhuma ambiguidade como meninos ou meninas irão desenvolver uma sólida identidade como homens ou mulheres em con- sonância com as práticas de sua educação, independentemente de sua dotação genética, produção hormonal e inclusive—até certo ponto—da aparência externa do seu desenvolvimento genital (Meyer, 1980; Money e Ehrhardt, 1972). Stoller (1975), Person e Ovesey (1983,1984) exploraram o relacionamento entre a patologia inicial na interação entre a criança e os pais e a consolidação daidentidade de género nuclear. O estudo do transexualismo — isto é, o estabelecimento de uma identidade de género nuclear contrária à biológica em indivíduos com um género biológico claramente definido—não mostrou que ele está relacionado a anormalidades genéticas, hormonais ou genitais físicas. Embora a pesquisa sobre sutis variáveis biológicas, particularmente nas transexuais mulheres, levante a possibilidade de algumas influências hormonais, a evidência esmagadora é a favor de uma severa patologia nas primeiras interações psicossociais. Em relação a isso, a investigação psicanalítica com crianças com identidade sexual anormal, assim como a história de transexuais adultos, proporciona informações sobre os padrões significativos primeiramente descritos por Stoller (1975). Estes incluem, para os transexuais homens (homens biológicos que sentem ter uma identidade nuclear de mulher), uma mãe com fortes componentes bissexuais de personalidade, mantendo-se distante de um marido passivo ou não- disponível, e que engolfa seu filho como se este lhe provasse, simbolicamente, a identidade sexual complementar que lhe faltasse. Esta simbiose idílica com a mãe que implicitamente elimina a masculinidade do menino, levando-o, simultaneamente, a uma excessiva identificação com a mãe e à rejeição do papel masculino sentido como inaceitável para a mãe e inadequadamente modelado pelo pai. Nas transexuais mulheres, o comportamento rechaçante da mãe em relação à filhinha e a ausência de um pai disponível impulsionam a menina, que não se sente reforçada enquanto menininha, a tornar-se um homem substituto, para com isto aliviar o sentimento de solidão e depressão da mãe. Este comportamento masculino é encorajado pela mãe, cujo desespero se alivia, e conduz a uma melhor solidariedade familiar. O comportamento inicial dos pais, particularmente o da mãe, que influencia a identidade de género nuclear e o funcionamento sexual em geral não é exclusivo dos seres humanos. O trabalho clássico de Harlow e Harlow (1965) com primatas demonstrou que um apego adequado através de um contato seguro, fisicamente próximo entre o bebé e a mãe, é essencial para o desenvolvimento de uma resposta sexual normal nos macacos adultos: a ausência de uma maternagem normal e, secundariamente, de interação com grupos de iguais em fases desenvolvimentais críticas perturba a capacidade de resposta sexual na idade adulta. Esses macacos permaneceram também desajustados em outras interações sociais. Embora Freud (1905,1933) propusesse umabissexualidade psicológica para ambos os géneros, ele postulou também que a mais primitiva identidade genital, tanto para os meninos quanto para as meninas era masculina. Propôs que as meninas — primeiro fixadas no clitóris como uma fonte de prazer paralela ao pênis do homem—mudavam de sua identidade genital primária (e orientação homossexual implícita) da mãe para o pai, numa orientação edípica positiva, como uma expressão do desapontamento por não ter um pênis, por sua ansiedade de castração e pelo desejo simbólico de repor o pênis através de um filho do pai. Stoller (1975, 1985), entretanto, sugeriu que, dado o intenso apego e relacionamento simbiótico com a mãe, a identificação primitiva tanto dos bebés do sexo masculino quanto do feminino seria feminina, com uma mudança gradual (como parte da separação-individuação) no bebé do sexo masculino, de uma identidade feminina para uma identidade masculina. Mas Person e Ovesey (1983,1984), com base em estudos de pacientes com orientação homossexual, travestismo e transexualismo, postularam uma identidade de género original que é tanto masculina ou feminina desde o princípio. Acredito que essa opinião concorda com os estudos da identidade de género nuclear nos hermafroditas, realizados por Mayer (1988), Money e Ehrhardt (1972), Psicopatologia das Relações Amorosas 9 assim como com as observações das interações entre as mães e os bebés de ambos os sexos desde o início da vida, e com as observações psicanalíticas de crianças normaise de crianças com transtornos sexuais, particularmente quando esses estudos psicanalíticos levam em consideração as orientações sexuais conscientes e inconscientes dos pais (Galenson, 1980; Stoller, 1985). Braunschweig e Fain (1971,1975), em concordância com a hipótese de Freud de uma bissexualidade original em ambos os géneros, argumentam persuasivamente em favor de uma bissexualidade psicológica derivada da identificação inconsciente do bebé com ambos os pais, uma identificação bissexual inconsciente que é controlada pela natureza da interação mãe/bebé, dentro da qual a identidade de género nuclear é estabelecida. Money e Ehrhardt (1972) afirmam que não importa "se o pai faz o jantar e a mãe dirige o trator", isto é, os papéis de género socialmente definidos que são executados pelos pais são irrelevantes, na medida em que sua identidade de género como homem ou mulher esteja solidamente diferenciada. A atribuição e a adoção de uma identidade de género nuclear determina, na prática, o reforço de papéis de género que são socialmente considerados masculinos ou femininos. Na medida em que haja uma identificação inconsciente com ambos os pais, portanto uma bissexualidade inconsciente, o que é um achado universal na investigação psicanalítica, isto também implica na identificação inconsciente com papéis socialmente atribuídos a um ou outro género, fazendo com que existam fortes tendências para a ocorrência de atitudes e padrões de comportamento bissexuais, assim como para que uma orientação bissexual seja um potencial humano universal. Provavelmente a forte ênfase social e cultural na identidade de género nuclear ("Você deve ser ou um garotinho ou uma garotinha") é reforçada ou codeterminada pela necessidade intrapsíquica de integrar e consolidar uma identidade pessoal em geral, de modo que a identidade de género nuclear cimenta a formação da identidade básica do ego; nuclear; Lichtenstein (1961) sugeriu há muitos anos que a identidade sexual pode constituir a base da identidade do ego. Clinicamente, nós descobrimos que uma falta de integração da identidade (a síndrome de difusão de identidade) coexiste regularmente com problemas de identidade de género e, conforme Ovesey e Person (1973, 1976) enfatizaram, os transexuais normalmente também apresentam severas distorções em outras áreas da sua identidade. C. Identidade de Papel de Género Em seu clássico estudo das diferenças de género, Maccoby e Jacklin (1974) concluíram, com base no exame de uma enorme quantidade de dados, que existiam crenças totalmente infundadas sobre essas diferenças de género; outras crenças acabaram bastante estabelecidas, e outras ainda se encontravam abertas a questionamentos ou eram ambíguas. Crenças infundadas sobre diferenças de gê- 10 Otto F. Kernberg nero incluem a suposição de que as meninas são mais "sociais" do que os meninos, mais "sugestionáveis", têm menor auto-estima, carecem de motivação para maiores realizações, são melhores em aprendizagem mecânica e tarefas repetitivas simples, ao passo que os meninos são melhores em tarefas que requerem um processamento cognitivo mais elevado e a inibição de respostas anteriormente aprendidas; que os meninos são mais "analíticos", que as meninas são mais afeta-das pela hereditariedade, os meninos pelo ambiente, que elas são "auditivas" e eles, "visuais". Por outro lado, diferenças de género que estão bem estabelecidas incluem o seguinte: que as meninas possuem uma capacidade verbal maior do que a dos meninos, que eles as superam em capacidade visual-espacial e em capacidade matemática, e que os homens são maisagressivos. Permanecem em aberto as questões referentes a diferenças em sensibilidade tátil, medo, timidez e ansiedade; nível de atividade, competitividade, dominância, obediência, disponibilidade, e capacidades em relação a comportamento "maternal". Quais das diferenças psicológicas são geneticamente determinadas, quais são socialmente determinadas por agentes socializadores e quais espontaneamente aprendidas através da imitação? Maccoby e Jacklin argumentam, e há muitas evidências para apoiá-los, que os fatores biológicos estão claramente implicados nas diferenças de género referentes à agressão e capacidade visualespacial. Existem evidências de maior agressividade masculina tanto nos seres humanos quanto nos primatas subumanos; isso parece ser universal em todas as culturas, e as evidências sugerem que os níveis de agressão são responsivos aos hormônios sexuais. É provável que a predisposição masculina para a agressão se estenda a outros comportamentos, tais como dominância, competitividade e nível de atividade, mas as evidências não são decisivas. Maccoby e Jacklin também concluem que uma característica geneticamente controlada pode assumir a forma de uma maior predisposição para apresentar um determinado tipo de comportamento. Isto inclui comportamentos aprendidos, embora não se limite apenas a eles. Friedman e Downey (1993) revisaram as evidências sobre a influência da patologia hormonal pré-natal virilizadora nas meninas, em relação ao comportamento sexual pós-natal. Examinaram os achados de um estudo sobre meninas com hiperplasia congénita da suprarenal, e sobre meninas cujas mães ingeriram, durante a gravidez, drogas com atividade de esteróides sexuais. Essas crianças foram criadas como meninas, mas, embora sua identidade de género nuclear fosse feminina, a pergunta era até que ponto a dominância dos hormônios masculinos pré-natais influenciaria esta identidade de género e a identidade de papel de género durante a infância e adolescência. Embora tenha sido encontrada uma modesta associação de andrógenos pré-natais excessivos e uma maior prevalência de homossexualidade, mais significativo foi o achado de que, independentemente das circunstâncias de educação, as meninas com hiperplasia congénita da supra-renal apresentavam um comportamento mais "moleque", interessavam-se menos por brincar combonecas ebebês e Psicopatologia das Relações Amorosas 11 por adornos, e tendiam a preferir brinquedos como carrinhos e armas, mais do que os sujeitos- controle. Elas tinham uma maior preferência por meninos como companheiros de brincadeiras, e apresentavam maior gasto de energia e mais atividade violenta nas brincadeiras. Os achados sugerem que o comportamento de papel de género na infância é influenciado por f atores hormonais pré-natais. Friedman (comunicação pessoal) concorda com Maccoby e Jacklin (1974) que a vasta maioria dos traços que diferenciam os meninos das meninas são, muito provavelmente, determinados pela cultura. Richard Green (1976) estudou a criação de meninos efeminados: descobriu que os fatores dominantes que codeterminavam o desenvolvimento de comportamentos efeminados eram a indiferença dos pais em relação ao comportamento feminino do filho ou o encorajamento desse comportamento; também ocorria das crianças serem vestidas de mulher pela mãe ou por uma mulher funcionando como tal, superproteção materna, ausência ou rejeição do pai, a beleza física da criança ou a ausência de companheiros de brincadeiras do sexo masculino. O aspecto comum crucial parecia ser a incapacidade dos pais ou do ambiente de desencorajar o comportamento feminino da criança. Os resultados para esses meninos efeminados, no seguimento, foi uma alta porcentagem de bissexualidade e homossexualidade, atingindo 75% no seguimento de 2/3 da amostra original (Green, 1987). Comportamentos característicos do outro género — moleque nas meninas, efeminado nos meninos — estão frequente, mas não necessariamente, vinculados a uma escolha de objeto homossexual. De fato, poderíamos considerar a identidade de papel de género relacionada tão estreitamente à identidade de género nuclear quanto à escolha de objeto: uma orientação sexual dirigida para o próprio género da pessoa pode influenciar a adoção de papéis socialmente identificados com o outro género. E, ao contrário, uma aculturação predominantemente em direção a papéis de género que coincidem com os do outro género poderia predispor à ho- mossexualidade. O que nos leva ao próximo elemento constituinte, ou seja, à escolha de objeto. D. A Escolha do Objeto Dominante Money (1980) e Perper (1985) empregaram o termo modelos organizadores do comportamento humano ao referir-se ao objeto da excitação sexual do indivíduo. Perper acredita que esses modelos não estão codificados, mas derivam-se de processos desenvolvimentais, incluindo a regulação genética do desenvolvimento neural e a posterior construção neurofisiológica da imagem do outro desejado. Money chama demapas do amor o desenvolvimento dos objetos sexuais que seleci-onamos; ele os vê como derivados dos esquemas implantados no cérebro e complementados pelo input ambiental antes dos 8 anos de idade. Não podemos deixar de notar que a linguagem desses distinguidos pesquisadores do primitivo desenvolvimento sexual humano permanece num nível muito geral quando estão 12 Otto F. Kernberg discutindo a natureza da escolha do objeto sexual. Um achado impressivo de qualquer revisão da literatura é que, em contraste com a extensiva pesquisa sobre a identidade de papel de género e a identidade de género nuclear, muito pouca pesquisa, se é que alguma, foi feita sobre as experiências sexuais das crianças. Por trás dessa carência na pesquisa atual e em conhecimentos bem documentados está, eu acredito, a persistência do tabu contra o reconhecimento da existência da sexualidade infantil que Freud tão ousadamente desafiou. Esse tabu está vinculado às proibições ao comportamento sexual infantil em nossa cultura. A antropologia cultural (Endleman, 1989) oferece evidências de que, quando essas proibições culturais não estão presentes, as crianças espontaneamente se engajam em variados comportamentos sexuais. Galenson e Roiphe (1974), observando crianças num contexto naturalista de um berçário, descobriu que os meninos começam a brincar com seus genitais por volta do sexto ou sétimo mês, as meninas no décimo ou décimo primeiro mês e que a masturbação está estabelecida por volta dos 15 ou 16 meses, para ambos os géneros. As crianças da classe trabalhadora apresentam uma probabilidade duas vezes maior de se masturbar do que as de classe média, sugerindo que a estrutura de classe e a cultura influenciam o comportamento sexual. Fisher (1989) relatou como a capacidade das crianças de pensar logicamente sobre seus genitais está dramaticamente atrasada comparada com o nível geral de sua lógica, como as meninas tendem a ignorar seu clitóris e mistificar a natureza da vagina, e como os pais inconscientemente repetem com seus filhos suas próprias experiências de supressão sexual na infância. Também há evidências de apreciável ignorância em relação a questões sexuais durante toda a adolescência. Money e Ehrhardt (1972) e Bancroft (1989) referem que há um medo universal de investigar a sexualidade infantil. No entanto, com a atual e crescente preocupação pública com o abuso sexual das crianças, Bancroft sugere (página 152) que seja concebível "que a necessidade de um melhor entendimento da sexualidade infantil venha a ser mais amplamente reconhecida, e que as pesquisas neste aspecto da infância possam tornar-se mais fáceis de executar no futuro". Mesmo a psicanálise, até recentemente, não havia ainda descartado oconceito dos "anos de latência" como uma fase durante a qual haveria muito pouco interesse e atividade sexual. Há atualmente uma consciência crescente entre os analistas infantis de que os assim chamados anos de latência não sejam tão caracterizados por uma redução do interesse ou atividade sexual, mas sim por um maior controle e supressão internalizados do comportamento sexual (Paulina Kernberg, comunicação pesso-ai). As evidências, parece-me, apontam esmagadoramente para os fatores psicológicos, ou melhor, psicossociais, como determinantes na constituição da identidade de género nuclear, para as influências psicossociais como tendo um papel significativo, se não exclusivo, na identidade de papel de género, embora sejam menos claras as evidências de que tais fatores influenciem decisivamente a escolha do Psicopatologia das Relações Amorosas 13 objeto sexual. A vida sexual dos primatas nos fala da importância da aprendizagem inicial, do conta to mãe-bebê, e das relações com os iguais no desenvolvimento do comportamento sexual e do papel relativo decrescente dos hormônios na determinação da escolha do objeto sexual, em comparação com os mamíferos não-primatas. No bebé humano, como vimos, estes processos evoluem ainda mais. Meyer (1980) sugeriu que, assim como o bebé e a criança pequena se identificam inconscientemente com o genitor do mesmo género ao estabelecer as identidades de género nuclear e de papel de género, ele ou ela também se identificam com o interesse sexual deste genitor pelo outro. Money e Ehrhardt (1972) também enfatizam que as regras do comportamento masculino/feminino são aprendidas, e enfatizam a identificação da criança com aspectos recíprocos e complementares do relacionamento dos homens e mulheres. A notável evidência clínica do mútuo comportamento sedutor entre a criança e os seus pais é frequentemente ignorada nos estudos académicos da identidade de género e do papel de género, talvez em virtude do persistente tabu cultural contra a sexualidade infantil. Duas contribuições específicas das observações e teoria psicanalítica são relevantes nessas questões. A primeira é uma teoria psicanalítica das relações objetais que permite a incorporação dos processos de identificação e da complementaridade dos papéis em um modelo único de desenvolvimento. Á segunda, a teoria de Freud do complexo de Édipo, discuto posteriormente em outro contexto. Aqui me refiro a trabalhos anteriores, em que propus que a formação da identidade origina- se do primitivo relacionamento entre o bebé e a mãe, particularmente quando as experiências do bebé envolvem intenso afeto, quer prazeroso, quer doloroso. Os traços de memória que se estabelecem sob essas condições afetivas deixam o esquema nuclear da representação doselfdo bebé interagindo com a representação de objeto da mãe, sob o impacto ou de um afeto prazeroso ou de um afeto desagradável. Em consequência, formam-se duas séries paralelas, e originalmente separadas, de representações doselfe do objeto e suas correspondentes disposições afetivas positiva e negativa. Essas representações, respectivamente "totalmente boas" e "totalmente más" do se//e do objeto, finalmente se integram em numa representação do self to tal e em uma representação total de outras pessoas significativas, um processo que constitui a integração normal da identidade. Em escritos anteriores (Kernberg, 1976,1980,1992) também enfatizei minha convicção de que a identidade é constituída por identificações feitas a partir da relação com um objeto, e não com o próprio objeto. Esta suposição implica uma identificação com o self e o outro interagindo entre si, e uma internalização dos papéis recíprocos dessa interação. O estabelecimento da identidade de género nuclear — isto é, de um conceito integrado de self que define a identificação da pessoa com um género ou outro—não pode ser visto separado do estabelecimento de um conceito integrado e correspondente de um outro que inclua um relacionamento com este outro como objeto sexual desejado. Este vínculo entre identidade de género nuclear e a escolha do objeto sexualmente desejado explica, ao mesmo tempo, a intrínseca 14 Otto F. Kernberg bissexualidade do desenvolvimento humano: nós nos identificamos tanto com o nosso próprio self quanto com nosso objeto de desejo. Na medida em que a criança do sexo masculino, por exemplo, experiência a si mesma como um filho homem amado por sua mãe, ela se identifica com o papel de filho homem ao mesmo tempo que com o papel de mãe mulher, e adquire a capacidade, em relacionamentos posteriores, de atualizar sua representação dosei/ enquanto projeta a representação da mãe em outra mulher, ou de representar — em certas circunstâncias — o papel da mãe, enquanto projeta sua representação do self em outro homem. A dominância da representação do self como filho homem, como uma parte da identidade do ego, assegurará a dominância de uma orientação heterossexual (incluindo a busca inconsciente da mãe em todas as outras mulheres). A dominância da identificação com a representação da mãe pode determinar um tipo de homossexualidade nos homens (Freud, 1914). Na garotinha, na medida ení que seu primeiro relacionamento com a mãe cimenta sua identidade de género nuclear, ao identificar-se tanto com seu próprio papel quanto com o papel da mãe na sua interação, seu desejo posterior de substituir o pai como objeto amoroso da mãe, assim como sua escolha positiva do pai na relação edípica, consolidam sua identificação inconsciente também com o pai. Ela portanto também estabelece uma identificação bissexual inconsciente. A identificação com um relacionamento, e não com uma pessoa, e a construção de predisposições recíprocos de ambos os papéis na mente inconsciente, sugerem que a bissexualidade é psicologicamente determinada, e expressa na capacidade de se adquirir, ao mesmo tempo, tanto uma identidade de género nuclear quanto um interesse sexual pela pessoa do mesmo ou do outro género. Isto também facilita a integração dos papéis de género do outro género com o nosso próprio, e a identificação com papéis de género socialmente transmitidos, correspondentes ao nosso próprio género e ao outro. Esta visão do início da sexualidade sugere que o conceito de Freud (1933) de uma bissexualidade original estava correto, assim como seu questionamento do aparente vínculo entre a sexualidade e as diferenças estruturais biológicas dos géneros conhecidas em sua época. Em outras palavras, nós ainda não temos provas de que haja uma conexão direta entre a predisposição anatómica dimórfica para a bissexualidade e a bissexualidade psíquica derivada das primitivas experiências da criança. E. Intensidade do Desejo Sexual Como vimos, os mecanismos biológicos do interesse sexual, excitação sexual e intercurso sexual, incluindo o orgasmo, são relativamente bem conhecidos. É o estímulo que evoca a resposta sexual, embora a qualidade subjetiva assumida pela excitação ainda seja uma questão em aberto. Igualmente, nós ainda carecemos de Psicopatologia das Relações Amorosas 15 um consenso em relação a como medir os fatores quantitativos da intensidade da excitação. Um outro problema é o estudo comparativo da excitação masculina e feminina; novamente, embora seus concomitantes fisiológicos sejam bem conhecidos, suas semelhanças e diferenças psicológicas permanecem controvertidas. Resumindo o que examinei anteriormente, um nível adequado de andrógenos circulantes parece ser pré-requisito para a capacidade humana de resposta sexual, influenciando o desejo sexual tanto nos homens quanto nas mulheres; mas em níveis hormonais normal eacima do normal, o desejo e o comportamento sexuais são notavelmente independentes destas flutuações hormonais. Nos seres humanos, o fator dominante que determina a intensidade do desejo sexual é cognitivo — a consciência do interesse sexual refletido em fantasias sexuais, lembranças e a atenção aos estímulos sexuais. Mas experiência não é puramente "cognitiva", pois ela contém também um forte elemento afetivo. De fato, a experiência sexual é acima de tudo uma experiência afetivo-cognitiva. Fisiologicamente, a memória afetiva está relacionada ao sistema límbico, que é o substrato neural da sexualidade, assim como de outras funções apetitivas (Maclean, 1976). Estudos de animais demostraram que áreas límbicas selecionadas determinam a ereção e a ejaculação, e a existência tanto de mecanismos de excitação como de inibição que afetam a resposta periférica da ereção. Comportamentos de cópula em macacos Rhesus do sexo masculino foram induzidos por estimulação elétrica do hipotálamo lateral e do núcleo dorsomedial do hipotálamo, levando a sequências de coito e ejaculação enquanto os macacos tinham liberdade para movimentar-se. De acordo com Bancroft (1989), a excitação sexual humana é uma resposta global que inclui fantasias, memórias e desejos sexuais específicos, assim como uma maior percepção e busca de estímulos externos ref orçadores, que são relativamente específicos da orientação sexual do indivíduo. A excitação sexual, de acordo com Bancroft, inclui o sistema límbico sob a influência desse estado cognitivo-afetivo, que estimula o centro medular e os centros de controle neural periférico, que determinam a tumescência, lubrificação e sensibilidade local aumentada dos órgãos genitais, proporcionando umfeedback central da percepção dessa ativação genital. O que, por minha parte, sugiro é que a excitação sexual é também um afeto específico, que preenche todas as características de outras estruturas afetivas, e que constitui o "bloco construtor" central do impulso sexual ou libidinal, como um sistema motivacional global. A terminologia nesta área talvez precise de um certo esclarecimento. Biologi-camente, a resposta sexual pode ser dividida em interesse sexual, excitação sexual e orgasmo. Entretanto, já que o interesse sexual pode ocorrer sem a ativação das respostas genitais específicas, e são possíveis estas respostas genitais com um limitado ou mínimo interesse sexual, parece preferível empregar o termointeresse sexual para nos referirmos a uma percepção ampla do estímulo sexual, pelo pensar a respeito, estar interessado e responder a ele.Excitaçãogenital refere-se ao desenvol- 16 Otto F. Kernberg vimento de uma resposta genital plena: a tumescência vascular conduzindo à ere-ção no homem e aos correspondentes processos eréteis e lubrificação vaginal na mulher, com turgescência secundária dos seios e ereção dos mamilos. Excitação sexual parece um termo apropriado para a resposta total, incluindo os aspectos cognitivos específicos e a experiência subjetiva de interesse sexual, excitação genital, orgasmo e os correspondentes aspectos neurovegetativos e de expressões faciais (parte do que Freud chamou de processo de descarga) desse afeto. Considero a excitação sexual, por sua vez, como sendo o afeto básico de um fenómeno psicológico mais complexo, a saber, o desejo erótico, em que a excitação sexual está vinculada a um relacionamento emocional com um objeto específico. Examinemos entre a natureza da excitação sexual e sua elaboração até o desejo erótico. C a p í t u l o 2 Excitação Sexual e Desejo Erótico i afetos são, em termos filogenéticos, relativamente recentes, característi-os dos mamíferos, com a função biológica básica de comunicação entre o »ebê e quem o cuida, além da comunicação geral entre indivíduos, a serviço dos instintos básicos (Krause, 1990). Se alimentar-se, lutar ou fugir e acasalar-se são organizações instintivas básicas, os correspondentes estados afetivos podem ser considerados como componentes seus, que adquirem papéis hierarquicamente superiores conforme ascendemos na escada evolutiva, particularmente nos primatas, e, é claro, nos seres humanos. A excitação sexual ocupa um lugar muito especial entre os afetos. Parece óbvio que ela tem raízes em funções biológicas e em estruturas que servem ao instinto básico da reprodução no reino animal e que ela ocupa, igualmente, uma posição central na experiência psicológica humana. Mas a excitação sexual não se desenvolve tão cedo e não é tão uniforme em suas manifestações quanto os afetos primitivos como a raiva, alegria, tristeza, surpresa ou nojo. Em seus constituintes cognitivos e subjetivos, ela se assemelha aos afetos mais complexos como orgulho, vergonha, culpa ou desprezo. A psicanálise, assim como a observação de bebés psicanaliticamente inspirada, nos forneceu abundante evidência de que a excitação sexual se origina no contexto das experiências prazerosas dos primeiros relacionamentos intrafamiliares, especialmente os do bebê-cuidadores, culminando na centralidade madura das sensações genitais da puberdade e adolescência. A difusa sensibilidade da pele envolvida no comportamento de apego inicial, as qualidades sexualmente excitan- 17 Q 18 Otto F. Kernberg tes daquilo que Freud descreveu como as zonas erotogênicas, osimprints* cognitivos e os desenvolvimentos da fantasia inconsciente vinculados a uma ativação afetiva prazerosa desde quando bebé, e daí em diante culminam na experiência cognitivo-afetiva específica de excitação sexual. O foco específico, consciente e inconsciente, da escolha de objeto sexual do indivíduo transforma a excitação sexual no desejo erótico. O desejo erótico inclui um desejo de relacionamento sexual com um determinado objeto. A excitação sexual, entretanto, não deixa de ter objeto. Como acontece com outros afetos, ela existe em relação a um objeto, mas aqui o objeto é um "objeto parcial" primitivo, inconscientemente refletindo as experiências fusionais da simbiose e os desejos de fusão da fase mais primitiva da separação- individuação. Em suas origens, no primeiro e segundo anos de vida, a excitação sexual é difusa e vinculada à estimulação das zonas erógenas. Em contraste, o afeto do desejo erótico é mais elaborado, e a natureza específica da relação de objeto é cognitivamente mais diferenciada. O desejo erótico é caracterizado pela excitação sexual vinculada ao objeto edípico; o desejo é de uma fusão simbiótica com o objeto edípico no contexto da fusão sexual. Em circunstâncias normais, a excitação sexual no indivíduo maduro é ativada no contexto do desejo erótico, de modo que a distinção feita por mim entre estes dois afetos pode parecer forçada ou artificial. Mas em circunstâncias patológicas, tais como em patologias narcísicas graves, o desmantelamento do mundo interno das relações objetais pode levar à incapacidade de desejo erótico, com uma excitação sexual que se expressa como manifestação aleatória, difusa, não- seletiva e perpetuamente insatisfeita, ou, inclusive, com a ausência da capacidade de experienciar qualquer excitação sexual que seja. O amor sexual maduro, conforme discutiremos nos capítulos seguintes, expande o desejo erótico para um relacionamento com uma pessoa específica, em que a ativação de relacionamentos inconscientes do passado e as expectativas conscientes de uma vida futura como casal se combinam com a ativação de um ideal do ego conjunto. O amor sexual maduro implica num comprometimentona esfera dos' sistemas sexual, emocional e de valores. As definições propostas imediatamente levantam certas perguntas: se a excitação sexual e o desejo erótico se desenvolvem no contexto do relacionamento primitivo entre o bebé e o seu cuidador e da situação edípica em desenvolvimento, eles são secundários ao desenvolvimento dessas relações objetais? As disposições biológicas são "recrutadas", por assim dizer, a serviço do mundo em desenvolvimento das relações objetais internalizadas e reais? Ou é a gradual maturação do aparelho biológico que permite o desenvolvimento da excitação sexual, quem irá organizar as relações objetais primitivas e mais maduras. Aqui, entramos no território controverso da teoria psicanalítica que se refere aos relacionamentos entre * Respostas comportamentais adquiridas cedo na vida, não reversíveis, e normalmente liberadas por certos estímulos ou situações desencadeadoras. (N. do T.) Psicopatologia das Relações Amorosas 19 instintos biológicos, impulsos psicológicos e relações objetais internalizadas. Será necessário explorar essas questões antes de retornarmos às estruturas cognitivas particulares envolvidas no desejo erótico — as primitivas estruturas de fantasia que transformam a excitação sexual no desejo erótico. Instintos, Impulsos, Afetos e Relações Objetais Conforme Holder (1970) salientou, Freud diferenciou claramente os impulsos dos instintos. Ele via os impulsos como motivadores psicológicos do comportamento humano, constantes em vez de intermitentes. Por outro lado, concebia os instintos como biológicos, herdados e intermitentes, no sentido de terem de ser ativados por fatores fisiológicos e/ou ambientais. A libido é um impulso, a fome é um instinto. Laplanche e Pontalis (1973) enfatizam adequadamente como Freud sempre se referiu aos instintos como padrões de comportamento intermitentes, herdados, que variam um pouco de um membro da espécie para outro. É impressionante ver quão estreitamente o conceito de instinto de Freud se assemelha à moderna teoria do instinto na biologia, conforme representada, por exemplo, por Lorenz (1963), Tinbergen (1951) e Wilson (1975). Esses investigadores consideram os instintos como organizações hierárquicas de padrões perceptivos, comportamentais e comunicativos biologicamente determinados, liberados por fatores ambientais que ativam mecanismos inatos. Este sistema biológico-ambiental é considerado epigenético. Conforme Lorenz e Tinbergen ilustraram em sua pesquisa com animais, a organização do vínculo maturacional e desenvolvimental de padrões de comportamento inatos distintos, em um determinado indivíduo, é muito determinada pela natureza da estimulação ambiental. Os instintos, nesta visão, são sistemas biológicos motivadores hierarquicamente organizados. Normalmente classificados na linha dos comportamentos alimentares, de luta ou fuga, ou de acasalar-se (e talvez ao longo de outras dimensões parecidas), eles representam a integração entre as disposições inatas e os processos de aprendizagem determinados pelo ambiente. Embora Freud reconhecesse as fontes biológicas básicas dos impulsos, repetidamente enfatizou a falta de informações disponíveis referentes aos processos que transformariam essas predisposições biológicas em motivação psíquica. Seu conceito de libido ou de impulso sexual era o de uma organização hierarquicamente pré-ordenada a integrava impulsos sexuais "parciais" desenvolvimentalmente mais primitivos. A teoria dual dos impulsos, da sexualidade e agressão (1920) representa sua concepção final dos impulsos como a fonte fundamental do conflito psíquico inconsciente e da formação das estruturas psíquicas. Freud descreveu as fontes biológicas dos impulsos sexuais de acordo com a excitabilidade das zonas erotogênicas, mas não descreveu as fontes biológicas tão concretas assim para a agressão. Em contraste com as fontes fixas da libido, caracterizou os objetivos e 20 Otto F. Kernberg objetos tanto dos impulsos sexuais quanto dos agressivos como mutáveis durante todo o desenvolvimento psíquico: a continuidade desenvolvimental das motivações sexuais e agressivas poderia assim ser reconhecida numa ampla variedade de desenvolvimentos psíquicos complexos. Freud propôs (1915a,b) que os impulsos se manifestavam por meio de representações psíquicas, ou ideias — que configurariam a expressão cognitiva do impulso — e de um afeto. Quanto aos afetos, Freud modificou sua definição deles pelo menos duas vezes (Rapaport, 1953). Originalmente (1894) considerou os afetos como equivalentes aos impulsos; mais tarde (1915a,b), concebeu-os como produtos da descarga dos impulsos (particularmente seus aspectos prazerosos ou dolorosos, psicomotores e neurovegetativos).Estes processos de descarga podem atingir a consciência, mas não sofrem repressão; somente a representação mental do impulso é reprimida, juntamente com a memória ou com a disposição para a ativação do afeto correspondente. Finalmente (1926), Freud descreveu os afetos como disposições inatas do ego (no que se refere a seus limiares de ativação e canais de expressão e enfatizou suas funções sinalizadoras. Se os afetos e as emoções (isto é, afetos cognitivamente elaborados) são estruturas complexas, incluindo experiências subjetivas de dor ou prazer associadas com ingredientes cognitivos e expressivo-comunicativos específicos e padrões de descarga neurovegetativa, e se eles estão presentes — como os pesquisadores de bebés descobriram (Emde, 1987; Emde e colaboradores, 1978; Izard, 1978; Stern, 1985) — desde as primeiras semanas e meses de vida, serão então os afetos as principais forças motivacionais do desenvolvimento psíquico? Se eles incluem tanto componentes cognitivos quanto afetivos, o que resta no conceito mais amplo de impulso que não está contido no conceito de afeto? Freud concluiu que os impulsos estão presentes desde o nascimento, mas também concluiu que eles amadurecem e se desenvolvem. Poderíamos argumentar que a maturação e o desenvolvimento dos afetos são expressões dos impulsos subjacentes, mas se todas as funções e manifestações dos impulsos podem ser incluídas nas funções e manifestações dos afetos em desenvolvimento, seria difícil sustentar um conceito de impulsos independentes subjacentes à organização dos afetos. De fato, a transformação dos afetos por todo o desenvolvimento, sua integração com relações objetais internalizadas, sua total e progressiva dicotomia em afetos prazerosos, constituindo a série libidinal, e dolorosos, constituindo a série agressiva, tudo aponta para a riqueza e complexi- dade de seus elementos cognitivos e afetivos. Vejo, portanto, os afetos como estruturas instintivas (Kernberg, 1992), de natureza psicofisiológica biologicamente dadas, desenvolvimentalmente ativadas e incluindo componentes psíquicos. Acredito que é este aspecto psíquico que se organiza para constituir os impulsos agressivos e libidinais descritos por Freud. Os impulsos sexuais parciais, em minha opinião, são integrações mais limitadas, restritas, de estados afetivos correspondentes, ao passo que a libido como um impulso é o resultado da integração hierarquicamente supra-ordenadora desses estados afetivos—isto é, a integração de todos os estados afetivos eroticamente centrados. Psicopatologia das Relações Amorosas 21 Consequentemente, em contraste com a visão psicanalítica ainda bastante prevalente dos afetos simplesmente como produtos de descarga, eu os considero como sendo as estruturas — ponte entre os instintos biológicos e os impulsos psíquicos. Acredito também que o desenvolvimento afetivo está baseado em relações objetais afetivamente investidas, que constituem uma memória afetiva. Emde, Izard e Stern apontam para a função central das relações objetais naativação dos afetos. Esta associação apoia minha proposição de que os estados afetivos mais iniciais, fixados na memória, incluem essas relações de objeto. Penso que a ativação de diferentes estados afetivos em direção ao mesmo objeto ocorre sob a influência de uma variedade de tarefas desenvolvimentais e padrões de comportamento instintivo biologicamente ativados. A resultante variedade de estados afetivos dirigidos ao mesmo objeto pode proporcionar uma explicação económica de como os afetos são ligados e transformados em séries motivacionais supra- ordenadoras que se tornou mais tarde o impulso sexual ou agressivo. Por exemplo, as estimulações orais prazerosas durante a amamentação e as estimulações anais prazerosas durante o treinamento esfincteriano, podem resultar numa condensação de interações prazerosas do bebé com a mãe, que ligams esses desenvolvimentos oral e anal. E a reação raivosa às frustrações durante o período oral e as lutas de poder características doperíodo anal podem ligar estados afetivos agressivos consoantes, resultando assim no impulso agressivo. Além disso, o intenso investimento afetivo positivo do bebé na mãe durante o estágio de prática da fase de separação-individuação (Mahler e colaboradores, 1975) pode ligar-se com um anseio investido sexualmente em relação a ela, derivado da ativação das sensações genitais no estágio edípico do desenvolvimento. Mas se consideramos os afetos como os principais "blocos construtores" psicobiológicos dos impulsos, e como os primeiros sistemas motivacionais, ainda teremos de explicar como eles se organizam em sistemas hierarquicamente supra- ordenádores. Por que não dizer que os principais afetos em si mesmos é que são os sistemas motivacionais fundamentais? Uma vez que acredito que os afetos sofrem uma multiplicidade de transformações e combinações secundárias durante o desenvolvimento, uma teoria da motivação baseada apenas nos afetos e não nos dois impulsos básicos seria muito complicada e clinicamente insatisfatória. Também acredito que a integração inconsciente das experiências mais primitivas, afetivamente determinadas, requer a assunção de uma organização motivacional de nível mais elevado do que a representada pelos estados afetivos per se. Precisamos supor um sistema motivacional que faça justiça à complexa integração de todos os desenvolvimentos afetivos em relação aos objetos parentais. Da mesma forma, um esforço para substituir tanto a teoria do impulso quanto a do afetopor uma teoria do apego ou das relações objetais, que rejeita o conceito de impulso, conduz à redução da complexidade da vida intrapsíquica, enfatizando somente os elementos positivos ou libidinais do apego e negligenciando a organização inconsciente da agressão. Embora em teoria isso não tenha que ser necessariamente assim, na prática os teóricos das relações objetais que rejeitaram a teoria 22 Otto F. Kernberg do impulso, em minha opinião, também negligenciaram seriamente os aspectos motivacionais da agressão. Por essas razões, penso que não devemos substituir uma teoria do impulso por uma teoria do afeto ou por uma teoria das relações objetais da motivação. Em resumo, parece bastante razoável e preferível considerar os afetos como os blocos construtores dos impulsos. Os afetos são portanto o vínculo entre componentes instintivos biologicamente determinados, por um lado, e a organização intrapsíquica dos impulsos, por outro. A correspondência das séries dos estados afetivos recompensadores e aversivos com as linhas duais da libido e da agressão faz sentido tanto clínica quanto teoricamente. Este conceito dos afetos como blocos construtores dos impulsos resolve, acredito eu, alguns problemas persistentes na teoria psicanalítica dos impulsos. Pensar nos afetos deste modo nos leva a ampliar o conceito das zonas erógenas como a "fonte" da libido para uma consideração geral a respeito de todas as funções psico- logicamente ativadas, e zonas corporais envolvidas, nas interações afetivamente investidas do bebé e da criança com a mãe. Essas funções incluem também a mudança das preocupações com as funções corporais para as preocupações com funções sociais e desempenho de papéis. O conceito proposto por mim também oferece os vínculos que faltam, na teoria psicanalítica, entre as "fontes" das interações mãe-bebê agressivamente investidas, e a função "zonal" da rejeição agressiva da ingestão oral, do controle anal, das brigas físicas diretas pelo poder ligadas aos ataques de raiva da criança, etc. As relações objetais com investimento afetivo são o que energiza as "zonas" fisiológicas. A ativação psicofisiológica sequencial da tristeza, raiva e medo primitivos — e mais tarde da depressão e culpa — determina a correspondente série de investimentos agressivos nosd/e no objeto. Tais investimentos são reativados nos conflitos inconscientes relativos à agressão, que se expressam na transferência. A internalização direta das disposições afetivas libidinais e agressivas como parte das representações do self e do objeto (em termos técnicos, "relações objetais internalizadas") integradas nas estruturas do ego e superego representa, na minha formulação, os investimentos libidinais e agressivos dessas estruturas. O id, de acordo com este conceito da relação entre impulsos e afetos, consiste em relações objetais internalizadas, reprimidas, intensamente agressivas ou sexualizadas. A condensação e o deslocamento característicos dos processos mentais do id refletem o vínculo entre as representações dose//e do objeto afetivamente relacionadas e as correspondentes séries agressivas, libidinais e, mais tarde, combinadas. Este conceito de impulsos também nos permite fazer justiça aoinput, biologicamente determinado, das novas experiências afetivas durante toda a vida. Essas experiências incluem a ativação da excitação sexual durante a adolescência, quando os estados afetivos eroticamente excitantes são integrados com a excitação genital e com emoções e fantasias eroticamente carregadas derivadas do estágio edípico do desenvolvimento. Em outras palavras, a intensificação dos impulsos (tanto Psicopatologia das Relações Amorosas 23 libidinais quanto agressivos) em vários estágios do ciclo da vida é determinada pela incorporação de estados afetivos psicofisiologicamente ativados aos sistemas aferi vos preexistentes hierarquicamente organizados. Falando de modo mais geral, em minha opinião, uma vez que a organização dos impulsos como os sistemas motivacionais hierarquicamente supra-ordenados esteja consolidada, qualquer ativação específica de impulsos no contexto do conflito intrapsíquico é representada pela ativação de estados afetivos correspondentes. O estado afetivo inclui uma relação objetal internalizada, basicamente uma determinada representação do self relacionada a uma determinada representação do objeto, sob o impacto de um determinado afeto. A relação de papéis recíprocos entre self e objeto, moldada pelo afeto correspondente é normalmente expressada como um fantasia ou um desejo. Fantasias inconscientes consistem nessas unidades de representação ao self, de representação do objeto e de um afeto que os vincula. Os afetos, em resumo, são também os sinais ou representantes dos impulsos — como Freud (1926) havia sugerido, assim como seus blocos construtores. Freud (1905) descreveu a libido como um impulso, originando-se da estimulação das zonas erógenas, caracterizado por um determinado objetivo, pressão à descarga e objeto. Conforme afirmei, acredito que a libido se origina de esta-Z.OB afetivos primitivos, incluindo um estado de elação que se encontra no relacio- namento inicial mãe-bebê e característico da experiência e fantasia simbióticas. As experiências cotidianas afetuosas
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