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SEBENTA NEUROANATOMIA BERNARDO MANUEL DE SOUSA PINTO FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE DO PORTO 2011/2012 Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Neuroanatomia 2 Índice Descrição geral do sistema nervoso central………………………...……………………………...………………4 Desenvolvimento do sistema nervoso……………….…………………...……….…………..........……….………9 Célula nervosa…………….…………………………………………………….……………………………………16 Transmissão do impulso nervoso.…………………………….……………...………………………....…………24 Sinapse...……………………………………………………..….………………………………………..……….......31 Espinal medula – Descrição anatómica……………………...……………………………………………………39 Meninges raquidianas.…………………………..……………………………………………………...…...………43 Espinal medula – Descrição funcional…………………...…………………...…………..………………….……46 Vias aferentes………………………………….………...…………………………………………………...………52 Vias eferentes……………..……………….……...…………………………………….……………….……………60 Receptores……….…...………………………………..…………………………………………..…………………65 Nocicepção…….……………………………..………………...…………………………………...………………..67 Descrição geral do tronco cerebral………………………………………….…………….……………….………71 Bolbo raquidiano……………….…………...………………………………………...………………..…...….……74 Ponte cerebral……………….………………………………………………………………..………………………79 Pavimento do quarto ventrículo………………………...………….………………………………………...……82 Mesencéfalo…………………………………………………………………………..……………….…..….………84 Formação reticular…..…………………………………………………..……………………...…………...………88 Cerebelo………………………..……………………………………..……………………….……...……....………94 Diencéfalo – Descrição anatómica………………………………………...……...……………………...………106 Epitálamo……………………...………………………..……………………………….……………..…....………112 Tálamo…………………………..…………..………………………………………...………………..…....………114 Hipotálamo e hipófise……..………………………………………..……...……….……………..……....………120 Cápsula interna…………..……………………………………….…………………...……………………..……..135 Núcleos da base…….………….....………………………………………………...………………….…..…….…137 Telencéfalo – Descrição anatómica……………...……………………...…………….…….……...…….………147 Telencéfalo – Descrição funcional……………………………………….………….......…………….……….…158 Sistema límbico…….………………………...…………………………...…………………..…...…….……….…186 Aprendizagem e memória…………………………………………………………..………………....…………..197 Justiça e Ultimatum Game.………….....…………….………………………….…..……………………...….…206 Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Neuroanatomia 3 Irrigação arterial do encéfalo………………...……………………………….…………..….………..….………207 Drenagem venosa do encéfalo…………...…………………………………..……………………….…..…….…222 Barreira hemato-encefálica e regulação do fluxo sanguíneo…………………………….………..…..………227 Meninges cranianas…………….………………………………………………...…………………………...……229 Sistema ventricular e espaço subaracnóide………………………………………………………....…...………234 Introdução aos nervos cranianos………………………………………….……………….…….…..…...………240 Via olfactiva….…………….……………………………………………….......…………………..…..…...………242 Nervo trigémio (V)…………….…………………………………………..…………………….…….…...………249 Nervo facial (VII).…………………………………………………………………………..……...…….…...……267 Nervo glossofaríngeo (IX).…………………………………………….…………………….………….…...……274 Nervo vago (X).…………………………………………………………….…………….…………………...……278 Nervo acessório (XI).………………………………………………...……………….…………….………...……283 Nervo hipoglosso (XII)………………………………………………….……….…………………...……...……286 Via gustativa.…………………………………………………….………....................................................….……289 Órbita e conteúdo orbitário…………………………………………………..……………………………...……295 Nervo óptico (II)………………………….……………………….…………………………………...……...……313 Nervo óculo-motor (III)………………………………………….…………………………………...……...……314 Nervo troclear (IV)…………………………..……....……………………………………………………......……317 Nervo abducente (VI)………….…………………………………………………………………………………..318 Olho e via visual.........................................................………………………………………..……………..………320 Movimentos oculares........................................................................................................................………………341 Ouvido externo.........................................................……………………………………………..……...…………346 Ouvido médio.....................................................................................................................................………………349 Ouvido interno...................................................................................................................................………………356 Nervo vestíbulo-coclear (VIII)........................................................................................................………………360 Audição...........................................................………………………………………………………………………362 Sistema vestibular..............................................................................................................................………………373 Links de apoio.………………………………………………………………....……………………………...……379 Estão incluídos nesta sebenta, resumos de Neuroanatomia da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto acompanhados por ilustrações, esquemas e tabelas. Desde já agradeço a quem me ajudou na elaboração da sebenta, através da correcção de eventuais erros inicialmente presentes, ou através de ideias e sugestões. Bom trabalho e votos de sucesso nos exames, Bernardo M. Sousa Pinto Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Neuroanatomia 4 Descrição geral do sistema nervoso central O sistema nervoso central é constituído pelo encéfalo e pela espinal medula, estruturas que no seu conjunto contêm a maioria dos corpos celulares neuronais do sistema nervoso. Em vários locais do sistema nervoso central, os corpos celulares dos neurónios encontram-se agrupados e, de certo modo, separados dos axónios. A essas agregações de corpos celulares é dado o nome genérico de substância cinzenta, enquanto pequenas agregações de corpos celulares neuronais, que normalmente partilham um mesmo papel funcional, se designam por núcleos. De referir que as dendrites neuronais e as interacções sinápticas encontram-se sobretudo confinadas à substância cinzenta. Já os axónios tendem a agrupar-se para formar a substância branca, assim denominada, na medida em que os axónios encontram-se frequentemente revestidos por mielina, que lhes confere uma cor mais pálida. Os axónios que passam por entre origens ou destinos similares dentro do sistema nervoso central tendem a deslocar-se juntos por caminhos definidos, que por vezes cruzam a linha média (o que implica que uma metade do corpo pode ser, em muitos aspectos, controlada pelo lado oposto do cérebro ou enviar informação para o lado oposto do cérebro). Alguns grupos de neurónios na espinal medula e no tronco cerebral que desempenham funções similares encontram-se organizados em colunas longitudinais. Os neurónios nessas colunas podem se concentrar em núcleos discretos e descontínuos (tal como acontece com o núcleo do nervo cranial no tronco cerebral) ou formar feixes longitudinais mais ou menos contínuos, tal como acontece na maior parte da espinal medula. Três dessas colunas longitudinais são constituídas por neurónios eferentes (motores), sendo essas a coluna motora somática, a coluna motora branquial e a coluna motora visceral. Os axónios da coluna motora somática inervam os músculos que derivam dos sómitos da cabeça, enquanto os neurónios na coluna motora branquial inervam os músculos que derivam da parede da faringe embrionária. Por fim, a coluna motora visceral contém as fibras pré-ganglionares parassimpáticas para as glândulas e músculo liso muscular. 1. Introdução ao estudo de Neuroanatomia Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Neuroanatomia 5 Já para as funções sensitivas, encontramos quatro colunas celulares longitudinais. A coluna sensitiva somática geral tem a seu cargo, sobretudo, a informação sensitiva geral da cabeça; já os neurónios sensitivos somáticosespeciais relacionam-se com os sentidos especiais, recebendo informação vestibular e auditiva. Paralelamente, os neurónios sensitivos viscerais gerais têm a seu cargo informação de vários terminais sensitivos viscerais, enquanto os neurónios sensitivos viscerais especiais estão relacionados com o paladar. O encéfalo e a espinal medula comunicam com o resto do corpo através dos nervos craniais e dos nervos espinhais, respectivamente. Esses nervos contêm fibras aferentes, que trazem informação proveniente dos receptores sensitivos, para o sistema nervoso central, bem como fibras eferentes, que conduzem instruções provenientes do sistema nervoso central, até aos órgãos efectores, situados na periferia. De referir que, a espinal medula e o tronco cerebral podem controlar vários aspectos das funções corporais por acção reflexa mediada por via de interligações de complexidade variável, por entre os componentes aferente e eferente dos nervos espinhais e cranianos. Como resultado das elevadas necessidades energéticas que advêm de uma actividade neuronal constante, o sistema nervoso central apresenta uma elevada taxa metabólica e uma rica irrigação sanguínea. Todavia, a barreira hemato-encefálica controla o ambiente neuronal e impõe várias restrições nos tipos de substâncias que podem passar da corrente sanguínea para o tecido nervoso. Espinal medula A espinal medula encontra- se dentro da coluna vertebral, nos dois-terços superiores do canal vertebral, sendo contínua anteriormente com o bolbo raquidiano do tronco cerebral. Na maior parte do seu trajecto, a espinal medula recebe informação aferente do tronco e membros, ao mesmo tempo que os controla. As ligações aferentes e eferentes estabelecidas por entre a periferia e a espinal medula efectuam-se através de 31 pares de nervos espinhais, dispostos de forma segmentar e que estão ligados à espinal medula por via de séries lineares de pequenos ramos dorsais e ventrais - grupos adjacentes destes pequenos ramos unem-se para formar as raízes dorsais e ventrais, que se combinam para formar os nervos espinhais propriamente ditos. As raízes dorsais e ventrais são funcionalmente distintas – as raízes dorsais transportam sobretudo fibras nervosas aferentes, a partir dos corpos celulares neuronais localizados nos gânglios da raiz dorsal, enquanto as raízes ventrais transportam fibras eferentes, a partir dos corpos celulares neuronais localizados na substância cinzenta da espinal medula. Internamente, a espinal medula consiste num núcleo central de substância cinzenta, rodeado por substância branca. A substância cinzenta dispõe-se formando um H, que apresenta projecções designadas por corno dorsal e corno ventral. Geralmente, os neurónios localizados no corno dorsal Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Neuroanatomia 6 estão sobretudo relacionados com as funções sensitivas, enquanto aqueles localizados no corno ventral estão principalmente associados com as funções motoras. Em certos locais da espinal medula, um pequeno corno lateral encontra-se, adicionalmente, presente, assinalando a localização dos corpos celulares dos neurónios simpáticos pré-ganglionares. O canal central, um componente vestigial do sistema ventricular, encontra-se no centro da substância cinzenta da espinhal medula e desloca-se ao longo da espinal medula. De referir que a substância branca da espinal medula consiste em feixes ascendentes e descendentes que ligam os segmentos da espinal medula uns aos outros e a espinal medula ao cérebro. Encéfalo O encéfalo encontra-se protegido pelo crânio. O encéfalo recebe informação e controla a informação do tronco e membros, principalmente através de ligações com a espinal medula. O encéfalo apresenta igualmente doze pares de nervos cranianos, através dos quais comunica, sobretudo, com as estruturas da cabeça e do pescoço. O encéfalo encontra-se dividido em grandes regiões, de acordo com o seu desenvolvimento ontogénico e com princípios filogenéticos. Essas regiões são em ordem ascendente, o rombencéfalo, o mesencéfalo e o prosencéfalo. O rombencéfalo encontra-se subdividido no mielencéfalo ou bolbo raquidiano, no metencéfalo ou ponte cerebral e no cerebelo. O bolbo raquidiano, a ponte cerebral e o mesencéfalo são colectivamente referidos como tronco cerebral (também designado por tronco encefálico), estrutura que se encontra sobre o clivus (correspondente às porções basais do esfenóide e occipital. O bolbo raquidiano corresponde à porção mais caudal do tronco cerebral, sendo contínuo com a espinal medula, inferiormente ao nível do buraco magno. Já a ponte cerebral encontra-se rostralmente ao bolbo raquidiano e é passível de ser distinguida através de uma massa de fibras nervosas transversas que a ligam ao cerebelo. Por outro lado, o mesencéfalo é um pequeno segmento do tronco cerebral, rostral à ponte cerebral. O cerebelo, por sua vez, consiste num par de hemisférios unidos por um verme mediano, que se encontra dentro da fossa craniana posterior, dorsalmente à ponte, bolbo raquidiano e mesencéfalo caudal (estando ligado a estas estruturas por numerosas fibras de ligação). O prosencéfalo, por sua vez, encontra-se subdividido no diencéfalo e no telencéfalo. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Neuroanatomia 7 O diencéfalo engloba, sobretudo, o tálamo e hipotálamo, embora também inclua o epitálamo e o subtálamo (porções mais pequenas). De referir que o diencéfalo está quase completamente envolto pelo cérebro e, por isso, amplamente escondido do exterior. Já o telencéfalo é sobretudo constituído pelos dois hemisférios cerebrais (ou cérebro, propriamente dito). O cérebro humano constitui a maior parte do encéfalo, ocupando as fossas cranianas anterior e média e estando directamente relacionado com a calva. O cérebro é constituído por dois hemisférios cerebrais, sendo que a superfície de cada hemisfério apresenta um complexo padrão de cristas (circunvoluções) e sulcos. Internamente, cada hemisfério apresenta uma camada externa de substância cinzenta, a qual é designada por córtex cerebral, profundamente à qual se encontra uma espessa massa de substância branca. Um dos mais importantes componentes da substância branca cerebral é a cápsula interna, que contém fibras nervosas, que passam para e desde o córtex cerebral e níveis inferiores. Vários núcleos grandes da substância cinzenta, designados por gânglios da base, encontram-se parcialmente envoltos pela substância branca subcortical. As ligações por entre as áreas correspondentes dos dois lados do encéfalo cruzam a linha média, através de comissuras, das quais a maior é o corpo caloso, que liga regiões correspondentes dos dois hemisférios cerebrais. Aquando do desenvolvimento pré-natal, as paredes do tubo neural sofrem um grande espessamento, embora o lúmen central deste tubo nunca se torne completamente obliterado. Este lúmen na medula espinhal origina o estreito canal central, enquanto no encéfalo, se torna amplamente expandido, para formar uma série de cavidades interconectadas, que no seu conjunto constituem o sistema ventricular. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Neuroanatomia 8 No rombencéfalo e prosencéfalo, algumas partes do tecto do tubo neural não originam células nervosas, mas sim finos folhetos dobrados, consistindo em tecido secretor altamente vascularizado – os plexos coroideus. Esses plexos segregam o fluido cefalo- raquidiano, que preenche os ventrículos. A cavidade do rombencéfalo torna-se expandida para formar o quarto ventrículo, que se encontra dorsal à ponte e à metade superior do bolbo raquidiano. Caudalmente, o quarto ventrículo é contínuo com um canal na porção caudal do bolbo raquidiano e, através desta estrutura, com o canal central da espinal medula. O quarto ventrículo é contínuocom o espaço subaracnóide e na sua extensão rostral o quarto ventrículo é ainda contínuo com um estreito canal – o aqueduto cerebral, que passa através do mesencéfalo. A extremidade rostral do aqueduto cerebral abre-se no terceiro ventrículo, uma estreita cavidade, situada na linha média e ladeada lateralmente pelo diencéfalo. Na extremidade rostral do terceiro ventrículo, uma pequena abertura de cada lado, conduz ao grande ventrículo lateral, que se encontra localizado dentro de cada hemisfério cerebral. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Neuroanatomia 9 Desenvolvimento do sistema nervoso O sistema nervoso é formado a partir da ectoderme, durante o primeiro mês de vida embrionária, compreendendo quatro grandes fases – a primeira prende-se com a especificação da entidade celular – uma célula que esteja destinada já a ser uma célula do sistema nervoso, tem de sofrer especificação adicional para se tornar num neurónio ou numa célula de glia. Os neurónios sofrem então migração e crescimento axonal, para depois poderem sinaptizar com o alvo (que podem ser outros neurónios, glândulas, ou músculos). Finalmente, as ligações sinápticas estabelecidas devem ser refinadas, algo que envolve a eliminação de alguns braços neuronais e a morte de algumas células. Neurulação No início da terceira semana de desenvolvimento, a ectoderme apresenta a forma de um disco, mais largo na região cefálica, que na região caudal. O aparecimento do notocórdio, do nó primitivo e da mesoderme pré- cordal induz o espessamento da ectoderme e a formação da placa neural, cujas células constituem a neuroectoderme. A placa neural origina o tubo neural através do processo de neurulação primária. No final da terceira semana, os bordos laterais da placa neural elevam-se, formando as pregas neurais (diz-se que a placa neural sofre uma invaginação), sendo que a região deprimida por entre as pregas neurais constitui a goteira neural. Gradualmente, as pregas neurais aproximam-se uma da outra, unindo-se na linha média. Essa fusão inicia-se ao nível do quinto sómito (na região cervical), progredindo cranialmente e caudalmente. O fecho do neuroporo cranial ocorre aproximadamente no dia 25, enquanto o fecho do neuroporo caudal ocorre aproximadamente no dia 28 (defeitos no fecho do tubo neural estão associados a várias condições patológicas tais como a espinha bífida). Quando isto ocorre, a neurulação primária encontra-se completa, estando o sistema nervoso central representado por uma estrutura tubular fechada (o tubo neural), com uma porção caudal estreita e uma porção cefálica mais larga. A porção caudal originará a espinal medula, enquanto a porção cefálica originará o encéfalo. Já a neurulação secundária completa-se quando a cavidade da eminência caudal, um derivado da mesoderme, se funde com o tubo neural do segundo segmento sagrado. Isto explica porque é que o cone medular apresenta funções diferentes, comparativamente à espinal medula. De referir que a eminência caudal origina também tecidos adjacentes à porção sagrada da espinal medula. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Neuroanatomia 10 Desenvolvimento das células da crista neural Já parte do sistema nervoso periférico tem origem nas células da crista neural. Enquanto as pregas neurais se elevam e fundem, as células do bordo lateral da neuroectoderme começam a dissociar-se das vizinhas, constituindo as células da crista neural. Estas células originam os neurónios sensitivos, que depois migram para os gânglios raquidianos. Para além do sistema nervoso periférico, encontramos como derivados das células da crista neural, os neurónios, células de glia e gânglios dos sistemas nervoso entérico e autónomo, as células medulares da glândula supra-renal, os arcos faríngeos, as células epidermais que contêm pigmentos e vários componentes de natureza óssea e conjuntiva da cabeça. Devido ao facto, de originar uma quantidade tão variada de estruturas, a crista neural é por vezes entendida como “o quarto folheto germinativo”. Génese das células do sistema nervoso central A génese de neurónios compreende três fases – proliferação, migração e diferenciação. O lúmen do tubo neural encontra-se rodeado por uma camada epitelial, que é designada por zona ventricular. Esta zona é constituída por células-mãe proliferativas, que, por via de divisões assimétricas, se vão tornando diferenciadas, originando, entre outras estruturas, os neurónios e as células de glia. O tubo neural é inicialmente formado por uma única camada de células tronco neuroepiteliais com prolongamentos. Estas células originam os neuroblastos (células progenitoras dos neurónios), gliobastos (células progenitoras das células de glia), células de glia radial (que emitem os seus prolongamentos para a pia mater do tubo neural) e células ependimárias que formam a parede do sistema ventricular. Dessa forma, o processo de neurogénese e o processo de gliogénese desenvolvem- se a partir das células neuroepiteliais, sendo que as únicas células com origem embriológica distinta são as células da microglia, que se diferenciam a partir de monócitos. Os neuroblastos formados a partir das células tronco neuroepiteliais migram para a periferia do tubo neural, onde constituem a camada do manto. As suas projecções estendem-se para uma região ainda Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Neuroanatomia 11 mais periférica e passam a constituir a camada marginal. A camada do manto está na base da substância cinzenta da espinal medula, enquanto a camada marginal originará a substância branca. A zona subventricular é uma região do encéfalo que delimita os ventrículos laterais e que, no indivíduo adulto, ainda apresenta células tronco. De facto, é nesta região que são geradas as células neuro- olfactivas, células com um período de vida curto (entre 30 a 50 dias), que têm de ser renovadas constantemente (isto explica porque é que os indivíduos perdem as suas capacidades olfactivas, à medida que a idade avança). Dessa forma, esta região está a ser alvo de muita investigação, pensando- se que as células tronco aí existentes poderão ajudar no combate à neurodegeneração. Desenvolvimento da espinal medula A ectoderme, localizada próxima do que se irá tornar a face dorsal do tubo neural, e o notocórdio, localizado próximo do que será a face ventral, produzem diferentes moléculas sinalizadoras em etapas precoces do desenvolvimento. Os gradientes opostos de concentração dessas moléculas induzem padrões distintos no desenvolvimento subsequente dessas duas regiões do tubo neural. Isto torna-se morfologicamente evidente quando, na quarta semana, um sulco longitudinal (o sulco limitante) aparece na parede lateral do tubo neural, separando-o numa metade ventral e numa metade dorsal, que se tornarão funcionalmente distintas na futura espinal medula e tronco cerebral. A substância cinzenta da metade dorsal forma a placa alar, enquanto a da metade ventral constituirá a placa basilar. Esta distinção é de grande importância funcional, na medida em que os derivados na placa alar estão relacionados, sobretudo, com o processamento sensitivo, enquanto os neurónios motores se localizam nos derivados da placa basilar. No indivíduo adulto, o sulco limitante não aparece na espinal medula, contudo, a substância cinzenta da medula é passível de ser dividida num corno posterior (contendo células sensitivas) e num corno anterior (contendo células motoras). Ao nível do tronco cerebral, encontramos a mesma distinção. Contudo, como parte do tronco se encontra aberto na região posterior, para formar o pavimento do quarto ventrículo, a porção sensitiva (que na espinal medula, se encontra posteriormente), passa a encontrar-se lateralmente à porção motora (analogamente ao que acontece aquando da abertura de um cilindro).De referir que, enquanto o pavimento do quarto ventrículo é formado por células nervosas do tronco cerebral, o seu tecto (assim como o tecto do III ventrículo) é formado por plexo coroideu. Estes derivam das placas ependimárias, que são constituídas por uma camada de células, e não originam células nervosas. Relativamente ao III ventrículo é igualmente importante referir que, anteriormente, esta estrutura termina na lâmina terminal, o remanescente adulto da extremidade rostral do tubo neural. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Neuroanatomia 12 Desenvolvimento do encéfalo O sistema nervoso central sofre uma primeira regionalização, com o aparecimento de uma porção mais larga e de outra mais estreita. A porção mais larga origina o encéfalo, sendo que aí a regionalização prossegue com o aparecimento de várias dilatações, as quais são designadas por vesículas cerebrais. Inicialmente regista-se a presença de três vesículas primárias, que são, de rostral para caudal, o prosencéfalo, o mesencéfalo e o rombencéfalo. Contudo, as três vesículas primárias não se dispõem em linha recta, pois verifica-se a presença de duas curvaturas no tubo neural – a curvatura cervical (que se encontra por entre o rombencéfalo e a espinal medula) e a curvatura cefálica (que se encontra ao nível do mesencéfalo, persistindo no adulto, como a curvatura por entre os eixos do tronco cerebral e o cérebro). Já a curvatura cervical acaba no futuro por desaparecer. Com o aparecimento das vesículas secundárias, as vesículas cerebrais passam depois a ser cinco – telencéfalo, diencéfalo, mesencéfalo, metencéfalo e mielencéfalo. O telencéfalo e o diencéfalo derivam do prosencéfalo, enquanto o metencéfalo e o mielencéfalo derivam do rombencéfalo. O telencéfalo é a vesícula Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Neuroanatomia 13 que depois cresce mais marcadamente, comparativamente às restantes e, de facto, o alargamento dos hemisférios cerebrais leva a que este acabe por se fundir com o diencéfalo (o que leva à génese da fissura coroideia). Aquando do aparecimento das vesículas secundárias, verifica-se a presença de uma curvatura adicional, a curvatura pôntica, que se encontra na face dorsal do tronco cerebral, por entre o metencéfalo e o mielencéfalo. Esta curvatura não persiste no eixo do tronco cerebral, mas tem consequências importantes para a configuração do tronco cerebral caudal. De facto, o desenvolvimento desta flexura leva a que as paredes do tubo neural se afastem na região do tronco cerebral, o que faz com que a placa alar passe de dorsal para lateral à placa basilar (como já foi referido). Desenvolvimento do cerebelo Ao nível do rombencéfalo, ocorre a protusão de um lábio rômbico (desenvolvendo-se a partir do primeiro rombómero), ao nível da porção dorsal da placa alar do metencéfalo. O cerebelo desenvolve-se a partir deste lábio (algo possibilitado por factores sintetizados ao nível do istmo rombo- mesencefálico), no qual se formam duas protuberâncias arredondadas que originam os hemisférios cerebelares rudimentares. A partir do lábio rômbico, algumas células da placa alar migram e originam os núcleos olivares e arciformes, bem como a substância cinzenta dos núcleos pônticos (de facto, todas os núcleos com actividade relevante para o cerebelo têm origem no lábio rômbico). Migração neuronal e corticogénese A última divisão mitótica de um neurónio assinala a sua data de nascimento. Esta assinala o local onde mais tarde o neurónio se vai localizar, definindo para onde este irá migrar. Dessa forma, os que nascem primeiro vão ficar mais próximos do local onde estava a célula precursora, enquanto os que nascem depois, ficam mais afastados. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Neuroanatomia 14 A migração neuronal é o processo através do qual, os neurónios se deslocam desde a sua origem, até ao local da sua posição final no córtex cerebral. Como foi referido, a migração ocorre de “dentro para fora” (ou seja, os neurónios mais superficiais vão ser também os mais jovens). Este processo é designado por corticogénese e permite gerar as seis camadas do córtex cerebral. As células de Cajal-Retzius são dos primeiros neurónios gerados, sendo uma excepção à regra de ocorrência de migração de “dentro para fora”. Isto deve-se ao facto de estas células libertarem reelina, que regula o processo de migração neuronal. Os neurónios da subplaca são formados concomitantemente aos de Cajal-Retzius, sendo os neurónios mais próximos da zona ventricular. Os neurónios gerados subsequentemente vão constituir as seis camadas corticais (que se localizam superficialmente à subplaca), sendo que para isso vão atravessar a zona subventricular (que se localiza por entre a zona ventricular e a subplaca). A maioria dos neurónios utiliza as células de glia radiais como suporte para a sua migração. De facto, existem dez vezes mais células de glia que neurónios e o processo de migração com recurso às células de glia radiais designa-se por migração radial. Para que essa migração ocorra, os neurónios emitem uma projecção “condutora” (leading process), que explora o ambiente em seu redor, permitindo determinar qual a direcção para a qual os neurónios devem migrar. O núcleo dos neurónios desloca-se então para próximo da projecção condutora e a projecção do lado oposto ao da projecção condutora (trailing process) regride. Alternativamente à migração radial, existe o processo, menos importante, de migração tangencial, através do qual os neurónios migram livremente (sem utilizar as células de glia radial). Contudo, enquanto a migração radial leva a que os mesmos tipos de neurónios se concentrem juntos em locais definidos, os neurónios que sofrem migração tangencial acabam sendo misturados entre si. No córtex cerebral, entre 60 a 70% das células nervosos são piramidais, nascidas na camada ventricular, que migram radialmente para as suas posições. Já as restantes células são sobretudo GABAérgicas e interneurónios, que nascem no prosencéfalo basal (estrutura localizada na transição entre o telencéfalo e o diencéfalo) e migram tangencialmente em direcção rostral. Já ao nível do cerebelo, as células de Purkinje migram radialmente, enquanto as células da camada granulosa migram tangencialmente, perfurando a rede de Purkinje. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Neuroanatomia 15 Condução axonal Tendo os corpos celulares dos neurónios chegado ao seu destino, estes começam a enviar os axónios, que se deslocam, seguindo vias muito precisas. Os axónios em crescimento apresentam uma estrutura muito móvel na sua extremidade – o cone de crescimento, que apresenta um central domain (domínio central) preenchido por neurotúbulos; e vários prolongamentos móveis (filopódios), que são constituídos por actina. O cone axonal detecta os vários sinais ambientais, que indicam qual a direcção, pela qual o axónio deve crescer. Os sinais ligam-se aos receptores presentes nos cones de crescimento, podendo actuar como moléculas de repulsão ou de atracção. As moléculas de repulsão ou atracção podem ainda ser de longo ou curto alcance. Sobrevivência neuronal e formação de sinapses Após os axónios terem chegado ao seu destino, estes ligam-se às respectivas células-alvo e dá se o estabelecimento da respectiva sinapse. O estabelecimento e refinamento de sinapses faz-se, sobretudo, até aos dois anos de idade. A sobrevivência dos neurónios, desde a sua fase de migração, é potenciada por vários factores neurotróficos. Durante o desenvolvimento do sistema nervoso, muitos neurónios tornam-se obsoletos, por exemplo, por falharem a ligação às células alvo, tendo por isso de ser eliminados por apoptose. Os factores neurotróficos que potenciam a sobrevivência dos neurónios acabam por sertambém os responsáveis por esta eliminação, pois vão actuar como discriminadores, contribuindo apenas para a sobrevivência dos neurónios que efectuaram uma ligação correcta. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Neuroanatomia 16 Célula nervosa Os neurónios participam na transmissão de informação através de uma combinação de mecanismos de sinalização eléctricos e químicos – os sinais eléctricos são utilizados para enviar rapidamente a informação, desde uma parte do neurónio até outra, enquanto os mensageiros químicos são tipicamente usados para transmitir informação entre os neurónios. Dessa forma, ao nível da célula nervosa existem regiões especializadas na recolha, integração, condução e transmissão de informação. Em termos históricos, em finais do século XIX muitos investigadores acreditavam que as células nervosas encontravam-se fundidas umas com as outras, formando uma rede, sem espaços. Esta teoria era designada por teoria reticular e era apoiada, entre outros, pelo italiano Camillo Golgi. Ironicamente, Camillo Golgi descobriu um novo método de evidenciar as células nervosas (método de Golgi, que requer a impregnação com nitrato de prata), que trouxe evidências contra a teoria reticular e a favor da teoria neuronal, da qual era adepto Santiago Rámon y Cajal. Para Cajal, cada neurónio é uma entidade individual, a base dos circuitos neurais; e os neurónios apresentam polaridade funcional, ou seja, os dendritos e os corpos celulares recebem a informação, enquanto o axónio, juntamente com os seus colaterais transmitem a informação para outras células. Em termos estruturais, todos os neurónios têm um corpo celular (também designado por soma ou pericário) que se encarrega das necessidades metabólicas e de síntese proteica de toda a célula. A maior parte dos neurónios apresenta uma série de prolongamentos ramificantes designados por dendritos, que recebem informação proveniente de outros neurónios, através dos contactos sinápticos (ou sinapses). Por outro lado, o axónio é uma longa estrutura, especializada na condução de informação a partir do corpo celular. O axónio origina uma série de ramos terminais que sinaptizam com outros neurónios e, daí, os neurónios serem anatomicamente e funcionalmente polarizados (os sinais eléctricos viajam em apenas uma direcção sob condições fisiológicas normais). Part Description Major Organelles Primary Function Dendrite Tapered extension of cell body Cytoskeleton, mitochondria Collect information from other neurons Soma (cell body) May have one, two, or many processes; typically one axon, many dendrites Nucleus, Golgi apparatus, Nissl substance, cytoskeleton, mitochondria Synthesize macromolecules, integrate electrical signals Axon Single, cylindrical; may be many centimeters long; may be myelinated or unmyelinated Cytoskeleton, mitochondria, transport vesicles Conduct information to other neurons Axon terminal (synaptic ending) Vesicle-filled apposition to part of another neuron; most are axodendritic or axosomatic, but other configurations occur Synaptic vesicles, mitochondria Transmit information to other neurons Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Neuroanatomia 17 Apesar das semelhanças registadas entre todos os neurónios, as suas formas e tamanhos são altamente variáveis. Certos aspectos da morfologia somática, dendrítica e axonal constituem a base de uma terminologia descritiva para os neurónios. A maior parte dos neurónios dos vertebrados é multipolar, ou seja, existem múltiplas projecções dendríticas que partem do corpo celular, registando-se também quase sempre a presença de um axónio. Alguns neurónios, por sua vez, são bipolares, ou unipolares, apresentando duas ou uma projecção, respectivamente. No que concerne às dimensões neuronais, os corpos celulares apresentam um diâmetro que varia entre 5 e 100 μm. Muitos axónios são pequenos, apresentando apenas cerca de um milímetro de comprimento, todavia, alguns podem medir um metro ou mais (tais como aqueles que se estendem do córtex cerebral até à região sagrada da espinal medula). Os neurónios também podem ser classificados de acordo com as conexões que estabelecem. Os neurónios sensitivos podem ser directamente sensíveis a vários estímulos (tais como o tacto ou mudanças térmicas), embora, alternativamente, também possam receber conexões directas de células receptoras não-neuronais. Já os neurónios motores terminam directamente nos músculos, glândulas ou outros neurónios, ao nível dos gânglios do sistema nervoso periférico. A maior parte dos neurónios motores e sensitivos encontram-se em parte no sistema nervoso central (SNC) e, em parte, no sistema nervoso periférico (SNP), enquanto quase todos os restantes neurónios se encontram, na sua totalidade no SNC e fazem a interligação de outros neurónios. Alguns desses neurónios apresentam as suas projecções confinadas a uma pequena área do SNC, sendo designados por interneurónios; enquanto outros são designados por neurónios de projecção, pois os seus longos axónios permitem a conexão de diferentes áreas (a título de exemplo, um neurónio de projecção pode ter o seu corpo celular no córtex cerebral, mas o seu axónio encontrar-se na espinal medula). Outras classificações neuronais atendem à sua localização (talâmica, espinhal, cortical…), ao neurotransmissor que libertam (glutamato, GABA…) e à sua forma (piramidal, granulosa…). No que concerne às funções neuronais, podemos referir que estas incluem, de forma sumária, a recepção de sinais, a codificação de informação (ao nível do cone axonal, através de múltiplos potenciais de acção), a condução, a integração e a transmissão de informação a outras células ou tecidos. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Neuroanatomia 18 Substância branca e substância cinzenta O sistema nervoso central é, geralmente, facilmente divisível em substância cinzenta e substância branca. A substância cinzenta refere-se à área onde existe uma predominância de corpos celulares e dendrites (no vivo, contudo, essa área apresenta, na realidade uma cor cinzenta rosada, na medida em que é alvo de uma forte irrigação sanguínea). Já a substância branca diz respeito às regiões onde predominam os axónios – muitos axónios são revestidos por mielina, uma substância maioritariamente lipídica e que, como tal, apresenta um aspecto esbranquiçado. Caso os corpos celulares de uma dada área da substância cinzenta se encontrem funcionalmente relacionados uns com os outros, essa área é designada por núcleo. Já o córtex é entendido como sendo uma área, onde a substância cinzenta forma uma superfície (em camada) que cobre alguma parte do sistema nervoso central, sendo que os córtices mais proeminentes são os córtices cerebral e cerebelar. Por outro lado, as subdivisões da substância branca apresentam vários nomes, tais como fascículo, funículo, lemnisco, pedúnculo e, mais frequentemente, feixe. Vários feixes apresentam nomes constituídos por duas partes, que dão informação acerca da natureza do feixe – a primeira parte do nome refere-se à localização dos corpos celulares neuronais de onde esses axónios se originam, enquanto a segunda parte refere-se ao sítio onde os axónios terminam (por exemplo, o feixe espinho- cerebeloso é um conjunto de axónios, cujos corpos celulares se encontram na espinal medula, enquanto os terminais sinápticos se encontram no cerebelo). Os nervos periféricos são, durante a maior parte dos seus trajectos, conjuntos de axónios, que se deslocam para ou desde locais como a pele, os músculos ou órgãos internos, acompanhados por bainhas gliais e de tecido conjuntivo. Muitos dos corpos celulares desses axónios encontram-se também no sistema nervoso periférico, sendo que esses corpos se encontram tipicamentejuntos em gânglios dispostos em locais previsíveis ao longo do nervo. Morfologia neuronal Os neurónios necessitam de mecanismos que lhes permitam lidar, não só com as suas funções de sinalização eléctrica e química, mas também com as consequências da sua própria estrutura. Um neurónio com um axónio muito longo pode ter 99% do seu citoplasma no seu axónio, muitos centímetros longe do seu corpo celular. Dessa forma, o núcleo dos axónios e os seus mecanismos de síntese proteica têm de ter mecanismos eficientes para comunicar com as regiões mais distantes. Para além do mais, os neurónios apresentam projecções longas e delicadas, de tal modo que se torna necessária uma estabilização mecânica destas. Para atender a tais circunstâncias, os organelos e citosqueleto dos neurónios dispõem-se numa configuração e em quantidades muito particulares. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Neuroanatomia 19 Corpo celular e citosqueleto A soma do neurónio é o local de síntese de quase todas as enzimas neuronais, proteínas estruturais, componentes membranares, bem como de alguns dos seus mensageiros químicos. A sua estrutura reflecte a sua função – o núcleo é grande e apresenta a sua cromatina dispersa e disponível para transcrição, apresentando também um ou mais nucléolos proeminentes, que se encontram activamente envolvidos na transcrição de rRNA. O retículo endoplasmático rugoso e os ribossomas livres são abundantes no citoplasma, onde encontramos também muitas mitocôndrias, que são essenciais para assegurar as necessidades energéticas que advêm de uma síntese proteica muito activa, quase contínua. Os ribossomas, quer associados ao retículo endoplasmático rugoso, quer livres no citoplasma, coram intensamente por corantes básicos, aparecendo em microscopia de luz, como agregados designados por corpos de Nissl, estruturas que são particularmente proeminentes em grandes neurónios. Os organelos descritos encontram-se envoltos numa rede de três tipos de polímeros proteicos filamentosos, que se estendem através do neurónio e das suas projecções. Esses filamentos constituem, colectivamente, o citosqueleto neuronal. Os microtúbulos são agregados cilíndricos, com um diâmetro de cerca de 25 nm, constituídos por tubulina, que formam, em cada microtúbulo, 13 protofilamentos, dispostos em torno de um núcleo oco. Os neurofilamentos, por sua vez, são filamentos intermediários com cerca de 10 nm de diâmetro, que formam estruturas muito torcidas, envolvendo pelo menos a presença de três proteínas diferentes da família das citoqueratinas. Por fim, os microfilamentos constituem o elemento mais fino do citosqueleto (o seu diâmetro é de 7 nm), sendo pares torcidos de filamentos de actina. Os três tipos de elementos do citosqueleto contribuem para manter a forma do neurónio, sendo que os microtúbulos também servem como substrato ao longo do qual, os organelos são transportados. Os microfilamentos são importantes na ancoragem de moléculas membranares (por exemplo, moléculas receptoras para as sinapses) e para transportar substâncias de e para a membrana celular. Dendritos Os dendritos são extensões do corpo celular neuronal que colectivamente estão associados a um grande aumento na área da superfície disponível para os inputs sinápticos. Apesar do arranjo total dos dendritos (o qual é designado por árvore dendrítica) poder apresentar uma estrutura elaborada, cada dendrito individual apresenta uma arquitectura citoplasmática similar à do corpo celular. Dessa forma, os microtúbulos, os neurofilamentos e os microfilamentos estendem-se para os dendritos (os corpos de Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Neuroanatomia 20 Nissl e parte do complexo de Golgi também se podem estender para as regiões mais proximais dos dendritos). As mitocôndrias são também encontradas em grande abundância ao nível dos dendritos, especialmente perto dos terminais sinápticos, onde asseguram as necessidades energéticas para os processos de sinalização sináptica. Ao nível dos dendritos de muitos neurónios, encontramos também pequenas protuberâncias, designadas por espinhas dendríticas, que são locais de eleição para alguns tipos de contactos sinápticos. Axónio O axónio de cada neurónio apresenta uma estrutura diferente daquela apresentada pelas dendrites. O axónio é uma projecção cilíndrica que parte abruptamente do cone axonal, localizado de um lado do corpo celular neuronal, ou de um dos seus dendritos proximais. No axónio não se verifica a presença de corpos de Nissl, mas coexistem feixes de microtúbulos, neurofilamentos e mitocôndrias. De referir que existem neurónios que aparentam não apresentar um único axónio, mas sim grandes projecções, que permitem a transmissão de informação em duas direcções. Essas células são os neurónios amácrinos e existem ao nível da retina. O segmento inicial do axónio é, normalmente, a porção electricamente mais excitável do neurónio, na medida em que todos os inputs sinápticos para as dendrites, corpo celular e segmento inicial do neurónio convergem para essa região, para ser determinada a resposta eléctrica a ser propagada ao longo do axónio. Após o segmento inicial, vários axónios encontram-se envoltos em mielina, um revestimento espiral de membranas gliais. A mielina é uma estrutura que se encontra apenas nos mamíferos e aumenta amplamente a velocidade de propagação de sinais eléctricos ao longo dos axónios. Transporte de organelos e macromoléculas ao longo do axónio Os axónios são estruturas muito longas para depender do processo de difusão para transporte de macromoléculas e organelos (o transporte de substâncias por este processo demoraria muito tempo). Deste modo, os neurónios dependem de um processo activo de transporte axonal, que pode ser anterógrado, caso as substâncias sejam transmitidas ao longo do axónio, em direcção oposta à da soma; ou retrógrado, caso as substâncias sejam transportadas em direcção à soma (organelos “usados” ou mensageiros químicos intracelulares são transportados desde o axónio ou terminais sinápticos até à soma). Existem duas categorias gerais de transporte axonal, no que concerne à velocidade – Através do transporte axonal lento são transportadas proteínas solúveis (tais como proteínas citosqueléticas e enzimas citoplasmáticas) em direcção anterógrada, a velocidades de poucos milímetros por dia. Já pelo Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Neuroanatomia 21 transporte axonal rápido são transportados componentes membranares, mitocôndrias, lisossomas, vesículas de precursores de neurotransmissores, a uma velocidade que pode chegar aos 400 mm por dia. Os microtúbulos servem como as vias de transporte rápido, sendo que a existência de dois tipos de movimento (anterógrado e retrógrado) é possível através da polaridade longitudinal dos microtúbulos. Para ser possível o movimento ao longo dos microtúbulos é igualmente necessária a existência de ATPases específicas, nomeadamente as proteínas da família das cinesinas (que asseguram o transporte em direcção anterógrada) e das dineínas (que asseguram o transporte de substâncias em direcção retrógrada). Sinapse As sinapses permitem a transmissão de informação de um neurónio pré-sináptico para um neurónio pós- sináptico, estando ambos os neurónios separados pela fenda sináptica (com entre 10 a 20 nm), onde são libertadas moléculas neurotransmissoras, que no neurónio pré-sináptico se encontram dentro de vesículas sinápticas. Os neurotransmissores ligam-se então às moléculas receptoras da membrana pós-sináptica, levando à génese de um sinal eléctrico no neurónio pós- sináptico. Apesar de na maior parte das sinapses, uma terminação axonal corresponder ao elemento pré-sináptico, e parte de um dendrito corresponder ao elemento pós-sináptico, qualquer parte de um neuróniopode ser pré-sináptico para qualquer parte de outro neurónio (ou mesmo para si próprio). O número total de sinapses no sistema nervoso central humano é inimaginável e torna possíveis capacidades mentais complexas. O número de sinapses num dado neurónio relaciona-se aproximadamente com a extensão dos seus dendritos, variando entre algumas dezenas (num neurónio pequeno, como uma célula granular do cerebelo) até centenas de milhares (numa árvore dendrítica elaborada, como a de uma célula de Purkinje). Células de Schwann e bainha de mielina Os neurónios do sistema nervoso periférico são, na sua maioria, quase completamente revestidos por projecções de células de glia. Os papéis gerais dessas projecções prendem-se com o fornecimento do apoio metabólico e preenchimento eléctrico. Os neurónios do sistema nervoso periférico e suas Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Neuroanatomia 22 projecções, contrariamente aos do sistema nervoso central, são apoiados mecanicamente por bainhas de tecido conjuntivo. As células de glia do sistema nervoso periférico são, em grande parte, variações das células de Schwann – a maioria destas células reveste os axónios, à medida que estes se deslocam nos nervos periféricos. Contudo, algumas células de Schwann são achatadas (sendo designadas por células satélite) e rodeiam os corpos celulares dos neurónios nos gânglios do sistema nervoso periférico. A maior parte das fibras nervosas periféricas é mielinizada. Contudo, a bainha de mielina apresenta várias interrupções, as quais são designadas por nódulos de Ranvier. Esses locais apresentam cerca de 1 μm de comprimento, e correspondem a regiões onde o axónio se encontra separado do espaço extracelular, apenas por projecções em forma de dedo, que partem das células de Schwann. Por seu turno, a mielina que se interpõe entre dois nódulos de Ranvier constitui um internódulo, sendo formada por uma única célula de Schwann. Os internódulos apresentam um comprimento que varia entre os 0,2 mm e os 2mm, sendo que os axónios com maior diâmetro apresentam maiores internódulos e bainhas de mielina mais espessas. A maior parte dos axónios mais pequenos, nos nervos periféricos, não apresenta bainhas de mielina. Dessa forma, grupos de até cerca de dez axónios não-mielinizados encontram-se simplesmente envoltos por células de Schwann individuais. Esta ausência de mielina, juntamente com o seu menor diâmetro, leva a que os neurónios não-mielinizados apresentem uma condução de sinais eléctricos relativamente lenta. Para além de aumentarem a velocidade de condução axonal, por via da mielina, as células de Schwann facilitam ainda a regeneração dos axónios, após lesão de um nervo periférico; ajudam a regular as concentrações iónicas do meio extracelular em torno dos neurónios e suas projecções; e colaboram com os neurónios em alguns processos metabólicos e de desenvolvimento. Células gliais do sistema nervoso central Oligodendrócitos Muitos axónios do sistema nervoso central encontram-se envoltos por bainhas de mielina, similares às do sistema nervoso central, mas formadas por uma população diferente de células – os oligodendrócitos. Tal como na periferia, os maiores axónios apresentam mielina mais espessa e maiores internódulos. Contudo, cada oligodendrócito individual produz internódulos em múltiplos axónios – um único oligodendrócito pode ter dezenas de ramos e cada um terminar como um internódulo. Contrariamente às células de Schwann, os oligodendrócitos não envolvem axónios não- mielinizados, que ficam assim directamente expostos ao ambiente extracelular. Uma vez que os oligodendrócitos são células produtoras de mielina, estes são mais proeminentes na substância branca, embora também sejam passíveis de ser encontrados na substância cinzenta. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Neuroanatomia 23 Astrócitos Os astrócitos apresentam forma de estrela e podem ser de duas categorias – os astrócitos protoplásmicos são passíveis de ser encontrados na substância cinzenta, enquanto os astrócitos fibrosos são passíveis de ser encontrados na substância branca (as células da glia radial são também astrócitos mas encontram-se presentes apenas durante o desenvolvimento embrionário). Os astrócitos protoplásmicos e fibrosos apresentam características similares – um citosqueleto desenvolvido (dominado por filamentos intermediários), terminações alargadas, participação em processos de regulação das concentrações iónicas extracelulares e apoio à regeneração neuronal, aquando de uma lesão. Células ependimárias Os ventrículos do sistema nervoso central são cavidades, cujo limite epitelial é constituído por células ependimárias, que em alguns locais se encontram de tal modo especializadas, que produzem o fluido cefalo-raquidiano, que preenche os ventrículos e banha o sistema nervoso central. Células microgliais As células microgliais são mais pequenas que os oligodendrócitos e os astrócitos (que no seu conjunto constituem a macroglia). As células de microglia não aparentam estar envolvidas no metabolismo e sinalização eléctrica do sistema nervoso. Em vez disso, estas células participam na resposta do sistema nervoso a uma lesão, usando as suas numerosas projecções para se deslocarem pelo espaço extracelular. Quando estas células encontram algum local danificado, proliferam, migram para o local afectado, transformam-se em macrófagos e fagocitam os agentes patogénicos e fragmentos neuronais. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Neuroanatomia 24 Transmissão do impulso nervoso Tal como as restantes células, os neurónios são delimitados por uma membrana semipermeável, que se encontra electricamente polarizada. Essa polarização deve-se à presença de gradientes de concentração iónica entre os compartimentos intracelular e extracelular, algo possível através das características de permeabilidade da membrana e canais iónicos e da presença de transportadores ao nível da membrana. Estas características, juntamente com a capacidade que os neurónios têm de traduzir informação, fazem com que estas células sejam classificadas como excitáveis. A excitabilidade dos neurónios permite-lhes responder adequadamente a estímulos – existem vários tipos de estímulos, mas neste caso, estes são, geralmente, de natureza química. O potencial da membrana em repouso é de -70 mV (por convenção, o potencial de repouso do fluido extracelular é de 0 mV, o que significa que o meio intracelular se encontra “70 mV mais negativo que o meio extracelular”). O potencial de repouso é uma média ponderada dos potenciais de equilíbrio dos vários iões presentes ao nível do meio intracelular, contudo, os três iões que mais contribuem para a obtenção daquele valor são o sódio, o potássio e o cloreto. Estes iões não têm capacidade de atravessar a bicamada fosfolipídica e, como tal, o seu movimento entre o meio extra e intracelular ocorre através de canais iónicos dependentes do ligando. Os canais iónicos dependentes do ligando apresentam uma permeabilidade substancial a alguns iões (condutância). Existem centenas de canais iónicos dependentes do ligando, mas todos eles apresentam algumas características em comum: 1. Múltiplos estados – A maior parte dos canais iónicos têm duas ou mais conformações estáveis diferentes. Dessa forma, os canais podem se encontrar abertos se o poro estiver disponível para os iões o atravessarem, ou fechados, caso o poro se encontre obstruído de tal modo, que seja prevenido o fluxo iónico. Os canais abertos apresentam uma elevada condutância, contrariamente aos canais fechados. 2. Dependência de um estímulo – A abertura e fecho de um canal iónico é um evento probabilístico, sendo que o canal pode alternar entre esses estados, quase instantaneamente. A maior parte dos canais abreem resposta a alterações do potencial de membrana, sendo designados por canais dependentes da voltagem. Existem ainda canais dependentes do ligando (tais como os receptores pós-sinápticos, aos quais se ligam neurotransmissores específicos, o que leva a uma alteração da sua permeabilidade), canais dependentes da temperatura e canais dependentes de um estímulo mecânico. 3. Selectividade – Os poros centrais dos canais iónicos não são suficientemente largos para deixar passar qualquer ião atravessá-lo. Dessa forma, o tamanho do poro e a natureza dos resíduos dos aminoácidos que o rodeiam determinam quais os iões que podem atravessar o poro. Alguns canais iónicos apresentam uma selectividade mínima, podendo distinguir apenas, por exemplo, pequenos aniões de pequenos catiões. Outros são altamente selectivos, sendo centenas de vezes mais permeáveis a um dado ião que a outro. Os vários tipos de canais iónicos não se encontram, normalmente, uniformemente distribuídos nas membranas neuronais. Por exemplo, embora os canais que determinam o potencial de repouso se encontrem amplamente distribuídos, os canais de sódio dependentes de voltagem encontram-se agrupados, de tal modo, que apenas certas regiões de um neurónio conseguem gerar potenciais de acção. Esta distribuição regional dos canais e outras proteínas representa a especialização funcional das diferentes partes de cada neurónio (tabela de baixo). Função Segmentos do neurónio onde esse processo ocorre Recepção de sinais Dendrites, espinhas dendríticas, soma, espinhas somáticas, segmento inicial do axónio e terminais axonais Integração de sinais Cone axonal e segmento inicial do axónio Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Neuroanatomia 25 Codificação Segmento inicial do axónio Transmissão para outras células Terminais pré-sinápticos Potencial de repouso O número e a selectividade dos canais iónicos determinam o potencial de membrana, uma vez que, caso a membrana fosse apenas constituída pela bicamada fosfolipídica nunca se geraria nenhum potencial de repouso. O potencial de equilíbrio de um dado ião é o potencial de difusão para o qual o fluxo iónico criado pelo potencial eléctrico é igual, mas oposto, ao fluxo produzido pelo gradiente de concentração. Este potencial é passível de ser determinado pela equação de Nernst. De referir que, caso a membrana fosse permeável apenas a um tipo de ião, o potencial de membrana seria igual ao potencial equilíbrio desse ião. O potencial de repouso dos neurónios típicos é fortemente (mas não totalmente) influenciado pelo gradiente de concentração do potássio. De facto, o potássio apresenta um potencial de equilíbrio de -90 mV e o potencial de repouso típico de um neurónio é de -70 mV. O potencial de membrana nunca se torna tão negativo, quanto o potencial de equilíbrio do potássio, sendo que essa diferença se vai tornando maior à medida que a concentração de potássio extracelular diminui. A diferença entre o potencial de repouso típico e o potencial de equilíbrio do potássio é explicada pelo facto de a membrana apresentar uma pequena permeabilidade ao sódio. O influxo de sódio para o meio intracelular, embora favorecido pelo potencial eléctrico e pelo gradiente de concentração para este ião, é pequeno, devido à baixa condutância que a célula apresenta para este ião. De qualquer modo, este pequeno influxo é suficiente para trazer mais cargas positivas para a célula, tornando o seu interior menos negativo. Dessa forma, o potencial de repouso é caracterizado por um pequeno fluxo de sódio para o interior da célula, contrabalançado, por um pequeno fluxo de potássio para o meio extracelular. Uma vez que a permeabilidade do potássio é 10 ou 100 vezes superior à do sódio, a contribuição do potássio para o potencial de repouso é muito superior à do sódio. Estes fluxos iónicos resultam em alterações de concentrações e, numa célula neuronal típica, os fluxos iónicos poderiam resultar num progressivo desaparecimento dos gradientes de concentração e, consequentemente, do potencial de membrana Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Neuroanatomia 26 (porque o potencial de equilíbrio para iões cujo gradiente de concentração seja nulo é de 0 mV). Dessa forma, a presença de mecanismos de transporte activos torna-se essencial para a manutenção dos gradientes de concentração iónicos. A bomba de sódio e potássio é o exemplo paradigmático destes transportadores, permitindo expulsar o sódio do meio intracelular e introduzir potássio para dentro da célula. Contudo, verifica-se também a presença de bombas específicas para o cálcio e para o cloreto. A sinalização eléctrica ao nível dos neurónios tem por base as alterações na permeabilidade membranar a iões, tais como o potássio e o sódio, o cálcio ou o cloreto. O aumento da permeabilidade ao sódio, por exemplo, leva ao aumento do influxo de sódio, com consequente despolarização da membrana (isto é, o valor do seu potencial passa a aproximar-se de zero). Já o aumento da permeabilidade ao potássio leva à hiperpolarização da membrana (ou seja, o meio intracelular fica ainda mais negativo, o que faz com que o seu potencial se torne ainda mais próximo do potencial de equilíbrio para o potássio). Tais alterações na permeabilidade podem ser causadas pela acção de canais dependentes do ligando em locais pós-sinápticos ou pela acção de canais dependentes de estímulos nas membranas dos receptores sensitivos. Condutância e resistência A condutância e resistência (propriedades eléctricas passivas) da membrana determinam a velocidade e a extensão de uma resposta a um determinado estímulo. Isto significa que o período temporal e a distribuição espacial das mudanças de voltagem causadas pelo fluxo iónico, aquando de um estímulo, dependem das propriedades, quer do citoplasma, que na membrana do neurónio. Isto tem, obviamente, grandes implicações na forma como os sinais são transmitidos ao longo das membranas neuronais. As alterações de condutância encontram-se normalmente localizadas nos neurónios (por exemplo, num dado local pós-sináptico na dendrite), de tal modo que os efeitos da distância nas mudanças da condutância devem também ser considerados nas alterações resultantes do potencial. Em qualquer ponto, a corrente apresenta duas vias alternativas – pode abandonar a membrana, ou pode continuar a passar longitudinalmente. Quanto maior a condutância da membrana, maior a probabilidade de a corrente abandonar a membrana, enquanto quanto maior a condutância longitudinal da projecção, maior a probabilidade da corrente continuar a ser transmitida longitudinalmente. A condutância membranar é determinada pelo número de canais iónicos disponíveis, o que por sua vez é proporcional à área da membrana que cobre uma dada projecção. Assim sendo, a área membranar (e, como tal, a sua condutância) é proporcional ao diâmetro da projecção. Pelo contrário, a condutância longitudinal aumenta com a área transversa da projecção, sendo proporcional ao quadrado do diâmetro da projecção. Dessa forma, à medida que as dendrites e os axónios se tornam maiores, a condutância longitudinal aumenta mais que a condutância membranar. Isto explica porque é que os neurónios com maior diâmetro permitem uma transmissão de informação a maior velocidade, que os restantes. Potenciais gradativos Os potenciais gradativos (dos quais são exemplo os potenciais sinápticos) apresentam condução decremental, o que implica que estes desaparecem após alguns milímetros do local onde são gerados. Alguns neurónios são tão pequenos, que podem simplesmente transmitir a sua informação através de potenciais gradativos. Contudo, a maior parte dos neurónios tem de enviar sinais para distâncias equivalentes muito elevadas, necessitando de os propagar através de potenciais de acção (que não sofrem condução decremental). Os potenciaisgradativos podem ser somados ou anulados (por exemplo, uma despolarização pode ser Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Neuroanatomia 27 anulada por uma hiperpolarização), não sendo, como tal, processos de tudo-ou-nada. A somação é uma propriedade muito importante, na medida em que se apenas uma sinapse atingisse um neurónio, não seria possível despoletar um potencial de acção. Dessa forma, têm de ocorrer várias sinapses, cujo efeito é somado, de modo a que seja possível atingir o limiar de um potencial de acção. Existem duas formas de somação – a somação espacial ocorre fazendo-se variar o espaço, ou seja, é uma somação vectorial das diferenças de potencial registadas em simultâneo, mas em locais diferentes. Por outro lado, a somação temporal é um processo de adição das diferenças de potencial que acontecem num determinado intervalo de tempo. Todavia, uma vez que os potenciais gradativos têm condução decremental, os potenciais, para exercer um efeito de somação temporal, devem ser próximos no tempo. Potencial de acção Uma vez que a espessura da membrana é muito reduzida (entre 5 e 10 nm de espessura), o potencial de membrana, apesar de parecer reduzido (por ser na ordem dos milivolts) gera um grande campo eléctrico ao longo da membrana. As membranas neuronais contêm vários canais iónicos, cujas conformações mudam em resposta a alterações do campo eléctrico, alterando a sua probabilidade de se encontrarem abertos ou fechados. Os canais de sódio e os canais de potássio dependentes de voltagem são aqueles que mais se encontram envolvidos na génese dos potenciais de acção típicos. Já os canais de cálcio dependentes de voltagem apenas admitem um fluxo suficiente de cálcio, que permita despoletar outros processos intracelulares. Canais dependentes de voltagem Os canais de sódio dependentes de voltagem apresentam três estados – aberto, fechado e inactivo. Quando a membrana neuronal se encontra em repouso, os canais encontram-se num estado fechado, mas quando se verifica a despolarização membranar, a probabilidade de estes canais se abrirem aumenta rapidamente. Após cerca de um milissegundo neste estado aberto, os canais entram temporariamente num estado inactivo, no qual se encontram fechados (por um portão de inactivação), mas não reabrirão, mesmo que submetidos a mais despolarização. Por fim, a repolarização da membrana, permite que os canais passem do estado inactivo, de novo para o estado fechado. Já os canais de potássio dependentes de potássio também abrem em resposta à despolarização. Contudo, essa abertura é mais lenta, sendo que a probabilidade de os canais de potássio se manterem abertos se mantém elevada à medida que a membrana se encontra despolarizada. A repolarização da membrana está associada ao fecho dos canais de potássio, que não apresentam um estado inactivo. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Neuroanatomia 28 Descrição do potencial de acção Numa membrana excitável, a despolarização leva à abertura dos canais de sódio dependentes da voltagem e, consequentemente, ocorre um pequeno influxo de sódio. Para pequenas despolarizações, o efluxo de potássio é igual ao influxo de sódio, embora ocorra em sentido oposto. Contudo, para um determinado nível de despolarização, o influxo de sódio excede a driving force para o efluxo compensatório de potássio, o que leva a mais despolarização. Quando se atinge este potencial limiar, verifica-se a abertura de mais canais de sódio dependentes da voltagem e mais despolarização, iniciando-se um ciclo de feedback positivo. Consequentemente, num período de tempo inferior a um milissegundo, a condutância para o sódio atinge um nível, quase 50 vezes maior que a do potássio e o potencial de membrana se move para além dos 0 mV (fenómeno de overshoot), quase chegando ao valor do potencial de equilíbrio para o sódio. À medida que o potencial de membrana se move em direcção ao potencial de equilíbrio do sódio, ocorrem dois eventos que permitem terminar o potencial de acção – a inactivação (e posterior fecho) dos canais de sódio dependentes de voltagem e a abertura dos canais de potássio dependentes de voltagem. Os canais de potássio mantêm-se abertos por alguns milissegundos, despoletando uma breve hiperpolarização pós-potencial, durante a qual, o potencial de membrana se torna ainda mais próximo do valor do potencial de equilíbrio para o potássio, comparativamente ao valor de potencial de repouso. Essa repolarização permite que os canais de sódio dependentes de voltagem voltem ao seu estado fechado, ficando prontos para abertura, aquando do início de outro potencial de acção. Os potenciais de acção são eventos típicos de tudo-ou-nada, ocorrendo apenas caso o potencial limiar seja atingido. Os potenciais de acção são sempre eventos de despolarização e, para um dado tipo neuronal, eles têm sempre o mesmo tamanho e duração. Contudo, os neurónios também usam os potenciais gradativos para desempenhar funções relacionadas com o processamento de informação – os neurónios recebem uma grande variedade de inputs que se transmitem como potenciais gradativos, através de mecanismos de somação espacial e temporal. Estes inputs podem chegar a uma zona com um baixo liminar para gerar potenciais de acção. Essa zona de baixo limiar (na maior parte dos casos, correspondente ao segmento inicial do axónio) funciona como um conversor de um sinal analógico para digital, na medida em que converte aqueles pequenos inputs em séries de breves potenciais de acção separados por intervalos variáveis (mecanismo de codificação). Isto é particularmente importante, na medida em que um único potencial de acção não transmite qualquer informação a outro neurónio. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Neuroanatomia 29 Períodos refractários Ao período de despolarização neuronal seguem-se dois períodos refractários que limitam a quantidade de potenciais de acção gerados por intervalo de tempo. Aquando da repolarização membranar, os canais de sódio estão na sua maioria inactivos, o que impossibilita a génese de outro qualquer impulso, não importa o quão a membrana é despolarizada. Esta fase é designada por período refractário absoluto, seguindo-se a este, o período refractário relativo. Nesta última fase, parte dos canais de sódio já fecharam, enquanto os de potássio se mantêm abertos (correspondendo, de grosso modo, ao período de hiperpolarização pós-potencial). Isto faz com que seja possível gerar um potencial de acção, mas que seja mais difícil despolarizar a membrana de modo a atingir o potencial limiar (para além do facto de o potencial de repouso se encontrar, nesta fase, inferior a -70mV, é necessário abrir uma maior percentagem de canais de sódio fechados para “compensar” aqueles que ainda estão inactivos). Estes períodos refractários duram, no seu conjunto, alguns milissegundos, mas têm importantes implicações na produção e propagação dos potenciais de acção, limitando a frequência com que podem ser produzidos potenciais de acção e impedindo que os potenciais de acção se propaguem de modo amácrino (ou seja, impedem que a condução de um potencial de acção ocorra em ambas as direcções). O mecanismo que leva à génese de um potencial de acção também despoleta a sua propagação ao longo de áreas adjacentes da membrana que contenham canais dependentes de voltagem de natureza similar. Contudo, a presença de períodos refractários assegura que a propagação dos potenciais de acção ocorre unidireccionalmente em direcção aos terminais distais do axónio (ou seja, ortodromicalmente). Os potenciais de acção são tipicamente gerados no segmento inicial do axónio, transmitindo-se antidromicalmente (ou seja, no sentido inverso ao dos terminais distais do axónio) para o corpo celular (que não é excitável) e ortodromicalmente pelo axónio. À medida que o impulsoBernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Neuroanatomia 30 atravessa o axónio, a corrente associada ao influxo de sódio (essencial para gerar o ciclo de feedback positivo de sódio e, como tal, propagar o potencial de acção) é transmitida, quer ortodromicalmente, quer antidromicalmente. Contudo, como a região que se encontra antidromicalmente adjacente está em período refractário, o impulso propaga-se apenas ortodromicalmente. Propagação não-decremental do potencial de acção O potencial de acção propaga-se no axónio de forma não-decremental, uma vez que, como foi referido, à medida que se dá a transmissão de um potencial de acção, a corrente local gerada pelo potencial de acção funciona como um estímulo, que permite a despolarização da membrana adjacente, até ser atingido novo potencial limiar. Isto desencadeia o ciclo de feedback positivo do sódio, ocorrendo um novo potencial de acção, ao longo da membrana, no sentido ortodromical. Como, o mecanismo de propagação do impulso nervoso depende de um novo ciclo de feedback do sódio, o potencial de acção final é teoricamente igual ao inicial. Fibras não-mielinizadas e fibras mielinizadas A propagação de potenciais de acção ao longo de axónios não-mielinizados ocorre de um modo relativamente lento, embora de forma contínua, uma vez que ao longo dos axónios dos neurónios não- mielinizados, os canais dependentes da voltagem encontram-se distribuídos uniformemente. Já os neurónios mielinizados são caracterizados por uma propagação de natureza rápida e saltatória. A mielina permite aumentar a resistência transversal à perda de sinal, limitando a condutância de membrana e respectivas perdas associadas. Isto permite que o aumento da velocidade de condução não ocorra necessariamente à custa de um aumento indefinido no diâmetro dos axónios. Contudo, as zonas de um axónio revestidas por mielina não apresentam canais de sódio e, como tal, se o revestimento de mielina fosse contínuo, um potencial de acção iniciado ao nível do segmento inicial do axónio, desvaneceria ao fim de alguns milímetros. Isto é prevenido pela presença de nódulos de Ranvier, locais que apresentam uma elevada concentração de canais de sódio dependentes de voltagem. Assim sendo, os potenciais de acção transmitem-se rapidamente de forma decremental, ao longo das porções internodais do axónio, sendo “regenerados” ao nível dos nódulos de Ranvier. Como essa regeneração é um pouco mais demorada, os potenciais de acção aparentam saltar de um nódulo para outro, motivo pelo qual este tipo de condução é designado por condução saltatória. Quanto maior o diâmetro de um axónio mielinizado, mais rápida é a sua condução, quer pelo facto da resistência longitudinal ser menor, quer pelo facto dos nódulos de Ranvier se encontrarem mais espaçados. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Neuroanatomia 31 Sinapse Embora haja neurónios que se encontram directamente acoplados, possibilitando que as correntes iónicas fluam directamente de um para outro, esse mecanismo não é muito comum. Na maioria dos casos, os neurónios comunicam uns com os outros por via de sinapses, através da libertação de transmissores químicos neuroactivos (neurotransmissores). Existem vários tipos de sinapses, classificadas de acordo com a sua origem e terminação, que influenciam as suas características funcionais: 1. Sinapses axo-dendríticas 2. Sinapses axo-espinhosas 3. Sinapses axo-somáticas 4. Sinapses axo-axonais 5. Sinapses dendro-dendríticas As sinapses químicas apresentam uma grande variedade de formas e dimensões, contudo, todas incluem, como componentes essenciais, um terminal pré-sináptico e um elemento pós-sináptico, separados por uma fenda sináptica, que apresenta entre 10 a 20 nm. Os elementos pré-sinápticos são geralmente expansões terminais dos axónios, ou expansões dos axónios en passage por outros elementos neuronais (designadas respectivamente por “botões terminais” e “botões en passage”). Contudo, em alguns casos específicos, as dendrites, ou até mesmo partes dos corpos celulares constituem elementos pré-sinápticos. Analogamente, embora o elemento pós-sináptico costume ser parte da superfície de uma dendrite, este pode se encontrar, alternativamente, num corpo celular, no segmento inicial do axónio, ou noutro terminal sináptico. Os elementos pré-sinápticos e pós-sinápticos são os principais locais envolvidos nos cinco componentes essenciais da transmissão sináptica química convencional: 1. Síntese do neurotransmissor 2. Concentração e armazenamento do neurotransmissor no elemento pré-sináptico, na preparação para a sua libertação 3. Libertação do neurotransmissor para a fenda sináptica 4. Ligação do neurotransmissor a moléculas receptoras envoltas em membranas pós-sinápticas 5. Término da acção do neurotransmissor Apesar de algumas porções das membranas dos elementos pré-sináptico e pós-sináptico aparecerem espessadas (formando as densidades pré-sináptica e pós-sináptica, que contêm partes do mecanismo de libertação e a maior parte dos receptores, respectivamente), o elemento pré-sináptico distingue-se pela presença de vesículas sinápticas preenchidas por neurotransmissores. Esta assimetria anatómica traduz a unidireccionalidade da transmissão sináptica – em resposta à despolarização, o terminal pré-sináptico liberta os neurotransmissores presentes em uma ou mais vesículas. Os neurotransmissores, por sua vez, difundem-se ao longo da fenda sináptica, ligando-se a moléculas receptoras presentes ao nível da membrana pós-sináptica, o que despoleta uma resposta do neurónio pós-sináptico. A maior parte das respostas sinápticas envolve mudanças no potencial celular, num sentido de hiperpolarização, ou despolarização. Uma resposta despolarizadora está associada a um potencial pós- sináptico excitatório (EPSP), enquanto uma resposta hiperpolarizadora está associada a um potencial pós-sináptico inibitório (IPSP). Cada um destes tipos de potencial pode ser transmitido de forma rápida (mas mais efémera) ou lenta (mas de forma mais prolongada e forte). Os neurónios normalmente recebem centenas ou, até mesmo, milhares de inputs sinápticos Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Neuroanatomia 32 provenientes de outros neurónios, sendo que esses inputs combinam os seus efeitos, para determinar se será despoletado um potencial de acção e qual a sua magnitude. O impacto de uma dada sinapse depende obviamente da quantidade de neurotransmissores libertada e do número de receptores pós- sinápticos presentes, bem como da distância ao local onde ocorre a sinapse. Síntese de neurotransmissores Quase todos os neurotransmissores conhecidos pertencem ou à categoria das aminas e aminoácidos, ou à categoria dos peptídeos (constituindo os neuropeptídeos). As pequenas moléculas transmissoras são sintetizadas no citoplasma do neurónio pré-sináptico, com recurso aos substratos disponíveis localmente (por exemplo, o acetato e a colina) e às enzimas que são transportadas com recurso ao transporte axonal lento. A produção de neuropeptídeos, por oposição, requer uma maquinaria de síntese proteica, que apenas existe na soma. De referir que os neuropeptídeos são sintetizados sob a forma de grandes proteínas precursoras, que são armazenadas em vesículas e conduzidas por transporte axonal rápido para as terminações sinápticas, sofrendo aquando do seu transporte, clivagem e processamento. Vesículas sinápticas e libertação dos neurotransmissores na fenda sináptica As vesículas sinápticas são os locais onde os neurotransmissores são armazenados, concentrados e protegidos de acções catabólicas, enquanto não são libertados. Ao nível das vesículas sinápticas encontramos vários tipos de neurotransmissores, mas predomina sempre um (o neurotransmissor predominante no sistema nervoso central, por
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