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INTRODUÇÃO Estudos epidemiológicos indicam que cerca de uma em cada cinco crianças apresenta al gum transtorno psiquiátrico ao longo da in fância. Também existem evidências de que acometimentos psiquiátricos na infância têm altos níveis de continuidade (Costello, Mustillo, Erkanli, Keeler e Angold, 2003) e estão relacionados a prejuízos importantes na vida futura dos indivíduos (Rohde et al., 2000). Hoje, não há dúvidas de que a fase inicial da vida tem papel central na consti tuição física, cognitiva e emocional dos su jeitos (Piccoloto e Wainer, 2007). Apesar disso, a área da saúde mental na infância ainda recebe pouca atenção de pesquisadores e clínicos (Rohde, Eizirik, Ketzer e Michalowksi 1999; Rohde et al., 2000; Caminha e Caminha, 2007). A situ ação é especialmente crítica na primeira e na segunda infâncias (do nascimento aos 3 anos e dos 3 aos 6 anos, respectivamente) (Zeanah, Bailey e Berry, 2009; Caminha, Soares e Kreitchmann, no prelo). Existem vários motivos para que isso ocorra, destacando-se: 1. a rápida alteração de padrões de compor tamentos na infância; 2. as diferenças individuais e culturais em termos de desenvolvimento; 3. a dificuldade em definir critérios de mor- bidade; 4. a baixa capacidade de comunicação ver bal das crianças e 5. a necessidade do uso de múltiplos infor mantes. Como consequências, a utilização de abordagens metodológicas clássicas (que primam pela validade interna) em pesquisa torna-se extremamente complicada (Rohde et al., 1999) e a avaliação de caso é dotada de diversas especificidades. Assim como no tratamento de adultos, a avaliação e a conceitualização de caso na infância são fundamentais para nortear o tratamento e o manejo clínico subsequente (Caminha e Caminha, 2007). Nesse sentido, este capítulo visa discutir algumas questões práticas da avaliação infantil, além de apre sentar que aspectos julgamos importantes serem avaliados, que estratégias podem ser utilizadas e quais enfoques devem ser prio- rizados na construção de uma conceitualiza ção cognitiva. QUESTÕES DE ORDEM PRÁTICA Idade/desenvolvimento infantil Conforme destacam Rohde e colaboradores (2000), para avaliar crianças é essencial que se tenha conhecimento de desenvolvimen to da faixa etária com a qual se está traba PSICOTERAPIAS COGNITIVO-COMPORTAMENTAIS: UM DIÁLOGO COM A PSIQUIATRIA lhando. Isso ocorre porque muitos compor tamentos comuns em certas idades podem ser considerados problemáticos se aparecem em outros momentos. Além disso, diferen tes estágios de maturação física, cognitiva e emocional requerem diferentes abordagens para a realização da avaliação e modificam a interpretação daquilo que está sendo ob servado (Caminha e Caminha, 2007). Ao fazer a avaliação do desenvolvi mento da criança, é importante considerar o contexto e as outras dimensões relevantes do caso. Cunha (2003, p. 34) exemplifica bem isso ao afirmar que o controle definitivo do esfíncter vesical deve ser alcançado, no máximo, ao redor dos três anos. Então, um episódio de aparente fracasso em fase posterior não teria maior significação, se fosse uma reação a uma situação estressante. Mas sua persistência já pode representar um sinal de alerta. É importante deixar claro que as distin ções de faixas etárias propostas por manuais de desenvolvimento infantil são geralmente teóricas, baseadas em médias, e devem ser flexibilizadas de acordo com o real estágio de desenvolvimento da criança e o julga mento clínico do avaliador. Informantes Na avaliação com crianças é crucial recorrer a diversas fontes de informação (pais, cuida- dores secundários, professores, irmãos mais velhos, etc.). Dependendo da idade, muitas vezes a criança não tem capacidade verbal e cognitiva de formular uma narrativa or ganizada e contextualizada sobre os seus problemas (Caminha e Caminha, 2007). De forma complementar, Marques (2009) sus tenta que, apesar de as crianças geralmente conseguirem relatar bem sintomas emocio nais e de dificuldades de sono, não são boas informantes em casos de hiperatividade, comportamento antissocial e outros. Também é considerado importante não se ater apenas aos relatos dos pais. Marsh e Graham (2005) pontuam que em muitos casos pode haver sérias discordâncias entre relatos dos pais, da criança e de outros in formantes (por exemplo, professores, cuida- dores). Isso pode ocorrer por diversos moti vos (não linearidade do comportamento da criança, negação, disputas familiares), que devem ser avaliados e revelam aspectos im portantes para o entendimento do caso. Estrutura O primeiro contato do terapeuta que inicia rá a avaliação da criança é com os pais ou responsáveis. Nesse primeiro contato, o te rapeuta buscará investigar os principais mo tivos da busca por tratamento, de onde vem o encaminhamento e as principais metas que a família busca. Também é no início que o terapeuta investigará dados de anamnese e do desenvolvimento da criança, seus prin cipais vínculos e com quem poderá contar no processo terapêutico. Ainda antes da chegada da criança, é importante que o terapeuta possa orientar os pais sobre a abordagem com a criança sobre a ida ao terapeuta. As crianças deverão sa ber que terapeutas são pessoas que ajudam as outras quando elas não estão conseguin do resolver seus problemas. Também deve rão ouvir dos pais que é a família quem está indo buscar ajuda, pois encontra-se diante de um problema que não está conseguindo resolver, sem nunca apontar a criança como o problema. Tudo isso nem sempre se resu me a uma única consulta. Então o terapeuta deverá organizar a(s) sessão (ões) de modo que possa abarcar todas essas questões antes da chegada da criança, preferencialmente. Nas sessões com a criança, o foco ini cial é predominantemente na construção da aliança terapêutica, bem como no levanta mento de dados que respondam pelo funcio namento da mesma. De modo resumido, o terapeuta deve rá ter materiais que facilitem a comunicação BERNARD RANGÉ & COLS. com a criança e que possam acessá-los no seu funcionamento cognitivo-comportamental. Como será mais adiante comentado, o uso de bonecos, fantoches, desenhos e cartinhas com expressões de emoções devem fazer parte do repertório inicial dos atendimen tos, porém sempre com foco no objetivo de avaliar e conceitualizar o caso. Os pais podem ainda ser chamados antes do término da avaliação, caso o tera peuta ainda encontre dúvidas a serem dis cutidas. Ao final do processo, deve-se escla recer o que foi avaliado e discutir o plano terapêutico com os pais. Também nos parece indicado que uma sessão com a criança junto com os pais possa fazer parte desse processo avaliativo, já que expressa literalmente os modos de funcio namento da família: comunicação, gerencia mento de situações-problema, resolução de problemas, liderança, manejo da frustração e construção de limites, entre outros. Por incluir outras pessoas além da própria criança, geralmente a avaliação e a conceitualização iniciais se estenderão por 7 ou 8 sessões (para um adulto, geralmente 4 sessões são suficientes). Lembrando que as sessões iniciais servem para orientar o tera peuta no seu plano de tratamento, mas que a avaliação deve ser continuamente constru ída e revista ao longo do trabalho (Rangé e Silvares, 2001; Knapp, 2004). 0 QUE E IMPORTANTE AVALIAR Existe um polêmico debate na literatura acerca do uso de modelos categóricos ou di mensionais para o entendimento e a avalia ção de psicopatologias. Em paralelo, auto res também discutem se o enfoque deve ser centrado na criança ou no sistema familiar e se o processo deve seguir uma estrutura ou ser realizado conforme o julgamento clínico do avaliador. Não entrando nos méritos es pecíficos das questões, nos posicionamos da seguinte maneira: 1. É importante que se considere a classi ficação nosológica e a categorização diagnostica de sintomas observados, mas a avaliaçãodeve ir além disso (Primi, 2010). Especialmente na infância, muitos estudos apontam que a dinâmica familiar e o estilo parental são fundamentais para o entendimento do caso. Como exem plo, estudos sobre fatores preditores de resultado de tratamento no transtorno de estresse pós-traumático em crianças mostraram que, especialmente no caso de pré-escolares, as variáveis mais importan tes foram de sofrimento parental, apoio emocional recebido pelos pais e apoio emocional efetivado pelos pais às crian ças traumatizadas (Cohen e Mannarino, 1998). 2. O uso de modelos categóricos apresenta sérias limitações na avaliação com crian ças. Muitos transtornos têm manifestações clínicas diferentes em crianças e adultos, que não são contempladas por manuais diagnósticos categóricos (Rohde et al., 2000). Ademais, muitos problemas que começam a se manifestar cedo não se ca racterizam como patológicos, mas podem ser sinalizadores de psicopatologias futu ras e devem ser considerados na avaliação (Caminha et al., no prelo). 3. O processo de avaliação deve ser diretivo e seguir uma estrutura ou um roteiro básico. Já na década de 1960, Zubin (1967; apud Cunha, 2003) demonstrou que entrevistas psiquiátricas não estruturadas tinham pouca fidedignidade e as conclusões varia vam significativamente entre psiquiatras. Além disso, Kwitko (1984; apud Cunha, 2003) aponta para o fato de que muitas vezes as queixas dos pais são focadas em comportamentos que perturbam a vida cotidiana da família, ignorando uma série de sintomas ou aspectos graves (caso estes não sejam perguntados). No Anexo 1, apresentamos um roteiro que pode servir de guia para uma avaliação mais estruturada na infância. PSICOTERAPIAS COGNITIVO-COMPORTAMENTAIS: UM DIÁLOGO COM A PSIQUIATRIA ESTRATÉGIAS E INSTRUMENTOS DE AVALIAÇÃO A entrevista clínica com a criança As entrevistas com as crianças deverão sem pre incluir objetos lúdicos, mas com obje tivos claros para o terapeuta. O brincar na Terapia Cognitivo-Comportamental deve ter um propósito claro. O uso de personagens de desenhos infantis, por exemplo, podem auxiliar na identificação de emoções e comportamen tos associados. Assim, mostrar o modo como Shrek fala com o amigo Burro quando está irritado ou o modo como ele fala com a es posa quando está com medo, podem indicar comportamentos específicos diante de tais emoções. Explorar fantoches ou dedoches pode auxiliar de modo significativo num role play que exemplifique as habilidades sociais da criança. Os desenhos podem elucidar cenas importantes da rotina escolar ou mesmo fa miliar. Um jogo qualquer pode evidenciar o modo como a criança lida com as regras ou mesmo com a frustração de perder. Desse modo, as entrevistas direciona das a crianças deverão ter uma linguagem diferenciada, se adaptar ao nível de desen volvimento delas e privilegiar os recursos lúdicos que sirvam para direcionar aquilo que o terapeuta busca investigar, sempre com foco nos problemas apresentados. Dependendo da idade da criança, tam bém é importante questionar o que ela pen sa sobre o problema relatado pela família e outras situações relevantes. Testes psicológicos Segundo resolução número 2 de 2003 do Conselho Federal de Psicologia (CFI> 2003), “os testes psicológicos são (...) de uso pri vativo do psicólogo” e podem ser definidos como: procedimentos sistemáticos de observa ção e registro de amostras de compor tamentos e respostas de indivíduos com o objetivo de descrever e/ou mensurar características e processos psicológicos, compreendidos tradicionalmente nas áre as emoção/afeto, cognição/inteligência, motivação, personalidade, psicomotrici- dade, atenção, memória, percepção, den tre outras, nas suas mais diversas formas de expressão, segundo padrões definidos pela construção dos instrumentos. O Satepsi (Sistema de Avaliação dos Testes Psicológicos) disponibiliza on-line uma relação atualizada periodicamente dos testes psicológicos com parecer favorável para sua utilização com a população brasi leira (seguindo vários critérios que vão des de clareza do manual até validação e nor- matização brasileira). Na atualização de março de 2010, existiam 98 testes e 116 diferentes siste mas de avaliação (por exemplo, Rorschach é um teste, mas pode ser interpretado por diferentes sistemas) regularizados para a população brasileira, sendo 28 passíveis de aplicação em crianças de 12 anos ou menos. Destes 28, 15 são destinados a investigar o desempenho e a maturidade da criança em aspectos cognitivos, 4 focados em desenvol vimento global ou percepto-motor, 6 ava liam aspectos da personalidade (a maioria com referencial psicanalítico) e 3 são foca dos em sintomas ou habilidades específicas (sintomas de TDAH). Menos da metade pode ser usado com a população que vai do nascimento aos 6 anos. Ainda existem 4 tes tes destinados a avaliar habilidades paren- tais e relações familiares. Considerando que na lista de 2004 do Satepsi existiam apenas 55 sistemas de avaliação com parecer favorável (menos da metade de 2010) (Primi, 2010), notamos um grande avanço na normatização e na va lidação de instrumentos brasileiros. Apesar disso, a possibilidade de uso de testes psico lógicos com crianças ainda é limitada com BERNARD RANGÉ & COLS. menores de 6 anos ou quando não se busca avaliar o desempenho cognitivo. Outros instrumentos e escalas Além dos testes psicológicos registrados no Satepsi, existem diversos outros instrumen tos que podem ser utilizados para a avalia ção com crianças. A cada ano são normati- zados e validados novos instrumentos que avaliam aspectos gerais e específicos de saú de mental em crianças. Tendo em vista que seria impraticável nos aprofundarmos nos instrumentos específicos (e tal discussão ficaria rapidamente desatualizada), abaixo apresentaremos um breve resumo dos prin cipais instrumentos de nosso conhecimento que podem ser utilizados para avaliação abrangente e que passaram por um processo de validação no Brasil. CBCL - Um dos sistemas mais utiliza dos no mundo para identificar problemas de saúde mental são as escalas “Achenbach System of Empirically Based Assessment” (ASEBA), da qual faz parte, entre outras, o “Child Behavior Checklist” (CBCL). O CBCL é um instrumento que contém mais de 100 itens e avalia aspectos adaptativos e maladaptativos na infância e na adoles cência, provendo escores sobre problemas de comportamento intemalizantes e exter- nalizantes, bem como um perfil do avaliado em relação a oito síndromes (por exemplo, dificuldades de linguagem/motoras e pro blemas de autocontrole) e seis categorias baseadas no DSM-IV (por exemplo, proble mas de conduta de déficit de atenção e hi- peratividade), sendo um bom instrumento para diferenciar populações clínicas e não clínicas. Geralmente pode ser completado em 15-20 minutos e é feito para ser pre enchido pelos pais ou outros cuidadores. Também compõe o sistema ASEBA o “Youth Self Report” (YSR), que é preenchido pelo próprio adolescente (de 11 a 18 anos) e o “Teacher Report Form” (TRF), que é preen chido por professores ou algum outro mem bro da escola que conheça a criança neste ambiente por pelo menos 2 meses. Tanto o YSR quanto o TRF contêm praticamente as mesmas perguntas que o CBCL, o que per mite que os escores sejam comparados após a avaliação (Achenbach e Rescorla, 2001). No Brasil, a versão da década de 1990 do CBCL para crianças e adolescentes de 4 a 18 anos (CBCL/4-18) foi validado por Bordin, Madri e Caeiro (1995). Hoje, uma equipe de pesquisadores de vários estados liderados por Edwiges Silvares, da USI? tra balha na tradução, na validação e na nor- matização brasileira das versões atuais do sistema ASEBA (publicados em 2001 na língua inglesa). Nesta versão, existem duas versões do CBCL, uma para crianças de 1 ano e meio até 5 anos (CBCL/1,5 - 5) e uma para crianças e adolescentes dos 6 aos 18 anos (CBCL/6-18). Por serum instrumento muito estudado em todo o mundo, de fácil utilização, abrangente e que permite com paração de dados entre informantes, tem grande valor na realização de pesquisas, no rastreamento de problemas em saúde men tal e no uso clínico cotidiano. K-SADS - O “Schedule for Affective Disorders and Schizophrenia for School-Age Children” (K-SADS) é outro instrumento uti lizado para diagnóstico psiquiátrico na in fância e na adolescência (dos 6 aos 18 anos) que teve uma versão brasileira desenvolvida e validada. Avalia a ocorrência de diversos transtornos psiquiátricos identificados no DSM-iy tais como transtornos do humor, de ansiedade, alimentares, psicóticos, de déficit de atenção e hiperatividade, entre outros. A sua aplicação dura de 50 a 90 minutos, tan to a criança quanto os pais são informantes e os critérios diagnósticos são baseados no DSM-III-R e no DSM-IV (Polanczyk et al., 2003). DAWBA - O “Development and Well Being Assessment” (DAWBA) é constituído por uma série de questionários aplicáveis aos pais, aos professores e à própria criança (quando maior do que 11 anos). Os questio nários contêm questões abertas e fechadas e podem ser administrados por leigos, que anotam as respostas das questões e depois PSICOTERAPIAS COGNITIVO-COMPORTAMENTAIS: UM DIÁLOGO COM A PSIQUIATRIA as entregam para um clínico experiente, que avalia as respostas e emite um diagnóstico baseado no DSM-IY Foi originalmente pro posto para ser uma avaliação da presença de transtornos psiquiátricos em crianças e adolescentes de 5 a 16 anos e a aplicação de cada questionário leva em tomo de 50 mi nutos com os adultos e 30 minutos com os jovens. A validação brasileira foi publicada em 2004 e ampliada para contemplar trans tornos alimentares em 2005 (Fleitlich-Bilyk e Goodman, 2004; Moya et al., 2005). SDQ - O “Strenghts and Difficulties Questionnaire” (SDQ) é um questionário que pode ser aplicado com pais e professo res e rastreia problemas comuns de saúde mental na infância e na adolescência (3 à 16 anos). Contém 25 itens divididos em 5 categorias (hiperatividade, sintomas emo cionais, problemas de conduta, relaciona mentos interpessoais e comportamentos pró-sociais). Tem como principais vanta gens o fato de a aplicação ser rápida e fácil, ser utilizado em vários países, demonstrar boas características psicométricas e ter sido validado e normatizado para a população brasileira (Cury e Golfeto, 2003; Stivanin, Scheuer e Assumpção Jr, 2008). Avaliação neuropsicológica Segundo Lezak, Howieson e Loring (2004), a neuropsicologia é a ciência aplicada que objetiva estudar as relações entre o funcio namento do cérebro, a cognição e o compor tamento. A avaliação neuropsicológica é um método de examinar a atividade cerebral através de seus produtos comportamentais. Apesar de ter diversas interfaces com a ava liação psicológica clássica, se diferencia des ta por seu construto conceituai de referência partir do funcionamento cerebral. De acordo com Borges, Trentini, Bandeira e Dell’Aglio (2008), a avaliação neuropsicológica em crianças se destaca “na investigação de dano cerebral após trauma tismo craniano e acidente vascular, na ava liação pré e pós-intervenção cirúrgica e em problemas de aprendizagem”. Também tem sido usada, de forma mais restrita, na ava liação do funcionamento de crianças com quadros psicopatológicos (em especial no transtorno de déficit de atenção e hiperati vidade e nos quadros de autismo). Ainda que existam baterias neurop- sicológicas de triagem do funcionamento geral dos testados (o que pode ser especial mente útil em pesquisas ou contextos mais amplos de saúde pública), na prática clínica são as circunstâncias da vida de cada indi- viduo que irão nortear estratégias, priorida des e até mesmo interpretações da avaliação (Cunha, 2003). Como diferentes aspectos neuropsicológicos requerem estratégias dis tintas e específicas de avaliação (que tam bém devem ser adequadas à idade e outras características do sujeito), não temos como apresentar uma discussão aprofundada do tema. Para os interessados, recomendamos, além do estudo em artigos específicos, os livros-texto de Strauss, Sherman e Spreen (2006) e Lezak e colaboradores (2004). Para aqueles que não pretendem traba lhar com esse tipo de avaliação, é importan te ter em vista quando um exame neuropsi- cológico pode ser útil ou necessário. Nesse sentido, Lezak e colaboradores (2004) afir mam que uma avaliação neuropsicológica pode ter os seguintes objetivos: 1. Diagnóstico. Pode ser útil, para dis criminar entre sintomas psiquiátricos e neurológicos, fazer uma triagem de possíveis danos neurológicos, distinguir entre diferentes condições neurológicas, avaliar o impacto de lesões neurológicas, prover dados comportamentais para o local e a extensão de uma lesão e sobre o prognóstico de determinadas condições. 2. Assistência ao paciente, planejamento e tratamento. Pode responder questões a respeito da capacidade que o paciente tem de se cuidar em várias instâncias ou ser utilizado para acompanhar a altera ção em funções cerebrais e cognitivas resultantes de uma patologia ou de um tratamento. BERNARD RANGÉ & COLS. 3. Pesquisa e questões forenses. Pode ser utilizado para estudar a organização e funcionamento da atividade cerebral bem como seus correlatos comportamentais. Também serve como poderoso instru mento para a avaliação de sujeitos em pesquisas e em procedimentos legais. A CONCEITUALIZAÇÁO COGNITIVA NA INFANCIA Logo após a demarcação dos problemas do paciente, ou seja, a compreensão psicopa- talógica do caso, o clínico terá a capacida de de fazer inferências dentro dos modelos cognitivos, ou seja, trabalhar com o diag nóstico teórico, buscando entender os sin tomas apresentados conforme os modelos cognitivos. Beck, Rush, Shaw e Emery (1997) iden tificaram a conceitualização do problema como o primeiro passo no estabelecimento de um plano de tratamento no referencial cognitivo-comportamental. Quando o pro cesso de conceitualização se foca na infân cia, requer atenção redobrada do terapeuta por envolver múltiplos fatores associados, como família, escola, outros profissionais da saúde, outras pessoas-referência da criança, sendo parte de um princípio de psicoterapia cognitiva básico, fundamental para a construção de um plano terapêutico eficaz. É um processo que envolve múlti plos olhares e busca conjugar numa única conceitualização os modos de funcionar de uma criança. Para Rangé (2001), formular um caso é elaborar um modelo, uma representa ção esquemática do problema do paciente e suas consequências diretas e indiretas. É uma teoria sobre o paciente que busca 1. relacionar todas as queixas de forma ló gica, orgânica e significativa; 2. explicar os motivos do desenvolvimento e da manutenção de tais dificuldades; 3. fornecer predições sobre seus comporta mentos e 4. possibilitar a construção de um plano de trabalho (Rangé e Silvares, 2001). É a partir da conceitualização que o terapeuta será capaz de identificar as prin cipais capacidades cognitivas apresentadas pelo paciente e maximizá-las no tratamento clínico (Caminha e Caminha, 2007). É fundamental que, durante a etapa de avaliação e conceitualização do caso, o terapeuta busque clarear os principais comportamentos-problema da criança e que, a partir disso, possa iniciar um processo de identificação de situações desencadeadoras, bem como de emoções e pensamentos asso ciados. Diante desse levantamento, o tera peuta consegue formular junto ao paciente e a sua família as principais metas do trata mento, bem como a hierarquia daquilo que será trabalhado em forma de etapas. Conforme postula Stallard (2010), a contribuição dos pais para aparecimento e manutenção dos problemas infantis é reco nhecida, incluída na conceitualização e tam bém abordada na intervenção. Muitas vezes estes acabam por reforçar um comportamento desadaptativo do filho ou ter dificuldades em ajudar seus filhos a enfrentar situações importantes. Dessa forma, um pai ansioso pode ser incapaz de ajudar o filho no en- frentamento dos medos, assim como um pai deprimido pode ter dificuldade em elogiar comportamentos adequados do filho. É importante ressaltar que muitas vezes quando uma criança manifesta um comportamento-problema, na verdade ela não está criando um problema, e sim ten tando resolver, porém, não da forma mais adequada/adaptativa (Silvares e Gongorra, 1998). Por isso, é fundamental investigar (e incluir na conceitualização) os dados do fun cionamento familiar e os motivos do encami nhamento e da busca por atendimento. No modelo da terapia cognitivo- -comportamental infantil o ponto de parti da são as emoções, as quais as crianças têm maior facilidade de identificar e monitorar. Para Reinecke, Dattilio e Freeman (1996), crianças em fase escolar são incapa zes de responder a técnicas utilizadas com PSICOTERAPIAS COGNITIVO-COMPORTAMENTAIS: UM DIÁLOGO COM A PSIQUIATRIA adultos como, por exemplo, os registros de pensamentos disfuncionais, devido à dificul dade em identificar seus pensamentos e aces sar seus estados emocionais específicos. Diante disso, a identificação das emo ções seria um modo de acessar esse conteú do. O uso do baralho das emoções (Caminha e Caminha, 2009) acaba sendo um instru mento que facilita esse acesso. As crianças são convidadas a escolher as cartinhas que expressem suas principais emoções e, a par tir daí, o terapeuta explora sua narrativa identificando as situações desencadeadoras e posteriormente os balões de pensamento e seu repertório comportamental. Para exem plificar esse processo, abaixo apresentamos uma vinheta de caso clínico: T: Olha só, temos aqui algumas cartinhas que expressam emoções. Você conhece essas emoções? (Mostrando apenas as emoções primárias.) P: Sim, hoje mesmo me senti assim quando estava saindo da escola (aponta para a emoção “triste”). T: Mesmo? O que houve que te deixou as sim? P: Minha amiga disse que tinha convidado a Joana para brincar com ela na casa dela e que não ia me convidar. T: Isso o deixou triste? P: Sim. T: Se a gente pudesse medir o tamanho da tua tristeza aqui nessa cartinha do termômetro, que tamanho ela teria? P: Hum... forte. T: Certo, você ficou triste na intensidade “forte”. Vamos desenhar essa situação e sua carinha nesse momento? P: Sim (faz o desenho, onde aparecem as duas meninas conversando, ela com o rostinho triste). T: Se fizéssemos aqui um balão de pensa mento, como aqueles das histórias em quadrinho, o que será que teria dentro dele? P: (silêncio) T: O que passou pela sua cabeça na hora em que sua amiga disse que você não seria convidada, mas a Joana seria? P: Que ela não gostava de mim. T: Então vamos escrever isso no balão do pensamento. (Menina escreve.) O que mais? P: Que eu devo ser chata para ela não ter me convidado (escreve). T: O que mais? P: Acho que foi só isso. T: Ok. Agora só falta entender o que acon teceu depois disso tudo, ou seja, o que você fez quando se sentiu triste e com essas idéias passando pela sua cabeça? P: Eu fui para o carro da mãe. T: E quando estavas no carro da mãe, o que mais aconteceu? P: Eu chorei um pouquinho, mas aí ela conversou comigo e eu me acalmei. A partir desse trecho, o terapeuta já encontra material para construir um regis tro do processamento da criança na situa ção. No Anexo 2 apresentamos um modelo de RPD para a prática da TCC infantil pre enchido com o caso relatado. Também in cluímos no Anexo 2 um item de registro dos pais, que apesar de não ser contemplado na vinheta clínica disposta, pode ser bastante útil no trabalho com crianças muito peque nas ou em situações que envolvem proble mas de conduta e de limites. Utilizando esses registros, o terapeuta consegue construir com a criança e sua fa mília um diagrama de conceitualização cog nitiva. Para a construção deste diagrama, o terapeuta também pode utilizar figuras de animais para identificar a tríade cognitiva da criança, já que nessa proposta a tríade acaba sendo integrada ao diagrama, com um foco específico na visão do self, da famí lia e do mundo. No Anexo 3 apresentamos uma propos ta de diagrama de conceitualização cognitiva em casos infantis. Este modelo foi constru ído a partir de extensa prática e supervisão de casos na infância. Reconhecemos que este modelo pode acabar deixando de fora aspectos importantes, de forma que deve servir mais como instrumento clínico para auxiliar os terapeutas no entendimento teó rico de seus casos do que como uma propos- 140 BERNARD RANGÉ & COLS. ta teórica do processamento de informações na infância. REFERÊNCIAS Achenbach, T. M., & Rescorla, L. A. (2001). 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