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1 OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM � Compreender o gênero narrativo sob uma perspectiva teórico- histórica; � Reconhecer os elementos essenciais às narrativas. A narrativa de ficção I: o gênero narrativo e seus elementos INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS LITERÁRIOS INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA PARAÍBA UNIDADE 03 AULA 08 2 INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS LITERÁRIOS - A narrativa de ficção I: o gênero narrativo e seus elementos 2 COMEÇANDO A HISTÓRIA Caro(a) aluno(a), certamente você já contou e ouviu histórias. Todos contamos, lemos e ouvimos histórias diariamente. Imagine-se, então, num mundo e num tempo em que ainda não existia a escrita e os conhecimentos eram repassados de geração em geração por meio da oralidade. Imagine-se num tempo em que a ciência ainda não existia (pelo menos nos moldes que a concebemos hoje em dia) e o ser humano necessitava entender determinados fenômenos naturais. Olhava o céu, o mar, as estrelas e sequer tinha noção de que o nosso planeta era uma bola. Até a noção temporal era outra, pois tempo se baseava na colheita, por exemplo. Se hoje em dia nos deparamos com enigmas, imagine naquele "tempo de antigamente", quando nada se explicava e os medos iam tomando conta das pessoas. Os medos das tempestades, dos vulcões, dos eclipses, dos tufões. O que fizeram nossos ancestrais para vencer esses medos? Criaram os mitos, criaram histórias de deuses, criaram personagens para as iras e os amores, as festas e as guerras. E, mesmo vencidos os medos, por meio das explicações científicas, séculos depois, continuaram criando histórias, até hoje, porque, como diz Antonio Candido (2004, p. 174) Não há povo não há homem que possa viver sem ela [a literatura], isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação. Assim como todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de passar as vinte e quatro horas do dia sem alguns momentos de entrega ao universo fabulado. E o que vem a ser este “universo fabulado” de que fala Antonio Candido? É simples! Num sentido amplo, fabulação significa algo imaginado e que, necessariamente, não precisa ter uma correspondência direta e real com a realidade. É nesse universo em que a literatura se insere: no universo da imaginação, da invenção, da criação humana. E dessa criação surgem as narrativas, as histórias inventadas pelos escritores. E tudo isso é necessidade humana. 3 3 TECENDO CONHECIMENTO 3.1 O gênero narrativo Conforme já vimos na aula 7 desta unidade, os gêneros literários têm sua gênese na Grécia Antiga. No entanto, ao longo dos séculos, foram se transformando, de maneira que, hoje em dia, pode-se afirmar que basicamente são quatro as formas narrativas mais cultivadas: romance, novela, conto e crônica. Na Antiguidade, a epopeia ou o poema épico, nos termos de Aristóteles, era o modo de se narrar histórias, ou seja, imitação em modo narrativo. Chamava- se poema (épico) porque se tratava de histórias contadas em versos. Dos exemplos mais antigos, podemos citar as obras gregas Ilíada e Odisseia, de Homero (século VIII a. C.). Vejamos o que diz Anatol Rosenfeld (2006, p. 24) sobre o gênero épico, o qual originou o que, hoje em dia, comumente conhecemos como gênero narrativo: O gênero épico é mais objetivo que o lírico. O mundo objetivo (naturalmente imaginário), com suas paisagens, cidades e personagens (envolvidas em certas situações), emancipa-se em larga medida da subjetividade do narrador. Este geralmente não exprime os próprios estados de alma, mas narra os de outros seres. Participa, contudo, em maior ou menor grau, dos seus destinos e está sempre presente através do ato de narrar. Mesmo quando os próprios personagens começam a dialogar em voz direta é ainda o narrador que lhes dá a palavra, lhes descreve as reações e indica quem fala, através de observações como “disse João”, “exclamou Maria quase aos gritos”, etc. Com essas palavras de Rosenfeld, compreendemos que alguns elementos narrativos (como o narrador, a personagem, o espaço), essenciais para o gênero narrativo, e seus desdobramentos em algumas formas nos dias de hoje, já se configuravam na Antiguidade, o que nos permite dizer, por exemplo, que o romance, forma nascida na modernidade, apresenta em seus elementos correspondências com a epopeia. No entanto, não podemos jamais dizer que são semelhantes, que têm o mesmo propósito no que se refere aos seus princípios estéticos. Afinal, são formas de representação literária muito distantes no tempo, nascidas de necessidades humanas bem diferentes. Ora, na UNIDADE 03 AULA 08 4 INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS LITERÁRIOS - A narrativa de ficção I: o gênero narrativo e seus elementos epopeia, as histórias são de heróis e de uma coletividade; já na modernidade, é a individualidade uma característica bastante presente. Dentre as formas mais cultivadas atualmente, podemos dizer que o romance seria, portanto, na modernidade, o equivalente à epopeia na Antiguidade. Importante destacar que Dom Quixote (século XVII), do espanhol Miguel de Cervantes, é considerado o primeiro romance, ou seja, o romance, como gênero literário, nasceu na modernidade, coincidindo, por exemplo, com o surgimento da imprensa. Delimitado o surgimento histórico das narrativas, voltemos agora as nossas atenções para os elementos essenciais ao gênero narrativo, apresentando, conforme cada exemplo, as formas mais cultivadas atualmente. Lembremos, no entanto, que tal assunto será minuciosamente tratado na disciplina Teoria Literária II. 3.2 Os elementos narrativos Eis um assunto já bastante discutido, pois, desde os nossos primeiros anos de escola, ouvimos de nossos professores de Língua Portuguesa os tais elementos da narrativa. No entanto, é importante recuperarmos aqui esse assunto, uma vez mais, aprofundando-o no que for possível, para podermos entender melhor as formas narrativas. Assim sendo, comecemos nosso assunto entendendo que as narrativas, independentemente de sua extensão, são elaboradas levando-se em conta cinco elementos básicos e essenciais: tempo, espaço, personagem, narrador e enredo. 3.3 Tempo narrativo É a duração que a história leva para acontecer. Há histórias que acontecem em algumas horas (o conto "Amor", de Clarice Lispector), outras em alguns anos (O amor nos tempos do cólera, do colombiano Gabriel Garcia Márquez), no tempo de vinte e quatro horas (Os ratos, de Dionélio Machado), em mil e uma noites (a história de Sahrazad). 5 Lembra da história de Sahrazad? Aquela do Livro das mil e uma noites? Aquela considerada heroína por encontrar nas histórias que vai contando noite após noite a sua estratégia para escapar da morte de seu esposo, o rei Sahriyar. Por ter sido traído pela primeira esposa, com um escravo, o rei tomou a decisão drástica de se casar com uma mulher diferente a cada noite e mandar matá-la no dia seguinte. Sahrazad, por sua vez, ao casar-se com o rei, o seduz e o encanta com suas histórias fabulosas, a cada noite uma história diferente, num “repertório fantástico que até hoje nenhuma outra obra humana igualou” (JAROUCHE, 2005, p. 9). O tempo é, portanto, elemento construído conforme a necessidade interna da própria narrativa. E pode ser psicológico ou cronológico. O último refere- se ao tempo real da história, que pode ser mensurado em tempo de relógio, de calendário. O primeiro diz respeito ao que se passa na mente, seja dos personagens, seja do narrador. É um tempo imaginado, um tempo do sonho, por exemplo, sobre o qual muitas vezes não se tem muita noção lógica. Noutras palavras, a categoria do tempo na narrativa não é algo tão simples em comparação à noção habitual que temos do tempo. E que noção é essa? Pensemos um pouco... Podemos dizer que no mundo real pensamos o tempo conforme nos impõem o relógio e o calendário, ou, ainda, pelas noções de passado, presente e futuro. O fato é que, numa mesma narrativa de ficção, o tempo pode variar de perspectiva. Como assim?Considerando-se que a história pode ser contada concomitantemente pelo narrador e pelos personagens que compõe a narrativa, cada uma dessas figuras poderá utilizar uma perspectiva diferente do tempo. Um exemplo bastante peculiar do tempo narrativo é o romance Benjamim, de Chico Buarque de Holanda (1995), no qual a história do protagonista, Benjamim Zambraia, acontece “na venda dos olhos” e na “velocidade de uma bala”, ou seja, naqueles instantes que antecedem a morte e em que a vida é toda repassada na memória. Tudo se extinguiria com a velocidade de uma bala entre a epiderme e o primeiro alvo letal (aorta, coração, traquéia, bulbo), e naquele instante Benjamim assistiu ao que já esperava: sua existência projetou-se do início ao fim, tal qual um filme, na venda dos olhos. (HOLANDA, 1995, p. 9) UNIDADE 03 AULA 08 6 INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS LITERÁRIOS - A narrativa de ficção I: o gênero narrativo e seus elementos Assim inicia e termina o romance. A trama que começa a partir daqui é justamente o que se passa na memória do protagonista: a sua existência. No que se refere ao tempo narrativo, a questão está no fato de toda a história ser narrada como se narra naturalmente uma história: apresentando as ações dos personagens, suas falas e sentimentos. No entanto, o leitor sabe que tudo acontece no intervalo de uma bala, ou seja, segundos antes da morte do protagonista. Outro fator importante do tempo nesse romance é a alternância entre passado e presente, que o narrador de terceira pessoa faz: ao lembrar os fatos ocorridos em sua vida, instantes antes de morrer, o protagonista, pela voz do narrador, alterna entre o passado e o presente, relacionando a cada tempo uma personagem feminina diferente: no presente, Ariela Masé; no passado, Castana Beatriz. Vejamos o que diz o filósofo e ensaísta literário Benedito Nunes (2003, p. 18- 19) sobre a categoria do tempo: A experiência da sucessão dos nossos estados internos leva-nos ao conceito de tempo psicológico ou de tempo vivido, também chamado de duração interior. O primeiro traço do tempo psicológico é a sua permanente descoincidência com as medidas temporais objetivas. Uma hora pode parecer- nos tão curta quanto um minuto se a vivemos intensamente; um minuto pode parecer-nos tão longo quanto uma hora se nos entediamos. Variável de indivíduo para indivíduo, o tempo psicológico, subjetivo e qualitativo, por oposição ao tempo físico da Natureza, e no qual a percepção do presente se faz ora em função do passado ora em função de projetos futuros, é a mais imediata e mais óbvia expressão temporal humana. (Grifos do autor.) As narrativas de ficção, portanto, utilizam-se dessa noção do tempo definida por Nunes como “a mais imediata e mais óbvia expressão temporal humana”, ou seja, o tempo individual, a subjetividade a que se subjuga esse tempo, a variação de indivíduo para indivíduo. Nesses termos, podemos afirmar que o elemento do tempo nas narrativas de ficção é recurso narrativo intimamente relacionado aos demais elementos na mesma equivalência de importância, ou seja, não se trata de construção aleatória. Se o escritor opta por determinado(s) tempo(s) é por uma questão de causalidade e não de casualidade, ou seja, 7 devemos sempre, ao ler narrativas de ficção ou textos literários de qualquer outro gênero, estar atentos aos seus elementos estruturais, aos seus recursos estéticos, pois a elaboração da obra, pelo escritor, passa, especialmente, pela escolha de tais recursos, o que nos permite afirmar que na literatura de muita qualidade nada é casual. 3.4 O espaço narrativo A palavra "espaço" já diz tudo: trata-se do lugar onde a história acontece. Esse elemento narrativo, assim como o tempo, muitas vezes não é tão fácil identificar, mas é elemento essencial. Toda história necessita de um lugar, de um cenário, de um espaço para acontecer. Claro que uma narrativa pode acontecer em vários espaços. O espaço narrativo também pode estar interligado ao tempo. É o que se chama de elemento espaço-temporal da narrativa. Noutras palavras, quando se conta na história algo que aconteceu, utilizando-se do recurso do flashback, e intercalando-o a ações do presente, muitas vezes esses tempos dizem respeito aos espaços onde as ações acontecem e vice-versa. Por exemplo, no conto "Primeiro de Maio", Mário de Andrade realiza essa relação espaço-temporal, anunciada, inclusive, no título: a história se passa no dia em que se celebra o trabalho, portanto, revela um tema que diz respeito ao proletariado e, por conseguinte, ao capitalismo e à luta de classes. Numa primeira leitura do conto, chama a atenção a despersonificação do protagonista e dos poucos personagens, cujas identidades são números. O tempo narrativo é de doze horas. O espaço corresponde a alguns lugares (ruas, praças, instituições) de São Paulo, cidade muito “cantada” por Mário em sua obra. O enredo centra-se no desejo do protagonista de celebrar o dia do trabalho e se desenrola na busca incessante de espaços onde a data pode estar sendo celebrada. E, dessa maneira, o protagonista perambula por lugares importantes e históricos da cidade. O conto é narrado em terceira pessoa, mas muito próximo do protagonista, pois a mudança da voz narrativa ocorre instantaneamente e a presença maciça do discurso indireto livre reitera essa aproximação. A linguagem fácil, coloquial, herança do Modernismo, de cujo movimento Mário foi um dos mais importantes, ao lado de Oswald de Andrade, é personificada na voz do personagem 35, por meio do uso de vocábulos próprios da oralidade, uma das conquistas dos modernistas de 1922. UNIDADE 03 AULA 08 8 INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS LITERÁRIOS - A narrativa de ficção I: o gênero narrativo e seus elementos No conto "Primeiro de Maio", de Mário de Andrade, a busca que o personagem 35 realiza pela celebração do Dia do Trabalho é, ao mesmo tempo, a busca de um espaço onde haja a possibilidade de construção do proletariado. Esse espaço é utópico e os personagens 35 e 22 reconhecem esse não- lugar presente, embora sugiram, por meio de suas ações finais, uma possibilidade imanente da existência de lugares reais e, por isso, perceptíveis, do ponto de vista ficcional e ideológico.Figura 1: Mário de Andrade Vejamos o que diz Antônio Dimas (1985, p. 33) sobre o espaço narrativo: Na questão do espaço narrativo, o ponto central que orienta a discussão e que divide as suas águas diz respeito à utilidade ou à inutilidade dos recursos decorativos empregados pelo narrador em sua tentativa de situar a ação do romance [ou mesmo de outra forma narrativa]. Em outras palavras: até que ponto os signos verbais utilizados limitam-se apenas a caracterizar ou a ornamentar uma dada situação ou em que medida eles a ultrapassam, atingindo uma dimensão simbólica e, portanto, útil àquele contexto narrativo. O que é acidental e extrínseco à ação; o que lhe é essencial e, portanto, intrínseco? Qual é, enfim, o grau de organicidade/inorganicidade de um determinado elemento narrativo? (Grifos do autor.) Respondendo a esses questionamentos de Dimas, na leitura do conto de Mário de Andrade, podemos afirmar que o espaço é elemento essencial e intrínseco à composição da trama, ou seja, a caracterização do personagem 35 se constrói de acordo com os espaços que vai ocupando na narrativa, o que determina o seu grau de organicidade, devido à sua utilidade no contexto. 9 3.5 Personagem Quando pensamos em história, seja de ficção ou não, pensamos natural- mente nas pessoas que a vivem, nas ações que estas realizam, nas falas que de suas bocas são proferidas. Não existe história sem esse elemento essencial porque não existe ação sem o sujeito que a realize, e o personagem é sujeito das ações narrativas. Não existe narrativa sem ação e, nas narrativas de ficção, cabe ao personagem realizá-la. A questão central aqui é entender que o perso- nagem não se constrói sozinho. Ele depende de outros elementos narrativos,bem como estes dependem dele. Porém, é correto dizer que, baseados no que afirma Antonio Candido (2005, p. 54), cabe ao personagem tornar vivos o enre- do e as ideias representadas nas narrativas. Assim como os demais elementos narrativos ficcionais, o personagem pode ser visto como uma representação da realidade, nos termos aristotélicos, sobretudo da definição de mimeses (de imitação). No entanto, por mais que esteja ligado a uma realidade, o personagem é um ser inventado, um ser fictício, inclusive por ser inventividade da mente humana, da observação que o escritor lança sobre o mundo. E, mesmo quando é pura criação, o personagem se liga à realidade pelo aspecto da verossimilhança, ou seja, representa ações, sentimentos e falas de seres humanos, em toda a sua complexidade humana. Vejamos o que diz Antonio Candido (2005, p. 79-80) a respeito: [...] a verossimilhança, o sentimento de realidade, depende sob este aspecto, da unificação do fragmentário pela organização do contexto. Esta organização é o elemento decisivo da verdade dos seres fictícios, o princípio que lhes infunde a vida, calor e os faz parecer mais coesos, mais apreensíveis e atuantes do que os próprios seres vivos. É importante destacar que são várias as possibilidades de criação de personagens. A caraterização delas vai depender, dentre outros aspectos, da estrutura interna da própria narrativa de ficção e isso muda de acordo com a época. Por exemplo, no século XIX, quanto mais se ligavam aos traços reais da vida humana, mais realistas se tornavam, confirmando os princípios estéticos de uma época. Hoje em dia, são diversas as possibilidades de configurações de personagens ficcionais, inclusive porque são diversas as possibilidades de existências humanas. Raduan Nassar, por exemplo, é escritor brasileiro contemporâneo bastante UNIDADE 03 AULA 08 10 INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS LITERÁRIOS - A narrativa de ficção I: o gênero narrativo e seus elementos representativo no que se refere à construção de personagens. Escreveu poucos livros, dentre os quais destacamos a novela Lavoura arcaica, por ser um livro de personagens complexos, com forte teor, ao mesmo tempo, lírico e trágico. Podemos dizer que se trata de uma obra literária de personagem porque a narração dos fatos corresponde a uma aventura de linguagem, ou seja, as ações, os sentimentos e as sensações dos personagens perpassam pela voz, pelo pensamento, pelo sentimento de André, protagonista da história. André é um adolescente que resolve sair de casa. Sua família é representada por uma figura patriarcal muito forte: André rememora os sermões do pai na cabeceira da mesa, ao redor da qual muita coisa se discute. O irmão Pedro resolve trazer André de volta para casa. O encontro dos dois se dá de forma muito “franca” e regado a vinho. André se desabafa com o seu irmão e, através de suas reflexões, resolve “desmascarar” sua família e a figura do pai, ou seja, mostrar a família pelo avesso. A obra é dividida em duas partes: “A partida” e “O retorno”. No retorno à casa da família, André é tido como enfermo. À mesa, no diálogo com o pai (um acerto de contas que deixa o pai furioso porque André fala por simbologia, desmistificando os sermões do pai ouvidos durante a vida inteira), que pede a André que conte tudo sem dissimular para poder pôr as ideias em ordem. A resposta de André, impedido de revelar, de fato, o seu segredo (a paixão pela irmã Ana), diz o seguinte: “Toda ordem traz uma semente de desordem, a clareza uma semente de obscuridade, não é por outro motivo que falo como falo” (p. 160). Para entender o mistério, é necessário que se leia integralmente a obra, inclusive para apreender dessa leitura todo o lirismo e a tragicidade configurados em forma de linguagem. Importante destacar, também, que o livro recebeu versão cinematográfica pelo diretor brasileiro Luís Fernando Carvalho, bastante premiada em festivais pelo mundo. 3.6 Narrador Iniciemos esse tópico pensando no seguinte: seria possível uma narração sem a figura do narrador? Num primeiro momento, somos impulsionados a dizer que “não, não seria possível!”. E não seria mesmo! Toda narração necessita de uma figura que a narre. A questão principal que devemos destacar aqui está nos focos que a figura do narrador pode adotar na narrativa, bem como nas suas posições. Por exemplo, uma história pode ser contada em primeira ou em terceira pessoa. Além disso, uma mesma história pode mudar de foco narrativo, Figura 2: Raduan Nassar 11 podendo ser observador ou testemunha, ou de voz, sendo proferida ora pelo próprio narrador, ora por algum(ns) personagem(ns). Vários são os exemplos dessa mudança de foco narrativo na história da literatura. Listá-los aqui seria praticamente impossível. Porém, trazemos um exemplo muito importante da literatura brasileira contemporânea no que se refere à figura do narrador: o romance Dois Irmãos, de Milton Hatoum (2000). Dois irmãos é uma história de conflito entre gêmeos. Omar e Yaqub são filhos de Zana e Halim, imigrantes libaneses que se mudam para Manaus na primeira metade do século XX, fugindo das guerras e em busca de melhores condições de vida, conforme os fatores que estimulam o processo de imigração desse povo, situado historicamente no romance pelo personagem Galib, pai de Zana, que chega em Manaus, viúvo, para instalar, por volta de 1914, o restaurante Biblos, “[...] ponto de encontro de imigrantes libaneses, sírios e judeus marroquinos [...]” de cuja “[...] algaravia surgiam histórias que se cruzavam, vidas em trânsito, um vaivém de vozes que contavam um pouco de tudo [...]” (p. 47-48). Além dos gêmeos, Halim e Zana têm a filha Rânia, uma bela moça que se mostra prendada na administração da loja da família e demonstra uma relação tão afetiva com os irmãos que insinua incesto, o que interfere na relação com seus pretendentes. Quando se casam e antes mesmo de os filhos nascerem, Zana e Halim recebem em sua casa a índia Domingas, que vem de um orfanato para morar com o casal e, consequentemente, ser sua empregada. Da relação com Domingas e um dos gêmeos, nasce Nael, o narrador da história, cujo conflito maior é não saber quem é o seu pai biológico. Trata-se, portanto, da história desses sete personagens principais, cujas ações são narradas por Nael que, através de reminiscências, suas e de outros personagens, principalmente de seu avô Halim e de sua mãe Domingas, tece as caracterizações dos gêmeos, as quais, de certa maneira, justificam o conflito para, a partir de então, tentar “descobrir” quem é o seu pai. Os recursos estéticos desenvolvidos nesse romance seguem uma técnica narrativa que eleva o narrador à figura primordial. Ele, a depender da situação, é observador e testemunha e conta uma história num tempo passado, que não depende exclusivamente de sua memória, mas também da memória, das lembranças de seus narradores “coadjuvantes”, sobretudo Halim (seu avô) e a empregada Domingas (sua mãe): “A minha história também depende dela, Domingas.” (Dois irmãos, p. 25) e “Vi a loja fechada e apontei o depósito, onde Halim, encostado à janelinha, contara trechos de sua vida.” (Dois irmãos, p. 241). Noutros termos, ora a história é proferida pela voz do narrador Nael, ora por Halim, e ora, ainda, por Domingas, sendo que em todas as situações a Figura 3: Milton Hatoum UNIDADE 03 AULA 08 12 INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS LITERÁRIOS - A narrativa de ficção I: o gênero narrativo e seus elementos narração passa pelo crivo de Nael, narrador principal. Tudo isso por um efeito de causalidade, ou seja, no interior da narrativa, a configuração do narrador é não deixar clara a questão da paternidade e, por isso, a interferência de tantas vozes sob o crivo da voz primordial do narrador Nael: No meio da noite acordei com a voz de Domingas: se eu gostava de Yaqub, se eu me lembrava dele, do rosto. Não escutei mais nada. Às cinco ela já estava pronta para ir ao Mercado Municipal. Nuncamais passeamos de barco: a viagem até Acajatuba foi a única que fiz com minha mãe. Pensei: por pouco ela não teve força ou coragem para dizer alguma coisa sobre o meu pai. Esquivou-se do assunto e se esqueceu das perguntas que me fizera na noite daquele domingo. Jurou que não pronunciara o nome de Yaqub. No fundo, sabia que eu nunca ia deixar de indagar-lhe sobre os gêmeos. Talvez por um acordo, um pacto qualquer com Zana, ou Halim, ela estivesse obrigada a se calar sobre qual dos dois era meu pai. (Dois irmãos, p. 80) A alternância de foco, de voz, de perspectiva narrativa é o que contribui para a desconfiança do narrador quanto à identidade do seu pai biológico. Portanto, a força motriz do romance está nessa figura que aqui consideramos primordial: o narrador. Para fechar esse tópico, trazemos ao centro da questão, também, o fato de o narrador ser uma figura própria das narrativas, desde sua modalidade oral. Com o advento da imprensa, na modernidade, manteve-se como figura essencial, mesmo sendo agora uma voz de “papel”. No livro, a figura do narrador está impressa na história e a figura do ouvinte recebe a forma de leitor, ambos em suas solidões. Antes, porém, quando passadas de geração a geração, as histórias eram contadas oralmente para ouvintes, em situações marcadas pela coletividade. Pensadores importantes do século XX teorizaram com aprofundamento a essencialidade do narrador nas narrativas modernas. Como exemplos importantes dessa teorização, destacam-se os alemães da Escola de Frankfurt: Theodor W. Adorno e Walter Benjamin, os quais você poderá estudar na disciplina Teoria Literária II. 13 3.7 Enredo O que seria o enredo numa narração? Poderíamos dizer que é o que resulta da combinação dos demais elementos narrativos: as ações dos personagens, as vozes narrativas, o tempo transcorrido na história e os espaços ocupados pelos personagens. Segundo Ângela Soares (2001, p. 43), Os teóricos russos da primeira década do nosso século [XX], conhecidos como formalistas, diferenciaram nos acontecimentos narrados dois planos: o da fábula, ou seja, dos acontecimentos considerados em si mesmos, em ordem cronológica e ainda não trabalhados literariamente; e o da trama, isto é, dos acontecimentos na ordem e na forma em que se apresentam no texto narrativo. O que dá unidade aos elementos da trama é o tema, entendido como idéia comum, que constrói um sentido pela união de elementos mínimos da obra, chamados motivos. (Grifos da autora.) Noutras palavras, e utilizando um exemplo da literatura brasileira, podemos afirmar que o romance Fogo Morto (2006), do escritor paraibano José Lins do Rego, apresenta um título que se confunde com o tema de que trata: a decadência dos engenhos de cana de açúcar em detrimento da implantação de usinas. A expressão “fogo morto” significa, portanto, o apagamento do fogo utilizado no cozimento do caldo extraído da cana para a produção de rapadura, mel, açúcar etc. A trama se realiza, assim, em função da represen- tação desse tema. A forma em que se apresenta a narrativa é a seguinte: o romance é dividido em três capítulos, cada qual levando como título o nome do personagem central do respectivo capítulo: O Mestre José Amaro; O Engenho de Seu Lula; O Capitão Vitorino. Ou ainda como bem descreve Antônio Carlos Villaça, são “Três novelas superpostas, com a história pungente de três persona- gens” (REGO, 2006). Figura 4 UNIDADE 03 AULA 08 14 INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS LITERÁRIOS - A narrativa de ficção I: o gênero narrativo e seus elementos O fato de os capítulos serem considerados “novelas superpostas” confere a eles (aos capítulos) uma certa autonomia. Porém, mesmo assim, e entendendo a fábula como “acontecimentos considerados em si mesmos” (SOARES), os capítulos constituem vasos comunicantes no interior da narrativa, obedecendo ao seu princípio de causalidade, ou seja, à estrutura que apresenta, não podendo obedecer a outra. Noutras palavras, a autonomia que podemos encontrar entre os capítulos de Fogo Morto é relativa, não podendo ser analisada como princípio estético único e absoluto. Noutros termos, o enredo do romance Fogo Morto constitui a fabulação que envolve a história de três personagens. A independência dos capítulos é relativa porque, apesar de focarem personagens diferentes e individualmente, os demais personagens transitam pelos capítulos, ou seja, são recorrentes, são recuperados, devido às relações estabelecidas entre eles. EXERCITANDO Para testar um pouco os conhecimentos adquiridos nesta aula, vamos agora ler o conto Natal na barca, de Lygia Fagundes Telles, escritora brasileira contemporânea. Para tanto, é necessário que você acesse o link http://www. releituras.com/lftelles_natal.asp. Lido o conto, faça uma análise dos elementos narrativos, emitindo a sua opinião. Na análise, procure classificar os elementos, por exemplo, respondendo às seguintes questões: Que tipo de narrador conta a história, de primeira ou de terceira pessoa? O tempo é psicológico ou cronológico? Quem é o personagem protagonista? Há outros personagens no conto? Quem são? Qual a importância de cada um para o desenvolvimento da trama? O enredo está claro? A narrativa é apresentada numa sequência lógica, com início, meio e fim? Em que espaço narrativo a história acontece? Etc. 4 APROFUNDANDO SEU CONHECIMENTO E para você, o que é narrar? O que é escrever? Escrever é apenas narrar? Para aprofundar seus conhecimentos sobre o assunto, disponibilizamos um link no qual você encontrará um vídeo de mesa-redonda sobre o tema, Figura 5: José Lins do Rego 15 promovida pelo Itaú Cultural em 2009, numa programação intitulada "Encontros de interrogação". Após ouvir a discussão entre os escritores, poste a sua opinião no fórum. http://www.youtube.com/watch?v=pbtZnKHjdd0&list=PL4C9EC7DE E5387E45&index=2&feature=plpp_video 5 TROCANDO EM MIÚDOS Inicialmente, aprendemos nesta aula que narrar é igual a contar histórias, que esta é uma ação humana muito antiga e que lá na Antiguidade as histórias eram passadas de geração a geração por meio da oralidade. Com o surgimento da escrita e, posteriormente, da imprensa, as histórias passaram a ser registradas, e o narrador (equivalente ao contador na oralidade) e o leitor (equivalente ao ouvinte nas narrativas orais) se tornaram indivíduos, diferenciando-se, assim, da natureza coletivizada que requeriam as narrativas orais. Aprendemos também, nesta aula, que as narrativas de um modo geral são estruturadas levando- se em conta cinco elementos básicos e essenciais: tempo, espaço, narrador, personagem e enredo. Nas narrativas de ficção, esses elementos configuram a natureza do gênero narrativo e, consequentemente, das formas narrativas cultivadas nos dias de hoje: romance, novela, conto e crônica. Porém, não são elementos exclusivos dessas formas, considerando-se, portanto, que podem perfeitamente constituir, também, textos escritos em versos. 6 AUTOAVALIANDO Agora paremos um pouco e tentemos nos lembrar de alguma história que contamos ou que ouvimos de alguém. Pode ser de um passado mais distante ou do nosso presente. A narração de algum acontecimento, por exemplo, um passeio. Há, nessa história, todos os elementos essenciais à narrativa? UNIDADE 03 AULA 08 REFERÊNCIAS ANDRADE, Mário. Contos novos. 10. ed. São Paulo: Martins; Belo Horizonte: Itatiaia, 1980. CANDIDO, Antonio. et ali. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2005 (Debates, 1). ______. Vários escritos. 4. ed. org. pelo autor. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul; São Paulo: Duas Cidades, 2004. DIMAS, Antônio. Espaço e romance. São Paulo: Ática, 1985 (Princípios, 23). HATOUM, Milton. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. HOLANDA, Chico Buarque de. Benjamim. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. JAROUCHE, Mamede Mustafa. Livro das mil e uma noites. Introdução, notas, apêndice e tradução de. v. I: ramo sírio. São Paulo: Globo, 2005. NASSAR,Raduan. Lavoura arcaica. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. 2. ed. São Paulo: Ática, 2003. REGO, José Lins. Fogo Morto. 65. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006. ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2006 (Debates, 193). SOARES, Angélica. Gêneros literários. 6. ed. São Paulo: Ática, 2001 (Princípios, 166). A narrativa de ficção I: o gênero narrativo e seus elementos 1 OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM 2 Começando a história 3 Tecendo conhecimento 3.1 O gênero narrativo 3.2 Os elementos narrativos 3.3 Tempo narrativo 3.4 O espaço narrativo 3.5 Personagem 3.6 Narrador 3.7 Enredo 4 Aprofundando seu conhecimento 5 Trocando em miúdos 6 Autoavaliando REFERÊNCIAS
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