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1 CEM TEXTOS DE HISTÓRIA ASIÁTICA [Org.] BUENO, André [org.] Cem Textos de História Asiática. União da Vitória, 2010. ISBN 978-85-65996-23-5 Disponível em: http://asiantiga.blogspot.com.br/ Patrimonio Máquina de escrever http://chinologia.blogspot.com/ 2 ÍNDICE Apresentação Mitos de Criação 1. O Purusha Sukta (Hino do Homem) 2. A Prajapati 3. A Canção da Criação 4. Cosmogonia no Shatapatha - Brahmana 5. Aitaryea Upanishad 6. A Perenidade da criação na Visão Budista, no Diga Nikaya 7. O mito chinês de Panku 8. Cosmologia daoista em Laozi 9. A cosmologia daoista do Huananzi Natureza Humana 10. A Visão budista da Natureza Humana no Suttanipata 11. Outra visão budista, sobre a natureza humana, no Samyutta Nikaya 12. A natureza humana é boa – a visão de Mêncio 13. A natureza humana é má – a visão de Xunzi 14. A Natureza Humana é indistinta – a visão de Lubuwei 15. A natureza humana depende da cultura - Huainanzi 16. A natureza humana depende da educação – Dong Zhongshu A Morte 17 - Hino para ser entoado em um funeral, do Atharva Veda 18. A Morte, a transmigração e a Ação Humana no Manava Dharma Shastra (As Leis de Manu) 19. A Morte no Katha Upanishad 20. A Morte na Visão Budista no Mojjhima - Nikaya 21. A morte na visão de Zhuangzi 3 Caminhos para a Sabedoria 22. As Características do Sábio Perfeito no Bhaghavad Gita 23. Uma mestra em busca da sabedoria: A Conversa Entre Yajñãvalkya e Maitreyi no Brihadaranyaka upanishad 24 A busca de Svetaketu, no Chandogya Upanishad 25. A sabedoria nos Yogas sutras de Patanjali - Formas de Meditação e de Samadhi 26. O Caminho Budista, descrito no Samyutta Nikaya 27. A redenção pelo estudo, no Zhong Yong de Confúcio e Zisi 28. O dao dos daoístas, de Laozi 29. O dao obscuro de Zhuangzi 30. O Dao da saúde do Neijing (O Tratado Interno) - Tratado sobre a Verdade Natural nos Tempos Antigos Vivendo em Sociedade 31. A Criação do Mundo e a origem das leis e das castas no Manavadharmashastra 32. Sobre a Origem e Valor das Quatro Castas no Mahabharata 33. A visão das castas para os budistas no Mojjhima - Nikaya 34. Regras Para um Chefe de Família, no manavadharmashastra 35. Deveres das Mulheres no Manavadharmashastra 36. Regras para um chefe de família budista, no Sutanippata 37. Ode ao rei que lavra a terra, pedindo um ano de abundância, no Shijing (Tratado dos Poemas) 38. Poema de uma mulher divorciada, no Shijing 39. Lamento de um funcionário sobre a miséria, no Shijing 40. Sobre o labor agrícola, no Shijing 41. Outras gentes, no Zhongyong de Confúcio e Zisi 42. Os deveres de obrigação universal, no Zhongyong 4 43. A Visão da civilização em Zhuangzi 44. O ciclo da vida humana no Neijing 45. Queixa e apelo de Zhuang Qiang contra o mau trato que recebeu do esposo, no Shijing (tratado dos Poemas) 46. Contra o Álcool e a Embriaguez, no Shujing (tratado dos livros) 47. Contra o Luxo, no Shujing 48. Sociedade e Educação, no Liji (manual dos Rituais) 49. Como surgiu Li (a cultura) no Liji 50. O papel do indivíduo na estruturação da sociedade, no Daxue (Grande Estudo) Deuses, Crenças e Encantamentos 51. A Morte e os Deuses no Rig Veda 52. A Lenda Indiana Sobre o Dilúvio 53. Hino à Indra, no Rig Veda 54. Hino à Indra, Varuna e ao Suco sagrado, o Soma, no Rig Veda 55. Hino às diversas divindades, no Rig Veda 56. Hino às diversas divindades, no Sama Veda 57. Os nomes de Indra, no Sama Veda 58. A especulação sobre o Brahman no Isha Upanishad 59. Quem é o criador? No Kena upanishad 60. Prece recitada durante o preparo de um ungüento preservativo de males e doenças, do Atharva Veda 61. Para obter o amor de uma mulher (idem) 62. Hino às rãs, para que venham as chuvas (idem) 63. Para achar-se um objeto perdido (idem) 64. Para livrar alguém do vício do jogo (idem) 65. Fuxi e Nugua 66. Huangdi, o deus do Meio 5 67. O País dos Imortais, do Shanhaijing (Clássico das Montanhas e dos Mares) 68. As Ilhas dos Imortais, do Shanhaijing (Clássico das Montanhas e dos Mares) 69. Demônios e Feras Bestiais, do Shanhaijing (Clássico das Montanhas e dos Mares) 70. O Mundo antigo, por Zhuangzi 71. O cofre guarnecido de metal, a história de uma previsão no Shujing (tratado dos livros) 72. Uma previsão do Tratado das mutações: Hexagrama 18, a Recuperação do Deteriorado, do Yijing 73. Invocação ao ancestral da dinastia Shang, Tang. 74. Uma antiga cura para depressão, no Liezi A Arte de Bem Governar 75. Os Deveres de um Rei, no Dharma sutra 76. Rei e Punição, no Manavadharmashastra 77. O poder do rei, no Artashastra 78. A política ecumênica de Ashoka 79. Discurso do Marques de Qin, no Shujing 80. As regras do bom governo, no Zhongyong 81. As cinco obrigações do bom líder, no Liji 82. Cinco deveres e quatro erros, no Lunyu (Diálogos) de Confúcio 83. O governo do povo, em Mêncio 84. As proibições, de Guanzi 85. O governo daoísta de Laozi, no Daodejing (tratado da virtude e do caminho) 87. O Governo, para Shang Yang 88. Regras para o bom governo, de Hanfeizi 6 Visões da Guerra 89. Benção das armas de um príncipe em sua ida para a guerra, do Atharva veda 90. A guerra nas leis de Manu 91. Um Soldado pensando no Lar, do Shijing 92. Sobre as proposições da vitória e a derrota, em Sunzi 93. Contra a Guerra, em Mozi 94. A guerra é um massacre, em Mêncio 95. A guerra, em Shangyang A Ciência de Registrar o Passado 96. A Agitação do Oceano Pelos Deuses, no Vishnu purana 97. Uma passagem do Chunqiu (primaveras e outonos), comentada pelo Zuozhuan de Zuoqiuming 98. O Canon de Yao, do Shujing 99. Contra os áulicos sistemáticos, do Zhanguoce, ou Discursos dos estados combatentes 100. A Vida de Po Yi, por Sima Qian, no Shiji (recordações históricas) Anexo a) A visão de passado em Shang Yang b) Grande Tratado sobre a Harmonia da Atmosfera das Quatro Estações com o Espírito Humano, no Neijing (o tratado interno) 7 Apresentação Cem textos de história asiática não é, a princípio, uma continuação do meu livro anterior, Cem textos de história chinesa. A idéia aqui foi, primeiramente, apresentar um contraste entre as duas principais civilizações do Extremo Oriente, Índia e China. Muitos são os mitos acerca das relações entre essas duas culturas; de que a Índia emprestara sua cultura à China, de que a China não tem autonomia de pensar, ou de que ambas são muito semelhantes, etc. Todos estes erros foram construídos por concepções históricas superadas, mas que ainda persistem no imaginário popular ou dos estudantes desavisados. Uma análise superficial e mal feita poderia, com alguma boa vontade, indicar similaridades entre as duas, mas uma leitura mais apurada de seus textos demonstra preocupações e perspectivas amplamente diferentes. Esta foi uma das razões desta antologia. A segunda razão seria a de selecionar textos que mostrassem, então, as visões de mundo destas sociedades, e evitei repetir textos já utilizados na outra antologia. Em compensação, aproveitei fragmentos já presentes nas traduções correntes, e nisso a originalidade desta seleção consiste na escolha dos temas e eixos principais. Alguns deles, como os da seção de religião, são quase inteiramente dominados pelos textos indianos; história, porém, é uma seção quase inteiramente chinesa. Isso por si só já demonstra, substancialmente, algumas diferenças de perspectivas, que abordaremos um pouco melhor adiante. 8 Por fim, a escolha dos textos situa-se na antiguidade, até o século -1 aec. A partir disso, os contatos entre indianos e chineses acentuam- se, e daí podemos realmente falar de trocas culturais entre ambas as civilizações. Antes disso, contudo, estas civilizações cresceram e se desenvolveram de forma relativamente autônoma, possuindosuas próprias problemáticas e interesses. Com esta antologia, pretendo novamente suprir as falhas existentes na academia e compor um corpo de textos que possam ser utilizados com fins didáticos ou de pesquisa. Minha pretensão está longe de ser definitiva, e na verdade, minhas intenções são a de ensejar a busca e o estudo destes textos com maior profundidade. Espero, portanto, que o leitor aproveite a experiência. O Quadro histórico e literário de Índia e China Devemos iniciar esta antologia com algumas considerações fundamentais sobre a história de ambas as sociedades, apontando principalmente suas singularidades, de modo que se possa construir um conhecimento mais esclarecido sobre elas. Alguns pontos, porém, são ilustrativos, como veremos a seguir. Índia A Índia não conheceu nada parecido com o conceito de história ou de ciência histórica, tal como o propomos, em sua antiguidade. A preocupação fundamental desta civilização atinha-se a uma libertação espiritual que concebia este plano, material, com uma espécie de purgatório das almas, e cujo ciclo de eventos era tão somente algo repetitivo e por isso mesmo, desinteressante. A visão 9 indiana era da negação da materialidade; conseqüentemente, seu foco principal dirigiu-se para uma filosofia de cunho metafísico, uma atenção especial à religião, o que se desdobrava de forma nítida nas considerações acerca da sociedade e da cultura. Assim, a Índia antiga não pensou em qualquer forma de antropologia ou sociologia, senão aquela pautada na interpretação da vida humana como um processo de transmigração de almas; documentos como o Arthashastra, um tratado dedicado a política e a administração são exceções, e mesmo assim carregam o peso da religiosidade consigo. A história indiana, portanto, é uma reconstrução moderna, muitas vezes mais baseada na arqueologia do que nos textos. Estes nos mostram modos de vida ideais, concepções teológicas profundas, mas às vezes nos escapam como fontes sobre o cotidiano. Uma divisão moderna situa as origens da civilização indiana como um movimento autóctone, com raízes pré-históricas. Depois, segue-se o período das primeiras cidades indianas, mohenjo daro e harappa, que termina de modo relativamente abrupto em torno dos séculos - 18 -15 aec. Há uma aparente descontinuidade, mas emerge desta época a sofisticada, guerreira e desenvolvida civilização védica, calcada em seu politeísmo diversificado e na sua consolidada estrutura de castas (ou varnas), doravante uma marca da civilização indiana. É desta época a estruturação dos vedas, das cerimônias do soma – o suco alucinógeno sagrado – mas também, o início de uma especulação metafísica que só teria sua conclusão em torno dos séculos -7 -8 aec. Enquanto isso, o mundo indiano dividiu-se em vários pequenos reinos, cujo poder variava constantemente. A unidade possível entre eles se baseava nos ritos religiosos, nos princípios sociais e conceitos comuns, enfim, numa cultura que os 10 definia em relação aos outros – os estrangeiros. Este mundo vasto, empreendedor e multifacetado dirigia-se, porém, ao centro de uma discussão infindável sobre a realidade da vida espiritual. O período dos séculos -8 -7 aec vê surgir a literatura upanishádica, conclusão de um longo debate filosófico acompanhado pelas aranyakas, brahmanas e puranas, todo um corpus textual inteiramente voltado para a solução das questões religiosas que amarravam esta sociedade. Deste processo, emergem situações conflitantes; a busca da unificação política acompanha-se do surgimento de heresias sócio-religiosas, como jainismo e o budismo. A presença grega no mundo indiano sacode suas fronteiras e sua visão de mundo, e nela, o budismo torna-se a primeira religião proselititsta do mundo, tentando converter os estrangeiros. Nos séculos -4 -3, a Índia finalmente se vê unificada por uma dinastia, os Maurya, que unem a idéia de indianidade com política. É desta época que surgem textos como o Artashastra, preocupado com a administração das coisas públicas – mas também textos como o de uma política ecumênica universal, como os éditos de Ashoka, soberano pacifista cuja terrível carreira pretérita como conquistador o levou a um acurado exame de consciência sobre as realidades da vida. Este mundo indiano se veria perturbado, somente, pela vinda dos kushans entre os séculos -2 -1. Contudo, esta invasão estava longe de abalar os alicerces solidamente instituídos da sociedade indiana. A estrutura destes documentos indianos, portanto, é simples: a primeira geração deles se consigna nos vedas, os primeiros textos do mundo védico; seguem-se as brahmanas e as aranyakas, textos de especulação filosófica que começam a analisar a religiosidade védica; 11 os upanishads concluem esta linha de pensamento, construindo uma nova mentalidade acerca da filosofia, da sociedade e da cultura que seria conhecida como bramanismo – com toda a carga religiosa dela derivada. Textos auxiliares como o Manavadharmashastra, ou as leis de Manu, os Dharma sutras e o Artashastra surgem ao longo desta trajetória, tentando explicar questões variadas, como a administração da lei, papéis sociais, visões de mundo calcadas na religião, etc. Quanto aos puranas, estes se estabelecem como formas de histórias religiosas, como o Mahabharata, o Ramayana e os puranas dos deuses, todos eles épicos que explicam as teogonias indianas. Juntam-se a estes os textos budistas, com seu ponto de vista particular sobre a existência. Por estas razões veremos a ênfase dos textos indianos em questões centrais da existência de sua sociedade, tais como as castas, a criação do universo, os deuses, a transmigração das almas, etc, deixando de lado um aprofundamento dos aspectos da historiografia ou da política. China Tendo em vista o quadro da Índia, não será difícil perceber o quanto a história chinesa é diferente. Embora tivessem (e ainda tenham) uma mitologia rica e variada, essa nos é pouco conhecida – a paixão verdadeira dos filósofos e pensadores chineses foi a história, baseada no desenrolar dos eventos, e investigada a partir de documentos, relíquias e relatos. Suas escolas filosóficas ativeram-se ao ―real material‖, buscando a imanência, a realização neste mundo, deixando para o além o que seria o próprio além. Tão pouco afeitos a esta metafísica, os chineses sofisticaram o seu pensamento em 12 direção a uma ciência elaborada, racionalmente explicada, que nos permite formar um quadro satisfatório da história intelectual chinesa. Confúcio, o primeiro grande documentarista desta civilização, legou-nos um vasto conjunto de informações sobre o cotidiano, hábitos, costumes, e do que seria a busca da sabedoria – o Dao (via, método, caminho). Entender a história chinesa, pois, é um desafio sério, mas não pela carência de informações - e sim por sua abundância, e suas versões formatadas, que vêm sendo reelaboradas até os dias de hoje. A cronologia da China é uma hemeroteca de velhas notícias, que dirigem a interpretação dos acontecimentos, aplicando-lhes lentes antigas, mas eficazes. Como disse o sábio Hanyu, da dinastia Tang: No princípio, não me atrevia a ler nenhum livro que não fosse das antigas dinastias Xia, Shang, Zhou ou da dinastia Han, nem retomar nada que não fosse o ensino de algum grande santo do passado. Cada vez que me detinha, parecia que havia perdido algo, e cada vez que continuava a ler, tinha a sensação de ter me descuidado em alguma coisa. Sempre andava sério como se estivesse meditando, e perplexo como se estivesse perdido. E, quando de pincel na mão, me dispunha a pôr em escrito o que brotava do meu coração, queria suprimir todos os lugares comuns, mas....como era difícil fazê-lo nessas condições! (Hanyu 768-824). Este espírito afetou de modo profundo o senso crítico chinês, mas igualmenteo afiou, tornando-o ao mesmo tempo inquiridor, audacioso, conservador e sintético. A negação do novo é um fenômeno recente nesta história, pois a cultura chinesa desenvolveu desde cedo uma paixão inalterável por conservar o patrimônio de seu passado e, da mesma maneira, encantar-se pelas rupturas 13 saudáveis do pensamento, pela descoberta do inusitado. A trajetória que acompanharemos aqui, pois, é temporalmente semelhante a da Índia, mas totalmente diferente em sua conformação. A China antiga é um espaço em aberto no seu próprio território, identificada somente por semelhanças culturais. Aparentemente, um movimento de unificação de cidades-estado levou a formação de um reino, conhecido como dinastia Xia, do qual pouco sabemos, embora esteja comprovado arqueologicamente. Esta civilização data de algo em torno dos séculos – 18 a -15, mas é sucedida pela dinastia Shang, bem mais documentada. Entre os Shang surge, aparentemente, a escrita (se essa não for também uma conquista dos Xia, mas até agora não surgiram provas disso), mas uma farta cultural material, depositada em seus túmulos, permite- nos ter uma cronologia razoavelmente clara dos acontecimentos, que nos permitem saber de sua existência entre os séculos – 15 -12. Somente nesta época eles serão submetidos à dinastia Zhou, a mais longa da história chinesa, que institui uma espécie de feudalismo na administração do território, agora muito mais amplo e sinizado. A história dos Zhou, longa, é também permeada por fases sucessivas de poder e decadência; ela divide-se em dois períodos distintos, os dos Zhou anterior (1027 – 771) e Zhou posteriores (771 - 221), motivados por uma forçada transferência da capital real. A fase dos Zhou posteriores divide-se, ainda, no tempo das primaveras e outonos (771 - 481) e no tempo dos estados combatentes (481 – 221), quando finalmente a dinastia é derrubada para dar lugar à nova reunificação chinesa promovida pela dinastia Qin (221 – 206). O governo Qin, embora eficiente na guerra e na administração, não era sólido nem coeso, sendo derrubado brevemente pela dinastia Han, 14 que reinaria até o século 3 ec. Qin construir os grandes monumentos da China antiga, como a grande muralha e a tumba dos guerreiros de terracota, mas também queimou livros, prejudicando o estudo do passado e da filosofia chinesa. Coube aos Han recuperarem parte destas informações, permitindo-nos compreender esta história chinesa antiga. Os documentos de que dispomos – e que aqui apresentaremos – se constituem basicamente em três corpos distintos: o primeiro trata-se dos clássicos antigos, que seriam o tratado das mutações (yi), dos livros (shu), dos poemas (shi), dos rituais (li) e da música (yue), este último perdido, do qual só sobrou uma parte no Liji. Confúcio os resgata no século -6, e adiciona a eles as crônicas das Primaveras e Outonos (Chunqiu), que receberia três comentários explicativos posteriormente (Zuozhuan, Guliang e Gongyang). Estes livros seriam a documentação básica sobre o passado, que explicaria a vida nas dinastias antiga e o que seria a cultura Zhou. Depois da revisão confucionista, temos a vasta e inovadora literatura da época das cem escolas (contida na transição entre as primaveras e outonos e que se desenrola no meio dos estados combatentes), quando o debate filosófico faz surgir toda uma nova quantidade de escritos, defendendo as mais diversas visões sobre a sociedade e o pensamento na época. São deste contexto os textos da escola confucionista, o Lunyu, Zhongyong, Daxue e Xiaojing, dos autores Mêncio e Xunzi, dos daoístas Laozi, Zhuangzi, Liezi, dos legistas Shangyang e Hanfeizi, de Mozi, e a coletânea histórica do Zhanguoce. O terceiro corpo é dos textos da época Han, tempo de sínteses e da criação de novas teorias. Temos o Huainanzi de Liuan e o Chunqiu fanlu de Dong Zhongshu, ambos tratados sobre filosofia; 15 o inovador Shiji, de Sima Qian, reinventando a história chinesa; ou ainda, o Neijing, tratado sobre medicina chinesa que serve para uma interpretação multifacetada do pensamento chinês deste momento. Perceberemos que a presença marcante nesta textualidade é uma análise pragmatista da realidade. Disso decorre a fundamental importância nos textos das questões políticas, educacionais e sociológicas; como dissemos, a China da antiguidade tem seu pensamento mítico, mas a intelectualidade desta civilização atinha- se ao que entendia ser a sua ciência, baseada numa busca da razão, que o afasta de modo indiscutível da conformação da civilização indiana. 16 Mitos de Criação A Índia Antiga é uma civilização em que abundam os mitos de criação, talvez devido a sua extrema flexibilidade religiosa e à uma filosofia inteiramente dedicada aos temas metafísicos e teológicos. Para uma mentalidade monoteísta, é difícil compreender como uma mesma cultura – e por conseguinte, o que entendemos ser um ―mesmo sistema religioso‖, o hinduísmo -, consegue aceitar e conviver com esta multiplicidade de visões; mas nisso reside, exatamente, a riqueza da liberdade de pensar e de propor interpretações diferentes sobre os mesmos temas, questão fundamental que levou o pensamento ocidental a vários acidentes de percurso. Nesta primeira seção, portanto, veremos três mitos de criação presentes no documento mais antigo da civilização indiana, o Rig Veda. O hino de purusha parece se tratar da primeira fonte a buscar explicar e legitimar a separação das castas indianas; o hino a prajapati e a canção da criação se tratam, contudo, de especulações de origem teológica e filosófica sobre as origens. Lembremos que o Rig veda é um texto de origem ariana, ancestral, em que o futuro pensamento ―hinduísta‖ ainda está em seu embrião. A conseqüência da evolução do pensamento indiano antigo aparece nos dois textos seguintes – uma visão cosmogônica do surgimento do universo, do Shatapatha – brahmana, e uma introdução ao problema no Aitareya Upanishad. Ambos os textos fazem parte de um contexto cultural, situado entre os séculos -8 e -6 aec, em que os indianos repensam suas origens, sua cultura arianista e vêem surgir propostas alternativas como a do budismo e do jainismo. Uma discussão sobre 17 o universo imperecível é proporcionada pelo texto budista do Digha- nikaya, proporcionando um contraponto às visões tradicionais da índia hindu-védica. Quanto à China, sempre tão carente de mitos de criação, fornece-nos dois exemplos especulativos, baseados na teoria yin-yang, do surgimento do universo. O primeiro aprece no texto de Laozi, o Daodejing, e o segundo, no texto posterior, da época Han, o Huainanzi. O terceiro exemplo, o mito de Panku, só surgiria tardiamente, e é incluído aqui a título de demonstração – as informações de que dispomos apontam que este mito não foi divulgado, senão, depois do período Han como algo próprio da cultura chinesa. 1. O Purusha Sukta (Hino do Homem) Mil cabeças tem Purusha, mil olhos, mil pés. Por toda parte impregnando a terra ele enche um espaço com dez dedos de largura. Esse Purusha é tudo que até agora já foi e tudo que será, o senhor da imortalidade que se torna maior ainda pelo alimento. Tão poderosa é sua grandeza! Sim, maior do que isto é Purusha. Todas as criaturas são uma quarta parte dele, três quartas partes são a vida eterna no céu. Com três quartos Purusha subiu; um quarto dele novamente estava aqui. Daí saiu para todos os lados por sobre o que come e o que não come. Dele nasceu Viraj (a); e novamente de Viraj nasceu Purusha. Assim que nasceu, espalhou-se para oriente e ocidente sobre a terra. Quando os deuses prepararam o Sacrifício com Purusha como sua oferenda, 18 Seu óleo foi a primavera; a dádiva santa foi o outono; o verão foi a madeira. Eles embalsamaram como vitima sobrea grama o Purusha nascido no tempo mais antigo. Com ele as deidades e todos os Sadhyas e Rishis (b) fizeram sacrifício. Desse grande Sacrifício geral a gordura que gotejava foi colhida. Ele formou as criaturas do ar, os animais selvagens e domesticados. Daquele grande Sacrifício geral Rics (c) e hinos-Sama (d) nasceram; Daí foram produzidos encantamentos e sortilégios; os Yajus (e) surgiram disso. Dele nasceram os cavalos e todo o gado com duas fileiras de dentes; Dele se reuniu o gado vacum, dele nasceram cabras e ovelhas. Quando dividiram Purusha, quantos pedaços fizeram? A que chamam sua boca, seus braços? A que chamam suas coxas e pés? O Brâmane (f) foi sua boca, de ambos os seus braços foi feito o Rajanya (xátria). Suas coxas tornaram-se o vaixá, de seus pés o sudra foi produzido. A Lua foi engendrada de sua mente, e de seu olho o Sol nasceu; Indra e Agni nasceram de sua boca, e Vayu de seu alento. De seu umbigo veio a atmosfera; o céu foi modelado de sua cabeça; A terra de seus pés, e de suas orelhas as regiões. Assim eles formaram os mundos. Sete bastões de luta tinha ele, três vezes sete camadas de combustível foram preparadas, Quando os deuses, oferecendo o sacrifício, manietaram sua vítima, Purusha. 19 Os deuses, sacrificando, sacrificaram a vítima; estes foram os primeiros sacramentos. Os poderosos chegaram às alturas do céu, lá onde os Sadhjas, deuses antigos, estão morando. a) Contrapartida feminina do principio masculino, Purusha. b) santos e profetas de tempos antigos. c) Estrofes do Rig-veda. d) Estrofe do sama-veda. e) Fórmulas rituais do Yajur-veda. f) As quatro classes sociais. 2. A Prajapati No início surgiu Hiranyagarbha, (a) nascido senhor único de todos os seres criados. Ele fixou e sustenta esta terra e céu. Que deus adoraremos com nossa oblação? Proporcionador de alento vital, de força e vigor, aquele cujos mandamentos todos os deuses aceitam: O senhor da morte, cuja sombra é a vida imortal. Que deus adoraremos com nossa oblação? Aquele que por sua grandeza tomou-se senhor único de todo o mundo móvel que respira e dorme: Aquele que é senhor dos homens e senhor do gado. Que deus adoraremos com nossa oblação? Suas, por seu poder, são estas montanhas cobertas de neve, e [os homens chamam o mar e Rasa (b) sua posse: Seus braços são estes, suas são estas regiões celestiais. Que deus adoraremos com nossa oblação? 20 Por ele, os céus são fortes e a terra segura, por ele o reino da luz e a arcada do céu são sustentados; Por ele as regiões na atmosfera foram medidas. Que deus adoraremos com nossa oblação? Para ele, apoiados por sua ajuda, dois exércitos em batalha olham com tremor no espírito, Quando sobre eles o sol brilha. Que deus adoraremos com nossa oblação? Na época em que as águas poderosas vieram, contendo o germe universal, produzindo Agni, Daí passou a existir o espírito dos deuses. Que deus adoraremos com nossa oblação? Em seu poder, ele examinou as enchentes que continham força produtiva e geravam a adoração. Ele é o deus dos deuses e ninguém mais do que ele. Que deus adoraremos com nossa oblação? Que nunca possa ele nos ferir, ele que é o criador da terra, nem ele cujas leis são certas, o criador dos céus, Ele que trouxe as grandes e luminosas águas. Que deus adoraremos com nossa oblação? Prajapati! Só tu compreendes todas essas coisas criadas, e ninguém mais senão tu. Atende o desejo de nossos corações quando te invocamos - que possamos ter muita riqueza em nosso poder. a) Germe dourada, nome dado ao deus Brama. b) Nome de um rio mítico. 21 3. A Canção da Criação Então não existia o não-existente, nem o existente - não havia reino do ar, nem céu além dele. o que encobria, e onde? E o que dava abrigo? Existia água ali, urra profundidade insondável de água? Não existia então a morte, nem coisa alguma imortal - não havia sinal, o divisor do dia e da noite. Aquela coisa única, sem alento, respirou por sua própria natureza – a não ser ela, não existia coisa alguma. Existia treva; de começo oculto na treva, esse Tudo era caos indiscriminado. E tudo quanto existia então era vazio e sem forma – pelo grande poder do calor nasceu aquela unidade. Daí em diante surgiu o desejo no início, Desejo, a semente e germes primevos do espírito. Sábios que buscavam com o pensamento e seus corações descobriram o parentesco do existente no não-existente. Transversalmente sua linha de separação se estendeu - o que estava acima, então, e abaixo? Existiam reprodutores, forças poderosas, ação livre aqui e energia acima, além. Quem realmente sabe e quem pode declarar, de onde nasceu e de onde veio essa criação? Os deuses vieram depois da produção deste mundo. Quem sabe, portanto, de onde ele veio pela primeira vez? Ele, a primeira origem desta criação, tenha formado a mesma toda ou não a tenha formado, Cujo olho controla este mundo no céu mais alto, ele realmente 22 sabe, ou talvez não saiba. 4. Cosmogonia no Shatapatha - Brahmana Na verdade, de inicio este universo era água, nada mais que um mar de água. As águas desejaram: "Como podemos reproduzir?‖ Elas se esforçaram e praticaram devoções fervorosas, e quando se estavam aquecendo foi produzido um ovo dourado. O ano, na verdade, não estava então em existência - esse ovo dourado flutuou durante o espaço de um ano. No período de um ano um homem, este Prajapati, a foi produzido dali, e por isso uma mulher, uma vaca ou uma égua gera dentro do espaço de um ano, pois Prajapati nasceu em um ano. Ele rompeu o ovo dourado. Não existia então, na verdade, qualquer lugar de descanso; apenas esse ovo dourado, trazendo-o, flutuava durante todo o espaço e um ano. No final de um ano, ele tentou falar. Disse "bhuhr", palavra que se tomou esta terra; - "bhuvar", que se tomou o ar; - ―svar", que se tomou o céu além. Por isso uma criança tenta falar ao fim de um ano, pois ao fim de um ano Prajapati tentou falar. Quando falava ela primeira vez, Prajapati dizia palavras de uma sílaba e de duas sílabas; por isso uma criança, quando fala pela primeira vez, diz palavras de uma e duas sílabas. Essas três palavras consistem em cinco sílabas e ele as tomou as cinco estações. Ao final do primeiro ano, Prajapati subiu para estar sobre essas palavras assim produzidas; por isso uma criança tenta estar de pé ao fim de um ano, pois ao um de um ano Prajapati ficou de pé.Ele nasceu com uma vida de mil anos; assim como alguém poderia ver a distância a costa em frente, assim ele olhou a costa a frente de sua própria vida, 23 Desejando ter progênie, continuou a cantar louvores e a trabalhar. Estabeleceu o poder de reprodução em seu próprio eu. Pelo alento de sua boca criou os deuses - os deuses foram criados ao entrar no céu; e esta é a divindade dos deuses, a que tenham sido criados ao entrar no céu. Tendo-os criado houve, por assim dizer, dia para ele e esta é também a divindade dos deuses, a que, depois de criá-los, houve, por assim dizer, dia para ele. E pelo alento ou respiração para baixo, ele criou os Asuras!- que foram criados entrando nesta terra. Tendo-os criado houve, por assim dizer, treva para ele. Agora que a luz do dia, por assim dizer, existia para ele, ao criar os deuses, isso ele fez o dia; e a treva, por assim dizer, que havia para ele, ao criar os Asuras, disso ele fez a noite - eles são esses dois, o dia e a noite. a) "Senhor das criaturas", o deus supremo a vir. b) Uma classe de demônios, oponentes dos deuses. 5. Aitaryea Upanishad ANTES DA CRIAÇÃO, tudo O que existia era o Eu, somente o Eu. Nada mais havia. Então o Eu pensou: "Criarei os mundos." Ele criou os mundos: Ambhas, o mundo mais elevado, que está acima do céu e é sustentado por ele; Marichi, o céu; Mara, o mundo mortal, a terra; e Apa, o mundo abaixoda terra. Ele pensou: "Eis os mundos. Enviarei agora os seus guardiões." Enviou então os guardiões. Ele pensou: "Eis os mundos e seus guardiões. Enviarei alimento para os guardiões." Então enviou alimento para eles. Ele pensou: ―Como poderão existir guardiões sem que eu tome parte neles?‖. 24 "Se, sem mim, a palavra é pronunciada, o alento é absorvido, os olhos vêem, o ouvido ouve, a pele sente, a mente pensa, os órgãos sexuais procriam, então o que sou eu?" Ele pensou: "Penetrarei nos guardiões." E então, abrindo o centro dos seus crânios, entrou. A porta por onde ele entrou é chamada de porta da bem-aventurança. Sendo o Eu desconhecido, todos os três estados da alma são apenas sonho: vigília, sonho e sono sem sonhos. Em cada um deles habita o Eu: o olho é o local em que habita quando estamos acordados, a mente é o local em que habita enquanto sonhamos, o lótus do coração é o local em que habita quando dormimos o sono sem sonhos. Após penetrar nos guardiões, ele se identificou com eles. Tornou-se muitos seres individuais. Assim, conseqüentemente, se um indivíduo acorda do seu tríplice sonho de vigília, sonho e sono sem sonhos, vê apenas o Eu. Ele vê o Eu morando no lótus do seu coração como Brahman, onipresente, e declara: "Conheço Brahman!‖ Quem é esse Eu que desejamos venerar? De que natureza é esse Eu? É ele o eu através do qual vemos a forma, ouvimos o som, cheiramos o odor, falamos as palavras e provamos o doce ou o amargo? É ele o coração e a mente através do qual percebemos, comandamos, discriminamos, conhecemos, pensamos, recordamos, queremos, sentimos, desejamos, respiramos, amamos e executamos outros atos semelhantes? Não, esses são apenas adjuntos do Eu, que é consciência pura, que é Brahman. E esse Eu, que é consciência pura, é Brahman. Ele é Deus, todos os deuses; os cinco elementos - terra, ar, fogo, água, éter; todos os seres, grandes ou pequenos, nascidos de ovos, nascidos do 25 útero, nascidos do calor, nascidos do solo; cavalos, vacas, homens, elefantes, pássaros; tudo o que respira, os seres que caminham e os seres que não caminham. A realidade que está por trás de todos eles é Brahman, que é consciência pura. Todos esses, enquanto vivem, e depois que cessam de viver, existem nele. O sábio Vamadeva, tendo percebido Brahman como consciência pura, partiu desta vida, subiu aos céus, realizou todos os seus desejos, e alcançou a imortalidade. 6. A Perenidade da criação na Visão Budista, no Diga Nikaya Há, ó monges, eremitas e brâmanes que são em parte eternalistas, em parte não-eternalistas. Eles assentam em princípio por quatro razões que o eu e o mundo são em parte eternos, em parte não- eternos. Quais são os motivos? Ó monges, se produz um estado em que, a um momento dado após um longo lapso de tempo, este mundo está em involução. Este mundo estando em involução, os seres na sua maioria tornam-se Radiantes. Tornam-se compostos de espírito, gozam do êxtase, lúcido quanto ao eu, circulando no céu, permanecendo na glória; eles duram durante uma longa, longa existência. Ora, monges, produz-se um estado em que, a um dado momento, após um longo lapso de tempo, este mundo está em evolução. Este mundo estando em evolução, vem a aparecer a morada vazia de um Brahma. Então um ser, seja que a duração de sua vida esteja esgotada seja que seu mérito esteja esgotado tendo morrido no grupo dos Radiantes, surge na morada vazia de um Brahma. Ele se toma composto de espírito, goza do êxtase, lúcido 26 quanto ao eu, circulando no céu, permanecendo na glória, ele dura durante uma longa, longa existência. Se eu estando perturbado, de aí permanecer na solidão, após uma longa existência, a falta de contentamento e a agitação nascem nele, e ele pensa: "Praza ao Céu que outros seres venham também a este estado". Então determinados seres também eles, seja porque a duração de sua vida está esgotada, seja porque seu mérito está esgotado, tendo morrido no grupo dos Radiantes surjam na morada de Brahma, na companhia deste ser. Estes são igualmente compostos de espíritos... etc. e duram durante uma longa existência. Em conseqüência, ó monges, vem ao ser que surgiu ali primeiro esta idéia: "Sou eu que um Brahma, um grande Brahmã, Vencedor, invencível, Aquele que tudo vê, que governa, Senhor, Fazedor, Criador, Chefe, Dispensador, Mestre, Pai de todos os seres que vieram a ser e virão. Estes seres são criados por mim. Qual é a causa disto? Primeiro me veio esta idéia: "Praza ao Céu que outros seres venham a este estado". E tal era minha resolução que estes seres vieram a este estado. E também aos seres que suspiram mais tarde veio esta idéia: "este Brahmã venerado é um grande Brahmã... Pai de todos os seres que vieram a ser e virão. Nós fomos criados por este Brahmã. Qual foi a causa disto? É que vemos que ele surgiu aqui primeiro e que nós surgimos depois dele". Mas pode suceder, ó monges, que um ser tendo morrido neste grupo, venha a este estado e abandone o lar, viver sem lar. Tendo feito assim, pode suceder que pelo resultado de seu ardor, por um resultado de seu esforço, por um resultado de sua aplicação, por um resultado de sua sinceridade, como resultado de seu trabalho mental correto, ele atinja a uma contemplação mental tal que, seu espírito estando em contemplação, ele se possa lembrar desta 27 habitação anterior: ele não se lembra de nenhuma outra anterior a essa. Ele diz: O Brahmã venerado que é um grande Brahmã, Vencedor, invencível etc... Pai de todos os seres que vieram e virão a ser, é por este Brahmã venerado que fomos criados. Ele é permanente, estável, eterno, não sujeito à mudança, igual ao eterno pois durará como ele. Mas aqueles dentre nós que foram criados por estes Brahmã, tendo chegado a este estado, são impermanentes, instáveis, de curta vida, sujeitos à morte. É a primeira consideração pela qual alguns eremitas e brâmanes assentam em princípio que o eu e o mundo são em parte eterno, em parte não-eternos. Em segundo lugar, ó monges, há devas que são chamados "Corrompidos pelo prazer‖. Durante um tempo prodigiosamente longo eles vivem inteiramente para as coisas do riso, do prazer do deleite; por isso sua memória é confusa, e como sua memória é confusa estes devas morrem neste grupo. Mas pode suceder, ó monges, que tendo morrido neste grupo, um ser vem a este estado e abandona o lar para viver sem lar. Tendo feito assim. .. (etc. como acima). .. ele não se lembra de nenhuma habitação anterior a essa. Ele pensa: "Os dignos devas, que não estão corrompidos pelo prazer, não viveram durante um tempo prodigiosamente longo inteiramente para as coisas do riso, do prazer, do deleite; assim sua memória não é confusa, e sua memória, não sendo confusa, estes devas não morrem neste grupo. Eles são permanentes, estáveis, ternos, não sujeitos à mudança; eles são semelhantes ao eterno, pois durarão como ele. Mas aqueles dentre nós que viveram inteiramente para as coisas do riso, do prazer, do deleite durante um tempo prodigiosamente longo, têm a memória confusa: nossa memória sendo confusa, nós morreremos neste grupo e chegaremos a este estado. Nós somos impermanentes, 28 instáveis, de curta vida, sujeitos, à morte‖. É a segunda consideração pela qual alguns eremitas e brâmanes assentam em princípio que o eu e o mundo são em parte eternos, em parte não-eternos. Em terceiro lugar, ó monges, há devas que se chamam "Corrompidos em espírito". Durante um tempo prodigiosamente longo, eles são considerados e julgados entre eles de uma maneira invejosa. Como conseqüência disto seus espíritos são maculados uns em relação: aos outros, e em conseqüência seu corpo é cansado, seu espírito é cansado. Eles morrem neste grupo. Mas pode suceder, ó monges que tendo morrido neste grupo, um ser vem neste estado, e abandona o lar paraviver sem lar... (como acima); ele não se lembra de nenhuma habitação anterior a essa. Ele diz: "Os dignos devas que não são corrompidos em espírito não são considerados e julgados entre si de modo invejoso durante um tempo prodigiosamente longo. Assim seus espíritos não são maculados uns em relação aos outros, seu corpo e seu espírito não estão cansados. Estes devas não morrem neste grupo. Eles são permanentes... (etc.), eles durarão. Nós que somos Corrompidos em espírito, que somos considerados e julgados entre nós de modo invejoso durante um tempo prodigiosamente longo, nós cujo corpo e espírito estão cansados, nós que, tendo morrido neste grupo, chegamos a este estado; nós somos impermanentes, instáveis, de vida curta, sujeitos à morte." É a terceira consideração pela qual alguns eremitas e brâmanes assentam em princípio que o eu e o mundo são em parte eternos, em parte não-eternos. Em quarto lugar, ó monges, um eremita ou brâmane raciocina e estuda. De acordo com um sistema por ele inventado, elaborado sobre o raciocínio, baseado sobre o estudo, ele fala da seguinte maneira: "Tudo o que se pode chamar olho, orelha, 29 nariz, língua, corpo, esse eu é impermanente, instável não eterno, sujeito à mudança. Mas o que chama espírito, pensamento ou consciência este eu é permanente, estável, não sujeito à mudança; semelhante ao eterno, pois como ele durará." É a quarta consideração pela qual alguns eremitas e brâmanes que são em parte eternalistas, em parte não-eternalistas, assentam em princípio que o eu e o mundo são em parte eternos, em parte não-eternos. Disto, ó monges, o Descobridor da Verdade tem a presciência: Estas opiniões especulativas, sustentadas desta maneira, afirmadas deste modo, terminarão por levar a este ou àquele destino, a este ou àquele estado futuro. Disso o Descobridor da Verdade tem a presciência, e tem a presciência de outras coisas ainda. Mas mesmo tendo esta presciência ele nela não insiste. Como ele não insiste, o nirvana se encontra nele, conhecido de si mesmo; conhecendo tais como são verdadeiramente a origem e o desaparecimento das sensações, sua doçura; seu perigo, e o modo de deles se evadir, o Descobridor da Verdade, ó monges, é libertado sem que subsista nele um resíduo qualquer [levando a outra existência]. 7. O mito chinês de Panku Segundo a tradição, antes da separação do céu e da terra, o universo assemelhava-se a um ovo gigantesco. Pan-Ku crescia em seu interior. Após dezoito mil anos, subitamente despertou e abrindo os olhos não se apercebeu de coisa alguma em torno de si. Atordoado tomou de um machado e girando-o com grande ímpeto, conseguiu quebrar a casca do ovo num enorme estrondo. Então a parte superior elevou-se aos poucos formando o céu. A parte inferior lentamente desceu, formando a terra. Quanto a Pan-Ku, este 30 assumiu sua forma: possuía cabeça de dragão e corpo de cobra. Sua respiração era constituída pelo vento, a chuva e o trovão. Quando abria os olhos se fazia luz. Quando os fechava, só o escuro. Pan-Ku, para impedir que se unissem novamente as partes ora separadas, exteriorizou todo o seu poder, fixando-se entre o céu e a terra como eixo. O céu subia diariamente dez pés. O chão, já estabelecido, avolumava-se dezoito mil pés por dia. Quanto ao corpo de Pan-Ku, este se desenvolvia no mesmo ritmo. E assim se passaram outros dezoito mil anos. Pan-Ku continuava a desenvolver-se, tão forte e sólido, que sustentava o céu. Contudo, chegado o momento em que estando firmes o céu e a terra, entendeu não ser mais necessária a sua permanência na posição de eixo e assim deitou-se para morrer. E se metamorfoseou. Magicamente sua respiração se transformou no vento e nas nuvens e sua voz no trovão. De seu olho esquerdo nasce o sol. De seu olho direito surge a lua. Mãos e pés criam os quatro pontos cardeais e as grandes montanhas. De seu sangue, o milagre dos rios e dos nervos os caminhos naturais. De sua carne a terra fértil. De seus cabelos e barba criam-se as estrelas. De sua pele e pêlos brotam árvores e outros vegetais. De seus dentes e ossos eclodem as rochas e pedras preciosas, as pérolas e o jade. E de seu suor, a fonte do orvalho e da chuva. Os homens, numa atitude de profunda reverência e respeito, fizeram erguer um grande túmulo de 300 milhas de comprimento para todo o sempre cultuar o seu espírito. 8. Cosmologia daoista em Laozi O Tao gera o um o um gera o dois 31 o dois gera o três o três gera as dez mil coisas Todos os seres têm o Yin e o Yang Fundido suas energias para a harmonia Ninguém quer estar só ou desgostoso Mas é assim que os reis se descrevem Pode-se perder ganhando E ganhar perdendo-se O que os outros ensinam, eu também ensino Os fortes não podem dominar sua morte Este é o pai de todos os ensinamentos. 9. A cosmologia daoista do Huananzi As essências entrelaçadas do Céu e da Terra produziram o Yin e Yang As essências exaladas por Yin e Yang produziram as quatro estações As essências desagregadas de Yin e Yang criaram todas as coisas O qi fervente do yang acumulado produz o fogo O sol é a essência do qi fervente O qi gelado do yin acumulado produz a água A lua é a essência do qi aquoso O qi advindo das essências de sol e da lua produziram as estrelas e planetas Ao céu pertencem o sol, a lua planetas e estrelas A terra pertencem a água, as inundações, o povo e o solo [...] O dao do céu é circular O dao da terra é quadrado 32 O quadrado governa o obscuro O circular governa o brilhante O brilhante emite qi e por esta razão O fogo é o brilho externo do sol O obscuro absorve qi, e por esta razão A água é a luminosidade interna da lua O sol preside o yang, por isso Na primavera e no verão os animais lutam No solstício do verão os cervos perdem seus chifres A lua preside o yin, por isso Quando a lua mingua, os peixes enlouquecem Quando a lua morre, caranguejos ressecam O fogo vai pra cima A água vai pra baixo Assim é também O vôo dos pássaros, pra cima O nado dos peixes, pra baixo As coisas que pertencem a uma mesma classe movem-se simultaneamente A raiz e o tal respondem um pelo outro Portanto Quando o espelho candente (=lente) vê o sol Incendeia a erva e produz o fogo Quando o espelho quadrado (=espelho) vê a lua Umedece e produz água (=orvalho) 33 Natureza Humana A discussão sobre a natureza humana é antiqüíssima na Índia e na China; no entanto, enquanto na Índia ela era lida pela questão da transmigração das almas, na China ela era compreendida como relacionada ao surgimento biológico do ser, fazendo parte de suas propensões naturais. Por conta disso, a questão atravessa todos os textos indianos – e talvez nenhum, se entendermos que esta natureza humana é lida pelo prisma do karma, e todos os seres são, então, iguais perante o absoluto, e diferentes em evolução. Uma compreensão melhor sobre esta questão pode ser vista na seção sobre Sociedade, em que são apresentados os textos que tratam sobre a transmigração da alma e sua relação com as castas. Veremos, pois, dois textos budistas que tratam brevemente sobre a questão, buscando classificar os tipos humanos encarnados em seu ―nível de espiritualidade‖. Na China, contudo, este problema foi discutido amplamente pelos pensadores chineses, de modo que fosse aplicado, de maneira prática, na formulação de uma ética e de uma ciência sobre o ser humano. O início desse debate se deu com os textos de Mêncio e Xunzi, no período dos sécs. -4 -3 aec., e continuou ao longo da história chinesa. Como nos centramos no período da antiguidade, podemos acompanhar um pouco desta discussão nos textos de Lubuwei (da época Qin), do Huainanzi e de Dong Zhongshu, da dinastia Han, que veremos a seguir. http://asiantiga.blogspot.com.br/2010/07/natureza-humana.html34 10. A Visão budista da Natureza Humana no Suttanipata Vãsettha, responde ele, eu te irei expor segundo a verdade e gradualmente. A divisão em espécies dos seres vivos; pois as espécies os dividem. Considera ervas e árvores! Eles não raciocinam; entretanto eles são marcados cada um segundo sua espécie; pois em verdade as espécies se diferenciam. Considera em seguida os besouros, as borboletas, as formigas, cada um segundo sua espécie, eles também são marcados... Da mesma maneira os quadrúpedes, grandes e pequenos, os répteis, as serpentes, os animais de longo dorso, os peixes, os hóspedes do lago, os habitantes das águas, os pássaros, as criaturas aladas que povoam o espaço; todos são marcados segundo sua espécie, pois as espécies se diferenciam. Cada um segundo sua espécie leva sua marca. No homem não há multiplicidade, nem na cabeleira, nem na cabeça, as orelhas ou os olhos, nem na boca, no nariz, os lábios e as sobrancelhas, nem na garganta, quadris, o ventre ou o dorso, nem nas nádegas, os órgãos sexuais, ou o peito, nem nas mãos, os pés, os dedos ou as unhas, nem nas pernas e as coxas, nem a tez nem a voz, não há uma marca que diga sua espécie, como em todos os outros. Nada que seja único nem se encontre no corpo humano: a diferença dos homens é puramente nominal. 11. Outra visão budista, sobre a natureza humana, no Samyutta Nikaya Constata-se que existem no mundo quatro tipos de indivíduos. Quais são? Há os sombrios, que caminham para as trevas, os sombrios que caminham para a claridade; os claros que caminham para as trevas, os claros que caminham para a claridade. Qual é aquele que é 35 sombrio, que caminha para as trevas? É, por exemplo, o homem nascido numa família humilde; ele é pobre, mal nutrido, vivendo numa condição miserável, aflito, disforme. Sua conduta do corpo, de palavra e de pensamento é má, de modo que quando da decomposição de seu corpo após a morte ele surge no Abismo, o Mau Destino, a Queda. É como se o ser caminhasse de cegueira em cegueira, das trevas a outras trevas, de uma mancha de sangue a outra. Qual é aquele que é sombrio, e que caminha para a claridade? É, por exemplo, aquele que é nascido nas condições más que acabo de dizer, mas cuja conduta de corpo, de palavra e de pensamento é boa, de modo que quando da decomposição de seu corpo após a morte ele surge num Bom Destino, num mundo celeste. É como se o ser se elevasse do solo num palanquim, do palanquim ao dorso de um cavalo, do dorso do cavalo ao dorso de um elefante ou do elefante sobre um terraço. Qual é aquele que é claro mas que caminha para as trevas? É, por exemplo, aquele que nasceu numa família de elevada estirpe, muito rica, e com tudo que pode assegurar o prazer. Mas sua conduta de corpo, de palavra e de pensamento e mau, de sorte que quando da decomposição de seu corpo após a morte, ele surge no Abismo, o Mau Destino, a Queda. É como se o ser descesse de um terraço sobre um elefante, do dorso do elefante ao dorso do cavalo, daí em um palanquim e do palanquim a terra. Qual é aquele que é claro e que caminha para a claridade? É por exemplo, aquele que nasceu nas circunstâncias felizes que eu acabo de dizer e cuja conduta de corpo, de palavra e de pensamento é boa, de modo que quando da decomposição de seu corpo após a morte, ele surge num Bom Destino, e num mundo celeste. É como se o ser passasse de um palanquim a um outro, de um cavalo a outro 36 cavalo, de um elefante a um outro elefante, de um terraço a outro terraço. É por esta imagem que eu descrevo este tipo de indivíduo. 12. A natureza humana é boa – a visão de Mêncio Mêncio disse: ―todos tem um coração sensível aos sofrimentos de outros. Os grandes reis do passado tiveram esta sorte do coração sensível e políticas cheias de compaixão foram adotadas. Trazer a ordem ao reino é tão fácil quanto mover um objeto em sua palma quando você tem um coração sensível e põe, em prática, políticas de compaixão. Me deixe dar um exemplo do que eu digo, ou seja, que todos tem um coração sensível aos sofrimentos de outros: qualquer um que viu, de repente, um bebê próximo de cair em um poço se sentiria alarmado e iria salva-lo. Não seria porque quis melhorar suas relações com os pais da criança, nem porque quis uma reputação boa entre seus amigos e vizinhos, nem porque não gostou de ouvir a criança gritar. Disto segue que qualquer um à quem falta sentimentos de comiseração, de carinho, de cortesia ou um sentido de certo e de errado não pode ser entendido como humano. Gaozi disse: ―a natureza humana é como a água correndo: quando um curso é aberto ao leste, ela flui para o leste; quando uma corrente é aberta ao oeste, flui para o oeste. A natureza humana é mais inclinada ao bom tanto para o leste quanto para o oeste. Mêncio respondeu:‖ a água não tem preferência pelo leste ou pelo oeste, mas não tem uma preferência pelo cimo ou para baixo?‖ A bondade é na natureza humana como fluir da água para baixo. Não há nenhuma pessoa que não seja boa e nenhuma água que não flua para baixo. Espirrada, ela pode molhar sua cabeça; se forçada, pode ser trazida acima de um monte. Mas esta não é a natureza da água; são 37 circunstâncias específicas. Embora os povos possam ser feitos para serem maus, suas naturezas não são mudadas. 13. A natureza humana é má – a visão de Xunzi A natureza do homem é má. Bom é o produto humano. A natureza humana é tal que os povos nascem com amor ao lucro, e se seguirem essa inclinações, eles lutarão e arrebatar-se-ão uns aos outros, e as inclinações ao dever e a produção morrerão. Eles nascem com medos e ódios. Se os seguirem, transformar-se-ão em violentos e tendenciosos indo de contra a boa fé, que morrerá. Se forem indulgentes, e desordem da licenciosidade sexual resultará na perda dos princípios rituais e da moral. Em outras palavras, se o povo agir de acordo com a natureza humana e seus desejos, eles inevitavelmente lutarão, arrebatar-se-ão, violarão as normas e agirão com um violento abandono. Conseqüentemente, somente depois de transformados por professores e por princípios rituais e morais, conforme a cultura, poderão permanecer em boa ordem. Visto por este lado, é óbvio que a natureza humana é má e bom é o produto humano. 14. A Natureza Humana é indistinta – a visão de Lubuwei Se bem que a transparência seja a verdadeira natureza da água, a sociedade perturba essa natureza, impedindo-a de se manter transparente. Apesar da longevidade ser a verdadeira natureza do homem, os bens materiais perturbam esta natureza, e por isso muita gente morre antes do tempo. Os bens materiais deveriam ser usados para aprimorar nossa natureza, e não deveríamos usar nossas naturezas para obter bens materiais. 38 O fato é que hoje, a maioria dos homens, confusos, usa sua natureza para melhorar seus bens materiais, o que mostra que eles não compreendem a diferença entre o que é importante e o que é insignificante. Quando não se compreende esta diferença, se deprecia o que é importante e se valoriza o insignificante. Deste modo, toda ação conduz ao fracasso. Devido a isso, os governantes viram perversos, os ministros se tornam rebeldes e seus filhos perdem os limites. Um estado ou família em que se suceda algumas dessas coisas está condenado a extinção, a menos que tenha muita sorte. 15. A natureza humana depende da cultura - Huainanzi Suponhamos que uma pessoa nasça em um lugar remoto e pouco civilizado, na choça de uma família pobre, fica órfão dos pais desde criança e não tem irmãos, nunca teve contato algum com os ritos e nada semelhante, jamais ouviu fala dos exemplos dos antigos sábios, e vive cerrado em uma pequena habitação sem dela sair, então não podemos supor que ele seja estúpido por sua própria natureza como muitos supõem, mas sem dúvida é muito pouco oque ele sabe. 16. A natureza humana depende da educação – Dong Zhongshu O que se passa agora é que o povo é bom por natureza, mas ela ainda não está desperta, como ocorre com uma pessoa que está com os olhos fechados e, sem abri-los, ele nada pode ver. Tudo ficará bem se lhe dermos educação. Enquanto permanecer sem despertar, somente podemos dizer que ele tem uma natureza boa, mas ele não é 39 bom. É exatamente como os olhos que permanecem fechados, e que ainda não foram abertos. 40 A Morte Ato contínuo, se a discussão sobre a natureza humana era evidentemente forte na China, a questão da morte tornou-se, porém, o foco central das reflexões metafísicas indianas. Eis a razão pela qual esta seção é praticamente dominada pelos textos indianos. Iniciamos por um hino do Atharva Veda, que forma a coleção mais antiga de textos védicos, e do qual podemos extrair alguma coisa do primitivo politeísmo indiano; no seguir, uma explanação sobre a morte e ação humana em um dos primeiros textos de caráter legislativo da Índia, o Manavadharmashastra (ou Leis de Manu, o primeiro homem da terra após o dilúvio indiano); depois, a conclusão desta especulação é apresentada em um longo, porém fundamental, texto upanishádico – o Katha upanishad traz, especificamente, uma dissertação, sob forma de diálogo ―imaginado‖ (numa percepção religiosa, ele não o seria) acerca da morte, e da transmigração da alma. Depois, uma contraposição budista ao tema, e por fim, a insinuante perspectiva chinesa representada por Zhuangzi; se há morte ou não, qual seria a diferença? Numa proposta inédita, que consigna o desejo chinês de viver a vida imediata, Zhuangzi propõe não só a continuidade da matéria como também, a nossa impossibilidade total de governar este ciclo. (um trecho sobre a visão da morte chinesa pode ser encontrado na seção ―Sociedade‖, no item 49). 41 17 - Hino para ser entoado em um funeral, do Atharva Veda Terra, sê leve, sem espinhos, repousante. Vasta, oferece-lhe o teu abrigo. Deponham-te, não em lugar estreito, mas em terreno largo. Tuas oblações, enquanto viveste, agora sejam mel para ti. Chamo o teu pensamento com o meu pensamento. Vai alegre para a tua morada e reúne-te aos nossos antepassados, a lama. Que os ventos te sejam favoráveis e benéficos! Da tua alma, do teu alento, dos teus membros, nada fique por aqui. Não sejas oprimido nem pela terra divina e poderosa, nem pela árvore. Vai para o teu lugar, entre os antepassados, sê feliz entre os súditos de lama. O que se perdeu dos teus membros, ao longe, tua respiração, tua expiração, levadas pelo vento, que os nossos antepassados te restituam aos poucos. [Durante a cremação] Os vivos expulsaram-no de casa. Levem-no para longe da aldeia. Enquanto enterram os ossos, depois da cremação Ainda vês, depois não verás mais, o sol que está no céu. Ó Terra, como a mãe trata do filho, recobre-o com teu manto. Agora ainda, não mais depois, mesmo em tua velhice, ó Terra, cobre- o com a tua vestimenta, como esposa com seu marido. [Ao apagar da fogueira crematória] Que te seja benéfica a neblina, benfeitora a geada. Fria e fresca de frieza, fresca e feita de frescura, rã nas águas, sê benéfica. Extingue esta chama! 42 18. A Morte, a transmigração e a Ação Humana no Manava Dharma Shastra (As Leis de Manu) A ação, que advém da mente, da fala e do corpo, produz resultados bons ou maus; pela ação são causadas as diversas condições humanas, as mais elevadas, as médias e as mais baixas. A mente é o instigador aqui em baixo, mesmo aquela ação ligada ao corpo, e que é de três tipos, tem três localizações e se classifica sob dez títulos. Cobiçar a propriedade alheia, pensar no coração sobre o que é indesejável e aderir a doutrinas falsas são os três tipos de ação mental pecaminosa. Injuriar o próximo, dizer mentira, detrair dos méritos de todos os homens e falar frivolamente serão os quatro tipos de ação verbal má. Tomar o que não foi dado, ferir as criaturas sem a sanção da lei e manter relações criminosas com a mulher do próximo são declarados como os três tipos de ação corporal ruim. Um homem consegue o resultado de ato mental bom ou mau em sua mente, o de um ato verbal em sua fala e o de um ato corporal em seu corpo. Em conseqüência de muitos atos pecaminosos cometidos com seu corpo, no nascimento seguinte um homem se toma algo inanimado; em conseqüência de pecados cometidos pela fala, uma ave ou um animal, e em conseqüência de pecados mentais ele nasce novamente em uma casta inferior. [...] Mesmo que morresse com ele, um familiar não consegue acompanhar seu parente falecido e todos, com exceção de sua esposa, estão proibidos de acompanhá-lo na trilha de Yama. (a) Apenas a virtude o acompanhará, onde for; portanto, cumpre teu dever sem hesitar neste mundo desgraçado. As questões de amanhã devem ser tratadas hoje, e as da tarde na manhã, pois a morte não 43 esperara, tenha uma pessoa tratado delas ou não. Enquanto sua mente estiver concentrada em seu terreno, ou ocupação, ou casa, ou enquanto seus pensamentos estiverem absorvidos por algum objeto amado, a morte repentinamente a leva como sua presa, como uma loba arrebata um cordeiro. O tempo não é amigo de pessoa alguma, nem seu inimigo - quando o efeito de seus atos em existência anterior, pela que sua existência atual é causada, tiver expirado, ele leva o homem a força.Ninguém morre antes de chegado seu tempo, ainda que ferido por mil setas; ninguém vive depois de esgotado seu tempo, ainda que tenha sido apenas tocado pela ponta de uma folha de grama Kusha. Nem drogas, nem fórmulas mágicas, nem oferendas queimadas, nem orações, poderão salvar quem esta nos laços da morte ou na velhice. Um mal iminente não pode ser evitado, mesmo com mil precauções; que motivo tens, então, para te queixares? Assim como um bezerro encontra sua mãe entre mil vacas, um ato cometido anteriormente encontrara certamente quem o perpetrou. Das coisas existentes, o início é desconhecido, o meio de sua carreira conhecido, e o fim desconhecido também; que motivo tens, então, para te queixares? Assim como o corpo dos mortais atravessa as vicissitudes da infância, juventude e idade adiantada, também será transformado em outro corpo dali em diante; um homem sensato não se engana a esse respeito. Assim como um homem veste roupas novas neste mundo, deixando de lado aquelas antes usadas, também o eu do homem põe novos corpos, que se acham de acordo com seus atos numa vida anterior. Arma alguma ferirá o eu do homem, nenhum fogo o queimará, nenhuma água o molhará e nenhum vento o secara. Ele não será ferido, queimado, molhado ou secado; é imperecível, 44 perpétuo, imutável, imóvel, sem início. Diz-se também ser imaterial, passando todo o pensamento, e imutável. Sabendo que o eu do homem é assim, não deves lamentar a destruição de seu corpo. a) O deus da morte. 19. A Morte no Katha Upanishad EM DETERMINADA OCASIÃO, Vajasrabasa, esperando obter um favor divino, executou um ritual que exigia que ele se desfizesse de todos os seus bens. Ele teve o cuidado, porém, de sacrificar somente o seu gado e, dele, somente os animais inúteis - os velhos, os estéreis, os cegos e os aleijados. Ao observar essa avareza, Nachiketa, seu filho mais novo, cujo coração havia recebido a verdade ensinada nas escrituras, disse para si mesmo: "Certamente, um devoto que ousa levar presentes tão inúteis está destinado à total escuridão!" Refletindo assim, dirigiu-se ao pai e falou: "Pai, eu também vos pertenço: para quem me dareis?" Seu pai não respondeu; porém, quando Nachiketa repetiu a pergunta uma e outra vez, ele replicou impacientemente: "Eu vos darei à Morte!" Nachiketa disse então para si mesmo: "Sou de fatoo melhor dentre os filhos e discípulos de meu pai, ou estou, pelo menos, na categoria intermediária, não na pior; porém, de que valor serei para o Rei da Morte?" Estando, porém, determinado a seguir a palavra do pai, disse: "Pai, não vos arrependais da vossa promessa! Considerai como tem acontecido com aqueles que partiram antes, e como será com aqueles que vivem agora. Como o milho, um homem amadurece e cai ao solo; como o milho, ele brota novamente na estação propícia." Após falar assim, o rapaz viajou para a casa da Morte. Porém o deus 45 não estava em casa, e Nachiketa esperou durante três noites. Quando finalmente o Rei da Morte voltou, seus servos lhe disseram: "Um Brahmin, parecido com uma chama de fogo, chegou à vossa casa como hóspede, e vós não estáveis aqui. Desse modo, uma oblação deverá ser feita a ele. Ó Rei, devereis receber vosso hóspede com todos os rituais costumeiros, pois se o chefe de uma casa não mostrar a devida hospitalidade a um Brahmin, perderá o que mais preza - os méritos das suas boas ações, sua integridade, seus filhos e seu gado." O Rei da Morte, então, aproximou-se de Nachiketa e deu-lhe as boas-vindas com palavras polidas. "Ó Brahmin", disse ele, "Eu vos saúdo. Vós sois de fato um hóspede digno de todo respeito. Permiti, eu vos imploro, que nenhum mal caia sobre mim! Passastes três noites em minha casa e não recebestes minha hospitalidade; pedi, portanto, três dádivas - uma para cada noite." "Ó Morte", replicou Nachiketa, "que assim seja. E como primeira dessas dádivas peço que meu pai não fique ansioso a meu respeito, que sua ira se acalme, e que, quando me mandardes de volta, ele me reconheça e me dê as boas-vindas." "Pela minha vontade", declarou a Morte, "vosso pai vos reconhecerá e vos amará como antes; e, ao ver-vos vivo novamente, ficará com a mente tranqüila, e dormirá em paz." Nachiketa então disse: "No céu não há medo de modo algum. Vós, ó Morte, não estais lá, nem naquele lugar onde o pensamento de ficar velho faz com que a pessoa estremeça. Lá, livres da fome e da sede, e longe do alcance da dor, todos rejubilam e são felizes. Vós conheceis, ó Rei, o sacrifício do fogo que leva ao céu. Ensinai-me esse sacrifício, 46 pois estou cheio de fé. Esse é o meu segundo desejo." Consentindo, então, a Morte ensinou ao rapaz o sacrifício do fogo, e todos os rituais e cerimônias que o acompanhavam. Nachiketa repetiu tudo o que havia aprendido, e a Morte, satisfeita com ele, disse: "Vou conceder-vos uma dádiva adicional. A partir de hoje esse sacrifício será denominado Sacrifício Nachiketa, em vossa homenagem. Escolhei agora vossa terceira dádiva." Nachiketa, então, pensou consigo mesmo, e disse: - "Quando um homem morre, há esta dúvida: Alguns dizem que ele existe; outros dizem que ele não existe. Se vós me ensinásseis, eu conheceria a verdade. Esse é o meu terceiro desejo." "Não", replicou a Morte, "mesmo os deuses certa vez ficaram intrigados com esse mistério. A verdade com relação a isso é realmente sutil, não é fácil de ser compreendida. Escolhe alguma outra dádiva, Ó Nachiketa." Porém, Nachiketa não quis aceitar a recusa. "Vós dizeis, Ó Morte, que mesmo os deuses certa vez estiveram intrigados com esse mistério, e que ele não é fácil de ser compreendido. Certamente, não há melhor mestre para explicá-lo do que vós - e não existe outra dádiva igual a essa." O deus replicou, mais uma vez tentando Nachiketa: "Pedi filhos e netos que viverão cem anos. Pedi gado, elefantes, cavalo, ouro. Escolhe para vós um poderoso reino. Ou, se não puderdes imaginar algo melhor, pedi isto: não apenas doces prazeres, mas também o poder, além de qualquer pensamento, para experimentar sua doçura. Sim, verdadeiramente, farei de vós o supremo desfrutador de todas as coisas boas. Donzelas celestiais, de beleza excepcional, 47 que não foram destinadas a mortais - mesmo essas, com suas carruagens e seus instrumentos musicais, eu vos darei, para vos servirem. Não me peçais, porém, Ó Nachiketa, o mistério da morte!" Nachiketa, contudo, manteve-se firme e disse: "Essas coisas durarão somente até o dia seguinte, Ó Destruidor da Vida, e os prazeres que elas conferem desgastam os sentidos. Ficai, portanto, com os cavalos e as carruagens, com a dança e a música, para vós mesmo! Como poderá desejar a riqueza, Ó Morte, aquele que uma vez já viu a vossa face? Não, apenas a dádiva que escolhi - somente isso eu peço. Tendo descoberto a companhia do imperecível e do imortal, como quando vos conheci, como poderei eu, sujeito à decadência e à morte, e conhecendo bem a vaidade da carne - como poderei desejar vida longa? "Contai-me, Ó Rei, o supremo segredo com relação ao qual os homens mantêm dúvidas. Não solicitarei qualquer outra dádiva." Com o que, o Rei da Morte, bem satisfeito em seu coração, começou a ensinar a Nachiketa o segredo da imortalidade. O Rei da Morte; O bem é uma coisa; o prazer é outra. Esses dois, diferindo em seus propósitos, incitam à ação. Abençoados são aqueles que escolhem o bem; aqueles que escolhem o prazer não atingem o objetivo. Tanto o bem como o prazer se apresentam ao homem. Os sábios, após examinarem ambos, distinguem um do outro. Os sábios preferem o bem ao prazer; os tolos, levados por desejos carnais, preferem o prazer ao bem. Vós, Ó Nachiketa, após haverdes observado os desejos carnais, agradáveis aos sentidos, renunciastes a todos eles. Vós vos 48 desviastes do caminho lamacento no qual muitos homens se atolam. Distantes um do outro, e levando a diferentes desígnios, encontram- se a ignorância e o conhecimento. Eu vos considero, Ó Nachiketa, como alguém que anseia pelo conhecimento, pois uma infinidade de objetos agradáveis foram incapazes de tentar-vos. Vivendo no abismo da ignorância, embora julgando-se sábios, tolos iludidos dão voltas e voltas, cegos levados por cegos. Ao jovem irrefletido, enganado pela vaidade das posses terrenas, não é mostrado o caminho que leva à morada eterna. Somente este mundo é real: não existe depois - pensando assim, ele cai uma e outra vez, nascimento após nascimento, dentro das minhas mandíbulas. A muitos não é concedido ouvir sobre o Eu. Muitos, embora ouçam a respeito dele, não o compreendem. Maravilhoso é aquele que fala a respeito do Eu. Inteligente é aquele que aprende a respeito do Eu. Abençoado é aquele que, tendo aprendido com um bom mestre, é capaz de compreendê-lo. A verdade do Eu não pode ser completamente compreendida quando ensinada por um homem ignorante, pois as opiniões a respeito dele, não fundamentadas no conhecimento, variam de um para outro. Mais sutil do que o mais sutil é esse Eu, e além de toda lógica. Ensinado por um mestre que saiba que o Eu e Brahman são um só, um homem deixa para trás a vã teoria e atinge a verdade. O despertar que conhecestes não vem do intelecto, e sim, totalmente, dos lábios dos sábios. Bem-amado Nachiketa, abençoado, abençoado sois vós, porque procurais o Eterno. Quisera eu ter mais discípulos como vós! Bem sei que os tesouros terrestres duram pouco. Pois não fiz eu 49 mesmo, desejando ser o Deus da Morte, o sacrifício com o fogo? O sacrifício, porém, foi uma coisa efêmera, realizada com objetos fugazes, e pequena é minha recompensa, considerando que meu reino só durará por um momento. A finalidade do desejo mundano, os objetos fulgurantes que todos os homens almejam, os prazeres celestiais que esperam obter através de rituais religiosos - tudo isso esteve ao vosso alcance. Porém, a tudo isso renunciastes, com firme resolução. O antigo, fulgurante ser, o Espírito que habita interiormente, sutil, profundamente oculto no lótus do coração, é difícil de ser conhecido. Porém, o homem sábio, que segue o caminho da meditação, conhece-o, e se torna liberto tanto do prazer como da dor. O homem queaprendeu que o Eu está separado do corpo, dos sentidos e da mente, e que o conheceu por completo, a alma da verdade, o princípio sutil - tal homem verdadeiramente o alcança, e se torna extremamente satisfeito, pois encontrou a fonte e o local onde habita toda a felicidade. Verdadeiramente acredito, Ó Nachiketa, que as portas da felicidade estão abertas para vós. 20. A Morte na Visão Budista no Mojjhima - Nikaya Ó chefes de família, se alguém que marcha segundo o dhamma, que segue uma marcha igual, desejasse [um destes estados]: Possa eu, quando da decomposição de meu corpo após a morte, surgir na companhia de ricos nobres, de ricos brâmanes, de ricos chefes de família, com os devas dos quatro grandes Regentes, com os devas dos Trinta-e-três, com os devas de Yama, com os devas Satisfeitos, com os devas que se deleitam em criar, com os devas que têm todo o poder sobre as criações dos outros, com os devas do séquito de 50 Brahmã, com os devas do Esplendor, com os devas do Esplendor limitado, com os devas do Esplendor infinito, com os devas Luminosos, com os devas Belos, com os devas da Beleza limitada, com os devas da Beleza infinita, com os devas Irradiantes, com os devas Vehapphalã, com os devas Avihã, com os devas Novos, com os devas Graciosos, com os devas da Boa Vista, com os devas Antigos, com os devas que atingiram a infinidade do Éter, com os devas que atingiram a infinidade da Consciência, com os devas que atingiram o aniquilamento de si mesmos, com os devas que atingiram a "não percepção nem a não-percepção" - poderia suceder que surgisse e dessa maneira. Por quê? Porque é um ser que caminha segundo o dhamma, que segue uma marcha igual. Ó chefes de família, se alguém que caminha segundo o dhamma, que segue uma marcha igual, desejasse: "Possa eu, graças à destruição dos fluxos, tendo neste mundo e desde agora realizado pelo meu próprio saber superior a liberdade de coração e a liberdade de intelecto que são sem fluxos, aí permanecer" - poderia acontecer que ele ai permanecesse. Por quê? Porque é um ser que caminha segundo o dhamma, que segue uma marcha igual. 21. A morte na visão de Zhuangzi Todas as coisas brotam de germes e se tornam germes novamente. Todas as espécies vêm de germes. Certos germes, caindo na água, tornam-se lentilhas-d'água (...) tornam-se líquenes (...) tornam-se um eritrônio (...) produzem o cavalo, que produz o Homem. Quando o Homem envelhece, torna-se germes outra vez. [...] Quando Laozi morreu, Chin Yi foi ao funeral. Soltou três gritos de 51 dor e saiu. Um discípulo dirigiu-se a ele perguntando - "Você não era amigo de nosso Mestre?" - "Era", replicou Chin Yi. - "Assim sendo, acha que foi suficiente sua expressão de pesar pela sua morte?", tornou o discípulo. - "Acho", respondeu Chin Yi. "Estive pensando que ele era homem (mortal), porém agora sei que não era. Quando cheguei para os pêsames, encontrei pessoas de idade que choravam como chorariam pelos filhos, jovens que se lastimavam como se tivessem perdido as mães. Quando essas pessoas se encontraram deviam ter dito palavras sobre o acontecimento e derramado lágrimas sem intenção alguma. (Chorar assim pela morte de alguém) é fugir dos princípios naturais (de vida e morte) e aumentar o apego humano, esquecendo- se da fonte da qual recebemos esta vida. Os antigos chamavam a isto "fugir à retribuição do Céu". O mestre veio porque tinha chegado a hora de nascer, partiu porque chegou o tempo de partir. Os que aceitam o curso natural e a seqüência das coisas e vivem em obediência a eles estão acima da alegria e dos pesares. Os antigos falavam disto como a emancipação da escravatura. Os dedos podem não ser capazes de fornecer todo o combustível, porém o fogo é transmitido e nós não sabemos quando terminará." 52 Caminhos para a Sabedoria São muitos os caminhos da sabedoria, tanto na Índia como na China. Na primeira, a busca pela supressão do karma e pelo alcance da libertação – moksha, nirvana, shamadhi, ou como se preferir chamar – é a constante em todos os métodos. Este sábio perfeito é o primeiro dos textos, que aparece no clássico do Bhaghavad Gita (A canção do Senhor), texto que faz parte do épico Mahabharata, mas cuja importância religiosa e filosófica a tornaram uma obra em separado. Esta definição é completada por dois textos upanishádicos fascinantes: no primeiro, a discípula é uma mulher, mostrando que na Índia védica buscadoras do caminho também; no segundo, a famosa passagem em que Sevtaketu descobre a analogia da alma e da semente. Por fim, a apresentação do método yóguico de meditação de Patanjali, e do caminho budista. Diferente destes, porém, a China consagrou a palavra Dao como a via, método, caminho pelo qual se atinge uma realização imanente, neste mundo, deslocando-se da visão transcendente, tal como vimos na Índia. Para a escola de Confúcio, este Dao é a redenção pela educação; na visão de Laozi, do desapego; para Zhuangzi, o Dao é obscuro e atingido por experiências psicológicas e lingüísticas avançadas; e para concluir, uma visão curiosa da escola médico-cosmológica, da época Han, que propunha uma caminho para a longevidade por meio de uma filosofia médica, ainda hoje existente. 53 22. As Características do Sábio Perfeito no Bhaghavad Gita Disse Arjuna: Qual é a descrição do homem que possui essa sabedoria firmemente fundada, cujo ser é firme em espírito, Ó Krishna? Como fala o homem de inteligência estabelecida, como se senta, como anda? O Senhor Bendito disse: Quando um homem põe de lado todos os desejos de sua mente, Ó Arjuna, e quando seu espírito está contente em si próprio, então se chama estável em inteligência. Aquele cuja mente não se perturba em meio às tristezas e está livre do desejo ansioso entre prazeres, aquele de quem a paixão, medo e raiva se afastaram, a este se chama um sábio de inteligência estabelecida. Aquele que não tem afeição em qualquer lado, que não se rejubila ou detesta ao ter o bem ou o mal, tem uma inteligência firmemente estabelecida na sabedoria. Aquele que retira os sentidos dos objetos do sentido em todos os lados, assim como uma tartaruga recolhe seus membros ao casco, tem uma inteligência firmemente estabelecida na sabedoria. Os objetos do sentido se afastam da alma corporificada que se abstém de alimentar-se deles, mas o gosto por eles continua. Até mesmo o gosto se afasta quando o Supremo é visto. Embora um homem possa esforçar-se pela perfeição e mostrar-se dono de discernimento, Ó Filho de Kunti, seus sentidos impetuosos arrastarão sua mente à força. Tendo posto todos os sentidos sob controle, ele deve permanecer firme no intento Yoga em Mim, pois aquele cujos sentidos se acham sob controle teia uma inteligência firmemente estabelecida. Quando, em sua mente, um homem presta atenção aos objetos do sentido, produz-se sua ligação aos mesmos. Dessa ligação surge o desejo, e do desejo vem a raiva. Da raiva nasce a confusão, e desta a perda de memória; dessa perda 54 de memória vem a destruição da inteligência e desta ele perece. Um homem de mente disciplinada, no entanto, que se move entre os objetos de sentido com os sentidos sob controle e livre de ligação e aversão, atinge a pureza de espírito. E nessa pureza de espírito produz-se para ele um fim de toda tristeza; a inteligência de um homem de espírito puro assim logo se estabelece na paz do eu. Não existe inteligência para os incontrolados, nem tampouco para os incontrolados existe o poder de concentração, enquanto para aquele que não tem concentração não há paz, e como pode haver felicidade para quem não tem paz? Quando a mente persegue .os sentidos nômades, leva consigo a compreensão, assim como o vento impele um navio sobre as águas. Aquele cujos sentidos estejam retirados de seus objetos, portanto,
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