Prévia do material em texto
CAPÍTULO 6 Processo de desenvolvimento do currículo escolar A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes objetivos de aprendizagem: 3 Caracterizar os diferentes momentos do processo de desenvolvimento do currículo escolar, analisando seus desdobramentos para a prática pedagógica. 3 Relacionar os diferentes momentos da construção de um projeto curricular com as práticas escolares vigentes na Educação Básica. 106 Estruturas Curriculares - Inter e Transdisciplinaridade 107 Processo de desenvolvimento do currículo escolar Capítulo 6 contextualização Conforme vimos até aqui, nos capítulos anteriores, em especial, no capítulo 5, o currículo escolar pode ser entendido, desenvolvido, analisado e avaliado a partir de diversos contextos, teorias, paradigmas e modelos. Historicamente, o modelo curricular mais conhecido e mais presente nas práticas pedagógicas escolares, em todo o globo, tem sido o modelo de Tyler, de concepção tradicional e com enfoque bastante técnico. Em contraposição, o currículo hoje é percebido como um processo dinâmico e que sofre influências de vários contextos, textos e protagonistas. Nesta linha, o currículo constitui um lugar de destaque no contexto educacional brasileiro e também de preocupação de outras agências oficiais que nele interferem, pois este se constitui como [...] significativo instrumento utilizado por diferentes sociedades tanto para desenvolver os processos de conservação, transformação e renovação dos conhecimentos historicamente acumulados como para socializar as crianças e os jovens segundo valores tidos como desejáveis. (MOREIRA, 1997, p. 11). Diante dos diversos interesses que um processo de desenvolvimento curricular possar representar, este capítulo se mostra relevante, na medida em que instrumentalizará os profissionais da educação, em especial, os professores, principais agentes e gestores do currículo, para a elaboração desta atividade nas escolas. É fato que, historicamente, o processo de desenvolvimento do currículo se constituía como uma atividade externa à escola e ao professor. Hoje, sabemos que esta atividade pode e deve ser desenvolvida no âmbito das escolas, com base nas políticas oficiais da União, estado e município. Portanto, o professor é parte integrante deste processo. Diante disso, perguntamos: VOCÊ JÁ PARTICIPOU OU CONHECE ALGUM PROFESSOR QUE JÁ PARTICIPOU DE ALGUM PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO DO CURRÍCULO ESCOLAR EM SUA COMUNIDADE? Neste capítulo iremos estudar as principais etapas e os principais agentes que participam ou que devem participar do processo de elaboração do desenvolvimento do currículo escolar, além de identificarmos como esta atividade vem ocorrendo no âmbito atual da educação básica, em nossas escolas. Fique ligado! Como professor ou como outro agente educacional, você deve ser protagonista desta atividade. 108 Estruturas Curriculares - Inter e Transdisciplinaridade etaPas do desenvolvimento do currículo escolar Com base nestas inter-relações e influências, Sacristán (2000, p. 104) apresenta um modelo do contexto de influências de um currículo, caracterizando, de certa forma, o parágrafo anteriormente enunciado e algumas designações por nós já estudadas no primeiro capítulo, tais como: currículo prescrito, currículo em ação, currículo avaliado, entre outros. Figura 2 – Contextos de influência de um currículo Fonte: Sacristán (2000). Atividade de Estudos: Tomando esses aspectos como prerrogativas iniciais, como um currículo, idealmente, se desenvolve? Por onde se começa? Quais as etapas percorridas? Quais os agentes de construção que dele participam? Com base em nossos estudos e em suas experiências, responda a estes questionamentos, utilizando o espaço a seguir. ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ 109 Processo de desenvolvimento do currículo escolar Capítulo 6 ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ O que se pretende com o desenvolvimento do currículo escolar? Inicialmente, poderíamos dizer que se pretende intencionalmente organizar os processos de ensino e de aprendizagem de uma determinada realidade ou de uma determinada escola, série, modalidade educativa, etc. Via de regra, este trabalho tem se voltado, historicamente, para a definição do que deve ser ensinado nas escolas pelos professores. Isso não significa dizer que, tal como está prescrito, é também executado ou colocado em ação. Nesta perspectiva, Pacheco (1996, p. 71) salienta que apesar das práticas curriculares o contrariarem explicitamente – uma vez analisado o modelo de desenvolvimento curricular mais concordante com uma centralização, que tudo abarca e tudo pretende controlar (conteúdos mínimos, orientações metodológicas, livros de texto e manuais, tipos e critérios de avaliação, etc.) – a opção por um modelo centralizado e vertebrado equivale à tentativa de burocratizar não só o pensamento curricular como também de limitar e condicionar a intervenção dos actores mais directamente responsáveis pela prática pedagógica. Obviamente, o autor nos chama atenção para o fato de que o processo de desenvolvimento do currículo não se constitui apenas de uma dimensão técnica. Ao contrário, dependendo do modelo e da forma pela qual foi desenvolvido, o currículo pode estar mais ou menos comprometido com a dimensão política deste processo. Em outras palavras, isso significa que este processo (como documento) pode estar explicitamente mais voltado para a dimensão técnica, mas, implicitamente ele traz uma carga de valores, nuances e ideologias que, indiretamente, dirigem o trabalho pedagógico da escola para interesses mais particulares de um determinado grupo do que da maioria dos que a ele se submetem ou são submetidos. Isso implica em afirmar, também, que o que dirige a dimensão do processo de desenvolvimento curricular é sua dimensão política, pois esta é que define posicionamentos, interesses, recursos, processos, conteúdos, entre outros elementos que constituem o currículo escolar. Segundo Pacheco (2001, p. 19), numa dimensão política da educação, o currículo funciona como “[...] um instrumento que reflete quer as relações sempre existentes entre escola e sociedade, quer os interesses individuais e os de grupo, quer ainda os interesses políticos e os ideológicos, etc.” Organizar os processos de ensino e de aprendizagem de uma determinada realidade ou de uma determinada escola, série, modalidade educativa, etc. 110 Estruturas Curriculares - Inter e Transdisciplinaridade Sendo assim, argumenta o autor, o processo de desenvolvimento curricular se reflete num caminho de mão dupla, no qual tanto as estruturas políticas quanto às estruturas escolares se inter-relacionam e se coalidem mutuamente, pois ambos formam subsistemas dentro de um macro sistema social. Estas estruturas e seus subsistemas influenciam o processo de desenvolvimento do currículo, assim como por este são também influenciados, conforme figura a seguir: Figura 3 – Sistema de desenvolvimento curricular SISTEMA SOCIAL Fonte: Pacheco (2001). Partindo desta configuração ampla em torno do desenvolvimento do currículo, é preciso entender com clareza que este processo envolve todas as instâncias relacionadas ao ato de ensinar, desde seus fundamentos filosóficos, metodológicos, axiológicos, passando pela organização do documento, que tem caráter prescritivo, até sua operacionalização pelos professores. Isso implica afirmar que o [...] desenvolvimentocurricular engloba os aspectos reflexivos e de ordem valorativa, oriundos da Filosofia da Educação, que analisam as decisões curriculares de projecto; abrange os trabalhos no âmbito da inovação pedagógica, que estudam os aspectos relativos à elaboração e construção de programas, e sua difusão, implementação e adopção; e, finalmente, os aspectos explicativos e prescritivos de aplicação no quadro escolar, no tocante às questões do planeamento do Processo Ensino-Aprendizagem pelos professores. (JANUÁRIO, 1988, p. 53). DESENVOLVIMENTO DO CURRÍCULO Subsitema de participação social e controle Subsistema de especialistas e de investigação Subsistema de produção de meios Subsistema de criação de conteúdos Organização do sistema educativo Subsistema de Inovação Subsistema político- adminitrativo 111 Processo de desenvolvimento do currículo escolar Capítulo 6 Axiológico: refere-se à teoria dos valores morais. Neste sentido, a expressão Desenvolvimento Curricular é usada para explicitar “[...] uma prática, dinâmica e complexa,” que se operacionaliza em diversos estágios e em diferentes etapas, cujo objetivo é o de “[...] formar um conjunto estruturado, integrando quatro componentes principais: justificação teórica, elaboração/planeamento, operacionalização e avaliação” (PACHECO, 2001, p. 25). Diante disso, podemos, em síntese, afirmar que são quatro as etapas que constituem o desenvolvimento do currículo escolar: Os fundamentos teóricos, o planejamento ou elaboração curricular, a implementação e, por fim, sua avaliação. Em consequência de sua avaliação, haverá a necessidade ou não de reelaboração da proposta. Os fundamentos teóricos levam em conta os pressupostos e a abordagem filosófica e metodológica que vão dar sustentação ao processo de organização do planejamento curricular. Por exemplo, que tipo de sociedade e de aluno se pretende formar. Além disso, que aspectos culturais e ideológicos estarão implícitos na proposta curricular. O planejamento ou a elaboração do currículo consiste na organização consistente e coerente de seus elementos (objetivos, conteúdos, estratégias de ensino, avaliação da aprendizagem, recursos, espaço físico, distribuição do tempo, etc), tomando por base seus princípios teóricos já considerados como norteadores deste processo. A implementação do currículo consiste na operacionalização daquilo que foi planejado ou na ação pedagógica que ocorre nos ambientes de aprendizagem (sala de aula, Laboratórios, bibliotecas, etc) entre os professores e alunos e demais profissionais da educação que contribuirão para esta etapa. Por fim, a avaliação se constitui como uma ferramenta fundamental do desenvolvimento do currículo e deve ocorrer sistematicamente e continuamente durante todo o processo, pois tem, como objetivo básico, a sua reelaboração ou a correção de rumos e/ou ações que possam ser reconhecidas como necessárias à qualidade do ensino e da aprendizagem. Assim, podemos constatar que o desenvolvimento curricular [...] é o processo de tomada de decisões sobre a dinâmica da ação escolar. É a previsão sistemática e ordenada de toda a vida escolar do aluno. É instrumento que orienta a educação, como processo dinâmico e integrado de todos os elementos que interagem para a consecução dos objetivos, tanto os do aluno, como os da escola (MENEGOLLA; SANT ANNA, 1993, p. 52). 112 Estruturas Curriculares - Inter e Transdisciplinaridade Diante disso, você deve estar se questionando: Mas, afinal, quem participa ou deveria participar deste processo? Quais os contextos que estão envolvidos nesta atividade educacional? Atividade de Estudos: Bom, antes de você obter esses encaminhamentos, que serão apresentados no próximo item deste capítulo, faça uma síntese dos principais aspectos tratados nesta primeira parte, usando o espaço reservado a seguir. ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ agentes e contextos envolvidos no desenvolvimento curricular A questão central para compreender a dinâmica do desenvolvimento do currículo consiste em saber quem controla o processo de tomada de decisões e de que forma esse controlo é exercido (GAY, 1991, apud PACHECO, 2001, p. 296). De maneira simples, prática e direta, a citação anterior traduz o que pretendemos responder neste item. Em outras palavras, quem é que está envolvido nas tomadas de decisões no que se refere ao processo de desenvolvimento do currículo? Historicamente, essas decisões têm sido tomadas de cima para baixo; ou seja, a escola e os professores eram meros executores daquilo que alguns “iluminados” já haviam decidido de maneira dogmática, autoritária. No Brasil, esta prática começou a ser alterada com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB 9.394/1996 - e com a criação dos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN´s (1998). De fato, esta ainda é uma prática pouco exercitada em nossas escolas. Na próxima seção deste capítulo vamos discutir isso melhor. 113 Processo de desenvolvimento do currículo escolar Capítulo 6 Atividade de Estudos: Você já parou para pensar sobre isso? Você já participou deste processo em algum momento de sua vida e/ou em alguma instância educacional? Como foi ou como tem sido sua experiência em relação ao processo de desenvolvimento do currículo escolar? Utilize o espaço que segue para refletir e registrar as suas respostas a essas indagações. ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ E então, o que dizem as suas experiências e reflexões? Será que estão próximas do desejado? Bom, idealmente, o que se pretende e o que se sugere é que todos os agentes que integram o processo educacional de uma escola e de um sistema educativo, participem das decisões em torno do desenvolvimento do currículo, especialmente, o professor. No entanto, nem sempre isso é verdadeiro. Como professores, necessitamos estar engajados, para que o nosso trabalho junto aos sujeitos em formação seja um trabalho de luta, contradição, desvelamento. O professor precisa atuar, também, como gestor do currículo. Assim, sua função básica, além de participar ativamente do processo de construção do currículo, consiste em mediar e coordenar o trabalho com o conhecimento, não discriminando ou até mesmo excluindo os que a sociedade, de alguma forma, já discriminou. Por isso, Apple (1982) nos alerta para que não façamos da escola um espaço de legitimação da ideologia da classe que detém o poder. Este alerta deve ser dado todos os dias, como se fosse o sinal para a entrada na sala de aula, para não cairmos na rotina, esquecendo de olhar para múltiplas e variadas direções e possibilidades de inovação. Neste processo de mediação, se revelam as nuances de seu ofício, em que ele (o professor), a partir das análises dos fundamentos sociais e culturais do currículo, encaminha a sua ação no contexto da sala de aula, fazendo a interpretação e a crítica, produzindo e organizando conhecimentos, identificando e escolhendo técnicas e métodos pedagógicos para a socialização das experiências de aprendizagem de seu grupo de ensino (CRUZ, 2007, p. 197). 114 Estruturas Curriculares - Inter e Transdisciplinaridade Os professores devem colocar no centro de seus modelos pedagógicos a crítica e o conflito, a fim de desenvolver uma escolarização pararedimir e mostrar o papel que o poder tem na definição e distribuição do conhecimento e também nas relações sociais que a experiência pedagógica possibilita em sala de aula. O importante é que os professores levem a sério as diferenças culturais individuais dos alunos, pois eles pertencem a grupos econômicos e sociais distintos, e não se atenham apenas às crenças e rotinas da escola. É através desta crítica dialética que ele poderá desenvolver uma cultura escolar compatível para a transformação de sua prática pedagógica. Diante de todos esses princípios e pressupostos para um professor, que é gestor do currículo, é possível afirmar mais uma vez que, em função disso, é que temos reafirmado, no decorrer deste trabalho, a ideia de que o professor ocupa uma posição estratégica. A sala de aula, lugar de sua atuação, se situa entre as diretrizes da escola e as do sistema de ensino. Dificilmente as propostas dispensam a ação docente, uma vez que o professor exerce o papel central de tradutor da idéia oficial para o contexto da prática.” (CRUZ, 2007, p. 200). Embora este processo nem sempre seja construído coletiva e democraticamente, como aponta Freire (conforme apresentado no capítulo 5), existe, de qualquer maneira, um quadro de forças internas e externas que influenciam o desenvolvimento do currículo. Veja quadro a seguir. Quadro 6 – Agentes participantes no Desenvolvimento do Currículo FORÇAS DE INFLUÊNCIA NÍVEL EXTERNO NÍVEL INTERNO Formal Informal Formal Informal • Instituições de avaliação • Associações profissionais • Associações credenciadas • Grupos de influência • Alunos, familia- res, etc. • Organizações sindicais • Organismos estatais • Grupos de interesse • Editoras • Mídia • Crises diversas • Costumes e tradições • Fundações e Ongs • Partidos polí- ticos • Órgãos esta- tais • Conselhos • Normativas • Recursos humanos e ma- teriais • Estilo de gestão • Conteúdos de ensino • Concepção de currículo • Estrutura de trabalho • Cultura (s) de trabalho • Dinâmica de grupos • Nível de com- petência dos participantes • Relações Humanas • Planejamento curricular 115 Processo de desenvolvimento do currículo escolar Capítulo 6 DECISÕES CURRICULARES AGENTES Sociedade Encarregados da Educação Empregadores Professores Alunos Sistemas escolares Fonte: Adaptado de: Gay, 1991 (apud PACHECO, 2001). Em relação aos contextos envolvidos, em tese, há três contextos/níveis que deveriam participar do processo de decisões sobre o desenvolvimento do currículo escolar. São eles: a) político-administrativo – âmbito da administração central; b) gestão – âmbito da escola e da administração regional; c) realização – âmbito de sala de aula (PACHECO, 2001). Assim, idealmente falando, todos participariam. Mas cabe aqui uma pergunta: Como seria esta participação, pois, parece haver uma hierarquização nos três contextos/níveis apontados? De qualquer modo, a pressuposição é de participação. O contexto político- administrativo no âmbito da administração central (MEC) está relacionado ao campo da elaboração de políticas públicas e legislação (currículo formal). Já o contexto da gestão no âmbito da administração regional e das escolas está relacionado à elaboração de projetos curriculares regionais e/ou locais (currículo apresentado), tomando como base as premissas mínimas estabelecidas no âmbito da administração central (MEC). Por fim, o contexto da realização no âmbito da sala de aula se refere à implementação do currículo (currículo realizado/em ação) pelos professores. Aprofunde seus estudos sobre este capítulo e leia a obra completa: PACHECO, José Augusto. Currículo: Teoria e Práxis. Lisboa, Porto Editora, 2001. Em síntese, você conseguiu entender, quem são, pelo menos idealmente, os agentes e contextos que devem estar envolvidos no processo de desenvolvimento do currículo? A obra “Currículo: Teoria e Práxis” poderá lhe ajudar muito mais. Quanto ao como elaborar este processo ou como desenvolver uma proposta curricular com base nas etapas, agentes e contextos, por ora mencionados, sugerimos que você se volte para o capítulo 5 e tome por base o modelo proposto e aproveite a prática experienciada por Freire na cidade de São Paulo. 116 Estruturas Curriculares - Inter e Transdisciplinaridade E agora, como será que estão as práticas de desenvolvimento do currículo na educação básica, no Brasil? Vamos ver na próxima seção. Práticas curriculares vigentes na educação Básica A educação, para o governo, levada a efeito pelo currículo, comporta dois complexos tecnológicos, identificados como as ‘tecnologias de dominação’, que pretendem conhecer os indivíduos para governá-los (controle externo), e as ‘tecnologias do eu’, nas quais a prática do autoconhecimento habilita a governar-se (autocontrole). É nesse sentido que o currículo é produtivo: ele não se movimenta apenas no campo das narrativas sobre o dever ser, ele faz [...], ele molda condutas de forma disciplinar, e o disciplinar diz respeito à disciplinaridade e ao disciplinamento. (COSTA,1998, p. 52). Conforme já vínhamos percebendo ao longo dos capítulos anteriores e na primeira parte deste, a maioria das práticas, em relação ao desenvolvimento do currículo na Educação Básica, ainda vêm de cima para baixo. Ou seja, temos ainda uma prática prescritiva, normativa e reguladora; portanto, antidemocrática e antidialógica. Como dissemos, embora a LDB e os PCN´s apresentem flexibilidade e uma certa autonomia em relação ao desenvolvimento do currículo, o que ainda impera nas escolas é a lista de conteúdos, os planos dos anos passados, os planos de colegas e até de outras escolas, outros estados e municípios. De maneira contundente e direta, a citação da autora Costa define o modelo e a prática ainda vigente nas nossas escolas. Pesquisas como a de Silva (2008) e Duarte (2007) têm demonstrado essa realidade em alguns municipios da região litorânea de Santa Catarina. Outras pesquisas no país também indicam isso. Será que não vamos conseguir ampliar as experiências positivas, já colocadas em prática em alguns municípios (experiência de São Paulo, entre outros) para outras realidades brasileiras? Segundo Freire (1987), o currículo escolar, na maioria dos casos, ainda é linearmente organizado por disciplinas, nas quais o saber é transmitido de maneira fragmentada. Isto, por sua vez, tem influenciado de maneira sintomática a prática pedagógica dos professores, que tendem a reproduzi-lo de maneira multifacetada, tal como foi concebido. Além disso, sua construção e organização, na maioria das vezes, ainda não envolvem a participação dos professores, agentes que o implementarão. Portanto, o que se percebe é a reprodução de práticas pedagógicas que, há muito tempo, vêm sendo realizadas pelos professores e legitimadas pelas escolas. O currículo escolar, na maioria dos casos, ainda é linearmente organizado por disciplinas, nas quais o saber é transmitido de maneira fragmentada. 117 Processo de desenvolvimento do currículo escolar Capítulo 6 Além disso, o planejamento escolar do professor segue os mesmos padrões. Temos percebido, também, que muitas das práticas pedagógicas vinculadas a uma epistemologia positivista estão relacionadas aos materiais curriculares disponíveis nas escolas e utilizados pelos professores. Um exemplo clássico, entre outros que poderíamos citar, que pode ser observado, na maioria das escolas, é o livro didático. Este, quando não se resume ao currículo escolar, o que acontece na maioria dos casos, se resume como planejamento do professor. Isto não significa que somos contrários aos livros didáticos, mas questionamos o uso que se faz dos muitos livros didáticos que são disponibilizados pelas escolas. O que queremos dizer é que o uso indiscriminado dos livros didáticos tem sido observado como resultado de práticas curriculares e pedagógicas inconsequentes,como por exemplo: o excesso de exercícios mecânicos e memorísticos, ao invés de estudo crítico de lições e de imagens visuais; o excesso de cópias; siga o modelo; entre outros. Assim, o livro didático acaba se constituindo num poderoso dispositivo curricular que corporifica, além de outros aspectos, estratégias de omissão e marginalização (MACEDO, 2004, p. 106). Para a autora, “os livros didáticos não são objetivos ou factuais, mas produtos culturais que devem ser entendidos como o resultado complexo de interações mediadas por questões econômicas, sociais e culturais. Ou seja, os livros didáticos expressam a materialização de conflitos entre grupos, para hegemonizar suas posições”. Desta forma, dirigem, intencionalmente, as práticas pedagógicas nas escolas, esteja o professor consciente disso ou não. A formação de professores, oferecida pela universidade, e a formação continuada, ofertada pelos sistemas de ensino, também parecem constituir-se como um aspecto que pode ser relacionado às práticas curriculares e pedagógicas descontextualizadas e ainda vigentes. O que se observa, por exemplo, nos cursos de formação de professores, são práticas ainda representativas do paradigma dominante. Em seu estudo, Cunha (2005, p. 34) constatou que [...] ainda não foram encontrados professores especialmente voltados para desenvolver habilidades intelectuais nos estudantes, talvez mais próximos do paradigma emergente. Por exemplo, os professores são capazes de apresentar o melhor esquema do conteúdo a ser desenvolvido em aula, mas não conhecem procedimentos sobre como fazer o aluno chegar ao mapeamento próprio da aprendizagem que está realizando. O bom professor relata e referencia resultados de suas pesquisas, mas pouco estimula o aluno a fazer as suas próprias. Mesmo que de forma simples: ele tem dificuldade de tornar vivo e relativo o conhecimento que é objeto de seu trabalho. Diante disso, como esperar que os futuros professores tenham práticas pedagógicas que superem o modelo dominante? A experiência tem mostrado que há poucas exceções. Quanto à formação continuada ofertada aos 118 Estruturas Curriculares - Inter e Transdisciplinaridade professores, nas escolas, muito pouco ou quase nada tem contribuído para propiciar práticas curriculares representantes do paradigma emergente a que se refere Cunha. Em um estudo que realizamos (GESSER; LUZ, 2007), constatamos que os recursos do Fundef, investidos na formação continuada de professores, em muito pouco tem alterado suas práticas. O estudo de IOSCHPE (2007) vem corroborar este dado, ao afirmar que o valor de 3,4% do PIB brasileiro investido na educação do país, incluindo aí a política do Fundef, agora Fundeb, em muito pouco tem contribuído para melhorar a qualidade de ensino nas escolas. Diante disso, nos perguntamos: como fazer para vencer estas situações desencontradas e se fazer alterar as práticas pedagógicas educacionais como um todo? Atividade de Estudos: Você tem alguma sugestão de como realizar essas alterações em sua prática profissional? Anote suas ideias. ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ Será que tudo isso pode ser relacionado às políticas públicas educacionais? Acreditamos que, em parte, as políticas públicas destinadas à educação, no país, se constituem como um aspecto que dá pano de fundo para tudo isso. Por exemplo, quando apontamos o currículo, o planejamento escolar, os materiais curriculares (em especial o livro didático), a formação de professores e a formação continuada, todos diretamente ou indiretamente são resultantes ou reflexos das políticas públicas existentes. Não queremos, com isso, inferir que a responsabilidade total pelas fragilidades observadas nas práticas de currículo e de ensino é única e exclusivamente das atuais políticas públicas, mas, em boa parte, é resultante,sim, dos históricos movimentos de 119 Processo de desenvolvimento do currículo escolar Capítulo 6 reformas educacionais e das políticas públicas. Por exemplo, no caso dos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN´s - pode se observar isso. Para muitos professores os PCN´s se tornaram leis e não parâmetros apenas, pois ensinar a partir deles seria sinônimo de ensinar para as subsequentes avaliações do sistema. Sobre isso, argumenta Santos (2002, p. 354): [...] os Parâmetros, elaborados centralmente, confrontam- se com inovações singulares, gerando conflitos com as práticas em desenvolvimento nas escolas. De um lado, os professores, mesmo quando aderem às suas propostas, buscam interpretá-las e adaptá-las, de acordo com o contexto institucional de onde trabalham, o que faz com que assumam características bem diversificadas. Por outro lado, para muitos docentes, as inovações trazem insegurança e inquietação, porque se propõem a romper com práticas já instaladas. Em decorrência desse fato, os professores podem reagir e resistir às propostas dos Parâmetros, cristalizando práticas tradicionais e revitalizando-as em uma atitude defensiva contra a mudança. Além disso, reformas curriculares, na expectativa de inovar e modificar a prática das escolas, podem também criar barreiras e limites para o surgimento de práticas novas e criativas. Obviamente, isso não pode acontecer somente com as políticas voltadas ao currículo, mas também com as relacionadas à formação de professores, formação continuada, planejamento educacional, livro didático, avaliação educacional, entre outras que poderiam ser citadas. De certo modo, todos os aspectos, anteriormente citados e analisados, estão relacionados e todos têm tido impactos, de maneira positiva ou negativa, na prática curricular das escolas e na prática pedagógica dos professores. O fato é que, mesmo não sendo pessimistas, seus impactos parecem ter suscitado e estar ainda suscitando práticas sempre mais voltadas ao paradigma positivista de educação. Por alguns aspectos aqui mencionados, e outros que ainda poderiam ser apontados, eles têm se mostrado relevantes e reveladores no que tange ao currículo. Isto não significa dizer que não existem ou que não temos identificado práticas inovadoras, criativas, emergentes, para tempos pós-modernos. algumas considerações Caracterizar os diferentes momentos do processo de desenvolvimento do currículo escolar, analisando seus desdobramentos para a prática pedagógica foi um dos principais aspectos deste capítulo. Aprendemos que o currículo se desenvolve em várias etapas e é um processo construído por vários contextos e agentes educacionais expressos no texto, Entre eles, o principal deve ser o 120 Estruturas Curriculares - Inter e Transdisciplinaridade professor, pois em última instância é o gestor do currículo em ação, ou seja, do currículo realizado em sala de aula. As principais etapas são: os fundamentos teóricos, o planejamento ou a elaboração, a implementação do currículo e, por fim, a avaliação. Além disso, tínhamos também a intenção de relacionar os diferentes momentos da construção de um projeto curricular com as práticas escolares vigentes na Educação Básica. Conforme já vínhamos percebendo ao longo dos capítulos anteriores e também na primeira parte deste, foi possível constatar, mais uma vez, que a maioria das práticas em relação ao desenvolvimento do currículo na Educação Básica, ainda vem de cima para baixo. Ou seja, são prescritivas, normativas e reguladoras, portanto,anti-democráticas e anti-dialógicas. Como dissemos, embora a LDB e os PCN´s apresentem flexibilidade e uma certa autonomia em relação ao desenvolvimento do currículo, o que ainda impera nas escolas é a lista de conteúdos, os planos dos anos passados, os planos de colegas e até de outras escolas, estados e municípios. Cabe aos professores e à sociedade civil iniciar a mudança destas práticas. referências APPLE, M. Currículo e Ideologia. São Paulo: Brasiliense, 1982. COSTA, M. V. O currículo: nos limiares do contemporâneo. Rio de Janeiro: DP&A, 1998. CRUZ, G. B. A prática docente no contexto da sala de aula frente às reformas curriculares. Educar, Curitiba, n. 29, p. 191-205, 2007. CUNHA, M. I. O Professor universitário na transição de paradigmas. 2. ed. Araraquara: Junqueira & Marin editores, 2005. FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. GESSER, V.; LUZ, G. A Política de Financiamento para a formação continuada dos professores da rede Estadual da 17ª Geect. Relatório de Pesquisa. 2007. IOSCHPE, G. Os quatro mitos da escola brasileira. Veja. Editora Abril, edição 1998, ano 40, p. 96-99 de março 2007. 121 Processo de desenvolvimento do currículo escolar Capítulo 6 JANUÁRIO, C. O currículo e a reforma do ensino: um modelo sistemático de elaboração dos programas escolares. Lisboa: Livros Horizonte, 1988. MACEDO, E. A imagem da ciência: folheando um livro didático. Educação e Sociedade. Campinas, v. 25, n. 86, p. 103-129, abril 2004. MENEGOLLA, M.; SANT ANNA, I. M. Por que Planejar? Como Planejar? Currículo: Área – Aula. Petrópolis: Vozes, 1993. MOREIRA, A. F. B. Currículo, Utopia e Pós-modernidade. In: MOREIRA, A. F. B. (Org.). Currículo: questões atuais. Campinas: Papirus, 1997, p. 9-28. PACHECO, J. A. Currículo: Teoria e Práxis. Portugal: Porto, 2001. SACRISTÁN, J. G. O currículo: uma reflexão sobre a prática. Porto Alegre: ArtMed, 2000. SANTOS, L. L. DE C. P. Políticas públicas para o ensino fundamental: parâmetros curriculares nacionais e sistema nacional de avaliação (SAEB). Educação & Sociedade, Campinas, v. 23, n. 80, p. 346-367, set. 2002.