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INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS HISTÓRICOS Caroline Silveira Bauer O materialismo histórico: concepção marxista da história Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Identificar os conceitos de materialismo histórico e dialético. Analisar a concepção marxista da história. Discutir sobre a concepção marxista da história e a pesquisa brasileira. Introdução A expressão “materialismo histórico” e o termo “marxismo” costumam ser utilizados como sinônimos, mas não o são. A primeira faz referência a um paradigma, um arcabouço conceitual e teórico de leitura da sociedade. Já o segundo, ainda que preserve muitas das considerações do mate- rialismo histórico, foi uma instrumentalização política das formulações de Marx e Engels. Somente a partir da segunda metade do século XX os historiadores procuraram se distanciar do dogmatismo e da simplificação da reflexão histórica e teórica de Marx e Engels realizada por diferentes matizes de partidos políticos. Assim, se aproximaram das obras originais e resgataram a complexidade do pensamento dos autores. Neste capítulo, você vai conhecer o materialismo histórico, a sua conjuntura de formulação e os seus principais conceitos. Você também vai estudar a concepção de história de Marx e Engels e ver quais são os seus legados para a historiografia. Por fim, você vai verificar como o materialismo histórico influenciou a pesquisa histórica brasileira. Principais conceitos O pensamento marxista se consolidou em torno do materialismo dialé- tico e do materialismo histórico. Esta última terminologia é, em geral, a mais empregada para designar a teoria marxista da história. Além disso, Barros (2011) chama a atenção para que não se confunda ou se sobrepo- nha materialismo histórico e marxismo, que muitas vezes são utilizados como sinônimos. Nesse sentido, o autor propõe uma diferenciação entre o marxismo-leninismo, como programa de ação política, e o materialismo histórico, como um paradigma, um método e uma abordagem teórica para a compreensão dos processos históricos. O materialismo histórico enquanto paradigma foi forjado por Karl Marx (1818–1883) e Friedrich Engels (1820–1895) em diálogo com o campo histo- riográfico e com demais produções das ciências humanas realizadas ao longo do século XIX. Suas obras reúnem os conceitos e a teoria que sustentam o materialismo histórico. Além disso, em diversas análises os autores colocaram em prática essa leitura da realidade. Conheça um pouco mais sobre a vida de Karl Marx no vídeo disponível no link a seguir, produzido nas comemorações do bicentenário do nascimento do autor. https://goo.gl/MRwq8v Para Barros (2011), o materialismo histórico possui um núcleo conceitual mínimo, composto pelas ideias de dialética, de materialismo e de historici- dade, além de três conceitos incontornáveis (práxis, luta de classes e modo de produção). Contudo, outros conceitos também aparecem seguidamente na obra de Marx. A seguir, você vai conhecer algumas definições elaboradas a partir do Dicionário de Conceitos Históricos (2009). O materialismo histórico: concepção marxista da história2 Dialética: é um método de análise, fundamentado na contradição, que organiza o raciocínio para a busca da verdade, analisando uma situação contraditória de dada realidade. Para comprovar uma tese, o investigador usa uma antítese, ou seja, a negação da própria tese original. Mas a negação não é suficiente para a compreensão do fenômeno investigado, pois toda negação, em si mesma, contém alguma positividade (não se pode negar sem afirmar alguma coisa). É preciso então aproveitar as contribuições positivas que existem na tese e na antítese para se chegar a uma síntese dos dados conseguidos. De forma simples, a síntese seria o conjunto de conclusões às quais o investigador chega por meio da análise dialética, mas que não se apresenta como definitivo, visto que toda realidade está sujeita ao princípio da contradição. Começa então uma nova situação em que o movimento tese–antítese–síntese ressurge, dando origem a outra situação, que pode ser observada pelo movimento tese–antítese–síntese. Marx construiu uma dialética em torno da matéria, formulando o materialismo dialético em oposição à dialética dos idealistas Hegel e Fichte. Luta de classes: Marx definiu classe social como a posição comum de um conjunto de indivíduos no interior das relações sociais de produção. Para ele, classe era um grupo social com uma função específica no processo produtivo. Por exemplo, os proprietários de terra, os capita- listas e os trabalhadores constituem classes distintas. Cada um deles ocupa um lugar específico no processo de produção: alguns possuem a terra, outros, o capital; e os trabalhadores, a habilidade de trabalho. As diferentes funções dão a cada classe interesses conflitantes, além de ideias e maneiras de agir diferentes. A história, por sua vez, seria o relato desses conflitos. Nesse sentido, a tradição marxista tende a conceituar classe com base no lugar que cada grupo ocupa na economia. Os estudos de Marx e Engels estiveram voltados principalmente para as estruturas de classe das sociedades capitalistas, não dando muita atenção às relações de classe em outras sociedades. Por um lado, ao afirmarem que a história de todas as sociedades tinha sido até então a história da luta de classes, os autores deram a entender que houve classes sociais em vários períodos históricos. Por outro lado, defenderam que a classe era uma característica específica das sociedades capitalistas. 3O materialismo histórico: concepção marxista da história Modos de produção: é uma das formulações do materialismo histórico que divide a história (sobretudo a história europeia) em épocas distintas e sucessivas. Para Marx, os modos de produção correspondem a estágios específicos das forças e relações de produção de dada formação social. O modo de produção, em linguagem menos teórica, seria o modo pelo qual determinada sociedade organiza a sua vida econômica, o trabalho, as estruturas políticas e jurídicas e mesmo as manifestações culturais. Todos os aspectos da vida em sociedade (desde os aspectos materiais até os mentais) estariam determinados pelo modo de produção da vida material. Para o materialismo histórico, é a maneira concreta de uma sociedade organizar sua produção que dá forma a todo o edifício so- cial existente nela. Os modos de produção identificados por Marx correspondem, em linhas gerais, à história do mundo europeu, desde as comunidades primitivas até a última fase, o comunismo. As seis épocas históricas ou modos de produção concebidos por Marx são: comunismo primitivo; sociedade escravocrata antiga; feudalismo; ca- pitalismo; socialismo e comunismo. O funcionamento da economia, em cada um desses estágios, apresenta níveis de tecnologia e de relações de produção particulares. Materialidade: para o materialismo dialético, as condições materiais de existência (a economia) são o verdadeiro móvel das ações huma- nas. Assim, a dialética seria o método para se perceber e superar as contradições sociais e históricas frequentes nas diversas sociedades humanas ao longo da história. O pensamento de Marx consiste em partir do real (dos homens reais e de suas contradições) e não das ideias ou da mente, como faz Hegel. De acordo com o materialismo dialético, o desenvolvimento histórico da humanidade não se dá pela sucessão de fatos isolados, mas por um processo que envolve movimento e mudança (que, por sua vez, implicam contradições). Práxis: a teoria marxista, de profunda inspiração filosófica, trouxe inovações para se pensar o homem e o mundo no século XIX. Marx foi o primeiro a mostrar que o significado de uma teoria só pode ser compreendido em relação à prática histórica correspondente. Uma teoria não pode ser pensada e entendida sem correspondência com o contexto histórico. Toda teoria deve, portanto, estar enraizada narealidade histó- rica e dizer alguma coisa que possa transformá-la. Dessa forma, Marx buscou conciliar reflexão filosófica e prática política, teoria e práxis (entendida como a ação humana que transforma o mundo e a si mesma). O materialismo histórico: concepção marxista da história4 A concepção de história de Marx O historiador espanhol Pierre Vilar afi rmou, certa vez, que muitos se intitulam “historiadores marxistas”, mas poucos se dedicam à “[...] estrita aplicação de um método de análise teoricamente elaborado para a mais complexa das matérias de ciência: as relações sociais entre os homens e as modalidades de suas mudanças” (VILAR, 1995, p. 146). Vilar (1995) afi rma que Marx se preocupou com a formulação de uma ciência: coerente, dotada de um esquema teórico sólido; total, do ponto de vista de recobrir a totalidade de uma análise; e dinâmica, passível de ser debatida a partir das mudanças que se sucedem. Nesse sentido, os questionamentos levantados pelo historiador espanhol são bastante pertinentes para você compreender a concepção de história de Marx: teria sido Marx um historiador marxista? Marx desejou alguma vez ser historiador, ou tentou alguma vez escrever história? (VILAR, 1995). Leia um trecho da obra de Marx que trata dos modos de produção: O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me de fio condutor aos meus estudos, pode ser formulado em poucas palavras: na produção social da própria vida, os homens contraem relações determi- nadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspon- dem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo geral de vida social, política e espiritual. [...] Em grandes trações podem ser caracterizados, como épocas progressivas da formação econômica da sociedade, os modos de produção: asiático, antigo, feudal e burguês moderno. As relações burguesas de produção constituem a última forma antagônica do processo social de produção, antagônicas não em um sentido individual, mas de um antagonismo nascente das condições sociais da vida dos indivíduos; contudo, as forças produtivas que se encontram em desenvolvimento no seio da sociedade burguesa criam ao mesmo tempo as condições materiais para a solução deste antagonismo. Daí que com esta formação social se encerra a pré-história da sociedade humana (MARX, 1978, p. 129–130). 5O materialismo histórico: concepção marxista da história Sem dúvidas, em sua vasta produção, Marx escreveu “história” tal como é concebida nos dias de hoje, mas talvez não como era entendida naquele momento, em que o campo recém começava a ganhar contornos disciplinares. Seu “raciocínio histórico” ia da teoria à empiria e vice-versa, questão que foi colocada pela historiografia apenas na década de 1960. Em seus trabalhos sobre a França, segundo Vilar (1995), é possível encontrar, além da “aplicabilidade” da leitura da sociedade francesa por meio do materialismo histórico, questões fundamentais para a história, como reflexões sobre as estruturas da sociedade e as noções de atualidade e de acontecimento. Entretanto, Hobsbawm (1998, p. 172–173) adverte que esses trabalhos não podem ser considerados “históricos”: O desenvolvimento dessa influência de Marx na literatura histórica não é evidente por si mesma, pois, embora a concepção materialista da história seja o cerne do marxismo e embora tudo o que Marx escreveu esteja impregnado de história, ele próprio não escreveu muita história tal como os historiadores a entendem. Nesse sentido, Engels era mais historiador, escrevendo mais obras que poderiam ser razoavelmente catalogadas nas bibliotecas como “história”. [...] O que chamamos de escritos históricos de Marx consistem quase exclusi- vamente de análise política corriqueira e comentários jornalísticos, associados a um certo grau de contexto histórico. Suas análises políticas usuais, como Lutas de classes na França e O 18 Brumário de Luís Bonaparte, são realmente notáveis. Seus volumosos escritos jornalísticos, ainda que de interesse irregu- lar, contêm análises do maior interesse — entre os quais seus artigos sobre a Índia — e, em todo caso, são exemplos de como Marx aplicava seu método a problemas concretos, tanto de história quanto de um período que depois se converteu em história. Mas não eram escritos como história, tal como a entendem aqueles que se dedicam ao estudo do passado. Por fim, o estudo de Marx sobre o capitalismo contém uma quantidade enorme de material histórico, exemplos históricos e outros materiais relevantes para o historiador. Aqui reside uma das grandes diferenças entre a obra de Marx e a daqueles que se apropriaram dela para conformar o marxismo dogmático: Marx valorava muito a “fase de investigação” de suas pesquisas, ou seja, a empiria possuía uma importância muito grande. Assim, a utilização de seu arcabouço con- ceitual e teórico como uma “doutrina” é um reducionismo de seu método de análise, pois a empiria está diretamente em diálogo com as fontes utilizadas por Marx (VILAR, 1995). A explicitação desse método não está contida em sua obra, mas é realizada por seus comentadores. Contudo, Marx inaugurou uma leitura da realidade que ele chamava de socio-histórica, encontrando nas contradições sociais, nas lutas de classe e nos modos de produção uma interpretação sobre as sociedades. O materialismo histórico: concepção marxista da história6 Assim, o conceito fundamental para compreender a interpretação de história de Marx é o conceito de modo de produção enquanto estrutura determinada e determinante das relações sociais. De acordo com Vilar (1995, p. 155), a originalidade dessa formulação assenta-se em três pontos: Mas sua originalidade não é a de ser um objeto teórico. É a de ter sido, e continuar sendo, o primeiro objeto teórico a exprimir um todo especial, en- quanto os primeiros esboços de teoria, nas ciências humanas, se limitavam ao econômico e tinham visto nas relações sociais dados imutáveis (a propriedade da terra para os fisiocratas) ou condições ideais a serem preenchidas (liber- dade e igualdade jurídicas para os liberais). A segunda originalidade, como objeto teórico, do modo de produção é ser uma estrutura de funcionamento e de desenvolvimento, nem formal nem estática. A terceira é que essa estrutura implica o princípio (econômico) da contradição (social), contudo a necessidade de sua destruição como estrutura, de sua desestruturação. Para analisar, na prática, a compreensão de Marx sobre a história, leia, a seguir, um trecho de O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, que hoje pode ser considerada uma obra de história do tempo presente, já que Marx a escreveu no calor dos acontecimentos: Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenhados em revolucionar- -se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxílio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestado os nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de apresentar nessa linguagem emprestada. Assim, Lutero adotou a máscara do apóstolo Paulo, a Revolução de 1789–1814 vestiu-se alternadamente como a república romana e como o império romano, e a Revolução de 1848 não soube fazer nada melhor do que parodiar ora 1789, ora a tradição revolucionária de 1793–1795. De maneira idêntica, o principiante queaprende um novo idioma traduz sempre as pa- lavras deste idioma para sua língua natal; mas só quando puder manejá-lo sem apelar para o passado e esquecer sua própria língua no emprego da nova terá assimilado o espírito desta última e poderá produzir livremente nela (MARX, 2003, p. 7). 7O materialismo histórico: concepção marxista da história Barros (2011, p. 91) interpretou da seguinte forma o trecho anterior de Marx: A história [...] mostra suas duas facetas: aquilo que se impõe sobre os homens a partir de condições objetivas herdadas das gerações anteriores, e aquilo que vai sendo transformado por sua ação, por seu confronto através das lutas sociais. A história é para ele espaço de aprisionamentos e de liberdades. Há épocas em que a história parece se impor tiranicamente sobre esses homens, deixando-lhes margens estreitas, no interior das quais, contudo, eles se mo- vimentam; e há épocas em que esses mesmos homens parecem tomar para si a tarefa de revolucionar seus destinos. Essas ideias são retomadas por Marx em outra obra, A Ideologia Alemã: A história nada mais é do que a sucessão das diferentes gerações, cada uma das quais explora os materiais, capitais e as forças de produção a ela transmi- tidos pelas gerações anteriores; ou seja, de um lado prossegue em condições completamente diferentes a atividade precedente, enquanto de outro lado modifica as circunstâncias através de uma atividade totalmente diferente (MARX, 2001, p. 70). Você sabe o que foi o 18 de brumário de Luiz Bonaparte? Foi um golpe de Estado ocorrido na França em 2 de dezembro de 1851 (no calendário instituído pela Revolução Francesa, a data era 18 de brumário). O golpe foi promovido pelo então presidente da República, Luiz Bonaparte, que dissolveu o sistema republicano e instaurou a monarquia. Luiz Bonaparte se declarou imperador e passou a se intitular Napoleão III. O que os historiadores devem a Karl Marx? O título desta seção também é o título de um artigo escrito por Eric Hobsbawm em que o historiador avalia a contribuição da obra de Marx para a história. De acordo com Hobsbawm, Marx rompe com as práticas historiográfi cas hegemônicas do século XIX, dedicadas ao estudo da diplomacia e do político, das guerras e dos grandes líderes. Ao proporem que a a história é a história da luta de classes ou que é a história dos modos de produção, Marx e Engels sugeriam uma inversão da perspectiva de análise, deslocando os interesses para as bases econômico-sociais das sociedades. O materialismo histórico: concepção marxista da história8 Para Hobsbawm (1998), é necessário separar o que foi a contribuição de Marx para a historiografia do que ele chamou de “marxismo vulgar”, uma apropriação sem critérios de algumas ideias do pensamento do filósofo alemão. Segundo o autor britânico, o “marxismo vulgar” pode ser compreendido como: 1. A “interpretação econômica da história”, ou seja, a crença de que “o fator econômico é o fator fundamental do qual dependem os demais”; e, mais especificamente, do qual dependiam fenômenos até então não considerados com muita relação com questões econômicas. Nesse sentido, essa interpre- tação se superpunha ao 2. Modelo da “base e superestrutura” (utilizado mais amplamente para explicar a história das ideias). A despeito das próprias advertências de Marx e Engels e das observações sofisticadas de alguns marxistas, esse modelo era usualmente interpretado como uma simples relação de dominância e dependência entre a “base econômica” e a “superestrutura”, na maioria das vezes mediada pelo 3. “Interesse de classe e a luta de classes”. Tem-se a impressão de que diversos historiadores marxistas vulgares não liam muito além da primeira página do Manifesto Comunista, e da frase: “a história [escrita] de todas as sociedades até agora existentes é a história das lutas de classes”. 4. “Leis históricas e inevitabilidade histórica”. Acreditava-se, acertadamente, que Marx insistira sobre um desenvolvimento sistemático e necessário da sociedade humana na história, a partir do qual o contingente era em grande parte excluído, de qualquer maneira, ao nível de generalização sobre os mo- vimentos de longo prazo. Daí a constante preocupação nos escritos históricos dos primeiros marxistas com problemas como o papel do indivíduo ou do acidente na história. Por outro lado, isso podia ser — e em grande parte era — interpretado como uma regularidade rígida e imposta, como, por exemplo, na sucessão das formações socioeconômicas, ou mesmo como um determinismo mecânico que às vezes se aproximava da sugestão de que não havia alternativas na história. 5. Temas específicos de investigações históricas derivavam dos próprios inte- resses de Marx, por exemplo, na história do desenvolvimento capitalista e da industrialização, mas também, por vezes, de comentários mais ou menos casuais. 6. Temas específicos de investigação não derivavam tanto de Marx quanto do interesse dos movimentos associados a sua teoria, por exemplo, nas agitações das classes oprimidas (camponeses, operários), ou nas revoluções. 7. Várias observações sobre a natureza e limites da historiografia derivavam principalmente do elemento número 2 e serviam para explicar as motivações e métodos de historiadores que afirmavam não estarem fazendo mais que a busca imparcial da verdade [...] (HOBSBAWM, 1998, documento on-line). Para Hobsbawm (1998), a contribuição de Marx para a historiografia resi- diria, então, em outro âmbito, não nesse do “marxismo vulgar”. O marxismo não seria a única teoria estrutural-funcionalista da sociedade, embora possa ser considerada a primeira delas. Ele é distinto de grande parte das outras 9O materialismo histórico: concepção marxista da história teorias de duas formas. Primeiro, porque hierarquiza os fenômenos sociais (tais como infraestrutura e superestrutura). Depois, porque afirma que toda sociedade vive tensões internas (contradições) que se contrapõem à tendência do sistema de se manter como um interesse vigente. Ainda de acordo com Hobsbawm (1998), a relevância desses aspectos do marxismo se relaciona ao campo da história. Afinal, são tais aspectos que permitem explicar por que e de que maneira as sociedades se alteram, ou seja, os fatos da evolução social. Portanto, de acordo com o historiador, a força de Marx está em sua insistência tanto na existência da estrutura social quanto na sua historicidade. Atualmente, afirma Hobsbawm (1998, documento on-line), “[...] quando a existência de sistemas sociais é geralmente aceita, mas à custa de sua análise a-histórica, quando não anti-histórica, a ênfase de Marx na história como dimensão necessária talvez seja mais essencial do que nunca”. Assim, como você pode notar, a influência de Marx sobre os historiadores, e não somente os historiadores marxistas, deu-se não apenas pela concepção materialista da história, mas também em relação a suas observações sobre aspectos, períodos e problemas específicos do passado. É importante, dessa forma, não cometer o erro de compreender o pensamento de Marx a partir de fórmulas concisas que foram popularizadas e frequentemente aceitas como um “resumo” da teoria marxista. A influência de Marx na historiografia brasileira De acordo com os historiadores Malerba e Jesus (2016), existem alguns indícios da presença do pensamento de Marx em materiais produzidos no Brasil desde o fi nal do século XIX. Porém, sua infl uência se tornou notória nas primeiras décadas do século XX. Primeiramente, a obra de Marx foi utilizada como um corpo doutri- nário que orientou o ativismo político e funcionou como uma inspiração teórica para refl exões sobre a sociedade, com infl uências nas ciências humanas e sociais. No Brasil, a virada do século XIX para o XX, mais precisamente a década de 1930, representa um momento de elaboração de muitas análises que problemati- zavam a realidade nacional. Veja o que afirmam Malerba e Jesus (2016, p. 144): Neste período decisivo da história brasileira,jovens ativistas e intelectuais de esquerda que se destacariam como protagonistas do pensamento político e acadêmico nas décadas seguintes estiveram envolvidos em uma atmosfera de mudança coletiva quanto à sua percepção sobre o país e, especialmente, na forma como avaliaram o papel do Brasil no cenário geopolítico global. A partir de tais diagnósticos, eles produziram diferentes projetos para o futuro do país. O materialismo histórico: concepção marxista da história10 No conjunto desses pensadores, destaca-se Caio Prado Júnior (1907–1990), a quem pode ser atribuído o título de “[...] fundador da historiografia marxista no Brasil” (MALERBA; JESUS, 2016, p. 143). Na impossibilidade de abarcar aqui todos os historiadores marxistas brasileiros e os debates desenvolvidos por eles, a seguir você vai conhecer melhor a produção de Caio Prado Júnior e o debate empreendido por ele sobre o “sentido” da colonização no Brasil. Contudo, você deve ter em mente que a historiografia marxista brasileira desenvolveu-se em diferentes áreas. Entre as discussões mais intensas, considere: aquelas sobre a posição do País no sistema capitalista mundial (desde o mercantilismo) e as condições para a realização da revolução no Brasil, correlatas à discussão sobre a colonização brasileira; aquelas sobre a historiografia do mundo do trabalho, com ênfase nos estudos sobre o sistema escravista, a formação da classe trabalhadora e as mobilizações operárias ao longo do século XX, em sua relação com o Estado brasileiro. Trabalhando com noções de “essência” e “sentido”, Caio Prado Júnior, em Formação do Brasil Contemporâneo, publicado pela primeira vez em 1942, procurou compreender a gênese da economia e da sociedade brasileiras. Para o autor, ir à “essência de nossa formação” significava buscar um sentido para a colonização do Brasil ter-se dado de determinada forma. Tratava-se da busca de um “objetivo exterior, voltado para fora do país e sem atenção a considerações que não fossem o interesse daquele comércio [europeu]” (PRADO JUNIOR, 1971, p. 32). Como você pode notar, Prado Júnior considerava a formação econômico- -social brasileira o resultado de uma intencionalidade de Portugal, uma nação vanguardista disposta a conquistar mercados e metais, de acordo com a lógica colonial-mercantilista dos séculos XV e XVI. Assim, para ele, não haveria outra alternativa à colônia brasileira a não ser se organizar conforme os interesses metropolitanos portugueses, já que, segundo o autor, os fatos que constituem um país “[...] seguem uma linha mestra e ininterrupta de acontecimentos que se sucedem em ordem rigorosa, e dirigida sempre numa determinada orientação” (PRADO JUNIOR, 1971, p. 7). Portanto, a economia e a sociedade brasileiras dos séculos XVI a XIX organi- zaram-se a fim de atender a uma demanda externa. Aqui, pode-se perceber uma referência aos ciclos de produção brasileiros: primeiramente o cultivo do açúcar, depois a exploração do ouro e, em seguida, a produção de café. Assim, a economia voltara-se para necessidades externas, ignorando, ou desprezando pela insigni- 11O materialismo histórico: concepção marxista da história ficância, a existência e a demanda do mercado interno. A sociedade formara-se com a hierarquização da propriedade de bens, da cor e da raça, bem como pela miscigenação populacional dos três séculos posteriores ao descobrimento. Veja o que afirma Prado Júnior (1971, p. 31–32): Se vamos à essência de nossa formação, veremos que na realidade nos constitu- ímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros [...] e em seguida café, para o comércio europeu [...]. Foi com tal objetivo, objetivo exterior, voltado para fora do país e sem atenção a considerações que não fossem do interesse daquele comércio, que se organizaram a sociedade e a economia brasileiras. Tudo se disporá naquele sentido: a estrutura, bem como as atividades do país. Como você pode observar, Prado Júnior evidencia a sua concepção da colônia como uma projeção da economia mercantil. A economia e o mercado internos não possuíam significância para a análise. Contudo, Malerba e Jesus (2016, p. 146–147) ressaltam a importância que a obra desse autor possui para a historiografia brasileira: Formação do Brasil Contemporâneo (1942) é, sem dúvida, até hoje, um dos livros mais importantes sobre a história do Brasil. Visto em perspectiva, o impacto da abordagem oferecida por Caio Prado Jr. impressiona por sua capacidade de criar uma tradição analítica que se renova ao longo de décadas. Em termos práticos, este livro inaugurou uma espécie de escola de pensamento sobre o Brasil colonial. Como consequência, é certamente um dos livros mais lidos por estudantes de história em todo o Brasil. E, o mais interessante, na maioria das vezes, é lido não apenas como necessário para compreender a história da historiografia, mas principalmente como um texto com conteúdo empírico e estrutura conceitual e analítica ainda amplamente aceita pela comunidade acadêmica. Com o desenvolvimento da historiografia sobre a América Portuguesa, as análises de Prado Júnior se encontram defasadas em inúmeros pontos. Contudo, no momento da publicação de Formação do Brasil Contemporâneo, a obra representou uma grande contribuição ao realizar a leitura da sociedade brasileira a partir de uma perspectiva do materialismo histórico. Contudo, você não pode se esquecer de que essa leitura está impregnada de um marxismo militante, que, como você viu anteriormente, levou a algumas deturpações do pensamento de Marx e condicionou as análises a uma interpretação generalizante e universalista a partir de “etapas”. É possível perceber isso no seguinte trecho de Evolução Política do Brasil e Outros Estudos, publicado pela primeira vez em 1933: O materialismo histórico: concepção marxista da história12 [...] em outras palavras, é a superestrutura política do Brasil colônia que, já não correspondendo ao estado de forças produtivas e à infraestrutura eco- nômica do país, se rompe, para dar lugar a outras formas mais adequadas às novas condições econômicas e capazes de conter a sua evolução (PRADO JUNIOR, 1969, p. 49). Caio Prado Júnior herdou do pensamento marxista essa concepção “eta- pista”, uma deturpação da ideia de totalidade. No momento em que escreveu Evolução Política, o autor estava preocupado em explicar as desigualdades da sociedade brasileira. Assim, seu olhar para o passado estava condicionado a encontrar as origens e os motivos pelos quais a sociedade brasileira da década de 1930 era tão desigual. Por fim, é importante você notar que o marxismo não foi apropriado por estudiosos brasileiros somente como o fez Caio Prado Júnior. Nas décadas de 1970 e 1980, foram realizados debates sobre a história da escravidão e a formação da classe trabalhadora brasileira que possuem grande sofisticação intelectual. Além disso, é preciso chamar a atenção, como faz Malerba (2002, p. 35–36), para o fato de que “[...] não há tema ou período da história do Brasil cuja investigação historiográfica não aponte para alguma matriz marxista fundamental, que tenha resultado em prolixo debate e com a qual qualquer pesquisador tem que se haver”. BARROS, J. A. Teoria da história: os paradigmas revolucionários. Rio de Janeiro: Vozes, 2011. v. 3. HOBSBAWM, E. Sobre história. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. MALERBA, J. Em busca de um conceito de historiografia elementos para uma discus- são. Varia Historia, n. 27, jul. 2002. Disponível em: http://www.variahistoria.org/edies/ yjpv5kkq1m1pfo9d5dhd06hfemp0fj. Acesso em: 16 mar. 2019. MALERBA, J.; JESUS, R. P. Marxism and brazilian historiography. In: WANG, E.; IGGERS, G. Marxist historiographies: a global perspective. New Yourk: Routledge, 2016. MARX, K. O 18 brumário de Luiz Bonaparte. São Paulo: Centauro, 2003. MARX, K. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2001. MARX, K. Prefácio. In: MARX, K. Para a crítica da economia política. São Paulo: AbrilCultural, 1978. 13O materialismo histórico: concepção marxista da história PRADO JÚNIOR, C. Evolução política do brasil e outros estados. São Paulo: Brasiliense, 1969. SILVA, K., SILVA, M. Dicionário de conceitos históricos. São Paulo: Contexto, 2009. VILAR, P. História marxista, história em construção. In: LE GOFF, J.; NORRA, P. (org.). História: novos problemas. Rio de Janeiro: F. Alves, 1995. Leituras recomendadas ANDERSON, P. Considerações sobre o marxismo ocidental. São Paulo: Brasiliense, 1976. 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