Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Homens e suas máscaras. A revolução silenciosa Luiz CUSCHNIR Elyseu MARDEGAN JR. Rio de Janeiro Campos 5ª edição, 2001. Table Of Contents Sumário Introdução Primeira Parte: Sumário Introdução PRIMEIRA PARTE: A CONSTRUÇÃO DAS MÁSCARAS. 1. Do berço à escola Vai nascer: É menino ou menina? Mas por que usar máscaras? Quero ficar com a mamãe, mas não conta para o papai Ai, hoje apanhei pela primeira vez... Tô morrendo de medo: deixa a luz acesa Sem chorar nem rir Meninas são um saco... O caos da sexualidade emergente 2. O desafio da adolescência O código dos meninos Crescimento e mudança "Meu filho é um vagabundo" Sob o signo da revolta Álcool e maconha: os anestésicos do jovem O homem do "mau-boro" 3. Experimentando máscaras O universo sexual do jovem Ser homem Que medo! Chegou a hora... E agora? A farra O desejo Amor, como conciliar? Integrando o que sinto e o que faço Vestibulares da vida Máscaras de X-Men A primeira bomba na guerra dos sexos Rompendo círculos viciosos SEGUNDA PARTE: VESTINDO AS MÁSCARAS. 4. O mundo do trabalho Primeiro emprego: um palco para as máscaras Ganhando o próprio dinheirinho Realizando-se (ou não) no trabalho Trabalhar? Que saco! Escondendo os sentimentos 5.A família O homem precisa se casar Casar: experiência inevitável Em busca da alma gêmea Onde situar a família? "Finalmente sou pai. É um menino." Meu filho adolescente Agora há outro homem em casa Relações verde-amarelas TERCEIRA PARTE: CAEM AS MÁSCARAS. 6. Os sonhos e a realidade A vida não é como me ensinaram Eu não preciso de máscaras O sonho da independência A perda do poder: as mulheres chegaram 7. Recompondo as máscaras Mudar sim, e já! Revendo o papel do pai Revendo o papel na família Revendo o papel profissional Quando a velhice chega Epílogo: Surge o novo homem Não precisava ter sido assim As máscaras como alimento da alma: "masalmas" O lobo dentro de nós Novos ingredientes para a alma masculina Máscaras mais flexíveis para os meninos Apêndice A crise do macho Na idade do lobo Introdução No quintal de sua casa, Paulinho, quatro anos de idade, diverte-se com a bola nova que acabou de ganhar de presente do pai. Por ser brasileiro, o garoto talvez tenha o futebol no sangue, mas isso não se sabe. De qualquer modo, já é capaz de demonstrar alguma habilidade com os pés. Nem tanto, porém, que não se atrapalhe uma vez ou outra, quando a bola quica inesperadamente, depois de algum chute mais forte. Assim, de repente, ele erra o chute, acertando o ar e depois pisa na gorducha, perdendo o equilíbrio e desabando no chão. Acaba ralando o joelho, sem falar no susto que o tombo lhe provoca. O pai, que assistia à cena da porta da cozinha, corre ligeiro em direção ao filho assustado e aflito. O menino, caído no piso frio de pedra, ainda está atordoado e nem tenta se levantar imediatamente. Na verdade, não chega sequer a perceber, naquele instante, a aproximação do adulto. Sente apenas o joelho ardendo - ardendo muito - e uma imensa vontade de chorar. Entretanto, ao escutar seu nome pronunciado com preocupação pela voz paterna, consegue conter as lágrimas e inibir a expressão de dor. No momento seguinte, de um salto, Paulinho se levanta, passa rapidamente a palma da mão no joelho ferido, e aproveita o gesto para sacudir a fina poeira que sujou o peito da camiseta e a sua bermuda nova, azul-clara. Para o pai, exibe um sorriso sereno e firme, de quem é duro na queda, como se nada tivesse lhe acontecido. O adulto olha espantado para o menino que, efetivamente, soube esconder direitinho suas emoções. A breve história de Paulinho deixa claro um dos elementos centrais da educação emocional masculina, ao longo de séculos e séculos de história da humanidade. Aparentar firmeza, frieza e autocontrole tem sido a marca registrada do homem em todos os tempos. Cabe somente à mulher a transparência das emoções. Ela, sim, pode manifestar livremente afeto, ternura, solidariedade e compaixão, sentimentos compatíveis, naturalmente, com os seus papéis de companheira e mãe. Quanto ao homem, este tem de se manter impassível, é claro, como se essa fosse a única forma de afirmar - questionavelmente - sua masculinidade. Para todos os outros seres humanos - e até para si mesmo -, ele deve exibir uma cintilante máscara de metal frio, capaz de ofuscar qualquer reflexo de fraqueza. "Homem não chora", diz um lugar-comum mais que conhecido de todos os leitores. É justamente o que existe por trás do lugar-comum e da máscara o tema deste livro que você tem entre as mãos. Pretendemos investigar as diversas máscaras do homem, desde os materiais de que são feitas até as diversas formas de utilização que lhes são dadas ao longo de uma vida. Mais do que isso, pretendemos também avaliar a necessidade do uso de máscaras, compreendendo o que elas têm de positivo e de negativo, em que medida contribuem para qualquer indivíduo sobreviver em sociedade e de que maneira elas impedem o desenvolvimento das plenas potencialidades emocionais do masculino. De fato, numa análise pormenorizada e perspicaz, desenvolvida ao longo de anos de observação e de atuação profissional dos autores deste livro, pôde-se constatar que existe nas máscaras um caráter duplo. Por um lado, elas cumprem a função mais evidente que lhes é destinada, a de esconder para os outros a identidade de quem as utiliza. Nesse sentido, as máscaras têm evidentemente um caráter protetor, impedindo que os traços fisionômicos e distintivos de seu usuário sejam reconhecidos. Metafórica ou simbolicamente, portanto, a máscara é uma forma de o homem não expor os traços mais íntimos de sua personalidade a qualquer um, de modo a preservá-los para si mesmo e a permanecer seguro, em sua interação com os outros seres humanos. No convívio social, sempre marcado pela hostilidade e pela competitividade, o uso contínuo das máscaras tem assim, obviamente, um papel positivo. Podemos, portanto, compará- las às máscaras de oxigênio dos aviões, preparadas e prontas para serem usadas nos momentos de emergência, caso ocorra uma despressurização da aeronave. (Mas atenção: "Se houver uma criança ao seu lado, coloque a máscara primeiro em você e depois nela." Até aqui aparece a fragilidade necessitando de uma assistência: fortaleça-se e ajude-a a proteger-se.) Por outro lado, a tentativa de preservar-se dos outros acarreta em geral uma situação inesperada. O mascarado, ao olhar-se no espelho, também não consegue ver o próprio rosto, nem se enxergar na plenitude de seus traços e expressões, perdendo a capacidade de discernir com nitidez sua imagem, o que implica uma falta de identificação em relação a si mesmo. Desse ângulo, a máscara perde seu valor protetor e acaba se tornando algo semelhante àquela máscara de ferro do romance clássico de Alexandre Dumas. Trancada por cadeados cuja chave seu usuário não possui, esta máscara é na verdade um instrumento de tortura e de aprisionamento. Em outras palavras, a máscara pode ser uma forma de o homem esconder-se de si mesmo, impedindo-o de chegar ao seu âmago, de atingir um autoconhecimento que é a base de uma existência efetivamente saudável e feliz. Assim, a máscara se torna um elemento perturbador, que provoca a alienação em relação às realidades psíquicas e emocionais de seu usuário. Este fica tão distante da sua identidade real que nem se reconhece! As consequências de seu uso não podem resultar em outra coisa que frustração, incomunicabilidade, angústia e infelicidade, as quais só longos procedimentos terapêuticos talvez consigam curar. Entretanto,se não é possível ao homem desempenhar os papéis que lhe cabem no teatro da vida sem o uso de máscaras, é necessário conhecê-las melhor para utilizá-las de modo adequado e eficiente, evitando os indesejáveis e sempre danosos efeitos colaterais. Só assim o homem poderá libertar- se das cadeias de concepções retrógradas, repressivas e machistas, para dar vazão à sua masculinidade plena que, todavia, não exclui o lado afetivo e emocional. E a partir daí que se pode construir um diálogo consigo mesmo e com os outros - sejam estes colegas, clientes, amigos, familiares, namoradas, amantes ou esposas. Ressalte-se que repensar e questionar as máscaras é, antes de mais nada, um mergulho profundo no oceano de nossas emoções. Por isso, a leitura deste livro propõe ao leitor uma viagem-aventura ao interior do próprio eu, com a perspectiva de voltar à tona renovado e com nova consciência de si: de você, homem, para descobrir as chaves dos cadeados; de você, mulher, para identificar essas chaves e tentar descobrir, como num bal mas qué, se conhece ou não esse homem. Em outras palavras, trata-se de uma leitura que pretende ajudá-lo a encontrar-se e a redescobrir as emoções perdidas, ao longo de anos em que seu contato com o mundo transmitiu-lhe sempre uma mensagem oposta: a de sufocar e esquecer as emoções, de modo a vestir a máscara impassível do herói solitário, personificado no cinema pelos velhos estereótipos de John Wayne ou Clint Eastwood. Para chegar à desconstrução das máscaras, realizando uma avaliação analítica da personalidade masculina, este livro procurou ater-se à trajetória biológica de todo ser humano, acompanhando o seu desenvolvimento desde o momento do nascimento do homem até o seu envelhecimento, passando pela adolescência, os primeiros anos da idade adulta, a maturidade e a meia-idade. Os capítulos seguem de maneira geral essa orientação, mas não a adotam de maneira rígida, uma vez que muitas questões são às vezes recorrentes ou que vários temas se interpenetram ao longo da explanação. Na primeira parte, abordamos inicialmente o período anterior ao nascimento, quando, na própria expectativa do casal que vai ter filhos, já começa a se gestar o material de que as máscaras serão compostas. Encaramos, portanto, esse momento, como se visitássemos o ateliê de um artista plástico, observando com atenção os pincéis, as espátulas, os pigmentos, os solventes, as tintas e as telas com que ele vai produzir seu quadro. Com a palheta em punho, os primeiros traços vão marcando a tela. A comparação se justifica facilmente: basta lembrar os desejos, sonhos, planos, projetos e previsões que fazem um homem e uma mulher para seu bebê em vias de chegar ao mundo. Depois, damos particular atenção aos primeiros momentos da infância, tanto ao período em que o recém-nascido mantém- se fechado e protegido no ambiente doméstico, sendo alvo da atenção, do carinho e dos cuidados de todos ao seu redor, bem como à fase em que a criança atinge a idade pré-escolar, sendo levada pelos pais ao maternal ou ao pré-escolar. Esse momento, aliás - ao qual psicólogos e educadores não tinham dado maior atenção até recentemente -, revela-se de importância extraordinária e tem aspectos decisivos na formação da personalidade masculina. Certamente, é grande o trauma sofrido pelo menino no momento em que se sente abandonado pelos pais num ambiente que lhe parece francamente hostil. Ali ficará nas mãos de meninos iguais a ele, cuja tendência é não demonstrar o mesmo respeito, carinho e proteção experimentados no recesso do lar. E nessa interação com outros meninos da sua idade ou um pouco mais velhos que a criança do sexo masculino receberá as primeiras mensagens relacionadas à repressão de suas emoções e sentimentos. E aí que, pela primeira vez, ele perceberá a necessidade de endurecer, de tornar-se rígido para enfrentar o mundo e integrar-se nele. Também na puberdade e nos anos iniciais da adolescência, as mesmas mensagens continuam a ser transmitidas. Nesta fase, o garoto não só as recebe, como também passa a agir de acordo com o código que lhe foi fornecido, isto é, passa a utilizar-se das máscaras para poder enfrentar os desafios de ser jovem. Desafios que se tornam ainda maiores e mais intensos pelas inúmeras e descabidas cobranças que a família e a sociedade fazem ao jovem de maneira geral. A segunda parte debruça-se sobre a fase adulta do homem e está organizada em torno dos dois temas centrais da vida de todo indivíduo adulto do sexo masculino: o trabalho e a família. Efetivamente, nestes dois "ambientes" o homem encontrará o palco por excelência para desempenhar os papéis para os quais se preparou nas fases anteriores. Assim, examinamos pormenorizadamente seu comportamento no ambiente profissional, em relação aos colegas, subordinados e superiores, e seu relacionamento com a própria atividade que escolheu para exercer durante a etapa que se configura como a de plenitude de sua vida. Além do significado econômico-financeiro, o trabalho tem para o ser humano do sexo masculino um papel simbólico do qual a maioria dos homens não se apercebe ou do qual só toma consciência tardiamente. Na verdade, trabalhar significa, para a maioria dos homens, um modo de afirmação de sua identidade masculina. É pelo trabalho que o homem pode exercer o papel de "macho provedor" que lhe é atribuído tradicionalmente pela nossa civilização, bem como é no próprio trabalho que ele vai concentrar suas expectativas de tornar-se um vencedor ou um fracassado. Vale destacar que abordamos a questão do trabalho tanto da perspectiva psicológica quanto da prática, com o olhar tanto do psiquiatra quanto do executivo. A intensa integração dos papéis profissional e pessoal de cada autor deste livro é particularmente responsável pela abrangência dessa discussão do trabalho e das questões relacionadas à vida profissional do homem. Quanto à família, sem nos estendermos demais nessa questão, pelo menos por enquanto, registre-se que dedicamos a ela todo o Capítulo 5, no qual retomamos vários aspectos apresentados nos capítulos iniciais, agora de um novo ponto de vista. Com o casamento e com a paternidade, diversas questões relacionadas à afirmação da identidade masculina enfrentadas quando criança e adolescente ressurgem para homem que, neste momento, desempenha outro papel. Em outras palavras, como pai, o indivíduo terá de responder às mesmas questões que já respondeu como filho, mas são outras as respostas que ele deve lhes dar, tendo mudado de posição no contexto familiar. Enfim, a terceira parte de nosso estudo trata dos momentos críticos derivados de toda a problemática estabelecida nas fases anteriores da existência masculina. Em geral, é ao chegar à meia-idade que o homem se dá conta dos conflitos que se interpuseram entre seus sonhos e a realidade. Embora não se possa precisar uma idade exata para o surgimento dessa crise - pois isso varia obviamente de indivíduo para indivíduo -, é na casa dos quarenta anos, em média, que ela se desencadeia. Os fatores que determinam sua eclosão são também variáveis: um problema grave de saúde, a separação ou qualquer outro tipo de crise conjugal, a perda do emprego e a dificuldade de recolocação no mercado de trabalho, não importa. O fato é que se torna cada vez mais comum ao homem, por volta de seus quarenta anos, a sensação angustiante de que sua vida já não faz sentido, de que ele perdeu a capacidade de sentir prazer, de que não quer permanecer do jeito que está, de quetudo poderia ter sido diferente. Esse momento de questionamento íntimo é delicadíssimo: ele pode ser responsável por uma grande virada em direção a um novo modo de vida. Ele pode ser o ponto de partida para uma verdadeira revolução - a revolução silenciosa{1}, que irá redirecionar sua vida, no sentido de atingir objetivos que, apesar das evidências contrárias, ainda podem ser conquistados. Por isso, investigamos a fundo a própria substância do questionamento, já tendo demonstrado, em outros capítulos, como a crise se originou em fases anteriores. Nem tudo está perdido, é possível mudar, é possível resgatar o potencial afetivo e reconstruir caminhos e projetos. É possível transformar as máscaras e utilizá-las como proteção e como forma de estabelecer relacionamentos mais positivos, construtivos e satisfatórios consigo mesmo e com as outras pessoas, principalmente aquelas que amam. É com palavras de esperança, portanto, e com orientações práticas para a transformação que nosso livro se encerra. O capítulo final apresenta um verdadeiro receituário - concreto e de fácil manipulação - para o leitor ter cuidados consigo mesmo e com seu(s) filho(s), de modo a compreender plenamente suas potencialidades e livrar-se das terríveis consequências de uma educação repressiva, nos âmbitos afetivo e emocional. Pensamos em trocas de máscaras endurecidas por máscaras de almas – mas almas. Esperamos que a leitura deste livro possa conduzir o leitor a compreender a verdadeira essência da identidade masculina - que em nada se assemelha às máscaras rígidas e inflexíveis aqui descritas - e a abrir-se para ela, da maneira mais ampla e abrangente que lhe for possível. Luiz CUSCHNIR Elyseu MARDEGAN JR. São Paulo, 30 de novembro de 2000. Primeira Parte: A Construção das Máscaras. UM: Do berço a escola Vai nascer: é menino ou menina? São sete horas de uma noite transparente de verão e o céu ainda está azul. Depois de um dia de trabalho duro e de um congestionamento terrível na Marginal, Alfredo consegue enfim colocar o carro na garagem, de volta para casa. Hoje, particularmente, ele deveria estar feliz da vida, pois não lhe faltam bons motivos para comemorar: fechou um negócio milionário, que pode lhe garantir uma participação acionária na empresa, mas, sinceramente, não é isso que lhe vai pela cabeça naquele momento. Agora, são completamente outras as suas preocupações... Embora tenha acabado de jogar fora um cigarro, que fumou quase até o filtro, acendeu outro imediatamente, movido por uma ansiedade muito maior do que a normal. Quanto ao veículo, embicou-o de qualquer jeito ao lado do da mulher, e pulou para fora, quase esquecendo no banco de trás a pasta com os documentos do negócio fechado. Procurou justificar para si mesmo a sua afobação, reconhecendo que, no assunto com que se preocupava, ele era ainda um marinheiro de primeira viagem. Respirando fundo, deixou a garagem e atravessou o jardim, com passos rápidos, em direção à porta de entrada da residência, que a empregada já tinha aberto ao ver o carro do patrão chegando. Alfredo dá boa noite à doméstica, enquanto afrouxa o nó da gravata e avança em direção à sala de estar. Ali, Valéria, sua mulher, o aguarda, sentada do lado direito do sofá, com uma revista feminina entre as mãos. Valéria olha para o marido que chega e dá um sorriso que nada tem de esclarecedor. Antes, a mulher apresenta uma expressão enigmática, de quem está querendo fazer suspense. Alfredo se aproxima e beija os lábios da esposa com delicadeza, mas deixa claro que não está para mistérios, indo direto ao ponto: - E então, foi ao médico? Acariciando a barriga de seis meses, por trás do confortável vestido de gestante, Valéria sorri e faz que sim com a cabeça, mas não dá de imediato a resposta que Alfredo tanto deseja. Quer que o marido compartilhe da expectativa que ela também experimentou durante boa parte da tarde, na sala de espera do ginecologista. Entretanto, Valéria não consegue segurar a notícia por mais do que alguns segundos. Não tanto pela expressão ansiosa que o rosto de Alfredo traz estampada, mas porque ela mesma está muito contente com o que tem para contar. - É um menino - participa, afinal, com um sorriso carinhoso e um beijo terno no rosto do marido, que já havia se sentado a seu lado no sofá, segurando-lhe as mãos. - Deu pra ver direitinho na ultrassonografia. - É um menino! - Alfredo exclama, deixando bem clara a sua satisfação. Cada vez mais, os casais de um modo geral - e particularmente aqueles de bom nível socioeconômico - querem antecipar o conhecimento a respeito do sexo dos filhos que eles vão ter. Não há nada de anormal nisso e, já que a tecnologia médica da atualidade assim o permite, por que não fazê-lo? Saber se o futuro bebê será do sexo masculino ou feminino é algo que pode ajudar no planejamento doméstico e econômico do casal. Fica mais fácil e seguro preparar o enxoval e até montar o quarto da criança, mas, além disso, o conhecimento prévio obtido por um exame ultrassonográfico pode ajudar os pais a elaborar todo o arsenal de fantasias que naturalmente alimentam a respeito do filho que vão ter. Nessa questão, o que não faltam são expectativas, e uma noção precisa da realidade sempre ajuda a lidar com elas de uma maneira mais sensata e racional.{2} Não se pode mais dizer, pelo menos no que se refere ao mundo ocidental, que predominem as expectativas por um filho homem. Ao contrário do que ocorre na China, onde a superpopulação e o consequente controle governamental da natalidade obriga os casais a terem não mais do que dois filhos, tornando o anseio por bebês do sexo masculino uma obsessão nacional. A imprensa internacional denuncia com alguma frequência o abandono e até o assassinato de meninas recém- nascidas. No Brasil, apesar do machismo tradicional e do caráter ainda patriarcal de nossa sociedade, o desejo de ter filhas já não é mais uma exceção à regra. Também já não é incomum a preferência por não ter filhos. Há homens que pensam assim: "Não quero nem pensar em ter filhos, pois já vi os problemas que a adolescência trouxe à vida dos meus colegas. Adolescentes, para se auto afirmar, abalam profundamente a vida familiar". Porém, há expectativas variadas, dependendo do sexo que cada membro do casal deseja para seu filho e ainda de acordo com a complexidade individual de cada ser humano. Por outro lado, podemos apontar algumas que invariavelmente se manifestam quando o pai ou a mãe anseiam por um menino. Conhecê-las é crucial para podermos nos aproximar do tema que será desenvolvido ao longo de todo este livro. Para começar, analisemos a situação do ponto de vista masculino. Certamente, entre as ideias que vagueiam na mente de um futuro pai encontra-se a de projetar-se no futuro de seu filho e vê-lo como um homem que há de experimentar as oportunidades que ele mesmo, pai, não teve, de modo a assegurar ao menino condições de vida melhores do que a sua. É claro que nisso se incluem também as experiências que ele teve, para poder moldar o filho como um "pequeno eu", um "eu homenzinho". Além disso, com certeza, um homem se sente muito mais seguro de lidar com uma criança do mesmo sexo que o seu, que ele "conhece" bem, por experiência própria, ao contrário do sexo oposto, cujo íntimo ele efetivamente desconhece. Mais ainda, um filho homem pode significar para ele um companheiro, com quem ele vai compartilhar seus momentos de lazer, indo ao futebol ou ao autódromo. É com ele que poderá cortar o cabelo, sonhar com a mulherinalcançável, sentir de novo o tesão pela vida. Ou ainda uma espécie de discípulo, a quem ele vai transmitir seus conhecimentos e habilidades, de modo a fazê-lo dar continuidade ao seu trabalho, sem falar que um menino também carrega o significado de levar adiante o nome da própria família. "Cumprirei o que meu pai falava de nós, do nosso sobrenome." "Não deixarei morrer o nome da família." Já para a mulher, o fato de dar à luz a um homem pode ter conteúdos diversos. A mulher pode imaginar que um filho lhe trará menos problemas do que uma filha, caso ela mesma tenha tido dificuldades no relacionamento com outras mulheres, como sua mãe, suas irmãs, ou mesmo colegas e amigas. Do mesmo modo, o desejo de ter um filho pode esconder a necessidade de resolver problemas que ela tenha com a própria sexualidade. Talvez reflita alguma inveja em relação ao sexo oposto, que lhe parece mais livre e bem posicionado socialmente. "Meu filho não vai se humilhar como eu."{3} Para a mulher, principalmente para aquela cuja vida está centrada no âmbito do lar, um filho homem significa também a possibilidade de grandes realizações intelectuais ou profissionais que ela mesma não conseguiu concretizar. Pode ainda ser a oportunidade que sempre lhe faltou de dirigir a vida de um homem, depois de ter tido a própria vida constantemente dirigida por eles. Ou talvez a única maneira que ela encontra de ter algum domínio sobre alguém do sexo masculino. O ser humano é muito complexo e está repleto de conflitos internos. Muitas expectativas alimentam o desejo por um filho homem. Coexistem a angústia e o medo tão grandes quanto as expectativas, pois não há - nem pode haver - garantias de que o filhão vai corresponder a todas elas. Assim, medo e angústia concorrem com a presença de frustração. De qualquer modo, desejos, fantasias, projeções, expectativas, medos e angústias dos pais, diretamente relacionadas ao sexo masculino do filho que vai nascer, são indicações dos materiais com que vão ser confeccionadas as máscaras que o homem acabará colocando ao longo de toda a vida, de modo a esconder dos outros e até de si mesmo o seu verdadeiro eu, como veremos logo adiante. Entretanto, nesse primeiro momento em que o filho ainda está para nascer, o material bruto de confecção das várias máscaras do homem já existe, mas ainda não está determinado como ele será efetivamente empregado. Para o pai, aliás, a época do nascimento do filho é um momento de muita conturbação e conflitos internos. Ele não sabe, por exemplo, quanto vai conseguir amar o seu garoto. Eis alguns exemplos de questionamentos íntimos: - " O que é amar alguém do sexo masculino?" - " O que é amar?" - " Como pai ama?" - " Como quero ou como se deve amar?" - " Será que vou aguentar, não vou me perder, perder o meu eixo?" Ele também experimenta um medo muito grande da responsabilidade de ser pai, principalmente quando se trata do primeiro filho: "Será que eu vou dar conta dessa responsabilidade?" Ao mesmo tempo, ele tem a confirmação de que gerou um novo ser, de modo que não pode haver mais dúvidas de sua masculinidade. Mesmo não sendo a primeira gravidez, gerar um homem é se multiplicar para a humanidade. Mas trataremos das máscaras que o pai - como pai, como genitor - veste mais adiante.{4} O que importa aqui é que o nascimento de um filho homem é o momento em que se determina a obrigatoriedade do uso de máscaras. Nasceu, é menino? Isso significa que vai ter de usar máscara, porque homem usa máscara, homem não se mostra, a priori. Isso está na cabeça do pai, porque ele é assim. Isso está na cabeça da mãe, porque ela vai educar o seu filho assim. E isso está com a sociedade que espera que esse homem use máscaras, esconda seus sentimentos e emoções. Mas por que usar máscaras? O uso de máscaras, obviamente, não é um fenômeno natural. O homem não necessita de máscaras, nem de usá-las indiscriminadamente: um ser puro, com uma essência de vida, com a possibilidade de se construir como ser humano, com uma proposta pessoal de realização, uma alma que está vindo ao mundo, em princípio não teria razões para se esconder. O convívio e a pressão social, entretanto, geram outras necessidades. O homem precisa usar várias máscaras porque necessita de uma série de artifícios para conseguir suportar as várias fases de sua vida, para poder desempenhar os vários papéis que lhe serão impostos ao longo do tempo da sua existência, para dar conta de enfrentar as inúmeras cobranças que lhe serão feitas. A máscara disfarça, não mostra, ou mostra o que não é, como se fosse. Na verdade, é como se o homem não pudesse encarar a vida de frente, caso não usasse máscaras. Como se, sem as máscaras, ele estivesse vulnerável, indefeso, despreparado, desprotegido. Então, é o caso de perguntarmos: mas, afinal, do que as máscaras o protegem? De alguma forma, as máscaras o protegem da "contaminação do mundo", permitindo-lhe, ao menos na aparência externa, que ele não sofra os seus efeitos cruéis e perversos. Em outras palavras, as máscaras dão ao homem as condições de enfrentar o "mundo mau" como um gladiador, um batalhador, um guerreiro. A máscara é um escudo, além de um disfarce. Quero ficar com a mamãe, mas não conta para o papai O caráter traumático do nascimento é um fato científico, constatado pela psicologia desde suas origens, na virada do século XIX para o século XX. As mais recentes descobertas da neurociência têm examinado as características fisiológicas desse trauma, mas não é necessário descer às minúcias da biologia para compreendê-lo. Com o parto, o recém-nascido deixa o ambiente superprotegido do útero materno, onde se encontra confortavelmente alojado, integrado, e sente que todas as suas necessidades vitais são satisfeitas. A partir de então, está exposto a um mundo que lhe é naturalmente hostil, no qual emerge como um corpo estranho. Agora, vai conhecer outros ritmos, outras temperaturas, outras necessidades: o frio, o calor, a nova maneira de alimentar-se; o próprio ar que respira, em substituição ao líquido amniótico, constituem invasões para o seu corpo frágil. À medida que se desenvolve, entretanto, o bebê adapta- se com relativa tranquilidade e rapidez ao novo meio onde vive, o que lhe será facilitado pela sua capacidade de comunicação. Através do choro, particularmente, ele se descobre capaz de "contar" a mãe, ao pai, ou às outras pessoas que cuidam dele, suas necessidades. Aprende a pedir comida, a "dizer" que está molhado ou com dor de barriga. Desse modo, nos primeiros meses ou anos do convívio doméstico, a criança não se sente desamparada, pois conta com tantos cuidados no meio doméstico, que permanece superprotegida como se encontrava no ambiente uterino. No entanto, essa situação reconfortante e encorajadora rapidamente se altera. Num espaço de tempo que se torna cada vez menor, o menino é forçado a deixar o lar para enfrentar os lugares públicos, que lhe são completamente desconhecidos e, portanto, assustadores. Hoje em dia, vale lembrar, uma criança de até dois anos já se vê matriculada em escolas maternais. Assim, em termos psicológicos, muito mais do que cronológicos, é extremamente pequeno o período de transição entre o Útero real, o quarto do bebê - que não deixou de representar a segurança uterina -, e um local como a escola. O contato da criança com seus semelhantes, com outros adultos, em novos espaços, outros sons, novas vozes, é geralmente marcado por um rompimento hostil associado à separação familiar e à sensação de perda profunda.É precisamente nos momentos iniciais desse estágio - a fase de socialização do indivíduo - que vêm se instalar as primeiras máscaras do homem. Nas primeiras manhãs ou tardes no maternal ou na pré-escola, começa a delinear-se a diferenciação entre meninos e meninas. Crianças do sexo masculino e feminino podem estar frequentando as mesmas classes, brincando com os mesmos brinquedos. No entanto, de alguma forma, o menino receberá informações do mundo à sua volta e começará a entender que ele é diferente da menina, que há coisas que elas podem fazer, mas que eles não. A entrada na escola e o consequente afastamento do lar e dos cuidados maternos é difícil e dolorosa. Na perspectiva da criança ela permaneceria onde estava, sem compreender por que deve abandonar sua segurança e conforto. Aliás, não lhe é dado o direito de fazer uma opção. Não lhe é permitido permanecer em casa pelo tempo de que internamente necessita, de modo a realizar a separação por si mesma, no seu tempo. A mensagem que recebe de todos que a rodeiam é: " Você tem de ir para lá." " Você precisa ir para a escola." " Você precisa permanecer com os outros." " Vai ser melhor para você."{5} Para complicar, no novo ambiente - estranho e assustador, nunca é demais enfatizar -, além de privado do carinho e dos cuidados especiais que recebia em casa,{6} o menino se vê cercado por seus semelhantes, cujas ações e atitudes em relação a ele não têm como tônica uma acolhida amistosa ou fraterna. Cada criança é uma individualidade, com impulsos, anseios, desejos, medos e angústias próprios, e sem uma noção precisa de solidariedade. Portanto, encontra-se sujeita aos desígnios das outras, dos grupos variáveis que se formarão entre elas no dia-a-dia. Nesse período, é comum uma rotina de enfrentamentos, afrontas e humilhações. Para resistir a ela e adaptar-se, é preciso principalmente esconder o medo. Isso vale sobretudo para os meninos, pois às meninas é concedido que sintam saudades da casa e da mãe. Aí, em geral, iniciam-se as mensagens diferenciadas para eles e para elas. Os meninos recebem mensagens relacionadas a enfrentamentos, agressividade, coragem, atividades de confronto; as meninas, de proteção, acolhimento, condescendência com a sua delicadeza. Ao contrário, os meninos precisam revelar-se corajosos e independentes, de modo a não passar por "frouxos" ou "mariquinhas" diante de seus colegas. Serão essas as atitudes e os comportamentos que serão valorizados não só pelos colegas, como também pela equipe de educadores e de funcionários da escola, bem como pelos próprios pais. Quanto às professoras dos maternais, não se pode deixar de dizer que muitas consideram uma missão "ajudar" as crianças do sexo masculino a assumirem um comportamento forte e firme, de "homens de verdade". O pior é que, como "educadoras", acabam convencendo os próprios pais. Verdadeiramente, não há muita novidade nisso. Um romance clássico da literatura brasileira, O Ateneu, de Raul Pompeia, capta com brilhantismo essa situação desde suas páginas iniciais, revelando, por sinal, como o caráter traumático da entrada na escola se mantém inalterado há bem mais de um século, quando o livro foi publicado pela primeira vez. O tema do livro é justamente as dificuldades de adaptação do narrador que apresenta suas memórias da vida escolar durante a infância e a adolescência. Logo no primeiro capítulo, o texto começa com palavras muito significativas, em que o autor narra a sua entrada no Colégio Ateneu: "Vais encontrar o mundo, disseme meu pai à porta do Ateneu. Coragem para a luta." Todo o restante do início da obra enfatiza a dor da ruptura com a vida familiar que Raul Pompeia define como "aconchego placentário" e "estufa de carinho".{7} Coagido a não mostrar seus sentimentos verdadeiros, que se originam de grandes e profundos medos, o menino chega a se envergonhar do que está sentindo: quer ficar com a mãe, mas não pode revelar essa realidade nem mesmo ao pai. Assim, através da auto supressão e da inibição, medo e vergonha formam o amálgama de sua primeira máscara. Ai, hoje apanhei pela primeira vez... A sala de aula nem sempre é um espaço hostil. Ali, o menino pode talvez contar com a proteção da professora e não se sentir totalmente desamparado. Mas a sala de aula é somente um dos ambientes que a criança vai frequentar no espaço escolar, que comporta ainda outros locais, onde as realidades são diversas: o ônibus escolar, o pátio do recreio, os tanques de areia, as proximidades do colégio. Nesses lugares, os meninos terão possivelmente seu primeiro contato com a violência física, com a brutalidade alheia (pelo menos com estranhos, pois podem tê-lo tido com irmãos mais velhos ou com os próprios pais). De qualquer forma, a experiência é marcante em todos os sentidos. Por um lado, pelo significado intrínseco que carrega: ao apanhar, o menino constata de maneira dolorosa seus limites, verificando incapacidades, percebendo sua impotência diante de certas situações e sentindo uma das mais profundas humilhações que a criança pode experimentar e, pior que isso, concluindo claramente que está só. Por outro lado, ter apanhado é uma experiência em geral sucedida por uma nova lição do uso da máscara masculina, como ficará exemplificado no caso que narraremos a seguir: Beto tem sete anos e vive numa cidade do interior paulista. Está na primeira série do ensino fundamental e, por morar perto do colégio onde estuda, costuma ir para a escola a pé. No caminho, costuma também passar por uma banca de jornais de esquina, onde compra chicletes, gibis ou pacotes de figurinhas. Os álbuns de figurinhas parecem ser uma diversão cíclica das crianças. Muitas vezes, as editoras deixam de lançá-los, eles desaparecem do mercado e uma geração inteira de meninos nem sabe o que isso é. Passam-se alguns anos e as figurinhas reaparecem nas bancas, com temas do momento, tornando-se uma mania para outras gerações de jovens. É exatamente esse o caso de Beto e de seus coleguinhas de turma, que estavam empolgados com um álbum de figurinhas de super-heróis, lançado por uma grande editora paulista. No dia de sua vida que focalizamos, Beto estava com sorte. Ao passar na banca de revistas, a caminho da escola, comprou três pacotes de figurinhas. Mal abria o primeiro deles, deparou-se com uma das estampas mais difíceis do álbum, cobiçada por todos os seus colegas. Chegou à escola eufórico e, antes de começarem as aulas, bem como durante as lições, entre sussurros, exibiu a figurinha para todos os seus amigos e conhecidos. Como é comum acontecer em pequenas comunidades, a notícia da sorte de Beto espalhou-se de boca em boca. Rapidamente, não existia um só garoto das séries iniciais do ensino fundamental que não soubesse da novidade. Entre eles, Pedro Paulo, dez anos, que frequentava a quarta série. Por sinal, Pedro Paulo era um verdadeiro craque do jogo de "bafo", ou de "bater figurinhas". Para quem não sabe ou não lembra, essa brincadeira consiste em empilhar as estampas com a face voltada para baixo e bater nelas, com a mão em concha, para fazê-las virarem e ficar de frente, exibindo a ilustração. Em geral, o jogo é para valer, com as próprias figurinhas desempenhando o papel de fichas: quem consegue virá-las tem o direito de ficar com elas. Hábil na brincadeira, Pedro Paulo havia se tornado o campeão daquela escola, num torneio informal que grupos de alunos tinham promovido. O menino ostentava o título com bastantesatisfação, dado que era particularmente chegado a exibições das próprias habilidades. Ao inteirar-se da sorte do Beto, nos primeiros momentos do recreio, Pedro Paulo veio desafiá-lo para um jogo de "bafo". A princípio, Beto ficou na dúvida, vacilou, uma vez que não era muito bom naquilo e não tinha a mínima intenção de arriscar-se a perder a figurinha difícil com que a sorte o havia presenteado. Entretanto, nenhum dos coleguinhas aprovou a sua atitude vacilante. - Deixa de ser covarde! - dizia um. - Cara, você tem que mostrar que é homem - falava outro. - Faz isso, meu - insistia um terceiro. - Pelo bem da primeira série! A maioria da turma o incentivava a jogar, argumentando que ele não poderia rejeitar o desafio e sugerindo também que ele talvez ganhasse, pois aquele parecia ser o seu dia de sorte... Enfim, depois de muita hesitação, Beto resolveu aceitar a proposta. Juntamente com Pedro Paulo, dirigiu-se para um canto afastado do pátio da escola, onde não havia sinal de "tias", bedéis ou supervisores. Ali, os dois se sentaram no chão, em meio a uma roda de colegas, que formaram as torcidas para cada um dos jogadores. Beto não levou vantagem nas duas primeiras rodadas. Perdeu rapidamente um punhado de figurinhas que havia posto em jogo. A torcida do adversário vibrava. Nos lances seguintes, porém, a situação se inverteu. O menino menor recobrou o prejuízo. Pouco depois, já estava no lucro. As vitórias o incentivaram e Beto perdeu o medo. Chegou até a pôr no jogo a figurinha difícil que o adversário exigiu na hora de fazer uma "rodada de fogo". Faltavam cerca de três minutos antes de terminar o recreio. Beto topou a parada. - Tá legal! - exclamou, decidido, para Pedro Paulo, olhando-o no fundo dos olhos. Para espanto de todos que assistiam à cena e para êxtase total da sua torcida, Beto conseguiu vencer o campeão. Faturou mais de uma dúzia das suas figurinhas. Pedro Paulo engoliu seco e levantou-se resmungando. Voltou para a classe, sombrio, mal escutou a campainha que anunciava o fim do intervalo. No final da tarde, quando as aulas terminaram, Beto tomou o caminho de casa, satisfeitíssimo. Estava certo de que aquele tinha sido um dos melhores dias de sua vida. Afastou-se da escola e, dois quarteirões adiante, enveredou por um terreno baldio que servia de atalho para a sua residência. Era o seu caminho habitual, que trilhava diariamente sozinho ou, às vezes, com outros colegas. Ao atingir a região central do terreno, onde a trilha se perdia em meio a arbustos e a um mato cerrado, seus passos foram subitamente interrompidos pela aparição de Pedro Paulo, acompanhado de Luizão e Topete, dois outros alunos da quarta série. - Fica parado aí, moleque! - Os três ordenaram a uma só voz, embora nem fosse preciso, pois Beto já estava praticamente paralisado. Num salto, Luizão e Topete se puseram atrás de Beto e seguraram seus braços. - Devolve minhas figurinhas - exigiu Pedro Paulo, aos gritos. Aliás, não eram somente as suas que ele queria, mas também a estampa difícil que não conseguira ganhar no jogo. Na verdade, o trio não deu ao Beto sequer a chance de dizer não ou de fazer qualquer protesto. Os três caíram sobre ele a socos e pontapés, arrancando a mochila onde o menino havia guardado as figurinhas. Caído no chão, sem meios para reagir, Beto viu Pedro Paulo despejar o conteúdo da mochila e revirá-lo até encontrar o que desejava. Colocou no bolso da bermuda o produto do saque e sorriu, triunfante. Então, o trio se deu por satisfeito e fugiu correndo. Amargurado, Beto levantou-se, recolheu seus pertences retomou o caminho de casa. Ao chegar, nem disse o seu oi" tradicional à empregada que lhe abriu a porta. Como a mãe estava em São Paulo, visitando a avó, o menino trancou-se em seu quarto, decidido a esperar o pai e contar o que havia acontecido. Só com ele conseguiria se abrir, pois tinha a certeza de que o genitor saberia compreendê-lo. Álvaro, o pai de Roberto, tocou a campainha de seu lar às oito da noite, como fazia todos os dias, de volta do trabalho. Ao escutá-la, Roberto pulou da cama e correu para abrir a porta, atropelando a empregada. O menino abraçou-se ao adulto, aos prantos, tentando costurar, numa série de frases nervosas desconexas, a narrativa do terrível acontecimento do dia. Entretanto, o pai nem lhe deu tempo para isso. Mal o filho se pôs a chorar, empurrou-o para longe de si, exclamando, espantado: - O que é isso, meu filho?... Homem não chora! Isso é coisa de menina! Beto só conseguiu contar a desventura das figurinhas dez minutos mais tarde, quando recobrou a calma - o que teve de fazer sozinho, por sinal. - Só vou falar com você, quando você tiver se controlado e estiver se comportando como um homem - foi a advertência que o pai fez ao menino: Este escutou calado, tentando reprimir o choro. A reação de Álvaro diante do desespero do filho foi certamente a "grande lição" que o menino recebeu naquele dia. A mensagem que o pai lhe passou era clara e evidente: Beto não tinha o direito de apresentar a ninguém suas fraquezas, incertezas, temores e angústias. Ao contrário, devia se mostrar impassível e forte, se quisesse obter a oportunidade de ser escutado. Vale notar que essa "grande lição" foi ministrada ao "aluno" de duas maneiras. Uma explícita, no discurso do pai que profere o lugar-comum sobre o fato de um homem não poder demonstrar seus sentimentos ou fraquezas. Outra implícita na própria figura insensível e firme do "professor", que é ninguém menos que um dos principais modelos de conduta de que o menino dispõe: seu pai. Assim, na mente de Beto, a situação acaba se configurando da seguinte maneira: "Meu pai é grande, é forte, não expõe suas fraquezas, não se desespera. É assim que um homem deve ser. Apanhar pode até fazer parte da vida de um homem. Perder, ser roubado também. Mas chorar por causa disso, não. É preciso ser forte, controlado, duro. É assim que eu tenho de ser. A máscara do endurecimento forma-se assim, anestesiando-o contra a dor (às vezes até física) que ele sentiu. Tô morrendo de medo: deixa a luz acesa De modo geral, o que contamos do Beto aplica-se com variações em outras tantas situações similares. Essa é a conduta que se espera do menino, essa é a primeira máscara que lhe é imposta. Esses estímulos, essa mensagem é recebida pelo menino de maneira quase mítica, como um ritual. Para sua imaginação infantil, é como se estivesse ouvindo uma voz de trovão, que vem do além, e lhe dá uma ordem absoluta, uma determinação imperativa, que ele - à semelhança dos povos primitivos - recebe como uma revelação e um mandamento divino. Trata-se efetivamente de um ser primitivo - o menino - que está recebendo uma ordem e que vai aceitá-la, de modo a determinar a partir dela todo o seu percurso de vida. Por fora, na aparência, ele tem de demonstrar firmeza e impassibilidade, independentemente do fato de - por dentro, na essência - ele estar dilacerado. Por dentro, há dor, angústia, vontade de berrar e uma terrível vergonha de se importar com aquilo que os outros meninos fizeram e fazem com ele, além do medo daquilo que eles ainda vão fazer. Não por acaso, a hora de dormir é um momento em que essa situação latente se manifesta de maneira mais clara. Isso ocorre quando a criança já passou dos quatro, cinco anos e não está mais naquela fase do choro característico dos bebês, embora pareça retornar a ela. É na solidão de um quarto escuro que a angústia e a incerteza vêm à tona. Para a maioria dos meninos, a hora de se deitar constituium momento que ele procura adiar, por artifícios diversos. Por isso, muitos meninos fazem questão de dormir com a luz acesa e a televisão ligada, de modo a exorcizar seus mais íntimos fantasmas.{8} Por outro lado, essa atitude deixa perdidos ou chocados, quando não irritados, os pais, que geralmente aproveitam a ocasião para incrustrar outra vez no filho a máscara da firmeza e da coragem, uma vez que não têm acesso ao verdadeiro significado da situação. Mais uma vez, tendem a encarar como fraquezas as solicitações de amparo e carinho, as quais, na verdade, são reações normais diante da situação a que a criança se vê exposta. Sem chorar nem rir Basicamente, é no terreno do medo que as máscaras se instalam. Mas, em consequência do medo - que o menino não deve sentir, de acordo com as mensagens que recebe - surge ainda a vergonha. Se o medo é o terreno, a vergonha é o clima, e essas duas emoções juntas formam o ecossistema em que as máscaras vão florescer como ervas-daninhas. Em geral, com o passar do tempo, a máscara conseguirá encobrir o medo de maneira que seu usuário não o perceba. Ela prolifera, desenvolve-se, entremeia-se nela mesma, tece e entretece com uma tela das mais resistentes. A vergonha, porém, tende a se transformar numa companheira. Uma companheira da qual o homem dificilmente vai se libertar. Uma sombra que denuncia tudo que ele mais quer esconder. Só se livra dela, se conseguir, depois de um longo trabalho terapêutico, desde que também tenha o privilégio de uma relação profissional de profunda confiança. A esta altura, é importante acrescentar que, além do medo e do choro, há também outros afetos sujeitos a se tornarem alvos do tiroteio repressivo inerente à educação dos meninos. Mesmo emoções e sentimentos de caráter mais positivo, como a alegria, o deslumbramento, o fascínio, o entusiasmo, acabam enfrentando os mesmos obstáculos ao se manifestarem. Por exemplo, Duda vai a um cinema assistir a um filme de super-herói, em que predomina a mágica, a fantasia, com efeitos especiais de grande beleza. As imagens o fascinam. Mas ao tentar comentar com um adulto esse deslumbramento que sentiu, Duda vai escutar comentários do tipo: "Como você é bobo! Como pode se entusiasmar com cenas tão fantásticas, que não têm nada a ver com a vida real?!" Da mesma maneira, Edu que foi a um acampamento - os pais de hoje em dia costumam fazer questão de enviar seus filhos a acampamentos de férias - e ficou fascinado com a natureza que encontra no campo: com o céu azul, as cores das plantas, das árvores e das flores, a beleza do sol etc. Então, escreveu uma carta para a mãe, contando extasiado suas experiências e as emoções que sentiu com elas, mas recebeu uma resposta indignada dos pais: "Mas como? Você foi aí para brincar com outros meninos, para praticar esportes, e fica ligando para essas bobagens... Estamos muito preocupados com você." Por sua vez, diante de uma mensagem como essa, o menino só podia pensar: "Então eu não devia me entusiasmar com nada. Não era correto eu me entusiasmar, principalmente se o motivo se ligava a sensações, afetos e emoções..." Em outras palavras, não se tratava somente de que "homem não chora". Para a sociedade, homem também não pode sorrir, não pode se entusiasmar, não pode ficar alegre. Quem sabe, não pode ter prazer, nem amar. Pesquisas recentes refletem muito bem essa situação indicando que, no convívio social, os meninos são sempre mais introvertidos do que as meninas que, ao contrário, apresentam tendência majoritária à extroversão. Meninas são um saco... Existem vários dados estatísticos muito significativos sobre as diferenças no processo educacional de meninos e meninas. Deixando de lado os números precisos, que não vêm ao caso, é interessante apontar que, da educação infantil ao ensino médio, os meninos apresentam médias inferiores às das meninas. Particularmente, as notas dos meninos são piores em leitura e redação, não por acaso, duas disciplinas que estão diretamente ligadas à expressão emocional e à sensibilidade. Encaradas pela família e pela sociedade de modo completamente oposto às crianças do sexo masculino, as meninas têm o direito de expor os sentimentos e de comportarse de maneira afetiva. A elas, é permitida maior e mais prolongada proximidade com a mãe, assim como lhes é concedido o direito de chorar, sorrir ou, enfim, emocionar-se. Elas também não são obrigadas a cultuar os espaços exteriores, podendo permanecer e brincar em casa quando quiserem. Para os meninos, essa oposição fica bem clara e a tendência deles é encarar as meninas como um modelo inverso ao que eles têm de seguir. Por isso, na primeira infância, os garotos não conseguem se interessar por meninas, considerando-as "um saco", conforme dizem. Afinal, elas não têm de ser fortes, não têm de correr, não têm de lutar, não têm de enfrentar a vida como os homens. "Meninas são chatas!" Desse modo, os meninos vão construindo suas relações sociais de maneira caótica e contraditória. A mensagem que lhes é incutida deixa claro que eles devem se relacionar com seus semelhantes, criaturas que os humilham, que lhes dão chutes e socos. É a esse bando que eles pertencem e, por isso, é entre seus inimigos que os meninos, paradoxalmente vão encontrar os seus amigos, formando o que se poderia chamar de a "turma dos mascarados". Para entrar nessa turma, o menino fará um grande esforço adaptativo e tomará como modelo os colegas que se destacam nas atividades esportivas, no futebol, que correm, chutam, gritam, que conquistam os espaços exteriores - a rua, o pátio, a quadra, o campo -, que expulsam as meninas do seu convívio, pois elas são frágeis e sensíveis. Sendo esse o universo dos meninos, não são de espantar outros fatos apontados pelas pesquisas sobre a infância: eles são três vezes mais vítimas da violência do que as meninas (embora, em contrapartida, as meninas sofram mais abuso sexual). Mas poderia ser de outro modo? O seu mundo, o mundo que eles são forçados a construir é intrinsecamente violento. E a sociedade espera que ele esteja preparado para essa violência. Por isso, incentivam-se os meninos a participar de atividades físicas, esportivas, grupais e sociais que contenham atitudes e comportamentos violentos. Por isso, eles são estimulados a ter uma liberdade que, realmente, é a liberdade de estar exposto à violência. Começam também a surgir contatos físicos e percepções de uma sexualidade brotando. Irritação e impulso se confundem.{9} O caos da sexualidade emergente Os anos finais da infância e a pré-adolescência constituem uma fase da vida marcada pelos primeiros movimentos sexuais. Suas manifestações se dão no nível fisiológico, com as primeiras sensações de excitação. Entretanto, elas também emergem nos níveis psicológico e social. A maneira como isso ocorre, no plano psíquico, é variável de acordo com a personalidade de cada um. Socialmente, porém, vamos encontrar uma imensa interferência dos códigos de conduta especialmente formulados para as crianças do sexo masculino. É pelo contato com amigos e colegas que o menino vai formar suas primeiras noções acerca da sexualidade, em geral, distorcida. São informações muito novas, fascinantes, sigilosas, perigosas. Altos conluios, grandes segredos. Muitas palavras não ditas. Silêncio. Escuro. Sensações de prazer proibido sem identificações precisas. Mensagens subliminares que permeiam a mentalidade masculina, a mídia, de um modo geral, e, maisespecificamente, as publicações e/ou filmes e vídeos de caráter erótico-pornográfico. Encontros cinestésico-sensoriais, disfarçados toques ou contatos físicos impronunciáveis. Assim, nessa faixa etária, a sexualidade irrompe de maneira caótica e indiscriminada, cujos objetivos não estão claramente definidos. A masturbação é, na maioria dos casos, a iniciação sexual dos meninos e, além dos movimentos físicos, ela comporta também um verdadeiro exercício da imaginação infanto-juvenil. As vagas noções de sexualidade dos garotos dessa faixa etária os levam a dirigir seu interesse pelo sexo oposto, embora não às meninas de sua idade, mas àquelas mais velhas, que já têm acentuadas as formas femininas. Entretanto, é importante ressaltar que o modo indiscriminado de irrupção da sexualidade também se dá de maneira subreptícia ou implícita nos contatos corporais que os meninos têm entre si. O contato corporal, seja nas práticas esportivas ou nas brincadeiras de luta, possibilitam grande aproximação física e substituem, em muitos casos, a energia sexual. Também são frequentes, entre os meninos dessa faixa etária, os contatos sexuais de caráter mais explícito, conhecidos popularmente como "troca-troca". Para muitos, esse tipo de experiência é absorvido com naturalidade e superado com o passar do tempo. Para outros, entretanto, esses contatos sexuais têm caráter traumático, despertando sentimentos de culpa e vergonha que podem se transformar em fantasmas que vão assombrá-los até a maturidade, só podendo ser exorcizados quando, ao longo de específicos processos terapêuticos, podem finalmente encará-los ou desmascará-los. De qualquer modo, o importante a observar aqui é a relevância desses momentos iniciais da sexualidade e seu caráter caótico e indiscriminado, sujeito ou submisso aos códigos de conduta impostos aos meninos. Esses momentos, que os estudos masculinos não valorizavam até recentemente, são decisivos na modelagem das máscaras do homem. As manifestações iniciais da sexualidade, caso não sejam bem orientadas e resolvidas, podem se transformar em verdadeiros dragões que lançam chamas ameaçadoras sobre a identidade masculina. Contudo, as questões relacionadas à sexualidade vão emergir de maneira mais clara numa fase posterior da vida individual, a adolescência, focalizada no capítulo a seguir. DOIS - O desafio da adolescência. O código dos meninos Cláudio, 37 anos, é médico e mora na cidade de Santos, no litoral paulista. Tem o consultório perto de sua residência e, portanto, pode-se dar ao luxo de almoçar em casa todos os dias. Ao meio-dia e meia de uma manhã de julho, quando estacionava seu automóvel na frente de casa, pôde observar pela janela do veículo que sua filha, Mansa, de nove anos, brincava com duas amigas no quintal, enquanto o filho, Arnaldo, cinco anos, estava agachado na calçada, com os braços cruzados sobre os joelhos, onde escondia a cara, numa pose de tristeza e desânimo. O médico desceu do carro e aproximou-se do menino, acariciando seus cabelos. Perguntou de imediato: "Mas o que é que houve, Naldinho? Você está chorando? Estava brigando com sua irmã?" O menino levantou a cabeça e olhou para o pai, revelando os olhos vermelhos, dos quais as lágrimas ainda escorriam. Entre soluços, ele procurou explicar a Cláudio o que se passava: "Pai, a gente estava brincando de casinha... A Mansa era a dona da casa e estava recebendo a visita das amigas. Eu era o dono da casa e elas disseram que eu tinha de sair. Não podia ficar em casa porque sou homem e lugar de homem é na rua. Daí, eu acabei ficando sozinho aqui fora, e ainda sem ninguém para brincar comigo..." Verídico, o caso apresentado faz uma síntese de temas básicos do capítulo anterior: como se vê, já na infância, fica estabelecida a percepção, a princípio inquestionável, de que lugar de homem é na rua, no mundo. O pequeno Arnaldo aceita a imposição que lhe é feita pela irmã e as amigas. Entretanto, ao ver-se fora, não consegue evitar o medo e a tristeza, não pode deixar de sentir-se isolado, só e... excluído. Em geral, essa é a situação existencial imposta aos meninos em nossa sociedade. Ao estar fora, porém, o menino costuma se defrontar com outros meninos iguais a ele, com os quais desenvolve um relacionamento ambíguo, que comporta interações de conflito e de solidariedade, de modo que os encara simultaneamente como amigos e inimigos. É nesse meio social que vão se solidificar as normas ou injunções de um código, ao mesmo tempo tácito e explícito, que o psicólogo clínico norte-americano William Pollack, da Universidade de Harvard, definiu como The Boys Gode, "o código dos meninos". Os garotos aprendem esse código nos primeiros momentos da infância, assim que se separam dos pais e passam a frequentar playgrounds, tanques de areia, parquinhos, salas de aula, acampamentos, festinhas e reuniões. Segundo este receituário, que oferece os fundamentos das diversas máscaras de que o homem se utilizará ao longo de toda a vida, há quatro imperativos a serem seguidos: 1. Os homens devem ser estoicos, heroicos, estáveis e independentes. Em outras palavras, devem estar preparados para suportar pacientemente todas as adversidades da vida, sem se deixar abalar por elas. Não podem mostrar fraqueza e nem compartilhar suas emoções com ninguém. 2. Os meninos têm que ser sólidos como rocha. Isso significa, na verdade, mostrar-se completamente impassível e inabalável. Nada lhes importa, nada lhes diz respeito. Desse modo, sua postura se assemelha à de modelos que encontramos no cinema, em personagens interpretados por John Wayne, Clint Eastwood e Bruce Lee - heróis solitários e invulneráveis em seu íntimo, o que lhes permite enfrentar toda sorte de perigos e qualquer inimigo, por mais terrível que seja. 3. A vida é uma roda-gigante! As diversas situações que a vida apresenta têm de ser encaradas como o "momento de decisão", a "grande rodada". Transformando todas as situações em momentos decisivos, os meninos liberam de modo extremado sua agressividade e agem de modo a evitar a vergonha a qualquer custo, reprimindo os sentimentos de fracasso. Só assim sentem que podem realizar conquistas e atingir o status, o domínio e o poder. 4. Homem tem que ser macho! Nada de "bichice": sentimentos e comportamentos afetivos, como empatia, compaixão, carinho, são entendidos como femininos, homens não devem experimentá-los e, caso os experimentem, estão ameaçados em sua masculinidade, devendo considerar-se efeminados. Evitar supostas manifestações de "efeminação" ou "homossexualismo" é a palavra de ordem. Os imperativos deste código constituem verdadeira camisa-de-força que impede os meninos de expressar seus sentimentos, os quais, embora sejam naturais e legítimos, acabam por provocar-lhes vergonha. Esta, por sua vez, vai gerar no garoto a baixa confiança e a baixa autoestima, o que moldará personalidades com tendência ao isolamento, à introversão, à solidão e à tristeza. Esse modo distorcido de encarar a masculinidade é reforçado nas mais diversas situações, criando um círculo vicioso que, em inúmeros casos, jamais poderá ser quebrado. Além disso, pode estabelecer percepções paradoxais da realidade, com consequências desastrosas não somente para o equilíbrio mental do menino, mas também para sua saúde física. Os estudos psicológicos na atualidade têm demonstrado a relação entre a autoestima e o sistema de defesa do organismo eressaltado as possibilidades de somatização das emoções negativas. O caso de Levi é exemplar, foi apresentado pela própria mãe a seu terapeuta. Até a entrada na escola, Levi havia apresentado uma saúde normal, não tendo demandado mais do que os cuidados médicos de praxe até os sete anos, data de sua entrada na escola. A partir daí, tornaram-se constantes manifestações alérgicas, gripes e resfriados, além de frequentes problemas gastrointestinais. Interessado nos problemas do filho de sua paciente, o terapeuta da mãe procedeu a um levantamento da rotina do menino. Descobriu que, quando ele se encontrava em perfeitas condições de saúde, não só tinha de frequentar a escola, como também seguir uma rotina rígida. Esta incluía cursos de inglês e informática e prática de natação, o que o mantinha afastado de casa cerca de sete horas diárias. Ao contrário, quando o menino se mostrava doente, os pais aceitavam serenamente que ele faltasse às atividades diárias. Não só não lhe eram feitas cobranças acerca de seu desempenho na escola, nos cursos e nos esportes, como também lhe era permitido fazer o que normalmente não podia. Levantar da cama mais tarde, assistir aos programas na televisão antes e depois do almoço, além de permanecer ao lado da mãe praticamente o dia inteiro, desde a hora de acordar até a hora de dormir. Mais ainda, de volta do trabalho, o pai também se tornava carinhoso com ele, procurando-o no quarto, conversando com ele, com beijos e abraços. Tendo percebido a diferença de rotina e do tratamento dado a Levi pelos pais, na saúde e na doença, o terapeuta não teve dificuldade de mostrar à mãe o que estava acontecendo e de que modo se processavam na mente do menino as informações sobre seu modo de vida. Assim, tornou-se fácil explicar à paciente os motivos por trás de uma frase de Levi, que ela não conseguia entender e considerava extremamente preocupante: "É tão gostoso ficar doente!" Havia dito o menino à mãe, em tom de lamentação, ao recobrar-se de um resfriado e ver-se mais uma vez forçado a retomar sua rotina exaustiva, distante da casa e dos pais. Crescimento e mudança Os pais temem dar amor em demasia a seus filhos, achando que isso "estraga o menino". Consideram que o amor "em excesso" pode transformá-los em pessoas frágeis e dependentes. Essa percepção não tem nenhum fundamento sólido. Em primeiro lugar, o amor não é um fenômeno quantitativo, que se possa medir a ponto de determinar qual é o nível ideal para ele ser transmitido, ou quando se ultrapassa esse limite e se atingem níveis excessivos. Em segundo lugar, o amor é a própria essência do ser humano. Dar amor jamais pode ser prejudicial e não estraga ninguém em hipótese alguma. Ao contrário, a falta de amor alimenta sentimentos prejudiciais, como o ressentimento e o ódio, estimulando a agressividade. Quanto maior a proximidade - não só física, mas também afetiva - do pai e da mãe na infância dos filhos, tanto menor será a tendência de os meninos se afastarem dos próprios sentimentos. E depois, mais tarde, de si mesmos. A presença física e afetiva dos genitores diminui a possibilidade e a necessidade de se criarem máscaras a todo momento. Assim, nunca é demais retornar ao momento decisivo que se localiza na fase pré-escolar e no início da escola, quando ocorre a separação do menino em relação à mãe. Esse momento altamente traumático para o filho - que até recentemente não havia recebido a devida atenção dos estudiosos - também pode ser analisado por outra ótica que não a da própria criança: o ponto de vista materno. Em geral, as mães parecem aceitar passivamente a separação de seus filhos, por considerá-la necessária e útil. Elas querem que seus filhos se transformem em "homens", ou seja, que eles venham a ser "fortes", "atléticos", "machos", e acreditam que o sofrimento da separação pode ajudar nisso. Por outro lado, se observarmos a questão de modo mais atento, perceberemos que também para as mães o momento está repleto de conflitos. Ao lado do que entende como "masculinidade", ao lado do desejo de que seu filho seja um "homem" forte e estável, ela também deseja para o menino aquilo que espera de seu companheiro, isto é, que seja um homem sensível, carinhoso, compreensivo, que não tenha vergonha de demonstrar seus sentimentos. Por isso, a conduta da mãe, no momento da separação, costuma ser marcada pela ambiguidade, pelas ações em sentidos opostos, buscando ao mesmo tempo permitir o afastamento do filho e também impedi-lo. Essa ambiguidade confunde ainda mais a mente da criança, que se sente perdida diante dela ("Minha própria mãe tem dúvidas sobre como devo ser.") e não consegue encontrar aí um ponto de apoio para romper com as mensagens machistas que o bombardeiam de todos os lados. Desse modo, as informações que recebe no convívio social e familiar durante toda a infância serão transportadas pelo menino para a sua adolescência, na qual se deflagra um processo de endurecimento, como reação à supressão de suas carências de afeto, às humilhações que sofreu no convívio social imposto, à auto inibição de seus sentimentos. Ademais, para o rapaz, a adolescência é marcada por outra separação tão traumática quanto a anterior. Se, no período infantil, a separação da mãe é o que mais pesa na criança, durante a adolescência, é a separação em relação ao pai que terá destaque. Se, na infância, o pai costumava abraçar e beijar o filho, na adolescência, esta proximidade física já não vai existir tanto. Ambos se sentirão incomodados: o pai com medo de torná-lo menos másculo, o filho com vergonha do que os outros podem pensar dele. Na infância, a distância entre o pai e o filho também decorre do papel social do homem, do trabalho e do próprio aumento de suas responsabilidades econômicas que advém do nascimento de um filho. Na adolescência, esta distância vai aumentar de maneira exponencial, pois para isso vão concorrer atitudes tanto do pai quanto do filho. "Meu filho é um vagabundo" Durante a adolescência, diante do processo de mudanças pelo qual passa seu filho, o pai tem ainda maior temor de lhe demonstrar proximidade ou carinho. Em geral, em relação ao filho jovem, o homem vai demonstrar três tipos de atitude. A mais conhecida delas é a da projeção, isto é, a do pai que empurra o filho para fazer o que ele fez ou gostaria de ter feito. Trata-se dos pais que impõem ao filho uma profissão ou o desenvolvimento de qualquer atividade que agrada a eles, pais, independentemente da vontade ou da vocação do filho. - Meu filho é igualzinho a mim. - Meu filho puxou ao pai. - Meu filho vai ter a oportunidade de ser tudo aquilo que eu não fui. Essas são frases características desse procedimento paterno que mascaram uma atitude de incompreensão e de autoritarismo. Nas duas primeiras, por trás de uma suposta igualdade, existe efetivamente uma imensa necessidade de autoafirmação que usa o filho como instrumento e desconsidera as diferenças existentes entre ambos. Por aí também transcorrem o desejo e o alívio das ansiedades paternas em ver o pleno desenvolvimento heterossexual do filho. Vê-lo em um namoro ou, às vezes, em relações sexuais, mesmo com prostitutas, aliviam o receio da homossexualidade. A primeira relação sexual do filho muitas vezes é um grande alívio para os pais. Só que nem sempre tem um significado real nessa questão, além de propiciar o desenvolvimento de máscaras que não serão nada úteis em futuras relações amorosas.Na terceira frase, dar uma pretensa "oportunidade e, na verdade, uma forma de impor sobre o filho a vontade do pai, o seu desejo, o seu projeto de vida não realizado. Mais uma vez, o menino acaba sendo usado para realizar "missões" que não são suas, pelas quais ele não escolheu. Em outras palavras, acreditando fazer o que é melhor para o filho, o pai está realmente colocando-o para fazer o que é melhor para ele mesmo. Essa atitude conduz necessariamente ao distanciamento entre os dois, pois o filho, mesmo fazendo o que o pai quer, não pode deixar de desenvolver certo ressentimento e revolta em relação ao genitor, que não compreende seus verdadeiros anseios e impõe-lhe o caminho que terá de seguir, em geral, para toda a vida. Outra típica atitude paterna é desvalorizar tudo aquilo que o filho faz, alegando sempre ter feito melhor, quando tinha a mesma idade. Trata-se daqueles pais que, ao ver o filho chegar em casa com uma nota 9,0 no boletim escolar, dá uma risadinha de desprezo e diz: "Só isso? No meu tempo, eu sempre tirava dez nessa matéria..." Essa atitude pode estar associada à anterior, isto é, uma vez que o filho não segue as pegadas do pai, resolvendo avançar por caminhos próprios, estes passam a ser desmerecidos pelo genitor, que não os considera válidos ou relevantes. Não importa o que o filho faça, se não é o que o pai quer, não tem valor. É o que vemos no depoimento de Flávio Augusto, contador, 48 anos, sobre seu filho Ricardo, 25: "Procurei dar a melhor educação ao Ricardo e trabalhei muito para isso. Queria ver o menino se formando numa universidade e ganhando o título de doutor. Dei a ele liberdade para escolher o que queria. Podia ser advogado, médico, engenheiro, enfim, a carreira que lhe agradasse mais. Paguei as melhores escolas, desde o primário até o ensino médio. Mas você pensa que adiantou alguma coisa? Adiantou nada. Aquele ali só vai pela cabeça dele, o Ricardo nunca quis saber de estudar... Quando estava fazendo cursinho, aos dezoito anos, o Ricardo, junto com um amigo, resolveu montar uma loja de roupas femininas, sei lá por quê. Os dois arrumaram dinheiro: Ricardo tirou de uma poupança que a mãe fez para ele, o outro eu não sei. Alugaram um ponto numa rua do bairro, compraram estoque e abriram as portas do seu comércio. Eu não fui propriamente contra o negócio. Tinha dito para o Ricardo que tudo bem. Se ele queria ganhar um dinheirinho a mais, não tinha problema algum. Era bom, até me ajudava um pouco, mas deixei sempre bem claro que aquilo não podia atrapalhar os estudos. Ele estava às vésperas do vestibular, precisava estudar bastante para poder entrar numa boa universidade e ter um diploma, afinal. Mas o garoto era mesmo um cabeça- dura. Não queria saber de estudar. A história da loja funcionou como pretexto para ele deixar os estudos de lado. Ele fez o vestibular, entrou na faculdade, mas nem chegou a passar do segundo ano. O comércio estava dando certo. Depois de três anos ali, na rua do bairro, ele e o sócio resolveram abrir outra loja num shopping e estão lá até hoje, tocando os dois estabelecimentos, vendendo roupas femininas, coisas finas, de madame. Parece que vão abrir uma terceira loja daqui a dois meses. É isso. O Ricardo não estudou, não tirou diploma. Virou um simples comerciante. Fica esfregando a barriga no balcão de segunda a sábado, isso quando não abre aos domingos. Não quer saber de nada. É um cabeça-dura." Na continuação deste mesmo depoimento, que transcrevemos apenas em parte, o contador Flávio Augusto ainda chegou a revelar que Ricardo ganha mais do que ele, apesar da profissão que escolheu, pois é alguém de tino para os negócios e fez sucesso no comércio. Isso, entretanto, não foi valorizado, ao contrário, foi desmerecido o desempenho do filho, já que este optou por uma área não planejada inicialmente pelo pai. Essa atitude de desmerecimento também pode se radicalizar, chegando ao ponto de o pai anular por completo as conquistas do filho, não as reconhecendo de modo algum, por mais evidentes que elas sejam. Outro depoimento paterno exemplifica o fenômeno. Eis as palavras de Reynaldo, 52 anos, engenheiro mecânico, sobre seu filho Luís Felipe, 23: "O Luís Felipe é um vagabundo. Nunca quis saber de nada. Desde pequenininho, só queria saber do mar. O negócio dele era praia e água. Aos dezesseis anos, me pediu para fazer um curso de mergulho e eu deixei, claro que deixei. Sempre fiz todas as vontades dele. A única condição que eu impunha era a de ele estudar, tirar notas boas na escola. Ele até que não ia mal na maioria das matérias, mas, depois que começou essa história de mergulho, as coisas mudaram. Era mergulho, mergulho, mergulho. O moleque só pensava nisso. Não queria saber de mais nada. É um vagabundo o Luís Felipe! E olha que eu nunca desestimulei. Deixava-o mergulhar á vontade, contanto que se dedicasse também a assuntos mais sérios, pensasse em uma profissão, em ganhar dinheiro para fazer a vida, não passar necessidades no futuro. Dei até um barco para ele! Agora, dizer que vale a pena ele mergulhar, que isso é algo que preste... Isso eu nunca disse porque não acho que é. Para que serve isso? Não serve para nada, sem falar que é perigoso. Qualquer dia desses, o Luís Felipe se dá mal. Mas ele não está nem aí. É um vagabundo, não quer saber de mais nada. Hoje, o Luís Felipe está com 23 anos. Para me contrariar, abandonou os estudos e abriu uma loja de material para mergulho, máscaras, pés-de-pato, cilindros de oxigênio, essas coisas... Pode?" Independentemente da opinião de Reynaldo, que não sabe para que serve a atividade do filho, Luís Felipe obteve sucesso no comércio e na importação de materiais para mergulho. Sua loja especializada no ramo é uma das maiores de uma grande capital brasileira. Vale notar também que o "vagabundo" ganhou diversos troféus e medalhas em torneios de mergulho e de caça submarina. O fato é que, de maneira geral, os pais estão apegados a uma visão convencional do conhecimento, da inteligência e do trabalho, que nem sempre corresponde às novas realidades. Hoje em dia, é comum o jovem adquirir rapidamente habilidades que o pai não tem (casos frequentes se relacionam ao mundo dos computadores e da informática) e desenvolvê-las à sua maneira. Esse desenvolvimento acaba não sendo reconhecido pelos genitores que estão apegados a modelos tradicionais, não conseguindo perceber a evolução dos filhos. Evidentemente, se não há percepção das habilidades dos filhos, os pais também não podem estimulá-los, nem os auxiliar a leva-las adiante. Ao contrário, tendem a questioná-los e a criticá-los, o que gera ainda mais confusão na cabeça dos rapazes. Desse modo, desaparece por completo a possibilidade de amizade e de entendimento entre pai e filho. Quando o próprio pai tenta esboçar gestos de aproximação, a reação do adolescente pode ser surpreendente e inesperada. A confusão que existe no relacionamento dos dois pode beirar os limites do non-sense. Um cartum de Miguel Paiva, publicado no Jornal do Brasil, capta com bom humor e grande poder de síntese essa realidade. O desenho mostra um pai, carente, tentando aproximar-se do filho, propondo-lhe: - E aí, filho... Podíamos sair, pegar um cinema, tomar um sorvete e depois comer um sanduba... Ao que o filho, mal-humorado, responde: - Qualé, pai? Caretice! Vou sair com a turma! Pegar um cinema, tomar um sorvete e depois comer um sanduba, sacou? Outra situação significativa de distantes visões da realidade: "Puxa, pai A gente
Compartilhar