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Vinte anos da Lei de tortura

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Vinte anos da Lei de tortura: o que temos a dizer
Em 7 de abril de 1997, foi promulgada no Brasil a Lei 9.455, que passou a tipificar o crime de tortura, antes considerado pelo Código Penal apenas uma qualificadora. A lei surgiu da comoção de um episódio que ficou conhecido como “Caso da Favela Naval”, em que policiais militares torturavam e intimidavam moradores da região de Diadema. As cenas de violência foram gravadas e transmitidas por jornais de impacto nacional.
À época da aprovação da lei, muitos pontos foram tema de debate. A Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Crueis, Degradantes ou Desumanos, recepcionada em nosso ordenamento por meio do Decreto nº 40, de 15 de fevereiro de 1991, estabelecia como tortura“qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência” (art. 1º).  A Lei nº 9.455/97, por sua vez, não considerou o crime de tortura como crime próprio – no sentido da prática ser restrita apenas a agentes de Estado, como dispõe a Convenção.
O fato de a legislação não acompanhar a definição da tortura presente nos Tratados Internacionais ratificados pelo Brasil gerou discussões sobre a imposição da seletividade dos casos de tortura que chegariam ao sistema de justiça criminal e como seriam tratados aqueles envolvendo agentes do Estado.
Considerada genérica e pouco efetiva na definição do crime de tortura, especialistas já apontavam os problemas relacionados à eficácia da lei para a devida apuração, investigação e processamento dos casos, sobretudo aqueles envolvendo agentes do Estado. Da forma como foi disposta, a legislação deixaria a critério dos intérpretes da lei – especialmente juízes -, a caracterização do caso como crime de tortura.
Franco (1997), Shecaira (1997), Juricic (2002), Cabette (2006) e Burihan (2008), somente para citar alguns, destacaram que as divergências entre a lei brasileira e as Convenções internacionais contra tortura abriram a possibilidade de que qualquer pessoa poderia ser processada segundo essa lei, independentemente de ser ou não agente do Estado, já que a lei ordinária optou por uma classificação do crime como comum, e não como próprio, conforme os Tratados internacionais.
Luciano Mariz Maia (2006) destacou que uma das principais consequências da lei da forma como foi promulgada era o grande número de condenação de casos de violência doméstica como crime de tortura, ofuscando, assim, os casos que envolviam propriamente agentes públicos. Anos depois, pesquisas confirmaram essa possibilidade. O estudo “Julgando a Tortura” (2015) demonstra que os agentes públicos acusados por crime de tortura têm mais chance de serem absolvidos do que os não agentes, sobretudo nos tribunais superiores.
A pesquisa indica que a falta de provas e a falta de empenho das instituições de segurança pública e justiça na apuração dos casos envolvendo agentes públicos contribuem para esse resultado. Além disso, há um julgamento entrelaçado ao processo que diz respeito ao perfis das partes envolvidas. Se a vítima é um suspeito ou alguém que estava preso, há uma tendência de juízes e promotores não acreditarem na versão da vítima em detrimento da do agente público. Essa desqualificação impacta na forma como os casos são apurados, processados e julgados.
A falta de empenho das autoridades em apurar denúncias de tortura está presente também nos resultados de outras pesquisas. Recente trabalho publicado pela Conectas, chamado “Tortura blindada” (2017), demonstra que promotores e juízes, inclusive defensores, pouco se preocupam em apurar denúncias de violência policial mencionadas pelos acusados em audiências de custódia. O juiz deixou de perguntar se houve violência em 33% dos casos analisados. Em 91% dos casos, foi o promotor quem deixou de perguntar. Há também uma desqualificação das denúncias.
Outra função institucional necessária à prevenção e ao combate à tortura e que merece cada vez mais atenção é o controle externo da atividade policial, que deve ser exercido pelo Ministério Público, como dispõe o art. 129, VII da Constituição. No entanto, em pesquisa divulgada em dezembro de 2016 intitulada “Ministério Público: guardião da democracia brasileira?”, o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESEC/UCAM) apurou, dentre Promotores de Justiça e Procuradores da República entrevistados, que a prioridade em suas atuações é o combate à corrupção (62%). Apenas 7% dos entrevistados declararam que o controle externo da atividade policial é sua atual atividade exclusiva, e 24% disseram desempenhá-la em conjunto com outras funções institucionais.
A audiência de custódia pode ser considerada um avanço para a identificação da tortura, apesar dos desafios apontados pela pesquisa da Conectas. Mas, além dessas audiências, tivemos alguns avanços institucionais nos últimos anos, como a aprovação da Lei nº 12.847/2013, que institui o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, cria o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Os relatórios produzidos pelo MNPCT apontam e expõem a falência do sistema carcerário, que traz em seu cotidiano práticas de violência institucional que violam a Lei nº 9.455/97 e a Lei de Execução Penal. Relatórios internacionais indicam a criação da lei como avanço necessário, mas ainda há muito o que se fazer para ampliar a atuação destes entes, criar Comitês Estaduais de Prevenção e Combate à Tortura e reforçar a importância de uma atuação direta do Ministério Público em relação ao controle externo da atividade policial, uma de suas funções institucionais.
Há outra questão que merece atenção: o SPT recomenda, desde 2000, que o Brasil assegure a independência dos Institutos Médico-Legais em relação às polícias, a fim de garantir que o exame de corpo de delito não seja acompanhado por um policial, em caso de tortura. Além disso, os protocolos de realização destes exames devem observar o exame de lesões internas, externas e devem prever a investigação de tortura psicológica.
Podemos dizer que nesses 20 anos alguns passos foram dados, o que fortalece a política de prevenção e combate à tortura no Brasil. A lei 9.455/97 pode ser considerada o início dessa jornada, apesar dos problemas identificados em pesquisas quanto à sua aplicação. Talvez o maior desafio esteja na visão das instituições e nos atores responsáveis pela apuração, investigação, processamento e julgamento dos casos de tortura. É preciso mudar a cultura que permeia essas instituições e que tornam a violência policial uma realidade cotidiana.
Carolina Costa Ferreira é Doutora em Direito, Estado e Constituição (UnB) e líder do Grupo de Pesquisa “Criminologia do Enfrentamento” (UniCEUB – DF)
Maria Gorete Marques de Jesus é Doutora em Sociologia e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP
A lei brasileira não incriminou somente atos de tortura praticados por funcionários e agentes da Administração Pública, mas também atos que venham a ser cometidos por particulares, na esfera das relações privadas.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objetivo geral pesquisar sobre os tratados internacionais de direitos humanos contra tortura e como a Constituição Brasileira permite que a legislação nacional edite dispositivos de maior alcance, visando o tratamento justo frente a este crime grave.
No ano de 1948, logo após a Segunda Guerra Mundial, adotada e proclamada pela resolução 217 A (III) a Declaração Universal dos Direitos Humanos veio consagrar os “novos” direitos do ser humano.Neste cenário, onde os direitos inerentes à pessoa humana passam a ser protegidos mundialmente, a tortura foi colocada em discussão, uma vez que feria diretamente os princípios até então consagrados.
A vida, a liberdade e a dignidade da pessoa humana são princípios fundamentais que devem ser observados por todos os cidadãos, sobretudo os membros do Estado. Atos de tortura e as tentativas de praticar atos dessa natureza necessitam serem coibidos, assim as políticas de segurança pública devem fundar-se em tais princípios. A futura monografia terá por objetivo pesquisar a Lei 9.455/97, tratados e convenções internacionais que punem este crime hediondo.
A lei brasileira, embora tipificando o crime de tortura, tornando realidade no campo infraconstitucional o mandamento contido na Constituição se fez inconstante com as recomendações internacionais, contidas nos vários tratados e convenções celebrados, onde se prescrevia a definição do crime de tortura como crime próprio, qual seja, praticado pelo funcionário público na condição de representante do Estado. A lei brasileira estendeu o conceito, passando a contemplar outras modalidades de conduta e alcançando os atos de tortura perpetrados por particulares e movidos por outros, e apenas como agravante o crime cometido por agentes públicos, os apontados como únicos praticantes desse delito nos tratados internacionais. Ou seja, tortura não é só a institucional, qual seja, praticada em nome do Estado ou a pretexto de servir seus interesses, mas também a perpetrada pelo particular e sob pretextos que não sejam os contemplados nos diplomas internacionais.
A adoção da lei que tipificou este crime (Lei 9.455/97) constitui um marco referencial no combate à prática no Brasil, contudo há, de modo geral, um problema de falta de percepção da tortura como um crime grave contra o Estado Democrático de Direito, o Estado deve investigar possíveis infrações realizadas por funcionários públicos com mais empenho e não fazer “vistas largas”.
Neste contexto, pretende-se realizar nesta pesquisa uma análise da tutela jurídica contra a tortura, averiguando o papel do Estado para a garantia e efetivação desses direitos e o combate a esse crime cruel.
Dessa forma, a presente pesquisa será realizada pelo método dedutivo, com aplicação de pesquisa teórica e qualitativa, embasada em livros, artigos, legislação brasileira e internacional.
1. A LEI 9.455/97 E A TIPIFICAÇÃO DO CRIME DE TORTURA
Por força de pressões provenientes dos acontecimentos policiais ocorridos na favela de Diadema, na Grande São Paulo, onde policiais-militares agrediram e cometeram arbitrariedades contra civis, causando grande comoção na sociedade brasileira e até internacionalmente, principalmente porque os fatos foram filmados e transmitidos pela televisão e se propagaram pelos meios de comunicação, o crime de tortura se viu finalmente tipificado pela Lei 9.455/97 de 7, de abril de 1997 (FRANCO, 2007).
A Lei 9.455/97 revogou o artigo 233 do Estatuto da criança e do adolescente que elencava:
Art. 233. Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a tortura:
Pena - reclusão de um a cinco anos.
§ 1º Se resultar lesão corporal grave: Pena - reclusão de dois a oito anos.
§ 2º Se resultar lesão corporal gravíssima: Pena - reclusão de quatro a doze anos.
§ 3º Se resultar morte: Pena - reclusão de quinze a trinta anos (BRASIL, 2011)
Tal dispositivo recebeu várias críticas, por se tratar de norma muito ampla, ferindo, o princípio da reserva legal. O tipo penal do art. 233 limitava-se a dizer “submeter tortura”, sem definir em que consistia a sua prática, ou seja, sem fornecer os elementos necessários para que se extraísse o exato significado de sua expressão tortura (CAPEZ, 2007).
Neste sentido Fernando Capez aduz que:
A lei penal deve ser precisa, uma vez que um fato só será considerado criminoso se houver perfeita correspondência entre ele e a norma que o descreve. A lei penal delimita uma conduta lesiva, apta a pôr em perigo um bem jurídico relevante, e lhe prescreve uma conseqüência punitiva. Ao fazê-lo, não permite que o tratamento punitivo cominado possa ser estendido a uma conduta que se mostre aproximada ou assemelhada. É que o princípio da legalidade, ao estatuir que não há crime sem lei que o defina, exigiu que a lei definisse(descrevesse) a conduta delituosa em todos os seu elementos e circunstâncias, a fim de que somente no caso de integral correspondência pudesse o agente ser punido (2007, p. 654).
O anteprojeto de reforma da parte especial do Código Penal, apresentado em 1994, procurou conceituar em seu art. 186 o crime de tortura como: Todo ato doloroso ou produto de sofrimento físico, como golpes com emprego ou não de instrumentos, choques elétricos, queimaduras, posições forçadas, violação ou agressão sexual, exposição ao frio, submersão em água para produção de asfixia parcial, ataques para o rompimento do tímpano ou qualquer ato equivalente que produza dor ou sofrimento físico, acrescentando, ainda, “sofrimento psíquico, tais como simulacro a ruídos, confinamento, ameaça, observação de torturas alheias, submissão de parentes a violência ou agressões sexuais, ou outros atos equivalentes idôneos a produzir seqüelas mentais”. (BORGES, 2004).
Ao contrário de se ater a um tipo penal de forma livre, como “praticar tortura” ou “tortura”, o anteprojeto enumerava as condutas que caracterizavam o ilícito, descrevendo essas condutas. A Lei 9.455/97 optou por tipos penais abertos descrevendo as condutas a serem analisadas como típicas. (BORGES, 2004).
Até o advento da Lei 9.455/97, não podíamos conceituar o crime de tortura, até porque não existia em nosso ordenamento jurídico como crime autônomo (MONTEIRO, 2002).
Com a nova Lei o crime de Tortura no Brasil foi definido como:
Art. 1º Constitui crime de tortura:
I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:
a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;
b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;
c) em razão de discriminação racial ou religiosa;
II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.
Pena - reclusão, de dois a oito anos (BRASIL, 2011)
O objetivo da lei foi tipificar a pratica de tortura, o bem jurídico tutelado é a integridade física e psíquica da pessoa humana, saúde física e mental, enfim, a vida humana. (MONTEIRO, 2002).
Equiparado aos hediondos, o crime de tortura sofre as restrições da Lei nº 8.072/90, considerando-se inafiançável e proibida à concessão de liberdade provisória. A única inovação da lei de tortura em relação à Lei dos Crimes Hediondos é a possibilidade de o condenado, ainda que iniciando o cumprimento da pena em regime fechado, poder progredir de regime, limitando então o rigor da lei mencionada, cujo critério vem sendo alvo de criticas e apontado como inconstitucional, por negar o sistema progressivo no cumprimento de penas (JURICIC, 2003).
Neste mesmo vértice Alberto Silva Franco:
Guardando a mesma simetria estabelecida no inc. XLIII do art. 5º da Constituição Federal, a Lei 8.072/90 estendeu às figuras típicas do terrorismo, tortura e do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins as restrições mencionadas na regra constitucional. Destarte, nem os crimes hediondos, nem os delitos que lhes são equiparados, comportam anistia ou graça. Da mesma forma, não se permite, em relação a todos esses delitos, a concessão de fiança (2005, p. 116).
Apesar de o Brasil ter várias ratificações e ser signatário de vários Tratados e Convenções, o Brasil levou quase 50 anos para tipificar a conduta criminosa da prática de tortura, desde que se tornou signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, nossa nação cometeu várias atrocidades no que diz respeito à prática deste crime (SILVA, 2011).
Também se percebe que, apesar de quetenhamos tipificado através da Lei 9455/97 o que é tortura, o que não ocorria até então, daí pode ter saído um dos motivos para não proteção de forma prévia da prática de tortura (sob pena de ferir o princípio da anterioridade, "não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal"), poucos são os casos em que se consegue aplicar tal lei, posto que haja a conduta degradante e absolutamente desumana, ou seja, o constrangimento com emprego de violência ou grave ameaça, não estão na maioria das vezes, irrigadas com as circunstâncias elementares necessárias para a tipificação destas condutas como tortura (SILVA, 2011).
A demora da promulgação da lei tornou o Brasil um dos últimos países do Ocidente a tipificar o crime de tortura (BIERRENBACH; LIMA, 2006).
A lei brasileira, embora tipificando o crime de tortura, tornando realidade no campo infraconstitucional o mandamento contido na Constituição se fez em desconforme com as recomendações internacionais, contidas nos vários tratados e convenções celebrados, onde se prescrevia a definição do crime de tortura como crime próprio, qual seja praticado pelo funcionário público na condição de representante do Estado (BORGES, 2004)
Para Flávia Piovesan o crime de tortura tipificado na Lei 9.455/97:
Essa concepção transcende a da Convenção, que demanda, necessariamente, para configuração do crime de tortura, a qualidade de agente público. Parece mais adequada a definição da Convenção, ainda que a lei nacional se mostre mais ampla. Isso porque a gravidade da tortura se justifica ao revelar a perversidade do Estado que, de garante de direitos, passa a ter, em seus agentes, brutais violadores de direitos. A tortura subverte a própria lógica do aparato estatal, que de guardião da lei e assegurador de direitos transforma-se em violador da lei e aniquilador de direitos. Daí a exigência do sujeito ativo do crime de tortura estar vinculado ao Estado, direta ou indiretamente (PIOVESAN, 2011).
A tipificação do crime de tortura pela Lei 9.455/97 abrangendo também como delito do particular, tornando a tortura um crime comum, é inconstitucional, uma vez que não poderia ir de encontro com o que ficou consignado nas definições das Convenções internacionais (BURIHAN, 2008).
Franco também no mesmo sentido:
O mais grave defeito do novo diploma legal reside na circunstância de que o tipo da tortura não foi estruturado como crime próprio – aqueles que requerem, no sujeito ativo, uma determinada qualidade -, mas, sim, como crime comum, isto é, aquele que pode ser executado por qualquer pessoa (2005, p. 126). 
Alegando a inconstitucionalidade da lei 9.455/97, a autora Flávia Piovesan refere o problema à incorporação automática dos tratados internacionais de Direitos Humanos no ordenamento jurídico nacional:
Em síntese, relativamente aos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, a Constituição brasileira de 1988, nos termos do art. 5.º, parágrafo 1.º, acolhe a sistemática da incorporação automática dos tratados, o que reflete a concepção monista. Ademais, como apreciado no tópico anterior, a Carta de 1988 confere aos tratados de direitos humanos o status de norma constitucional, por força do artigo 5.º, parágrafo 2.º. O regime jurídico diferenciado conferido aos tratados de direitos humanos não é, todavia, aplicável aos demais tratados tradicionais. No que tange a estes, adota-se a sistemática da incorporação legislativa, de modo a exigir que, após a ratificação, um ato com força de lei (no caso brasileiro este ato é um Decreto expedido pelo Executivo) confira execução e cumprimento aos tratados no plano interno. Deste modo, no que se refere aos tratados em geral, acolhe-se as sistemática da incorporação não automática, o que reflete a adoção da concepção dualista. Ainda no que tange a estes tratados tradicionais e, nos termos do artigo 102, III, b, da Carta maior, o texto lhes atribui natureza de norma infraconstitucional (2008, p.111).
Em contrapartida aduz Alejandro Del Toro Marzal:
A tortura deve ser castigada em si mesma e por si mesma, em razão de seus detestáveis métodos e por seus fins contrários à liberdade e dignidade. Destarte, não considerar que particulares ou extremistas de qualquer tendência possam também empregar a tortura, tanto em relação a outros indivíduos, como aos próprios funcionários públicos, é limitação demagógica e contraproducente, pois tal conclusão carece de lógica jurídica, se se consideram crimes internacionais, fatos cometidos por particulares, como, por exemplo, o tráfico de brancas e de drogas, e se ainda, como parece óbvio, nem todos os funcionários públicos de todos os países foram ou serão torturadores. O monopólio do tipo, pelos funcionários públicos, não contribui para melhorar suas atuações, nem para incrementar seu apreço pelos direitos humanos.
E não se diga como argumentação contrária, que a Lei nº 9.455/97  é inconstitucional por ferir o também constitucional princípio da legalidade, tendo ampliado o alcance do delito de prática de tortura, previsto pelo mandamento constitucional decorrente das Convenções internacionais mencionadas, ratificadas pelo Brasil, tornando-o crime comum, quando por elas era definido como “próprio” (MARZAL,1980 apud FRANCO, 2005, p. 127-128).
Neste mesmo norte Victor Eduardo Rios Gonçalves:
O crime de tortura não é próprio, vale dizer, pode ser cometido por qualquer pessoa e não apenas por policiais civis ou militares. Essa opção do legislador não retrata fielmente a Convenção Internacional assinada pelo Brasil, na qual o país se compromete a combater a tortura cometida “por agentes públicos”. A lei, portanto, é mais abrangente que a convenção (2002, p.94).
Sendo mais abrangente e atendendo ao artigo 1.º da Convenção da ONU, que possui status de norma constitucional, a Lei n.º 9.455/97 é constitucional, bem como mais benéfica à vítima. Pois, sendo mais aberta, tem mais eficácia em punir efetivamente o criminoso, prevalecendo assim, se alegado eventual conflito frente à Convenção Interamericana (FELICIO, 2011).
2. ANÁLISE DA TORTURA NO DIREITO PENAL BRASILEIRO
A Lei 9.455/97 é a primeira norma nacional que traz definição do que constitui o crime de Tortura. Elencando em seu artigo 1º da Lei 9.455/97(FELICIO, 2011):
Art. 1º Constitui crime de tortura:
I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:
com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;  
 para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;     
em razão de discriminação racial ou religiosa (BRASIL, 2011)
Entende-se que o sujeito ativo do delito de tortura pode ser qualquer pessoa, sendo um crime comum. No tocante ao sujeito passivo de acordo com a lei em questão, é o titular do bem jurídico lesado ou ameaçado (BURIHAN, 2008).
Em consonância ao art. 1º da mencionada lei, a tortura está condicionada a três verbos que exprimem a ação do agente: constranger, submeter e omitir.
O verbo “constranger”, segundo o dicionário, significa obrigar pela força, compelir, levar contra a verdade. O constrangimento deve ser feito mediante violência ou grave ameaça. O sujeito passivo para este verbo pode ser qualquer pessoa (BURIHAN, 2008)
 “Submeter”, significa subjugar, sujeitar, reduzir à dependência. Neste verbo o sujeito passivo já não pode ser qualquer pessoa, conforme dispõe o art. 1º, II, o sujeito passivo necessita estar sob a guarda, poder ou autoridade do sujeito ativo. Já na hipótese do §1º do referido artigo é preciso que este alguém esteja preso ou sujeito à medida de segurança (BURIHAN, 2008).
Na ultima modalidade de tortura está o verbo “omitir”, significa preterir; esquecer; postergar; olvidar (BURIHAN, 2008).
A violência, a grave ameaça e o sofrimento físico ou mental são os elementos normativos do tipo do crime de tortura (COIMBRA, 2002).
Para o meio da pratica de tortura, violência é a vis corporalis, a violência física, exercida sobre o corpo do sujeito passivo, para inibir a sua resistência. Tal violência poderáser direta ou indireta. A indireta ocorre quando, ao invés de o agente torturar a vítima para obter da mesma informação, declaração ou confissão, torturara um terceiro, afetivamente ligado àquele de quem pretende a informação, confissão ou declaração (BIERRENBACH; LIMA, 2006).
A grave ameaça é uma pratica de vis compulsiva, ou seja, a violência é moral, exercida sobre o psique da vítima, coagindo a sua vontade (BIERRENBACH; LIMA, 2006).
Aduz Paulo Juricic:
O crime de tortura de acordo com esta lei consiste em um crime material, que se consuma com o sofrimento físico ou mental provocado na vítima. O sofrimento físico constitui-se na própria dor física e o mental, na angustia ou dor psíquica; ambos podem ocorrer após o momento da pratica do crime, quando resultantes de uma seqüela física ou mental, provocada pela violência ou grave ameaça por parte do agente (2003, p.72).
Em contrapartida José Ribeiro Borges defende que é um crime formal eis que se admite a forma tentada, salvo na hipótese de crime omissivo (art. 1º, § 2º). (2004)
Sheila Bierrenbach e Walberto Fernandes Lima: “Para a configuração do crime, é preciso que da violência ou grave ameaça infligidas pelo torturador no ofendido resulte sofrimento físico ou mental. Em outras palavras, o sofrimento constitui o resultado da pratica da tortura” (2006).
 Borges neste sentido:
Sofrimento físico importa a contração muscular decorrente do uso de meios físicos, mecânicos, elétricos etc., provocando sensações desconfortáveis como a de mal- estar e de dor, alterando muitas vezes o funcionamento regular do organismo e mesmo do psiquismo; sensação decorrente da transmissão de estímulos para células nervosas do cérebro (córtex cerebral), referente à região afetada [...] o sofrimento moral pode ocorrer mediante a utilização de técnicas psicológicas, como a simulação de execução, a exposição continua a ruídos ensurdecedores (tortura acústica), privação do sono, a perda da liberdade em recintos de confinamentos, etc. (2004, p.171).
Na alínea "a" do art. 1º, o fim é a obtenção de informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa (BRASIL, 2011).
O tipo subjetivo é representado pelo dolo, que consiste na vontade livre e consciente de praticar a tortura. Dolo é consciência e vontade de infligir sofrimento físico ou mental na vítima, por meio de violência física ou grave ameaça (BIERRENBACH; LIMA).
O tipo subjetivo não se esgota no dolo, tendo também a exigência de um elemento subjetivo especial. Não basta o dolo, é necessária ainda uma finalidade subseqüente, a última meta que o torturador pretende obter com a sua conduta do tipo (BIERRENBACH; LIMA).
Já a alínea "b" traz como fim "provocar ação ou omissão de natureza criminosa" (BRASIL, 2011)
Nesta hipótese, o agente torturando a vítima, faz com que a mesma pratique “ação ou omissão de natureza criminosa”. Mesmo sem havendo a ocorrência do crime pretendido pelo agente torturador o crime estará consumado se houver infligido à vítima dor física ou mental (BURIHAN, 2008).
A alínea "c" tem por motivo da violência ou grave ameaça a discriminação racial ou religiosa[1]. A discriminação é o elemento normativo do tipo, tendo o legislador ficado omisso quanto à definição do que é discriminação, ressaltando que a Convenção Contra Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, de 1984, ao definir o que é tortura em seu art. 1º, faz alusão a motivação referente à discriminação de qualquer natureza (BIERRENBACH, LIMA, 2006).
O agente torturador além do crime de tortura responderá também por um dos crimes de racismo (Lei nº7. 716/89), em concurso formal imperfeito (CAPEZ, 2007).
No parágrafo II do artigo 1º da Lei de Tortura dispõe que submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo (BRASIL, 2002).
Este dispositivo refere-se à violência ou grave ameaça que é utilizada em pessoa que está sob a influência do agente, esteja à vítima em caráter de guarda, poder ou autoridade (BURIHAN, 2008).
O sujeito ativo é próprio, pois só poderá incorrer no crime as pessoas detentoras dos atributos mencionados. O sujeito passivo é aquele que se encontra sob a guarda, poder ou autoridade do agente e sofre tortura (BIERRENBACH; LIMA, 2006).
O sofrimento deve ser intenso, causando padecimento, aflição dura, árdua, penosa. O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos acerca do sofrimento intenso manifestou-se: “Relativa por sua própria natureza, que depende do conjunto dos dados do caso e, especialmente, da duração dos maus-tratos e de seus efeitos físicos e do estado de saúde da vítima” (TEDH, 2017)
Essa forma de tortura muito se assemelha ao crime de maus-tratos. O crime de tortura, contudo, exige para a sua configuração típica que a vítima sofra intenso sofrimento físico ou mental (CAPEZ, 2007).
O crime consuma-se no momento em que a vítima é submetida ao intenso sofrimento físico e mental. A tentativa é admissível quando empregada a violência ou grave ameaça e a vítima não vier a padecer de sofrimento, por circunstâncias alheias à vontade do agente (CAPEZ, 2007).
O § 1º, art. 1 da Lei de tortura elenca que na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal (BRASIL, 2011).
Neste dispositivo a vítima está legalmente presa ou submetida à medida de segurança, porém o constrangimento é criminoso. Mesmo o preso merece ter sua integridade física e dignidade asseguradas. A pena imposta limita-se à privação da liberdade (CAPEZ, 2007).
Nossa Carta Magna garante em seu art. 5º, III e XLIX que: “É assegurado aos presos o respeito à integridade física e metal”. “O preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades respeito à sua integridade física e moral” (BRASIL, 1988).
O sujeito passivo não pode ser qualquer um. Podendo ser somente aquelas pessoas que se encontrem presas ou sujeitas a medida de segurança (BURIHAN, 2008)
A prisão é uma das previstas nas leis processuais penais, seja preventiva, temporária, em razão de flagrante ou em face de sentença condenatória. A medida de segurança não é pena, mas podemos dizer que faz parte das sanções penais. É forma de tratamento a que são submetidos os inimputáveis, para prevenir que os mesmos a delinqüir. A pena tem caráter retributivo preventivo, enquanto que a medida de segurança é apenas preventiva; a primeira se baseia na culpabilidade do agente; a segunda, na sua periculosidade (CAPEZ, 2007)
O crime consuma-se com a submissão da vítima ao sofrimento físico ou mental, por se tratar de crime plurissubsistente, é possível a tentativa (GOMES, 2010).
O § 2º, art. 1º da Lei de Tortura estabelece que aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos (BRASIL, 2011).
Este tipo penal prevê duas modalidades do crime omissivo, a primeira diz respeito à omissão praticada por quem tinha o dever de evitar a tortura, a segunda a omissão praticada por que tinha o dever de apurar a prática de tortura (CAPEZ, 2007).
Neste sentido Uélton Santo Silva:
O  ponto tratado aqui é a incidência daqueles que contribuem para o crime de forma omissiva. O parágrafo pune de forma mais branda o omisso que o agente ativo. Na realidade deve-se fazer uma separação entre aquele que pode agir (comunicar o fato criminoso as autoridades) para evitar o resultado, daquele que se omite em apurar os fatos. Para o primeiro, deve incidir a regra geral do art. 13, § 2º do Código Penal. Ou seja, entendo que deve responder como partícipe. Àquele que tem o dever jurídico de apurar os fatos, e não o faz, incide o § 2º, como tipificação autônoma. Na conduta omissiva de apuração, o responsável será sempre uma autoridade que seja competente para tanto. Já no caso de se evitara tortura, o sujeito ativo poderá ser não só a referida autoridade, bem como qualquer outro indivíduo (profissional de saúde, por exemplo) que, de alguma maneira, teria condições de impedir a consumação ou continuidade do delito e que se enquadra em uma das hipóteses do art. 13,§ 2º, do CP (SILVA, 2011)
Esta é a modalidade de Tortura omissiva, trata-se de uma conduta descrita do funcionário público detentor da autoridade no âmbito administrativo em que foi praticada a tortura, em especial ocupando posição hierárquica daquele que praticou o crime (COIMBRA, 2002).
São exemplos de funcionário público, o Diretor de disciplina de determinado presídio que, podendo evitar que um preso seja torturado por um agente de segurança, queda-se inerte, Diretores de departamento de investigação da polícia, Delegados de Polícia, que podendo impedir a pratica de tortura não o faz. O sujeito passivo principal é o Estado.  (COIMBRA, 2002).
Nas palavras de Bierrenbach: “Não bastasse o equivoco cometido pelo legislador, ao tipificar a forma omissiva da tortura, errou, uma vez mais, e de forma mais grave, ao cominar a pena de 1 a 4 anos de detenção, enquanto a pratica comissiva da tortura é punida com pena de 2 a 8 anos de reclusão” (2006).
Dá-se impressão que o agente omissivo não sofrerá a mesma pena do agente ativo, mas se beneficiará com a diminuição da pena prevista neste parágrafo, será tratado como autor de um tipo privilegiado. O legislador ordinário, ao invés de punir aqueles que por omissão cooperaram para o crime de tortura, ao revés, inseriu um dispositivo à parte criando uma figura privilegiada, os omitentes (BORGES, 2004).
O § 3º, art. 1º da Lei 9.455/97 estabelece que se resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, a pena de reclusão de quatro a dez anos; se resulta morte, a reclusão é de oito a dezesseis anos (BRASIL, 2011).
Esta é a forma qualificada do crime de tortura pelo resultado obtido com o seu emprego, trata-se de um crime preterdoloso ou preterintencional, por trazer um misto de dolo e culpa (GOMES, 2010).
Destarte, em decorrência do crime de tortura cometido na vítima, esta vem a sofrer lesão corporal de natureza grave ou gravíssima ou, a morrer, trata-se de um resultado não desejado, pois a intenção do sujeito ativo era torturar, porém adveio um resultado de sua ação (GOMES, 2010)
Fernando Capez acrescenta: “Na espécie, o agente atua com dolo em relação à tortura e com culpa em relação ao resultado agravador (morte). Frise-se: aqui o agente não quer nem assume risco do resultado morte; contudo ante a previsibilidade do evento, responde a título de culpa” (2007).
Já o parágrafo 4º do artigo 1º da Lei 9.455/97 dispõe:
Aumenta-se a pena de um sexto até um terço:
I - se o crime é cometido por agente público;
II - se o crime é cometido contra criança, gestante, deficiente e adolescente;
III - se o crime é cometido mediante seqüestro (BRASIL, 2011)
Este parágrafo elenca as causas especiais de aumento da pena. O inciso I refere-se a qualquer pessoa que exerça cargo, emprego ou função pública, de natureza civil ou militar. Por função pública entende-se aquela que persegue fins próprios do Estado. O agente não necessita estar no exercício de suas funções, porém o crime deve ter alguma relação com ela (CAPEZ, 2007).
Já o inciso II diz respeito se o crime for cometido contra criança, gestante portador de deficiência, adolescente ou maior de 60 anos.
Por criança deve ser entendida a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade (art. 2º da Lei nº 8.069/90- ECA) (BRASIL, 2011)
O supramencionado inciso dá qualidades do sujeito passivo, deste modo, será qualificada a tortura quando o crime for cometido contra criança, gestante, deficiente e adolescente. É necessário, contudo, que o torturador tenha conhecimento dessas qualidades da vítima, pois, caso contrário, incorrerá em erro do tipo, não respondendo pela forma qualificada. Entretanto, a única delas que, mesmo admitindo o erro escusável, imputará o aumento é o fato de a vítima ser criança, já que, se o agente não conhecia esse atributo, é por que a considerava adolescente, tal circunstância esta prevista na disposição legal (NAFFAH NETO, 1985).
O inciso III elenca se o crime é cometido mediante seqüestro (BRASIL, 2011).
Tal inciso refere-se ao seqüestro prolongado. O crime de seqüestro é a privação da liberdade da vítima mediante violência ou grave ameaça. Entretanto, a privação da liberdade por curto espaço de tempo é decorrência quase sempre necessária a pratica de tortura, vez que esta pressupõe, na maioria das vezes, uma ação lenta e repetitiva com intuito de causar sofrimento físico ou psíquico à vítima, de forma a garantir que o agente alcance a sua finalidade para a qual está empregando a violência ou grave ameaça. Nesses casos, não se aplica a causa de aumento de pena. O dispositivo só será aplicado quando houver privação de liberdade por tempo prolongado, absolutamente desnecessário, ou quando houver deslocamento da vítima para local distante (GONÇALVES, 2002).
O art. 148, § 2º do Código Penal, dispõe acerca do crime de seqüestro qualificado pelo resultado. A diferença entre esses dois crimes consiste em que, na primeira, o seqüestro é um modo, um meio para se praticar a tortura, causando-se sofrimento físico ou mental à vítima, enquanto que, na segunda, o seqüestro não é um meio, e sim o próprio fim, sendo o sofrimento físico ou moral uma conseqüência dos maus-tratos ou da natureza da detenção (NAFFAH NETO, 2011)
O § 6º, art. 1º da Lei 9.455/97 estabelece que o crime de tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia (BRASIL, 2011).
A anistia é a declaração pelo Poder Público, de que determinados fatos se tornaram impuníveis, por motivo de utilidade social. O instituto da anistia volta-se a fatos não a pessoas (NUCCI, 2010).
A anistia só é concedida através de lei editada pelo Congresso Nacional. Possui efeito ex tunc, ou seja, apaga o crime e todos os efeitos da sentença, embora não atinja os efeitos civis. (...) Deve ser declarada a extinção de punibilidade, quando concedida à anistia, pelo juiz da execução penal. Trata-se de excludente de tipicidade, pois apagado o fato, a conseqüência é o afastamento da tipicidade (NUCCI, 2010).
A graça trata-se de um perdão concedido pelo Presidente da República, não sendo sujeita a qualquer recurso, a graça deve ser usada como parcimônia. Pode ser perpetrada por petição do condenado, por iniciativa do Ministério Público, do Conselho Penitenciário, seguindo ao Ministério da Justiça. Após, o pedido será deliberado pelo Presidente da República, que pode delegar a apreciação aos Ministros do Estado, ao Procurador Geral da República ou ao Advogado Geral da União (NUCCI, 2010).
O legislador repetiu o preceito constitucional insculpido no art. 5º, inciso XLIII, que se equipara a tortura a crime hediondo (BURIHAN, 2008).
Na lição de Paulo Juricic:
Entendemos, todavia que o condenado não tem direito, também ao indulto, pois a expressão “graça” deve ser interpretada como “indulto individual”, tanto mais porque a própria Carta Magna não previu o instituto da graça, mas somente a concessão de anistia pelo Congresso Nacional (art. 48) e do indulto pelo presidente da República (art. 84, XIII) (2003).
A Lei 9.455/97 sendo mais recente que a Lei dos crimes hediondos, prevalece àquela sobre esta. Em conseqüência disso, nos casos de tortura é cabível o indulto (LIMA, BIERRENBACH, 2006).
O § 7º, art. 1º da Lei 9.455/97 estabelece que o condenado por crime previsto nesta Lei, salvo hipótese do § 2º, iniciará o cumprimento da pena em regime fechado (BRASIL, 2011).
Verifica-se que a admissão do regime progressivo de cumprimento de pena pela Lei de Tortura. O parágrafo determina que o condenado por crime de tortura deve iniciar o cumprimento da pena em regime fechado e não devendo cumprir regime integralmente fechado, concluindo-se que a Lei permite a progressão de regimes (BIERRENBACH; LIMA, 2006).
A imposição do início de cumprimento em regime fechadonão se estende às praticas omissivas, essa exceção supramencionada trata-se da omissão de quem tinha o dever de evitar ou apurar a tortura, decorre da função do que prescreve a alínea “c”, § 2º do art. 33 do Código Penal, que autoriza o regime aberto de pena (BURIHAN, 2008).
O legislador privilegiou, indevidamente, o autor do crime descrito no § 2º, eis que poderá fixar, em tal caso, o regime semi-aberto ou aberto de cumprimento da pena, desde o início (COIMBRA, 2002).
Em contrapartida, consoante ao entendimento de Eduardo Arantes Burihan:
Em nível constitucional, a tortura, assim como o terrorismo, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e os crimes definidos como hediondos têm o mesmo tratamento penal e processual penal. Por conseguinte, uma vez que o legislador ordinário teve uma mudança de visão no que diz respeito à tortura, abrindo a possibilidade de progressão de regime, nada mais justo do que estender o benefício aos demais crimes hediondos, ajustando-os ao tratamento constitucional uniforme conferido à matéria (2008, p. 95).
Com a nova Lei a tortura passou a ter um tratamento mais brando no que concerne ao regime de cumprimento da pena com a possibilidade de progressividade de regimes, nada impede que possa dar-se uma interpretação sistemática, para beneficiar também aos crimes previstos na Lei dos crimes Hediondos. Tornar-se-ia possível a progressividade dos regimes em todos os crimes hediondos, o que estimularia a ressocialização do condenado (MARQUES, 1997).
O Supremo Tribunal Federal editou a Súmula nº 698 nos seguintes termos: “Não se estende aos demais crimes hediondos a admissibilidade de progressão no regime de execução da pena aplicada ao crime de tortura” (BRASIL, 2011).
A JURISPRUDÊNCIA E SUA (DES) HARMONIA COM OS TRATADOS INTERNACIONAIS SOBRE A MATÉRIA EM QUESTÃO
Acerca da aplicação da lei 9.455/97 que define os crimes de tortura e dos tratados e convenções de direitos humanos, a jurisprudência por vezes diverge e em outras corrobora com os ditames das normas citadas.
Contrariando o que preconiza a CF/88, a Lei 9.455/97 e os Tratados e convenções contra tortura que estabelece que o crime de tortura é insuscetível de graça ou anistia, o STF julgou:
Lei N. 6.683/79, A Chamada “Lei De Anistia”. Artigo 5º, Caput, III e XXXIII da Constituição do Brasil; Princípio Democrático e Princípio Republicano: não Violação. Circunstâncias Históricas. Dignidade da Pessoa Humana e Tirania dos Valores. Interpretação do Direito e distinção entre o texto normativo e Norma Jurídica. Crimes Conexos definidos pela Lei n. 6.683/79. Caráter Bilateral da Anistia, Ampla e Geral. Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal na Sucessão das frequentes Anistias concedidas, No Brasil, desde a república. Interpretação do Direito e Leis-Medida. Convenção das Nações Unidas contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes e Lei n. 9.455, De 7 de Abril de 1997, que define o crime de tortura. Artigo 5º, XlIII da Constituição do Brasil. Interpretação e Revisão da Lei da Anistia. Emenda Constitucional n. 26, de 27 de Novembro de 1985, Poder Constituinte e “Auto-Anistia”. Integração da Anistia da Lei de 1979 na Nova Ordem Constitucional. Acesso a documentos históricos como forma de exercício do Direito Fundamental à verdade (STF. ADPF nº153. Rel.Min. Eros Grau. Julgada em: 29 mar. 2010).
O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB propôs argüição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) objetivando a declaração de não-recebimento, pela Constituição do Brasil de 1988, do disposto no § 1º do artigo 1º da Lei n. 6.683, de 19 de dezembro de 1979, segundo o argüente, desrespeito: ao dever, do Poder Público, de não ocultar a verdade; aos princípios democrático e republicano; ao princípio da dignidade da pessoa humana (STF. ADPF nº153. Rel. Min. Eros Grau. Julgada em: 29 mar. 2010).
O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil defende que os crimes cometidos no regime militar, foram crimes comuns, pois não cometeram nenhum dos crimes contra a segurança nacional e a ordem política social, definidos na Lei de Anistia (STF. ADPF nº153. Rel. Min. Eros Grau. Julgada em: 29 mar. 2010).
Afirma não ser possível os crimes serem conexos vez que a conexão criminal pressupõe unidade de objetivo e de ação delituosa entre os agentes, o que não ocorreu, pois os agentes, mandantes ou executores praticaram crimes contra a vida e a integridade pessoal dos cidadãos considerados opositores políticos do regime militar (STF. ADPF nº153. Rel.Min. Eros Grau. Julgada em: 29 mar. 2010).
Acrescenta ainda que os agentes públicos que praticaram o crime de estupro, tortura e assassinato, assim como os mandantes desse ato ilícito, não podem ser beneficiados com a anistia além, pois praticaram crime contra a humanidade, sustenta que essa interpretação violaria frontalmente diversos preceitos fundamentais (STF. ADPF nº153. Rel.Min. Eros Grau. Julgada em: 29 mar. 2010).
Em petição a OAB diz: "irrefutável que não podia haver e não houve conexão entre os crimes políticos, cometidos pelos opositores do regime militar, e os crimes comuns contra eles praticados pelos agentes da repressão e seus mandantes no governo” (STF. ADPF nº153. Rel. Min. Eros Grau. Julgada em: 29 mar. 2010).
O Brasil como é signatário de tratados e convenções que protegem os Direitos Humanos, estando submetido ao julgamento de organismos internacionais, dentre eles o Tribunal Penal Internacional e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Segundo o Tribunal Penal Internacional não há prescrição sobre o crime de tortura, uma vez que este é um crime contra humanidade (STF. ADPF nº 153. Rel. Min. Eros Grau. Julgada em: 29 mar. 2010).
De acordo com o Supremo Tribunal Federal a concessão da anistia a todos que, em determinado período, cometeram crimes políticos estender-se-ia, aos crimes conexos, crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política, considera-se como conexos e igualmente perdoados os crimes "de qualquer natureza" relacionados aos crimes políticos ou praticados por motivação política no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979 (STF. ADPF nº 153. Rel. Min. Eros Grau. Julgada em: 29 mar. 2010).
A Corte teve como norte o art. 1º da Lei 6.683/79 onde elenca:
Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares.
 § 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política (STF. ADPF nº153. Rel.Min. Eros Grau. Julgada em: 29 mar. 2010).
O Supremo Tribunal Federal foi de encontro aos diplomas internacionais, baseando-se na Lei de Anistia julgou improcedente a argüição de descumprimento de preceito fundamental, vencidos os Senhores Ministros Ricardo Lewandowski, que lhe dava parcial provimento nos termos de seu voto, e Ayres Britto, que a julgava parcialmente procedente para excluir da anistia os crimes previstos no artigo 5º, inciso XLIII, da Constituição (STF. ADPF nº153. Rel.Min. Eros Grau. Julgada em: 29 mar. 2010).
No mesmo norte, contrariando as convenções e tratados de direitos humanos, o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul deu prevalência a legislação penal brasileira que é mais abrangente:
Apelação Criminal – Tortura e redução análoga à de escravo contra menor de 14 anos – pedido de reconhecimento da inconstitucionalidade da lei 9.455/97 – inocorrência – convenções internacionais firmadas pelo Brasil que autoriza a ampliação do rol dos que podem cometer o crime de tortura – pedido de desclassificaçãoda tortura para maus tratos – impossibilidade – apelante que, motivada por sentimento de crueldade agride a vítima causando-lhe grave sofrimento físico – pedido ministerial para aplicação da continuidade delitiva ao crime de tortura e condenação da recorrente no crime de redução análoga à de escravo – inocorrência – recursos improvidos.
Por ser mais abrangente, e atender ao artigo 1.º da Convenção da ONU, que possui status de norma constitucional, a Lei Federal n.º 9.455/97, que ampliou o rol dos sujeitos ativos do crime de tortura, é, além de constitucional, mais benéfica à vítima, pois, sendo mais abrangente, tem mais chances de punir efetivamente o criminoso.
Não há falar em desclassificação do crime de tortura pelo de maus-tratos, se o agente causa na vítima intenso sofrimento físico e mental, motivado por sentimento de ódio e crueldade, e não com o fim de corrigi-la ou discipliná-la.
Não há falar em continuidade delitiva no crime de tortura vez que a partícula elementar do crime de tortura é o sofrimento causado, que é uno, independentemente da quantidade de violências sofridas.
A configuração do crime de redução análoga à de escravo pressupõe que haja uma relação de emprego entre os agentes, situação essa que não foi comprovada nos autos (TJMS.Apelação Criminal nº 2009.026714-0/0000-00,
Trata-se de recurso de apelação em que a ré Kátia Elizabeth Cristaldo foi condenada pela prática do crime previsto no art. 1º, inciso II e §4º, inciso II, ambos da Lei 9.455/97, inconformada com a sentença de 1º grau recorreu à segunda estância, bem como o Ministério Publico (TJMS. Apelação Criminal nº 2009.026714-0/0000-00, rel. Des. Marilza Lúcia Fortes julgado em: 23/02/2010)
A apelante alega que o art. 1º, inciso II da Lei 9.455/97 é inconstitucional por se tratar de crime próprio, que somente pode ser cometido por pessoas dotadas de função pública requerendo a desclassificação do crime de tortura para maus tratos (TJMS. Apelação Criminal nº 2009.026714-0/0000-00, rel. Des. Marilza Lúcia Fortes julgado em: 23/02/2010)
A Corte julgou que a Lei de Tortura, não agiu de maneira diferente à consentida pelo artigo 1.º da Convenção da ONU, norma esta constitucional, sendo assim, não podendo ser declarada inconstitucional (TJMS. Apelação Criminal nº 2009.026714-0/0000-00, rel. Des. Marilza Lúcia Fortes julgado em: 23/02/2010).
Nesse mesmo vértice, de acordo com jurisprudência consolidada no Tribunal de Justiça do Paraná sobre a temática:
Ementa: Apelação Crime. Tortura. art. 1º, inc. i, alínea ‘a’, da Lei nº. 9.455/97. Crime Comum. Possibilidade de ser praticado por qualquer cidadão. Deficiência de defesa técnica. Não ocorrência. Réus assistidos por defensor constituído que comparece a todos os atos do processo e apresenta alegações finais fundamentadas. Inexistência de ofensa às garantias do contraditório e da ampla defesa. Instrução processual realizada em conformidade com o rito vigente à época. Validade. Irretroatividade das normas de natureza meramente processual. tese de insuficiência probatória. Não acolhimento. Palavra das vítimas seguras e harmoniosas com os demais elementos de provas. Condenação mantida. pena. Culpabilidade e antecedentes. Circunstâncias que não podem ser consideradas desfavoráveis aos réus. Comportamento das vítimas. Contribuição para a consecução criminosa (TJPR. Apelação Crime nº: 0719141-9, Rel. Macedo Pacheco. Julgada em: 28/04/2011).
No entanto, em divergência a Lei pátria nº 9.455/97 a jurisprudência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais é majoritária no sentido do crime de tortura ser próprio de autoridade pública:
Tortura – Lei nº 9.455/97 – inaplicabilidade ao caso – desclassificação – ‘emendatio libelli' em segunda instância – possibilidade – lesões corporais – perigo de vida – necessidade de ser justificado pela perícia – prescrição – extinção da punibilidade declarada de ofício. Consoante precedentes desta Câmara, a Lei nº 9.455/97 – naquilo que define o delito de tortura como crime comum – não está em consonância com disposições veiculadas em tratados internacionais ratificados pelo Brasil, que possuem ""status"" de norma constitucional. É pacífico o entendimento jurisprudencial no sentido do cabimento da ‘emendatio libelli' em segunda instância, atendidos os arts. 383 e 617 do CPP. Precedentes do STF. A qualificadora do perigo de vida não se presume, sendo necessário que os peritos afirmem a sua ocorrência e bem justifiquem em que teria consistido o perigo concreto e real do resultado morte. A prescrição, depois da sentença condenatória com trânsito em julgado para a acusação regula-se pela pena aplicada, nos termos do art. 110, § 1º do Código Penal (TJMG, Apelação Criminal nº 1.0408.02.000139-7/001, rel. Des. Beatriz Pinheiro Caires. Julgada em: 12/05/2005).
A jurisprudência supra trata-se de uma apelação interposta pelos réus vencidos, buscando ser declarada a inconstitucionalidade da Lei nº 9.455/97 (TJMG, Apelação Criminal nº 1.0408.02.000139-7/001, rel. Des. Beatriz Pinheiro Caires. Julgada em: 12/05/2005).
Extrai-se do Acórdão:
A Lei n.º 9.455/97, todavia, não definiu este tipo penal como "crime próprio", mas ao contrário, ampliou seu alcance, tornando possível que qualquer pessoa do povo o pratique. Assim, não se observou, na lei interna específica, a restrição presente nos aludidos tratados internacionais.
Assim de acordo com a Convenção Internacional de Direitos Humanos o delito autônomo de tortura é "próprio", isto é, cometido apenas por funcionários ou empregados públicos em autoria mediata ou imediata, e ainda, por indução ou instigação a que o provoquem, prevista também, a responsabilidade decorrente da omissão de tais agentes no impedimento da realização do fato delituoso, quando possível efetuá-lo.
A legislação infraconstitucional brasileira ao tipificar o delito de Tortura como crime comum e não próprio, podendo ser praticado por qualquer pessoa, andou na contramão das codificações comparadas e do entendimento encampado majoritariamente a respeito da questão (TJMG, Apelação Criminal nº 1.0408.02.000139-7/001, rel. Des. Beatriz Pinheiro Caires. Julgada em: 12/05/2005).
No voto vencido proferido neste julgamento, desclassificou-se o crime de tortura para o delito de maus-tratos qualificado, decidiu a Corte no sentido de que o crime de tortura, previsto na Lei 9.455/97, não pode ser praticado por pessoa que não seja agente público, pois ao se conceituar tal crime como comum, estaria lesionando norma constitucional embasada em tratados internacionais de Direitos Humanos (TJMG, Apelação Criminal nº 1.0408.02.000139-7/001, rel. Des. Beatriz Pinheiro Caires. Julgada em: 12/05/2005).
CONCLUSÃO
No decorrer deste trabalho foi demonstrado que, principalmente após a Segunda Grande Guerra a internacionalização dos direitos humanos tornou-se efetiva com a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Desta feita, a proibição do crime de tortura foi produzido por vários instrumentos internacionais.
Como se pôde observar, o crime de tortura na lei brasileira se fez desconforme com as recomendações internacionais, contidas nos vários tratados e convenções celebrados, onde se prescreve a definição do crime de tortura como crime próprio, qual seja, praticado pelo funcionário público na condição de representante do Estado.
A lei brasileira estendeu este conceito, passando a contemplar outras modalidades de conduta e alcançando os atos de tortura perpetrados por particulares e movidos por outros, e apenas como agravante o crime cometido por agentes públicos, os apontados como únicos praticantes desse delito nos tratados internacionais. Ou seja, tortura não é só a institucional, qual seja, praticada em nome do Estado ou a pretexto de servir seus interesses, mas também a perpetrada pelo particular e sob pretextos que não sejam os contemplados nos diplomas internacionais.
Há ainda doutrinadores que questionam a constitucionalidade da Lei 9.455/97, alegando que a lei pátria não poderia ir de encontro com o que ficou consignado nas definições das convenções e tratados internacionais.Em consequência a esta vertente, já existe jurisprudência julgando no sentido da condenação unicamente dos agentes públicos pelo crime de tortura, conforme decidido no Tribunal de Minas Gerais.
Contudo, observa-se que o artigo 1º da Convenção da ONU bem como o artigo 16° da Convenção Interamericana, depois de definirem a tortura como crime próprio, abrem uma ressalva afirmando que não há impedimento a "qualquer instrumento internacional ou legislação nacional que contenha ou possa conter dispositivos de alcance mais amplos".
A Lei de 1997, relativa à prática da tortura, não agiu de maneira diferente à permitida nos tratados e convenções de direitos humanos ratificados pelo Brasil, uma vez que após sua ratificação por três quintos dos votos dos respectivos membros, são normas constitucionais. Dessa forma, o que obedece a Constituição não pode ser declarado inconstitucional.
Ainda que houvesse um eventual conflito entre o Direito Internacional dos Direitos Humanos e o Direito Interno Brasileiro, desconsiderando o artigo 1º da Convenção de 1984, entende-se que há prevalência da lei que estabelece a norma mais favorável da vítima, ou seja, prevalece a norma que melhor protege os direitos inerentes à pessoa humana.
Considera-se que a Lei n.º 9.455/97 é mais abrangente e benéfica à vítima, além de constitucional. Uma vez que, sendo mais abrangente, tem maior possibilidade de ser eficaz na punição do criminoso, prevalecendo, se alegado eventual conflito entre os tratados e convenções internacionais de direitos humanos.

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