Buscar

Institucionalização da Deficiência

Prévia do material em texto

Implicações Políticas Da 
Institucionalização Da Deficiência
Carlos Alberto Marques
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-73301998000100006
RESUMO:
O investimento social no corpo põe em evidência valores estéticos e de produtividade,
determinantes dos padrões de normalidade vigentes. Um corpo deficiente está fora dos
padrões estabelecidos, gerando uma prática preconceituosa e segregacionista. A instituição
assistencialista constitui um dos mais eficientes mecanismos de defesa da sociedade em
relação aos portadores de deficiência, identificando-os e mantendo-os isolados do convívio
social. Escondida atrás de um discurso de proteção e de preparação dos deficientes para uma
possível reintegração no contexto social, a institucionalização da deficiência protege mais a
sociedade do que seus portadores.
Palavras-chave: Instituição, deficiência, sociedade
A vida do homem em sociedade, ao longo dos séculos e nas diversas regiões do
planeta, consiste no complexo produto de uma articulada trama de poder, que evidencia direitos e
privilégios de uns, ao mesmo tempo em que estabelece obrigações e subalternidade para outros.
Sem dúvida, tal trama aperfeiçoa-se a cada dia, tornando-se, certamente, a principal característica
da chamada sociedade moderna. A todo momento, forças antagônicas enfrentam-se, dando origem
a uma série de imposições e deveres que acabam se tornando verdadeiros "princípios morais".
Indivíduos e grupos (categorias) vestem-se de máscaras de identificação e passam a reproduzir
muitas das atribuições que lhes são impostas pela ideologia dominante.
Tal fato pode ser verificado, por exemplo, em relação a um indivíduo pertencente à
categoria "delinquente", o qual, uma vez identificado como perverso e nocivo para a vida social,
dificilmente consegue se livrar do jugo do estigma a ele atribuído, o que só faz dificultar sua
reinserção nos padrões aceitáveis de socialização.
Da mesma forma, é forte o estigma referente às pessoas portadoras de deficiência.
Estas, independentemente de suas potencialidades individuais, encontram-se amordaçadas por
uma ideia globalizante de incapacidade e invalidez, que compromete tremendamente seu
aproveitamento como força de trabalho, da mesma forma que diminui suas
possibilidades de realização afetiva, educacional e política.
Ao colocar as pessoas deficientes numa condição de inferioridade corpórea e de
incapacidade produtiva, a sociedade gera uma estratificação, com limites muito claros quanto às
possibilidades de realização pessoal, profissional e afetiva de seus membros. Rezende (1978, p.
164) identifica este fenômeno como uma patologia da cultura, uma vez que o sentido da existência
humana fica distorcido e condicionado a fatores arbitrários e escusos. Diz ele: "A estratificação, a
cristalização da existência humana, o seu endurecimento é, na realidade, uma esclerose da cultura
com a consequente perda da consciência, do discernimento."
A análise da problemática da defectologia no contexto da sociedade moderna passa,
como toda a problemática da delinquência, da discriminação racial e da discriminação sexual, pelo
veio político e econômico que, ao longo dos anos, se tornou mais complexo e mais estratificado do
que o percebido anteriormente.
Nas sociedades onde se verifica a predominância do modo de produção primário, onde
a moeda e a produção estão pouco desenvolvidas, mais fácil torna-se a convivência com a
diferença imposta pela deficiência. Já nas sociedades industrializadas, onde a moeda e a produção
tecnologizada estão em evidência, torna-se mais difícil a convivência com o diferente,
necessitando-se, portanto, da instalação de toda uma rede de aparatos institucionais para que os
critérios de eficiência e de ineficiência (ou deficiência) possam ser balizados e
controlados com maior eficácia.
Na opinião de Rezende (1978, p. 166), a exacerbação do tecnicismo nos dias de hoje
representa uma manifestação da cultura, uma vez que privilegia valores e estratifica os homens de
acordo com os princípios estabelecidos. Assim,
o mundo moderno que é o nosso criou um pragmatismo tecnológico, inspirado
num modelo mecanicista em que, a cultura funcionando como uma máquina, e
a ciência unindo-se à técnica, a ação é programada, de preferência por
máquinas aperfeiçoadas, de maneira que o resultado seja garantido com um
mínimo de riscos.
Ainda em relação às exigências da vida moderna, Rezende (1978, p. 167) alerta contra os
danos culturais advindos da supervalorização da máquina em detrimento do homem. Diz ele:
E assim como a ciência, (...) pode ser ocasião de uma ditadura cultural,
igualmente o é a tecnocracia. Esta, caracterizada pelos progressos que a ciência
lhe permitiu conseguir no tocante à dominação da natureza, acabou por
transformar-se num instrumento de dominação dos seres humanos, não só por
sua sujeição às exigências das máquinas, mas ainda pela
utilização destas últimas em detrimento dos homens.
Ao denunciar a produção social da marginalidade, Sant'Anna (1988, p. 89) acusa o
sistema brasileiro de ensino como um dos agentes mais eficazes desta produção. Diz ele:
Numa sociedade capitalista existe um processo constante de alienação e
reprodução das relações sociais de produção capitalista. A escola contribui
para esse processo na medida em que se caracteriza pelos altos índices de
repetência, de evasão e pelo limitado número de vagas nas escolas oficiais
em relação ao número de crianças em idade escolar. Esse "processo de
seletividade" empreendido pelo sistema educacional brasileiro encontra
suas causas na maneira como a escola lida com os alunos das classes
populares: linguagem, normas, conteúdos e cartilhas escolares retratam os
modos de vida da classe dominante, sua forma de vestir, falar, de se
relacionar com o outro.
Dessa forma o que acontece é que a deficiência, como estereótipo do desvio, também
se enquadra no grupo das marginalidades produzidas pela ideologia da classe dominante. Portanto,
não se pode dissociar a condição de indivíduo deficiente de uma idéia exterior de capacidade
produtiva e da concepção de corpo social que fundamenta todas as relações políticas e
econômicas.
Numa sociedade capitalista, onde as relações definem-se pela produção
e pelo lucro, o padrão ideal de homem segue os valores sociais determinantes.
Segundo Sant'Anna (1988), a sociedade comporta-se de modo a reivindicar como
normais os padrões da classe dominante, impondo uma exigência externa aos indivíduos
cujas existências apresentam-se como algo indesejável, como desviantes.
Ser deficiente significa, pois, ser não-eficiente, não-produtivo e não-adequado aos
fins maiores.
A concepção funcionalista de sociedade faz com que a mesma seja vista como um
corpo estruturado, com órgãos, e onde cada órgão tem uma função social muito precisa. Da
mesma forma que no corpo humano, os órgãos devem se relacionar entre si, trazendo uma
harmonia fisiológica para esse corpo. Para que se mantenha o equilíbrio, não devem existir
órgãos estragados ou em mau funcionamento. Nas palavras de Ribas (1983, p. 15), "Um
corpo com órgãos `deficientes' não é um `corpo social' bem-estruturado e em ordem. Dessa
forma, não é toda a sociedade que estaria fragmentada, mas apenas uma parte dela seria
considerada `fora do normal'".
Nessa perspectiva, o corpo humano é concebido da mesma forma que o corpo social.
Com algum órgão ou função deficiente, este corpo é considerado estruturalmente desorganizado.
Segundo Ribas (1983, pp. 15-16),
nesta sociedade a ordem é por demais valorizada. Sempre ouvimos as
pessoas dizerem que uma sociedade sem ordem jamais chegará ao
progresso. Sempre ouvimos também que um órgão qualquer que esteja
apresentando uma disfunção pode contaminar o resto do "corpo social".
Estas são ideias facilmente transponíveis para o nosso corpo humano
individual. Um corpo deficiente seria, sob este raciocínio, um corpo que
apresenta necessariamente disfunções,incapacidades e não estaria em
ordem. Um corpo que não está em ordem consequentemente não poderá
alcançar o progresso tão desejado. Logo, será um corpo fadado a não ter
realizações, a não ter progressos, a ser sempre dependente.
Como afirma Marques (1992b, p.8), neste jogo de forças o que se tem
é uma sociedade impregnada de preconceitos e de um espírito de
competição que, por prepotência dos ditos "normais", procura estabelecer
os limites do outro, como se este fosse um inválido e, consequentemente,
um ser digno apenas de "caridades" marginalizadoras
e humanamente humilhantes.
Sant'Anna (1988, p. 89) faz duras críticas ao modelo liberal conservador que domina nossas relações
sociais e econômicas, atribuindo a este modelo a existência de uma prática injusta e discriminatória. Diz ele:
O que existe é a "ideologia liberal" com o seu conceito de adaptação, com sua fantasia de
correção das injustiças sociais através da correção das disfunções do sistema, das
oportunidades iguais para todos, como se não fôssemos marcados desde o início pelas
diferenças sociais, pela dominação de classes que o próprio sistema (...) reproduz.
Na sociedade moderna, os sistemas de controle e discriminação da força de trabalho potencial devem
ser colocados no contexto de uma certa economia política do corpo, mesmo quando utilizam métodos suaves de
trancar ou corrigir.
Na verdade, é com o corpo, ou com a força de trabalho, que a sociedade moderna, no âmbito de sua
rede de poder, preocupa-se em última instância. Nesse sentido, a deficiência assume, na sociedade moderna, a marca
da incapacidade produtiva e da dependência econômica, fazendo de seu portador um ser inadaptado aos padrões de
aceitabilidade com que ela, sociedade, classifica seus membros. Um corpo improdutivo é, necessariamente, um corpo
deficiente. E é sobre esse corpo deficiente que as relações de poder têm alcance imediato. Elas investem nele,
dirigem-no, obrigam-no a situações determinadas por um contexto social mais abrangente. Este investimento ético e
político do corpo está ligado diretamente à sua utilização econômica. Contudo, este controle político do corpo não
está explícito nas leis e muito menos generalizado de forma homogênea pela sociedade.
Ele é exercido sutilmente pelas instituições e por aqueles que detêm o poder econômico,
estabelecendo aquilo que poder-se-ia chamar de "microfísica do poder" (Foucault 1985 e 1987).
Importa frisar, todavia, que esta microfísica não tem a intenção de se apropriar dos corpos
dominados, mas, sim, da ideologia que norteia os valores a que se prestam. Nesse sentido, ressalta Foucault
(1987, p. 29):
O estudo dessa microfísica supõe que o poder nela exercido não seja concebido como
uma propriedade, mas como uma estratégia, que seus efeitos de dominação não sejam
atribuídos a uma "apropriação", mas a disposições, a manobras, a táticas, a técnicas, a
funcionamentos; que se desvende nele antes uma rede de relações sempre tensas,
sempre em atividade, que um privilégio que se pudesse deter; que lhe seja dado como
modelo antes a batalha perpétua que o contrato que faz uma cessão ou a conquista que
se apodera de um domínio. (...) que esse poder se exerce mais que se possui, que não é
o "privilégio" adquirido ou conservado da classe dominante, mas o efeito de conjunto
de suas posições estratégicas - efeito manifestado e às vezes reconduzido pela posição
dos que são dominados.
Ainda em relação ao investimento no corpo, Carmo (1988, p. 7) diz que
O culto ao corpo, os exercícios de musculação, a nudez, e a exaltação estética do corpo,
são uma realidade inegável. Porém, é preciso perguntar: Isto existe para atender qual
tipo de corpo? Temos claro que isto não surgiu em função do
corpo, mas em função do poder exercido sobre o corpo.
Foucault (1985) e Carmo (1988) indagam que tipo de corpo a sociedade atual necessita para atingir
seus objetivos políticos e econômicos.
O que ocorre de fato é um processo de ideologização do corpo. Segundo Santin (1990, p. 143),
o corpo torna-se ideologia quando é reduzido a uma representação das classes sociais,
quando fica vinculado a formas estéticas, quando é submetido às discriminações raciais
ou quando se transforma em rótulo de embalagens de mercadorias, de gestos de
heroísmo, de ideais revolucionários ou reacionários e de sonhos de eugenia. O corpo é
ideologizado sempre que ele abdica de viver para submeter-se a outros interesses que
não representam a autenticidade da vida humana no desenrolar da convivência social.
Carmo (1988, p. 7) alerta para o fato de que,
por incrível que pareça não conseguimos ver nenhuma propaganda - exemplo de
determinante que atua na construção do corpo - que trate do belo, da saúde, do prazer,
dissociado de um produto industrializado ou com valor-de-troca.
O capitalismo investe no corpo não apenas explorando sua
força de trabalho no processo de produção, mas também
criando para o corpo "necessidades" valores-de-uso –
tornando-o cada vez mais submisso e menos corpo.
Omote (1990) denuncia a existência de um desleixo com a aparência física das pessoas
deficientes, como é o caso do trato dado ao deficiente mental em relação à sua estética. Isso, segundo
Vash (1988), tem sérias implicações na perspectiva de realização afetiva desses deficientes. Segunda
ela, esse desleixo com a aparência do deficiente mental pode representar um esforço intencional de
desencorajamento diante da possibilidade de acasalamento do mesmo.
Omote (1990, pp. 20-21) menciona, ainda, o fato de que a baixa atratividade física facial
favorece a avaliação negativa das pessoas em relação aos pouco atraentes. Diz ele:
Pessoas não atraentes, comparativamente às atraentes, têm probabilidade maior de serem
vistas como sendo desajustadas psicologicamente (...), portadoras de epilepsia (...), homossexuais ou
politicamente radicais (...) e feministas.
Como exemplo, Omote (1990, p. 22) cita os portadores da Síndrome de Down como um
alvo fácil de preconceitos sobre sua capacidade física e intelectual. Diz ele: "Os portadores da
Síndrome de Down têm sido comumente vistos através de estereótipos e, por causa da aparência
evidente de anomalia, facilmente podem ser subestimadas as suas competências em diversas áreas."
Cumpre ressaltar o quanto os indivíduos deficientes internos nas instituições assistencialistas
introjetam e reproduzem o modelo institucional no qual vivem. Com raríssimas exceções, o deficiente interno
quase sempre se identifica inteiramente com as normas que regem a dinâmica da instituição. A rotina passa a
ser o certo, e o novo amedronta tanto quanto a possibilidade de perder o amparo institucional. Em
consequência, estabelece-se uma forte trama de controle disciplinar entre os próprios internos, que passam a
vigiar uns aos outros, perpetuando a disciplina e fazendo com que somente as decisões maiores sejam
atribuídas à autoridade constituída. Neste cenário, a figura do alcaguete, ou "dedo-duro", assume um
importante papel no controle disciplinar, fazendo com que as infrações, ou mesmo as tentativas de infração,
cheguem ao conhecimento da autoridade constituída, e as punições sejam oficializadas.
Além disso, é comum verificar-se uma certa "resignação" dos internos quanto à possibilidade de
realização afetiva, ou seja, a ideia de que o deficiente não deve namorar ou casar passa a ser aceita com uma
certa normalidade, além das ideias de que é muito difícil para ele sustentar uma família e de que seus filhos
serão sempre deficientes como ele.
Do mesmo modo, é forte a concepção de que o deficiente não pode desempenhar com sucesso
as atividades profissionais desempenhadas pelas pessoas normais, e de que a oportunidade de trabalho dada
a ele representa sempre um ato de caridade por parte do empregador.
Tais ideias, na verdade, representam a materialização de um estereótipo que está ligado muito
mais à instituição como um todo do que ao indivíduo tomado como tal. O que se quer dizer é que o fato deuma pessoa morar ou frequentar uma determinada instituição já basta para que se difunda o arquétipo da
incapacidade, sem que antes se busque conhecer o potencial desse indivíduo, independentemente do tipo e
grau de sua deficiência.
De acordo com Telford e Sawrey (1976), as atitudes pessoais e sociais para com as pessoas
excepcionais têm poucas relações com o modo ou a extensão da excepcionalidade física; estão mais
intimamente relacionadas com coisas superficiais como a evidência ou a identificabilidade do desvio.
A instituição de amparo à pessoa portadora de deficiência possui, além da função explícita de
cuidar do deficiente, a função mascarada de difundir uma imagem estereotipada da deficiência, ideia
generalizante e que serve como um eficiente instrumento de identificação de toda uma categoria, além de
estabelecer para a mesma seus direitos e suas capacidades.
Por mais que este segundo papel institucional atenda com bastante eficiência aos propósitos da
identificação, no entanto, deixa escapar por completo a ideia de individualidade, já que o indivíduo deficiente
não é visto como um ser único, indissociável e autêntico, mas, sim, como um dado de uma realidade maior,
que é a categoria a que pertence. Por exemplo, um indivíduo surdo será sempre igual a
todos os demais surdos, isto é, apresentará sempre as características das pessoas surdas e
não suas próprias intenções e possibilidades.
Cumpre ressaltar, todavia, que a questão ora tratada não se restringe, e nem pretende se limitar,
à análise estrutural da instituição de amparo à pessoa portadora de deficiência. A presente reflexão visa, antes
de mais nada, identificar a trama política que perpassa todas as manifestações humanas, inclusive a prática
assistencialista das instituições "beneficentes". Conforme diz Foucault (1987, p. 30), o que está em análise é o
corpo político
como conjunto dos elementos materiais e das técnicas que servem de armas, de
reforço, de vias de comunicação e de pontos de apoio para as relações de poder e de
saber que investem os corpos humanos e os submetem, fazendo deles objetos de
saber.
Esta introjeção do modelo institucional é resultante de uma trama sutil e constante, que só pode
ser dita eficiente a partir do momento em que o indivíduo controlado passa a difundir os valores introjetados
em nome de uma verdade construída fora de seus limites de compreensão e interesses. É importante
ressaltar, ainda, que tal fenômeno apresenta uma grande semelhança com aquele demonstrado por Foucault
(1987, p. 38), ao tratar o processo de transferência da carga punitiva do acusador para o próprio acusado. Diz
ele: "A única maneira para que a verdade exerça todo o seu poder, é que o criminoso tome sobre si o próprio
crime e ele mesmo assine o que foi sábia e obscuramente construído pela informação."
Este depoimento é tanto mais significativo quanto mais "espontânea" e "consciente" for sua
construção. Contudo, tal dado não pode ser tomado como causa ou justificativa para nenhuma análise conclusiva,
visto ser apenas uma consequência de toda uma trama social de poder que transcende todos os aspectos
psicossociais do indivíduo tomado isoladamente. Nesse caso, o indivíduo deficiente deve ser visto mais como um
produto dessas relações sociais de poder, já que sua capacidade de intervenção direta em tal processo é
praticamente nula.
A problemática vivida pelo indivíduo portador de deficiência no interior das instituições
assistencialistas, guardadas as devidas proporções, assemelha-se bastante à realidade vivida pelos delinquentes e
infratores condenados ao isolamento nos cárceres e nas prisões. Nesta perspectiva, importa rever algumas
abordagens acerca da evolução histórica do tratamento dado pela sociedade aos chamados destoantes, desde o
período dos castigos corporais (suplício) até o advento da prisão, em substituição à antiga forma de condenação.
Ao se referir ao processo de substituição da prática do suplício pela condenação ao cárcere privado,
Foucault (1987, p. 15) diz que "é a própria condenação que marcará o delinquente com sinal negativo e unívoco."
Da mesma forma, entende-se, que a prática do internamento das pessoas portadoras de
deficiência em instituições filantrópicas representou uma espécie de condenação, uma
vez que veio favorecer a identificação do desvio, criando uma espécie de máscara ou
rótulo que só fez fortalecer ainda mais o estigma da inferioridade
em relação às pessoas entregues ao isolamento dos asilos,
das clínicas, dos educandários etc.
Ao se referir ao comportamento social diante da diferença imposta pela deficiência, Marques (1992a)
aponta para a existência de uma tendência à padronização do desempenho das pessoas no tocante ao seu
comportamento ético, à sua estética e a todos os aspectos que favoreçam a absolutização da normalidade. Tal
tendência objetiva estabelecer os limites permitidos e excluir o indesejável.
Em termos práticos, a existência de uma "estrutura paralela" inverte o sentido do mérito atribuído à
instituição de amparo à pessoa deficiente, colocando a sociedade, e não o deficiente, como a verdadeira beneficiária
desta política de isolamento social a que estão submetidos os internos dos asilos, das clínicas, dos orfanatos etc.
Marques (1992a, p.4) diz
ser a sociedade a maior beneficiária, e não o indivíduo assistido. Pior do que isto, esta
estrutura paralela só reforça ainda mais o aspecto negativo da deficiência, tornando mais
fácil a identificação das pessoas assistidas por esta estrutura.
Sem considerar o alto custo financeiro desta estrutura paralela, o que determina tal prática é, sem
sombra de dúvida, o caráter ético e político de sua existência.
Evidentemente, não se defende o abandono dos indivíduos excepcionais à mendicância e às
intempéries, mas entende-se que a institucionalização da deficiência gerou um certo mal-estar, em toda a sociedade,
em relação às próprias instituições e às pessoas ali residentes. Também não se deseja entrar no mérito do
assistencialismo ora desenvolvido, mesmo porque não se tem como avaliar as práticas de
tais instituições em sua totalidade. Limita-se, aqui, pois, a demonstrar que uma
séria consequência social da instituição de amparo à deficiência é o fortalecimento
do preconceito e da discriminação.
Outro paralelo que se pode traçar diz respeito ao papel social dos internatos. Da mesma forma que
Foucault (1987) demonstra que o substituto do suplício, ou seja, a prisão, não possui a função de punir, também a
instituição de assistência à pessoa portadora de deficiência não tem a finalidade de punir ou segregar, mas, sim, de
minimizar as mazelas vividas pelos deficientes. Assim, diz Foucault (1987, p. 15) que "o essencial é procurar corrigir,
reeducar".
Sant'Anna (1988, p. 91) reforça a posição de Foucault, segundo a qual
todas as instituições têm como finalidade a produção de corpos dóceis e produtivos, e que
formar, controlar, reprimir, disciplinar são funções transversais das instituições, destinadas a
fixar a ordem institucional, garantindo dessa forma a estrutura e as relações sociais de
dominação.
Desse modo, a instituição não pode ser vista como um lugar de discriminação e controle. O que ela
representa é a viabilização da reabilitação das pessoas deficientes que, para a sociedade, estando na instituição, não
sofrem qualquer tipo de privação ou necessidade específica, uma vez que estão satisfeitas suas necessidades
mínimas de alimentação, alojamento e saúde. No entanto, o que as pessoas em geral não conseguem entender é que
as aspirações do ser humano ultrapassam o simples suprimento das necessidades básicas de sobrevivência,
abrangendo, também, os níveis de realização afetiva, profissional, de lazer, de educação, entre outros.
A institucionalização da assistência à pessoa deficiente nada mais representa do que uma nova forma de
se lidar com a questão da diferença, ou seja, a manifestação de novos padrões éticos, onde os valores morais
continuam sendoo da discriminação e o da segregação do indivíduo excepcional, pois que os rótulos da incapacidade
e do indesejável continuam determinando a forma de relação entre os cidadãos ditos normais e aqueles que vivem
confinados nas instituições de amparo à deficiência.
A grande contribuição de Foucault (1987, pp. 18-19) para esta reflexão reside no fato de demonstrar
como a sociedade moderna conseguiu substituir as velhas práticas de discriminação dos indivíduos desviantes e sua
punição por práticas menos chocantes, mas não menos eficientes. Diz ele:
Desaparece, destarte, em princípios do século XIX, o grande espetáculo da punição física: o corpo
supliciado é escamoteado; exclui-se do castigo a encenação da dor. Penetramos na época da sobriedade punitiva.
Podemos considerar o desaparecimento dos suplícios como um objetivo mais ou menos alcançado.
Da mesma forma, o comportamento da sociedade moderna modificou-se em relação às pessoas
portadoras de deficiência. Antes, as mesmas ficavam entregues à exposição pública, sujeitas à compaixão ou ao
sentimento de pena e caridade de alguns ou à condenação impiedosa por parte de outros. Com o advento da prática
de institucionalização, na verdade, o quadro não foi modificado em sua essência, uma vez que o indivíduo deficiente
não deixou de ser visto como um ponto fora da curva de normalidade; só que, agora, não mais jogado pelas ruas,
mas protegido por um rótulo de desviante dado a uma categoria e não a ele individualmente.
Assim, ser interno numa instituição de amparo à deficiência passou a significar pertencer a
uma categoria marcada pela incapacidade e pela dor.
O que se pretende mostrar é que o estigma, que antes era do indivíduo, passou a ser assumido
como um estigma coletivo, ou seja, por exemplo, mais importante do que "Pedro" ou "João", internos numa
instituição de amparo à cegueira, é a ideia que se tem da categoria de "cego", surgida da substituição do
individual pelo institucional, ou da deficiência visual do indivíduo pela deficiência visual como entidade
autônoma capaz de igualar milhões de indivíduos.
O que se observa, de fato, é a adoção de novos mecanismos de controle e de discriminação,
estando este processo ainda longe de atingir um fim. Nesse sentido, as instituições de assistência à pessoa
deficiente passaram a representar a nova ética do entendimento da diferença e das possibilidades de realização
das pessoas deficientes.
Da mesma forma que a finalidade da prisão não é a de punir fisicamente o condenado, mas, sim, de
lhe oferecer as condições de que necessita para se recuperar perante a sociedade, a instituição de amparo à
pessoa deficiente em momento algum pretendeu punir o indivíduo deficiente por sua diferença. No entanto, tal
instituição acabou se transformando numa espécie de prisão, onde o deficiente é facilmente identificado como
desviante e onde os objetivos maiores, que pressupõem sua recuperação, não são assumidos pela sociedade em
geral.
De modo geral, o que se percebe é que os princípios colocados por Foucault (1987, p. 20) em
relação à mudança de atitude da sociedade moderna no tocante à substituição do suplício ou do castigo
corpóreo pela punição moral e incorpórea da prisão aplicam-se, perfeitamente - guardadas as devidas
proporções -, à mudança ocorrida na forma de tratamento dispensado às pessoas portadoras de deficiência que
saíram da sarjeta para o confinamento dos internatos assistencialistas. Diz ele: "Entretanto, foi visto, durante
muito tempo, de forma geral, como se fosse fenômeno quantitativo: menos crueldade, menos sofrimento, mais
suavidade, mais respeito e `humanidade'.“
O mais interessante, contudo, é que a ideia de "capacidade" e "incapacidade" determinada pela
diferença foi mantida ao longo dos anos. A mudança na forma de tratamento das pessoas deficientes não
ocasionou uma mudança substancial no nível de consciência e na mentalidade da população em geral.
Ao se referir às modificações ocorridas no código penal da sociedade moderna, Foucault (1987, p.
21) atenta para a abrangência da vigilância e da punição, dizendo:
A relativa estabilidade da lei obrigou um jogo de substituições sutis e rápidas. Sob o
nome de crimes e delitos, são sempre julgados corretamente os objetos jurídicos
definidos pelo Código. Porém julgam-se também as paixões, os instintos, as anomalias,
as enfermidades, as inadaptações, os efeitos de meio ambiente
ou de hereditariedade.
Desse modo, muito mais do que suprir as necessidades básicas de sono, alimentação e saúde dos
internos deficientes, a instituição assistencialista presta-se também ao controle de seus tutelados, neutralizando
sua ação como homens em nome da neutralização dos efeitos de suas diferenças.
Observa-se, ainda, a presença do princípio de normalização no discurso ético da instituição de
amparo à pessoa deficiente, da mesma forma que este princípio perpassa todo o discurso ético da prisão.
Outro dado interessante a ser ressaltado é o fato da multiplicidade de instâncias periciais a que
ficaram expostos os indivíduos deficientes entregues às instituições destinadas ao seu amparo. Tal fato
promoveu, em verdade, um estado de letargia social que, por questões óbvias, passou a depender dos laudos
dos especialistas para a provisão da educação, do lazer, das oportunidades de trabalho e, até mesmo, da
possibilidade de busca de realização afetiva.
Sant'Anna (1988, p. 92) critica severamente o papel dos especialistas que emitem laudos
incapacitantes sobre os indivíduos deficientes, fortalecendo o poder institucional sobre a potencialidade
humana. Diz ele: "Toda uma equipe de técnicos, com instrumentos de validade duvidosa, emite laudos cuja
função é configurar o rótulo de deficiente, classificar e segregar os desviantes."
Como desdobramento, verifica-se uma completa transferência de responsabilidade da sociedade para
a instituição assistencial, como se esta fosse a dona do saber e da própria liberdade do indivíduo deficiente. Certa
feita, um jovem deficiente visual de nossa cidade - Juiz de Fora, Minas Gerais - dirigiu-se a uma grande empresa
local para pedir emprego. No entanto, antes que expusesse sua intenção, o funcionário que o recebera logo se
prontificou a telefonar para a instituição mais conceituada de amparo à pessoa cega do município, para que a
mesma providenciasse a remoção daquele "cego perdido". Na verdade, o caso acima descrito resume a forma
como a sociedade, de ummodo geral, vê a relação da instituição assistencial com a deficiência por ela atendida.
Em verdade, a instituição de amparo à pessoa portadora de deficiência representa, no contexto da
sociedade moderna, uma explicitação da tecnologia do poder sobre o corpo, poder que se exerce sobre os que são
punidos pelas infrações cometidas e, de forma mais geral, sobre os que são vigiados, treinados e corrigidos, sobre
os considerados loucos, sobre as crianças, os deficientes, os escolares, os colonizados, sobre os que são fixados a
um aparelho de produção e controlados durante toda sua existência.
A proliferação das instituições de amparo às pessoas portadoras de deficiência teve, e ainda tem, um
duplo significado: por um lado, serviu para tirar do relento aqueles que não podiam suprir as próprias
necessidades e ficavam entregues à misericórdia dos corações bondosos; por outro, contribuiu implicitamente
para a manutenção da condição de subalternidade de seus internos em relação à sociedade em geral, que teve
difundido e fortalecido seu poder de controle e de discriminação sobre os desviantes,
que representavam, em última instância, uma ameaça à ordem social ideologicamente
estabelecida.
Mais uma vez, torna-se possível estabelecer um paralelo com o processo de mudança das práticas
de condenação pelo suplício para a modalidade de prisão descrita por Foucault (1987, p. 82), onde o objeto de
punição deixou de ser o corpo físico do condenado e passou a ser sua alma. Tal processo provocou uma
verdadeira mudança de atitude na sociedadeem geral, que passou a utilizar canais mais sofisticados e eficientes
para o enfrentamento das questões relativas à identificação e ao tratamento dos indivíduos desviantes. Assim
escreveu ele:
A pressão sobre as ilegalidades populares se tornou (...) um imperativo essencial, que a
reforma pôde passar da condição de projeto à de instituição e conjunto prático. Quer
dizer que se, aparentemente, a nova legislação criminal se caracteriza por uma
suavização das penas, uma codificação mais nítida, uma considerável diminuição do
arbitrário, um consenso mais bem estabelecido a respeito do poder de punir (na falta
de uma partilha mais real de seu exercício), ela é apoiada basicamente por uma
profunda alteração na economia tradicional das ilegalidades e uma rigorosa coerção
para manter seu novo ajustamento. Um sistema penal deve ser concebido como um
instrumento para gerir diferencialmente as ilegalidades, não para suprimi-las todas.
Deslocar o objetivo e mudar sua escala. Definir novas táticas para atingir um alvo que agora é mais
tênue mas também mais largamente difuso no corpo social. Encontrar novas técnicas às quais ajustar as
punições e cujos efeitos adaptar. Colocar novos princípios para regularizar, afinar, universalizar a arte de castigar.
Homogeneizar seu exercício. Diminuir seu custo econômico e político aumentando sua eficácia e multiplicando
seus circuitos. Em resumo, constituir uma nova economia e uma nova tecnologia do poder de punir: tais são sem
dúvida as razões de ser essenciais da reforma penal.
Nesse sentido, como fica a posição do próprio indivíduo desviante? Em termos concretos, ele se
constitui numa figura paradoxal. Por um lado, ele representa a fuga do padrão tido como normal; por outro,
precisa reconhecer e assumir sua condição de desviante, transformando em aceitável e natural o procedimento
dos ditos normais em relação a ele. Nessa perspectiva, o desvio decorrente da limitação física, mental ou
sensorial recebe, na proporcionalidade de seus reflexos, um tratamento análogo àquele destinado aos
desviantes criminosos que atentam, como os primeiros, contra a ordem social maior.
Do ponto de vista social, a instituição de amparo à excepcionalidade assume a importante função
de controlar não só a defectologia explícita, mas, principalmente, os efeitos dela decorrentes, a saber, a força de
trabalho potencial e a iminência da multiplicação dos casos de excepcionalidade que pode advir de uma
liberdade sexual não vigiada. Assim, a instituição exerce um importante controle econômico e psicossexual
sobre seus tutelados, impedindo que os mesmos atinjam os níveis possíveis e desejáveis de realização
profissional e afetiva para o ser humano, independente de sua condição física, mental ou sensorial. Desse modo,
é fundamentalmente importante o papel preventivo que a instituição assistencialista exerce na sociedade, dado
que ajuda a afastar os males que ameaçam atentar contra ela. E é esta "visão do futuro" que fortalecerá cada
vez mais o poder desse tipo de instituição junto à sociedade. Nesse sentido, é importante que seja difundida a
ideia de que a pessoa deficiente é, ao mesmo tempo, incapaz ou inválida e que os efeitos funestos da
excepcionalidade sejam cada vez mais rechaçados do seio da sociedade, que necessita de homens perfeitos para
a perpetuação de seus sonhos paradisíacos.
A importância do domínio, pela sociedade, da vigilância e da atribuição de direitos e deveres às
pessoas deficientes pode ser demonstrada pela fala de Servan apud Foucault (1987, p. 93), ao se referir à
propagação do domínio da ideia de crime e de castigo. Para ele, essas ideias têm de estar fortemente ligadas e
se suceder sem intervalo (...) Quando tiverdes conseguido formar assim a cadeia das
ideias na cabeça de vossos cidadãos, podereis então vos gabar de conduzi-los e de ser
seus senhores. Um déspota imbecil pode coagir escravos com correntes de ferro; mas
um verdadeiro político os amarra bem mais fortemente com a corrente de suas
próprias ideias; é no plano fixo da razão que ele ata a primeira ponta; laço tanto mais
forte quanto ignoramos sua tessitura e pensamos que é obra nossa; o desespero e o
tempo roem os laços de ferro e de aço, mas são impotentes contra a união habitual das
ideias, apenas conseguem estreitá-la ainda mais; e sobre as fibras moles do cérebro,
funda-se a base inabalável dos mais sólidos impérios.
Nesse sentido, a arte de vigiar e punir deve repousar sobre uma tecnologia da representação.
Encontrar para um desvio as proposições que convêm é encontrar a desvantagem cuja ideia seja tal, que torne
definitivamente sem importância a ideia de se tornar um desviante. Importa, então, à ordem, estabelecer pares
de representação de valores opostos, instaurando diferenças quantitativas entre o
normal e o anormal, submetendo estas normas categoriais a uma relação de poder.
Contudo, essa relação deve parecer a mais natural possível, o que representa estar
cada vez mais distante da arbitrariedade.
Bibliografia
CARMO, Apolonio A. do."Estigma, corpo e `deficiência'." Revista Brasileira de Ciências do Esporte, nº. 3, Uberlândia, UFU, Maio 1988, v.
9, pp. 5-8.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 5ª ed. Rio de Janeiro, Graal, 1985.
_____. Vigiar e punir. Petrópolis, Vozes, 1987.
MARQUES, Carlos Alberto. "A estrutura paralela do ensino especial." Tribuna da Tarde. Juiz de Fora, 10 jul. 1992a, p. 4.
_____. "Deficiência visual: Um desafio a ser pensado." Integração, nº 8, Brasília: MEC, Jan./fev./mar. 1992b, v. 4, pp. 8-9
OMOTE, Sadao."Aparência e competência em educação especial." Temas em Educação Especial a. São Carlos, UFSCar, 1990, pp.11-26.
REZENDE, Antônio Muniz. "Pistas para um diagnóstico da patologia cultural." In: Morais, J.F. Regis de (org.). Construção social da
enfermidade. São Paulo, Cortez & Moraes, 1978, pp. 157-179.
RIBAS, João B.C. O que são pessoas deficientes? São Paulo, Brasiliense, 1983.
SANT'ANNA, Gilson Carlos. "O excepcional e a excepcionalidade da ordem sócio-cultural." Forum Educacional, nº 4. Rio de Janeiro: FGV,
Out./dez. 1988, v. 12, pp. 86-97.
SANTIN, Silvino. "Aspectos filosóficos da corporeidade." Revista Brasileira de Ciências do Esporte, nº 2, Campinas, ICEA, Jan. 1990, v. 11,
pp. 136-145
TELFORD, Charles e SAWREY, James. O indivíduo excepcional. 2ª ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1976.
VASH, Carolyn L. Enfrentando a deficiência. São Paulo, Pioneira, 1988.

Continue navegando