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Filosofia da Religião Material Teórico Responsável pelo Conteúdo: Prof. Dr. Valter Luiz Lara Revisão Textual: Profa. Ms. Alessandra Fabiana Cavalcanti Religião no mundo atual: fanatismo, alienação ou utopia? • Introdução • O fanatismo religioso • Funções psicossociais da religião • Religião como alienação e utopia • Conclusão · conhecer as relações da religião com os modelos gerais de fanatismo em outras áreas da vida humana; · perceber a religião como fenômeno de interação entre indivíduo e sociedade; · demonstrar a religião em sua interação com aspectos psicológicos, emocionais e sociais; · aprender a identificar tendências comportamentais religiosas de fanatismo, alienação e utopia. OBJETIVO DE APRENDIZADO A presente unidade é sobre o caráter psicossocial da religião. A dimensão psicológica e emocional é, talvez, a mais influente condicionante da crença religiosa para a vida de uma pessoa. O caráter cultural e sociopolítico da religião está presente, mas sempre ancorado na dimensão psicológica. Por isso, procure observar, ao ler os textos dessa unidade, como a religião só se entende quando são desvendadas as relações de mútua implicação entre indivíduo e sociedade. As razões alegadas para explicar as crenças religiosas não esgotam os motivos emocionais dos comprometimentos religiosos. Tente confrontar e aplicar à sua própria experiência religiosa ao que você vai aprender aqui sobre fundamentalismo, alienação e utopia. A pergunta mais relevante e que provavelmente nem seja teórica, embora exija uma teoria bem fundamentada, é essa: a religião é utopia ou alienação? Não se apresse em respondê-la. Qualquer que seja a resposta, ela não pode se contentar com uma análise genérica, abstrata ou essencialista do fenômeno religioso. O que isso significa? Significa que afirmar se a religião é alienação ou utopia requer análise caso a caso, segundo o modo como são vividas as crenças religiosas nas situações concretas delineadas em sua mais completa inserção histórica e social. ORIENTAÇÕES Religião no mundo atual: fanatismo, alienação ou utopia? UNIDADE Religião no mundo atual: fanatismo, alienação ou utopia? Contextualização Leia o trecho da notícia divulgada pelo site do Jornal ODIA em 07 de Janeiro de 2015 no link a seguir: https://goo.gl/FDLf2aEx pl or Como vimos, através desse episódio muito bem divulgado em todo o mundo, o fundamentalismo religioso não é um problema teórico e nem é só um problema da França ou do semanário que tem ousado debochar de crenças religiosas as mais diversas, inclusive islâmica, mas também cristã, católica, evangélica e judaica. Independentemente do que você pensa sobre a liberdade de expressão e até onde se deve brincar com a fé alheia, o fato é que a violência em nome de Deus foi praticada e custou a vida de 12 pessoas. Na história da humanidade genocídios foram praticados apelando-se para a fé religiosa. “Guerras santas” marcaram as páginas de nossa história com sangue e muita reza... Até que ponto a religião pode ser considerada como razão suficiente para vitimar pessoas, grupos e nações inteiras? Existe alguma utopia, isto é, ideal de sociedade religiosa perfeita que justifique sacrifícios humanos? Faz parte da lógica religiosa a alienação da consciência em nome da obediência cega a seus líderes? Pois esse é o tema da unidade sobre religião no mundo atual. Leia, reflita e faça a sua análise crítica dos autores que pensaram a religião na perspectiva do conceito de alienação e julgue por si mesmo a questão chave dessa unidade: a religião é utopia ou alienação? 6 7 Introdução A primeira condição para uma abordagem da religião que pretenda ser crítica é discutir suas funções socioculturais que ao longo da história humana objetivamente influenciou e referendou processos de socialização, consolidação, legitimação transformação ou manutenção da realidade social vigente. O espaço aqui não permite o enfoque histórico, mas tê-lo como pressuposto favorece a compreensão do papel que a religião tem assumido nas mais complexas situações do mundo atual. Raramente pode-se prescindir da religião para compreender os conflitos geopolíticos. Confrontos culturais entre ocidente e oriente passam por dificuldades e guerras históricas entre cristãos e mulçumanos. A luta entre Palestinos e Judeus é outro exemplo típico de conflito com contorno religioso. Evidentemente que a dimensão religiosa não esgota e às vezes sequer é o problema mais importante nesses conflitos. Porém, o fato é que as crenças configuram as identidades envolvidas e são trazidas para o repertório de justificativas das disputas em jogo. Em nosso país, por exemplo, em São Paulo, no dia 19 de março de 1964, mais de um milhão de pessoas saíram às ruas naquela que ficou conhecida como “Marcha da família com Deus pela liberdade”. É sabido como esse movimento de características explícitas e admitidamente religiosas, de contorno católico, acabou fortalecendo e deflagrando o que dias mais tarde em 31 de março, viria acontecer: o golpe militar, interrompendo tendências para executar reformas de base nas estruturas da sociedade brasileira (DIAS, 2010, p. 262). Neste sentido, o objetivo da presente unidade de estudo sobre o fenômeno religioso é aprofundar a dimensão da função social da religião apontando inclusive alguns elementos de seu caráter cognitivo, psicológico e emocional. A pergunta pelo fanatismo religioso e sua relação com utopia ou alienação encontra-se justamente no cruzamento entre os papeis social e psicológico da religião. Desse modo, traçamos o seguinte itinerário para o estudo da unidade: começa pela definição de fanatismo (1) e o elenco descritivo das mais diversas funções da religião, com o destaque para os papeis psicossociais da religião (2). Em seguida, à luz dos conceitos de utopia e alienação (3) vamos acompanhar como autores como Feuerbach (3.1), Marx (3.2) e Freud (3.3) se posicionaram a esse respeito. Por fim, apresentaremos uma breve conclusão sobre o papel da religião na atual conjuntura da sociedade urbana e pluralista em que vivemos. 7 UNIDADE Religião no mundo atual: fanatismo, alienação ou utopia? O fanatismo religioso Discutir o fanatismo religioso é voltar o foco da análise para as suas funções psicossociais da religião, mas também verificar como o complexo das dimensões cognitivas e emocionais dos indivíduos é afetado pelas crenças religiosas. Afinal de contas, o fanatismo é um traço que se observa socialmente, mas está enraizado nas estruturas psicoemocionais do sujeito e não se expressa apenas como crença religiosa. Segundo o dicionário Aurélio, fanático é aquele que segue cegamente uma doutrina ou partido, o termo não está ligado unicamente a doutrinas políticas ou religiosas, pois tudo aquilo que leva o indivíduo ao exagero é considerado como forma de fanatismo. Uma pessoa pode ser fanática por amar exageradamente uma pessoa, objeto, time de futebol, etc., o erro mais comum das pessoas é o de designar fanatismo como sendo algo exclusivamente religioso e político (PERCÍLIA, s/d,). O fanatismo religioso é uma expressão bem conhecida socialmente; caracteriza- se pelo radicalismo, pela intolerância e pela defesa absoluta, intransigente das verdades pelas quais se está disposto a viver e a morrer. Fanatismo vem do latim fanaticus, quer dizer “o que pertence a um templo”, fanum. O indivíduo fanático ocupa o lugar de escravo diante do senhor absoluto, que, pode ser uma divindade, um líder mundano, uma causa suprema ou uma fé cega. O fanatismo é alimentado por um sistema de crenças absolutas e irracionais que visa a servir a um ser poderoso empenhado na luta contra o Mal. Ou seja, o fanático acha que pode “exorcizar pessoas e coisas supostamente possuídas pelo demônio”, “combater as forças do mal” ou “salvar a humanidade” do caos (LIMA, 2002). Violência contra si mesmo ou contra os inimigos é uma atitude inerente ao fanático. Por isso, nem todo radicalismo ou fé comprometidaradicalmente com os seus pressupostos ou implicações é necessariamente expressão de fanatismo. A eliminação do adversário e de quem pensa diferente e o combate ao inimigo como missão que se pode pagar com a própria vida são características mais adequadas para definir o fanático em qualquer setor da vida humana. A negação do diálogo e a intransigência do monólogo são sintomas do fanatismo. O problema da religião não é a paixão “fé”, mas a inquestionalidade de seu método. O método de qualquer religião traz uma certeza divulgada em forma de monólogo, jamais de diálogo ou debate de idéias. O pastor, padre, rabino, ou qualquer pregador de rua, vivem o circuito repetitivo do monólogo da pregação; acreditam que “vale tudo” para difundir a “verdade única” que o tocou e o transformou para sempre! O estilo fanático usa e abusa do discurso monológico delirante, declarações, comunicados, que jamais se voltam para escuta ou o diálogo, exercício esse que faria emergir a verdade - não a “certeza” (LIMA, 2002). 8 9 O problema maior do fanatismo religioso é que o sujeito acredita estar a serviço do ser supremo ou de forças sagradas que legitimam a “verdade”, a “ética” e a “bondade” absolutas de seus atos. Se no fanatismo o sujeito inexiste para dar lugar ao Senhor absoluto e maravilhoso, então faz sentido não assumir a sua própria responsabilidade, porque ela é “obra do Senhor”, “o Senhor quer que eu faça”, “foi a mão de Allah”, etc. São mais do que frases, são efeitos de uma poderosa “fantasia da eleição divina” onde o sujeito é nadificado para dar lugar ao discurso delirante da salvação messiânica (LIMA, 2002). O fanatismo religioso, como se vê pressupõe atitudes com um determinado perfil psicossocial. Neste contexto, faz-se necessário descrever o potencial de funções psicossociais da religião que afetam indivíduos, grupos e sociedades inteiras. Funções psicossociais da religião A religião como fenômeno sociológico possui funções de humanização e inserção e adaptação dos sujeitos às estruturas e às instituições sociais. O processo de socialização e a demarcação dos principais momentos do ciclo da vida pertencem ao universo das celebrações e dos ritos de passagem das religiões. A seguir descrevemos as dez funções da religião, segundo a concepção do sociólogo Reinaldo Dias (2010, p. 261-262): 1ª) Socialização; 2ª) Influência na configuração de instituições como família, educação e Estado; 3ª) Força de controle social; 4ª) Promoção ou contenção do conflito social; 5ª) Fator de sociabilidade e interação social; 6ª) Explicação de fenômenos ainda não desvendados pela ciência; 7ª) Instrumento de exclusão e de perseguição de pessoas e de grupos indesejados por setores hegemônicos da sociedade; 8ª) Força conservadora e contrária a processos de mudança social; 9ª) Coesão e unidade social; 10ª) Promoção da solidariedade grupal. Essas mesmas funções sociais da religião podem ser analisadas sob a ótica psicológica, uma vez que o indivíduo deve possuir estrutura psicoafetiva compatível para se deixar afetar e, ao mesmo tempo, aderir ativamente às crenças e às práticas religiosas. Nessa perspectiva opera a psicologia da religião. 9 UNIDADE Religião no mundo atual: fanatismo, alienação ou utopia? Quanto à função psíquica da religião, podem-se distinguir aspectos cogni- tivos, emocionais e pragmáticos. Cognitivamente, as religiões sempre ofe- receram uma ampla interpretação do mundo: elas atribuem ao ser humano seu lugar no universo das coisas. [...] Emocionalmente a religião possui funções semelhantes: ela proporciona um sentimento de segurança neste mundo e uma confiança de que, no final, porém, tudo ficará bem ou pode- ria ficar bem. Precisamente por esse motivo, ela ocupa-se das situações-li- mite, quando essa confiança é ameaçada e abalada: na angústia, na tristeza, na culpa e no fracasso. Aqui ela estabiliza as pessoas diante do perigo de desmoronamento emocional. [...] a função pragmática da religião consiste em que ela legitima formas de vida com seus padrões de comportamento. Também aqui nos deparamos com uma proximidade entre superação de crises e provocação de crises (THEISSEN, 2009, p. 22 e 23). Segundo essa abordagem psicossocial proposta por Gerd Theissen, sociólogo alemão do cristianismo primitivo, há três funções da religião que interagem afetando o modo como o indivíduo reage diante da realidade social: a cognitiva, a emocional e a pragmática. Trata-se de funções que estão diretamente ligadas à noção de adaptação do indivíduo à sociedade e como isso se dá em relação aos momentos de crise social. Veja o quadro abaixo (THEISSEN, 2009, p. 23) a síntese dessa visão psíquica da religião: Religião como força ordenadora Religião como superação de crises Religião como provocação de crises Cognitiva Construção de uma confiança emocional fundamental numa ordem legítima Superação de crises cognitivas: confusão mediante experiências-limite Provocação de crises emocionais por meio do medo, do sentimento de culpa etc. Pragmática Construção de formas de vida aceitáveis, seus valores e normas Superação de crises: conversão, expiação, renovação Provocação de crises: mediante a sensação do insispensável O pressuposto de Theissen é a concepção de que “as religiões são sistemas socioculturais de sinais” (2009, p. 24) produtores de adaptação do indivíduo à sociedade, ora como legitimação, ora como proposta de alteração da ordem social vigente. O quadro das funções psicossociais, segundo Theissen (2009, p. 25) pode ser demonstrado a partir de uma dupla função: a de socialização do indivíduo e a de regularização dos conflitos entre grupos: Legitimação da ordem Superação de crises Exacerbação de crises Socialização do indivíduo Introdução na ordem social: ritos de passagem, mediação de valores Estabilização nas crises de teodiceia Protesto contracultural Regularização de conflitos grupais Legitimação de um consenso mínimo entre grupos conflitantes Compensação por danos sociais Protesto e utopia por justiça 10 11 Sendo assim, pode-se concluir provisoriamente, desde o contexto das funções psicossociais, que a religião opera como alienação ou utopia. O fanatismo também é uma forma de expressão da crença religiosa, mas essa já foi tratada no primeiro tópico. Analisemos então, o caráter da alienação ou da utopia na religião. Religião como alienação e utopia O avanço da racionalidade humana através da ciência e da tecnologia atingiu um ponto que parecia poder explicar tudo e satisfazer todas as necessidades de progresso material e espiritual até então desejados pelas pessoas. Intelectuais, filósofos e cientistas dos séculos XIII e XIX chegaram até a prever o fim da religião e profetizavam a substituição da fé pela clareza e pela certeza da razão científica (Augusto Comte, por exemplo) ou a autonomia do ser humano frente à morte do próprio Deus (Nietzsche). Ainda hoje, pessoas envolvidas e aculturadas no mundo da ciência e da filosofia “respiram” tais ideias e admitem a religião como coisa de gente ignorante. Elas acreditam ser verdadeira e inevitável a equação: quanto mais educação, menos religião. Mas o fato é que a maioria das pessoas continua sendo religiosa mesmo que não siga uma determinada confissão de fé. A questão fundamental para alguns filósofos deixou de ser a discussão racional dos conteúdos da religião. O que mais importa é saber se a religião é alienação ou utopia, isto é, se ela conduz o sujeito a meras ilusões e fuga da realidade ou é afirmação crítica e propositiva para um engajamento consciente que enfrenta os problemas presentes. Vários autores estudiosos já desenvolveram reflexão a respeito do caráter utópico ou alienador da religião. Émile Durkheim, sociólogo do século XIX mostrou como a religião cumpre muito bem funções de coesão social (DURKHEIM, 1989). Max Weber, sobretudo em sua famosa obra A ética protestante e o espírito do capitalismo fez uma análise bastante interessanteao demonstrar as relações entre dogmas religiosos, valores éticos e processos econômicos que engendraram o sistema econômico capitalista (WEBER, 2005). François Houtart, por exemplo, é um sociólogo da religião que faz um inventário muito bem feito sobre as diversas funções sociais do fenômeno religioso, pressupondo uma variedade de trabalhos que o antecederam nesse olhar lançado à religião (HOUTART, 1994). Nesta unidade, porém, vamos destacar os autores que mais diretamente trataram do tema que ora estamos refletindo: se a religião é alienação ou utopia? As criticas de Feuerbach, Marx e Freud à religião responderam a questão. Entretanto, primeiramente se faz necessário definir o que estamos entendendo por alienação e utopia. O Dicionário de Filosofia de Sérgio Biagi Gregório assim define alienação: 11 UNIDADE Religião no mundo atual: fanatismo, alienação ou utopia? Alienação: Conceito fundamental nas obras filosóficas de Hegel, Feuerbach e Marx, e também nos textos posteriores das tradições idealista e marxista. A alienação (do alemão Entfremdung, também pode ser traduzido por afastamento) exprime sobretudo a ideia de algo que está separado de outra coisa ou que é estranho a essa coisa: estou alienado de mim na medida em que não posso compreender ou aceitar a mim mesmo; o pensamento está alienado da realidade, pois a reflete de forma inadequada; estou alienado de meus desejos uma vez que eles não são autenticamente meus, sendo antes impostos a mim do exterior; estou alienado dos resultados dos meus trabalhos porque estes se tornam mercadorias; e posso estar alienado de minha sociedade pois em vez de fazer parte de uma unidade social que a constrói, me sinto controlado por ela [...] (GREGÓRIO, s/d). Alienação é, então, todo processo de alheamento do sujeito à realidade; acarreta em maior ou menor grau a perda da identidade e autonomia crítica do sujeito frente ao mundo a sua volta. Tomamos o termo alienação e o aplicamos para compreender o fenômeno religioso como conceito negativo. Por outro lado, entendemos utopia em contraposição à alienação, em seu sentido positivo. Entretanto, admitimos que há certa ambiguidade na interpretação do conceito de utopia e, por isso, ele também pode ser visto de modo negativo. Utopia: do grego ou: não; topos: lugar. O termo, que significa etimologicamente “nenhum lugar”, foi forjado por Thomas More (A Utopia ou Sobre a Melhor Constituição de uma República, 1516) para designar uma cidade “perfeita”, mas imaginária [...]. Em um sentido mais amplo, designa todo projeto de uma sociedade ideal perfeita. O termo adquire um sentido pejorativo ao se considerar esse ideal como irrealizável e, portanto, fantasioso. Por outro lado, possui um sentido positivo quando se defende que esse ideal contém o germe do progresso social e da transformação da sociedade (GREGÓRIO, s/d). Utopia é, portanto, o horizonte da esperança que mobiliza o sujeito a enfrentar a realidade não de modo a aceitá-la acriticamente, mas também não como refúgio e ilusão, mas como motivação para transformar o mundo objetivo e real em direção ao ideal que se pretende construir. Feuerbach criticou a religião apresentando-a como dimensão humana que revela não a Deus, mas os valores mais profundamente humanos. Para Feuerbach consciência de Deus é consciência do homem; a teologia não revela mais do que a antropologia profunda dos desejos humanos (FEUERBACH, 2007). Marx, ao contrário, eliminou o valor da religião e a concebeu como uma das expressões ideológicas da alienação social (MARX, 1964). O ser humano ao invés de criticar e lutar para transformar a realidade de miséria e de opressão que vive de fato, transfere sua crítica para um mundo do além, onde suas esperanças não realizadas na terra podem ser satisfeitas no céu. E, finalmente Freud que reafirmou a religião como ilusão, isto é, garantia psicológica de que a felicidade definitiva que almejamos, mas não desfrutamos em vida, depois de nossa morte possa ser conquistada mediante a dádiva de um grande Pai a quem chamamos de Deus (FREUD, 1997). Observe mais de perto como cada um deles desenvolveu a sua concepção de religião. 12 13 A religião como alienação humana em L. Feuerbach O conceito de religião em Ludwig Feuerbach (1804-1872) está principalmente em seu livro A Essência do Cristianismo (1988). O pressuposto é o seu ateísmo. Uma vez admitido que Deus não existe como pode a religião sobreviver na mente e na vida prática de tanta gente? Essa é a questão que move o trabalho de Feuerbach. A resposta se encontra na análise da essência do próprio ser humano: A religião é o solene desvelar dos tesouros ocultos do homem. Deus é a mais alta subjetividade do homem... Este é o mistério da religião; o homem projeta o seu ser na objetividade e então se transforma a si mesmo num objeto face a esta imagem, assim convertida em sujeito”. Como forem os pensamentos e as disposições do homem assim será o seu Deus; quanto valor tiver um homem, exatamente isto e não mais será o valor do seu Deus. Consciência de Deus é autoconsciência, conhecimento de Deus é autoconhecimento (FEUERBACH, 1988, p. 55). Para Feuerbach, o ser humano se distingue dos animais em virtude da religião: “A religião se baseia na diferença essencial entre o homem e o animal – os animais não têm religião” (FUEURBACH, 1988, p. 43). O que isso tudo significa? Deus é criatura humana. O ser humano projeta o que ele é em sua essência mais profunda como ser transcendente em um ser capaz de garantir os seus sonhos e superar os seus limites: Deus. Por isso, Feuerbach desvenda o mistério da religião e a revela não como teologia, mas como antropologia. A alienação religiosa em Feuerbach consiste na inconsciência e na ilusão da inversão humana sobre si mesmo. De fato, Deus é a projeção de o próprio ser humano que não se reconhece como tal. Esse não reconhecimento o aliena de si mesmo, pois chama de outro o que é a sua própria consciência não admitida. A descoberta de Feuerbach da religião como alienação não torna a religião uma realidade negativa em si, a não ser porque não há o reconhecimento por parte do ser humano que não a vê como fenômeno meramente antropológico. A superação da alienação religiosa só pode se dar quando houver a negação da religião e de seus conteúdos como realidade em si fora do humano. Enquanto isso não acontece, para Feuerbach, o sujeito religioso estará sempre na condição de ser alienado, pois não reconhece no objeto de seu culto o seu próprio Eu. A religião como alienação em K. Marx Karl Marx (1818-1883) recebeu a crítica de Feuerbach à religião como alienação, mas não a vê como expressão da positividade transcendente do humano. Para Marx a religião é alienação não porque expressa os anseios mais profundos do sujeito, mas por que o retira da realidade terrena e o transporta para um céu inexistente, oferecendo-lhe assim um consolo que entorpece sua mente, desviando-o do caminho que pode libertá-lo de fato da realidade de miséria e de sofrimento. 13 UNIDADE Religião no mundo atual: fanatismo, alienação ou utopia? O sofrimento religioso é ao mesmo tempo a expressão de sofrimento real e o protesto contra um sofrimento real. Ela (a religião) é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, da mesma forma como ela é o espírito de uma situação sem espírito. Ela é o ópio do povo. A abolição da religião como felicidade ilusória do povo é exigida para a sua verdadeira felicidade. A exigência de que se abandonem as ilusões sobre as suas condições é a exigência para que abandonem as condições que necessitam de ilusões (MARX, 1991, p. 106). O argumento de Marx sobre a religião, segundo Rubem Alves tem uma sequencia lógica: - Uma situação social que necessita de ilusões. - A religião como ilusão exigida. - A religião como parte do sistema, tanto genérica quanto funcionalmente, torna possível a sua permanência. - A crítica penetra neste sistema, na medida em quedesmascara as relações genéricas e funcionais entre a religião e o mundo invertido que é o seu fundamento. (ALVES, 1984, p. 55). Por isso, Marx discorda de Feuerbach que propõe a superação da alienação religiosa, desmascarando o caráter alienador da religião, trabalhando apenas na esfera da crítica às ideias religiosas, isto é, na esfera da teologia e de suas verdades, demonstrando-as como reflexo das necessidades e de ideais humanos. O mais importante a fazer, segundo a sequência lógica do raciocínio de Marx não é criticar o pensamento e as práticas religiosas, mas criticar a realidade que exige e produz religião: “[...] a crítica dos céus se transforma na crítica da terra, a crítica da religião se transforma na crítica do direito e a crítica da teologia se transforma na crítica da política” (MARX, p. 42). Sendo assim, Marx prefere se concentrar na crítica da realidade, principalmente, econômica e social que é, em sua opinião, a causa da necessidade de religião. Rubem Alves do mesmo modo interpreta as consequências da crítica de Marx à religião: [...] a crítica da religião nos leva para além da religião. Não se trata de criticar a religião para recuperar a sua verdade (Feuerbach). Religião é efeito de uma situação que necessita de ilusões (explicação genético- causal). A “felicidade ilusória” tem de ser destruída para que o homem compreenda as causas de sua infelicidade a fim de aboli-las. A crítica à religião em si mesma é destituída de sentido (ALVES, 1984, p. 55). Portanto, Marx abandona a crítica da religião, pois ela não tem razão em si mesma, a não ser como meio para se criticar a própria realidade de miséria, de desigualdade e de infelicidade humana que a produz. Enquanto Feuerbach via na religião a essência do humano, Marx não vê nela essência alguma, a não ser como produto histórico social diretamente ligado às condições fundamentais da 14 15 relação que o próprio homem estabelece com o trabalho e o modo mais geral da organização econômica, social e política de produção e de reprodução da vida. A religião como ilusão em Freud Sigmund Freud (1856-1939) concebe a religião como um sistema de doutrinas e de promessas que, por um lado, explica para o homem comum os enigmas deste mundo com perfeição invejável, e por outro, lhe garante que uma providência cuidadosa velará por sua vida e o compensará, numa existência futura de quaisquer frustrações que tenha experimentado aqui. Os estudos de Freud sobre a religião abrem a possibilidade de um diálogo crítico entre os processos psicológicos e a constituição dos processos socioculturais. Freud em seu livro O futuro de uma ilusão, procurou responder aos desafios de uma relação complexa entre religião e psiquismo, relação que ainda hoje nos desafia a uma avaliação crítica e posicionamentos igualmente autocríticos. No cenário da psicanálise freudiana o ser humano é um sujeito reprimido em seus instintos e desejo sexual como condição de sua vida em estado de convivência civilizatória (FREUD, 1997A), A religião nesse contexto tem um papel de compensação ética da repressão do desejo, desenvolvendo a felicidade e o prazer reprimidos em forma de satisfação no cumprimento do dever que deverá ser recompensado depois como prêmio no céu. [...] a religião é para o homem comum um sistema de doutrinas e de promessas que, por um lado lhe explicam os enigmas deste mundo com perfeição invejável, e que por outro, lhe garantem que uma Providência cuidadosa velará por sua vida e o compensará, numa existência futura de quaisquer frustrações que tenha experimentado aqui. (FREUD, 1997B, p. 21) O valor psicológico maior das ideias religiosas, segundo Freud, está na necessidade humana primordial de personificar os poderes superiores encontrados nas forças da natureza, transformando-os mais tarde, em deuses apaziguados e erigidos como protetores e garantidores da satisfação frustrada na realidade, mas continuamente desejada. Tal como a criança que teme, mas ao mesmo tempo encontra no pai a proteção de que tanto necessita, o homem adulto acabou construindo a figura dos deuses como entidades protetoras. (FREUD, 1997A, p. 39). A força interior das ideias religiosas para Freud reside em sua natureza psicológica: A origem psíquica das ideias religiosas, proclamadas como ensinamentos, não constituem precipitados de experiência ou de resultados finais de pensamento: são ilusões, realizações dos mais antigos, fortes e prementes desejos da humanidade. O segredo de sua força reside na força desses desejos (FREUD, 1997A, p. 48). 15 UNIDADE Religião no mundo atual: fanatismo, alienação ou utopia? Mas ilusão para Freud não equivale exatamente ao conceito de alienação nem em Marx nem em Feuerbach, embora haja aproximações e semelhanças? Em Marx, a religião é pura inversão que entorpece o ser humano: “é ópio do povo”. Em Feuerbach, é alienação porque sua verdadeira identidade humana é confundida com a divina. Em Freud, a ilusão é uma realidade que tem consistência psíquica, ainda que não tenha objetividade fora do sujeito. Ilusão não é a mesma coisa que um erro [...] A crença de Aristóteles de que os insetos se desenvolvem do esterco [...] era um erro [...]. Por outro lado, foi uma ilusão de Colombo acreditar que descobriu um novo caminho marítimo para as Índias. O papel desempenhado por seu desejo nesse erro é bastante claro [...]. O que é característico das ilusões é o fato de derivarem de desejos humanos. Com respeito a isso, aproximam-se dos delírios psiquiátricos, mas deles diferem também, à parte a estrutura mais complicada dos delírios. No caso destes, enfatizamos como essencial o fato de eles se acharem em contradição com a realidade. As ilusões não precisam ser necessariamente falsas, ou seja, irrealizáveis ou em contradição com a realidade. Por exemplo, uma moça de classe média pode ter a ilusão de que um príncipe aparecerá e se casará com ela. Isso é possível, e certos casos assim já ocorreram. Que o Messias chegue e funde uma idade de ouro é muito menos provável. [...] Podemos, portanto, chamar uma crença de ilusão quando uma realização de desejo constitui fator proeminente em sua motivação e, assim procedendo, desprezamos suas relações com a realidade, tal como a própria ilusão não dá valor à verificação (FREUD, 1997A, p. 49-50). Desse modo, pode-se afirmar que para Freud a religião é uma ilusão, mas diferentemente dos outros autores, não é necessariamente um erro ou uma contradição com a realidade, mas é expressão do desejo, mesmo que este não se realize, trata-se de algo que tem uma realidade psíquica. Conclusão A religião como dimensão que procura articular o sentido da vida acaba exercendo diversas funções no universo das relações humanas em geral, tanto do ser humano consigo mesmo, quanto do ser humano com toda a natureza, o universo e a sociedade. Sendo assim, a consciência do sujeito não pode abster-se da crítica e da autocrítica das consequências práticas, éticas, econômicas, sociais, ideológicas e políticas da religião que professa. Está em jogo, como bem expressou Oliveira, a tarefa da religião em contribuir com uma crítica que faça as pessoas assumirem os valores de afirmação da vida: 16 17 A religião tem sempre a ver com o universo, com o ser em seu todo, com a interpretação da totalidade do ser a partir da realidade última. Consequentemente, é no horizonte dessa referência explícita e especificada à realidade frontal que o homem religioso encontra um horizonte último de sentido para responder ao porquê e para que da totalidade do ser e, a partir desse horizonte, motivos para viver e lutar (OLIVEIRA, 2013, p. 107 e 108). Os autores apresentados como críticos da religião em suas funções psicossociais, Feuerbach, Marx e Freud, podem servir para nos fazer rever nossas próprias crenças e o modo como as vivemos. Perguntar pela função psicossocial, política e ideológica de nossa fé não significa aceitar necessariamente o ateísmo militante dessesautores, mas situar nossas crenças e práticas no jogo complexo dos conflitos sociais, onde não há lugar para omissões ou imparcialidades. Omitir- se, é de alguma forma, no cenário social, fazer parte de uma trama já delineada de forças e de poderes que se enfrentam e se confrontam, perpetuam ou rompem com as habituais formas de viver e conviver. Fazer das opções religiosas, utopia ou alienação, é um desafio que precisa passar pelo crivo de nossa consciência e racionalidade tanto crítica como autocrítica. 17 UNIDADE Religião no mundo atual: fanatismo, alienação ou utopia? Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Sites Ética e intolerância: O fanatismo religioso do ponto de vista da ética Leia o breve texto “Ética e intolerância: O fanatismo religioso do ponto de vista da ética” de Antonio Carlos Olivieri, da Página 3 da Revista Pedagogia & Comunicação postado em 31/07/2005 às 13h06 no site “Educação Pesquisa Escolar” da UOL. Trata-se de um artigo que vai complementar o aspecto da alienação religiosa, segundo a concepção de dois outros filósofos: Baruch Spinoza (1632-1677) e John Locke (1632-1704). https://goo.gl/8gCci5 Livros Reflexões Sobre a Religião Como Utopia e Esperança Leia o livro “Reflexões Sobre a Religião Como Utopia e Esperança” de Pedro Cesar Kemp Gonçalves, publicado pela editora Paulinas/São Paulo, 1985, 95p Disponível para download em: https://goo.gl/c6F8nx Vídeos Zé Vicente - Utopia A primeira canção cujo nome é “Utopia” do cantor e compositor Zé Vicente, um dos representantes mais célebres dos artistas populares das Comunidades Eclesiais de Base - CEB’s – comunidades que melhor representaram a dimensão artística e poética da Teologia da Libertação. https://youtu.be/RtzZ69xr2Ao Ney Matogrosso - Coração Civil - Vídeo Clip A segunda é “Coração Civil”, composição de 1983 de Milton Nascimento e de Fernando Brant, gravada também por Ney Matogrosso. https://youtu.be/ZLcEjldHnOE Filmes A festa de Babette Veja o filme “A festa de Babette”. Direção: Gabriel Axel. Ano 1987, Dinamarca. “Na desolada costa da Dinamarca vivem Martina e Philippa, as belas filhas de um devoto pastor protestante que prega a salvação através da renúncia. As irmãs sacrificam suas paixões da juventude em nome da fé e das obrigações, e mesmo muitos anos depois da morte do pai, elas mantêm vivas seus ensinamentos entre os habitantes da cidade. Mas com a chegada de Babette, uma misteriosa refugiada da guerra civil na França, a vida para as irmãs e seu pequeno povoado começa a mudar”. Procure ver como o filme mostra as duas facetas da religião, uma mais alienante e conservadora e outra profundamente utópica e libertadora. Assista ao trailer no link a seguir: https://goo.gl/QAjdWD 18 19 Referências ALVES, Rubem. Suspiro dos Oprimidos. São Paulo: Paulinas, 1984. CROATTO, José Severino. Los lenguajes de la experiência religiosa. Estúdio de fenomenologia de la religión. Buenos Aires: Editorial Docência, 1994. DIAS, Reinaldo. Introdução à Sociologia. 2. ed. 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WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Martin Claret, 2005. 20
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