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.... Livros do mesmo autor: Sortilégio (Mist ério Negro). Rio de Janeiro : T eatro Experimental d Negro. 1960. Dramas para Negros e Prólogo para Brancos (antologia de teatr negro-brasileiro) . Rio de Janeiro : Teatro Experimental d Negro. 1961. Teatro Experimental do Negro-Test:emunhos. Rio de Janeiro : ORO. 19 O Negro Revoltado. Rio de Janeiro : GRD. 19'68. «Racial Democracy» in Brazil: Myth or Reality?, traduzido por Eli La.rkin Nascimento . . lbadan: Sketch Publishing Co. 1977. O Genocídio do Negro Brasileiro - Processo de. um Racismo Mascarad Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1978. 1 Sortilege (Black Mystery) , traduzido por Pete.r Lownds. Chicago: Thir World Press. 1978. Mixture. or Massacre? Essays in the genocide of a Black People, t.rad zido po.r Elisa Larkin Nascimento. Buffalo: Afrodiaspora. 197 O QUILOMBISMO Documentos de uma militância pan-africanista ) li l l 111111111111111111111111111111111 [!] Petrópolis 1980 177298911 \i: ... - O TECA © 1980, Abdias do Nascimento Direitos de publicação: Editora Vozes Ltda. Rua Frei Luís, 100 25600 Petrópolis RJ Brasil Diagramaçãó Beatriz Salgueiro Em memória dos 300 milhões de africanos assassinados por escravistas, invasores, opressores, racistas, estupradores, saqueadores, torturadores e supremacistas brancos; Dedico este livro aos jove.ns .negros do Brasil e do mundo, .na esperança de que continuem a luta por um tempo de justiça, liberdade e igualdade onde estes crimes não possam jamais se repetir. Com o amor f raiemo do Autor SUMARIO n"'.~Ml'TAWGNTO OG OI '601A fl'OL.I U .8TllOA Documento n• 1: Introdução à mistura ou massacre? Ensaios desde dentro do genocídio de um povo negro (USA), 11 Bibliografia, 34 1 Congresso das Culturas Negras das Américas Grupo D - Etnia e Mestiçagem (excerto das Conclusões e Recomendações propostas pelo Grupo e aprovadas pela assembléia geral do Congresso), 35 Conclusões, 35 Recomendações, 36 Documento n• 2: Revolução cultural e futuro do pan-africanismo (Da r-es-Salaam, Tanzânia), 39 ultura: uma unidade criativa, 42 exemplo de Palmares, 46 Lí ngua: um obstáculo para a unidade, 47 Brasil: de escravo a pária, 49 uilombos, insurreições e guerrilhas, 51 cA luta continua», 58 hico-Rei: histór.ia que se torna lenda, 62 «Abolição» de quem?, 63 negro heróico, 66 Teatro Experimental do Negro, 68 /\uto-suficíêncía e cultura pan-africana, 70 A respeito de ciência e tecnologia, 73 ap italismo versus comunalismo, 75 Pa11-africanistas em ação, 77 l vocação dos ausentes, dos silenciados e dos aprisionados, 78 Bibliografia, 79 Do_cumento n• 3: Considerações não-sistematizadas sobre arte, ri //gião e cultura afro-brasileiras ~lle-lfe e UNESCO), 81 l111e ira providência: apagar a memória do africano, 84 luta antiga da persistência cultural, 89 1 licismo e religiões africanas, 94 A destruição das línguas africanas, 101 Cri to Negro: atentado- à religião católica, 105 A imposição cultural ariana, 108 O negro e os estudos lingüísticos, 112 O negro no desafio nordestino e na canção de ninar, 114 Algumas vozes negras recentes, 118 O negro no teatro brasileiro, 122 Música e dança, 127 Artes plásticas, 133 Um olhar sobre a nossa intelligentsia, 140 Para finalizar, 149 Bibliografia, 151 Documento n• 4: Etnia afro-brasileira e política internacional (Washington D. C., Cali-Colômbia e Estocolmo, Suécia), 155 De como o olho azul do ltamarati não vê, não enxerga o negro, 161 A raça negra e os marxistas, 169 A ação internacional do Brasil, 180 Os votos do Brasil nas Nações Unidas, 185 O embranquecime.nto compulsório como política oficial, 192 Anti-racismo oficial: «humor branco» brasileiro, 198 Tratado do Atlântico Sul: urânio, supremacia branca, anticomunismo, 201 Bibliografia, 206 Documento n• 5: Reflexões de um afro-brasiliano (USA), 209 Bibliografia, 225 t Documento n• 6: Nota breve sobre a mulher negra (Daca r), 227 ~ Escravidão e abuso sexual da mulher africana, 230 Imagem da mulata na literatura e na ciência social, 234 Alguns antecedentes históricos, 240 Bibliografia, 244 Documento n• 7: Quilombismo : do processo histórico-cultural das ma a Memória: a antiguidade do ab r n r - frl ' 11101 2·17 Consciência negra e sentimento quilombl t , 2, :t Quilombismo: um conceito cientifico hl 1 rio m 1 1, 21 1 Estudos sobre o branco, 265 A B C do quilombismo, 269 Alguns princípios e propósitos do qull mi 1 111111 'l7 Semana da Memória Afro-Brasil ira, 27 Bibliografia, 281 O escravo que mC1ta o seu senhor pratica um legitimo ato de autodefesa. Luís Gama DOCUMENTO N9 1 INTRODUÇÃO A MISTURA OU MASSACRE? ensaios desde dentro do genocídio de um povo negro Livro publicado por Afrodiaspora-Puerto Rican Studies and Research Center-State University o/ New York at Buffalo. 1979. ~ .. ",~ .'.) ........... . . ... . '. ... . -.. ... ,; ~ .,,. ...... . -. . a luta pela libertação é, antes de tudo, um ato cultural. Amílcar Cabral La Cultura fundamento dei movimi nto de liberación E. R"AIU•no •• 01•1to11. ~mo *N••zaa.. Várias razões me fizeram hesitar antes de decidir a publicação destes estudos em forma de livro. Uma razão pri- meira: terem eles sido escritos em situações diferentes, com diferentes intenções e destinos, em tempo e espaço; conseqüente- mente, sua reunião para formar um corpo único careceria tanto de unidade formal quanto de coerência expositiva. Havia, tam- bém, problemas com a tradução dos textos. Entretanto, o fator básico das minhas dúvidas articulava-se na pergunta: - qual seria a utilidade efetiva de um livro como este? De uma coisa estava convencido: que uma coerência fundamental e uma unidade íntima entrelaçavam os ensaios entre si; e que essa essência unificadora se exprimia no objetivo comum de revelar a experiência dos africanos no Brasil, assim como na tentativa de relacionar dita ·experiência aos esforços das mulheres e dos homens negro-africanos de qualquer parte do mundo em Juta para reconquistar sua liberdade e dignidade humana, assumindo por esse meio o protagonismo de sua própria história. Considerei o alcance :da minha real' contribuição ao conhecimento recíproco na trajetória histórica dos afro-brasileiros e a dos seus irmãos do mundo africano de modo geral; nessa espécie de balanço, pesou na hora da decisão a clamorosa au- sência de informação sobre o negro brasileiro, tanto aqui nos Estados Unidos como, sem exceção, entre os africanos de idioma inglês. É verdade que alguns scholars norte-americanos, quase todos brancos, têm publicado trabalhos em que focalizam o negro no Brasil; o mesmo pode ser dito de uns quantos bra- ileiros, literatos ou cientistas sociais, também brancos. Quando, porém, o negro do meu país de origem alguma vez transmitiu 1 ara os leitores dos Estados Unidos, diretamente, sem interme- liários ou intérpretes, a versão afro-brasileira da nossa história, da nossas vicissitudes cotidianas, do nosso esforço criador, ou • 13 das nossas permanentes batalhas econômicas e sócio-políticas? Que eu saiba, nenhum afro-brasileiro jamais publ icou um livro, com tais finalidades, em inglê.s. Inv~rsam~n e do que ocorre no Brasil, onde vários livros d afro,..norte-americanos têm sido publicados em tradução portugues~. De memória posso lembrar, por exemplo, a Autobiografia de Booker T. Washington, que li ansioso, lá pela década dos 30. . . Também de há muito tempo me vem à lembrança o comovente Imenso Mar, do poeta Langston Hughes, com quem mais tarde eu trocaria esparsa e fraterna correspondência. Outra leitura inesquecível : Filho Nativo, de Richard Wright, e Negri.nho, parte de sua autobio- grafia ; recordo ainda A Rua, de Ann Petry, e, mais recente- mente, Giovani, Numa terra est111J.nlza e Da próxima vez, o fogo, todos de James Baldwin; e O povo do blue, de Le Roy Jones; Alma encarcerada, de Eldridge Cleaver. Estou quase certo de que também O homem invisível,de Ralph El lison, tenha sido publicado no Brasil, livro que li em tradução ao panhol. Mas certamente a última dessas obras negro-nortc-am ricanas edita- das no Brasil terá sido Raízes Negras, de AI x li a! y. Obviámente nã·o estou citando todo livro e autores publicados, ou por ignõrância ou por fa lha da m mória. No entanto, o que importa é assinalar que livr brasileiro não existe aqui nos Estados Unido ; lll apenas aqui: em nosso próprio país, o s rlt r é um ser quase inexistente, já que um as rnrn. xc õ s só con- firmam a regra. Os motivos? A respos ta lmpl : devido ao racismo . . Um racismo de tipo muit pc ln l, · lu iva criação luso, ti".r?sileira: sutil , difuso, eva mnu fl do, assi métrico, \i1â&ca'r.acfo, porém ião implacável r li;t 111 1 es tá liqui- d~ndo_ definitivamente os hom ns Çqnsegui.ram sobrev.iver ao ma a r efeito -essa destruição coletiva t 111 · ~!Jservaçã<? mundial pelo disfarc li 11111 1 ldt oi gia ele utopia raci~l denominada «Qemocracla racial», 11J n f nl a es tratégia têm . conseguido, em ·parte, confundir o pov11 11ho-brasileiro, do- pa-ridó-g·, entorpecend_o-o lnteriormcnt ; tnl ldt•ologitt resulta para o- negro núm estado de frustraçã , p 1. qu Ih bn rra qualquer possibilidade de auto-afirmaçã e 111 lnt l{rltlnd , Identidade e orgulho: Mesmo observador tr inad h v '1. • nã da armadilha " da «democracia racial>. A lnf rmnçã 14 escapam dis torcida, s im · como a mantpulação de fatos e dados concretos na forr:n.ª perpetrada e perpetuada no BrasiÍ, Jtein resultado erd de- plor.avel le~ão que prejudica o conhecimento e o estudo da r al1dade afro-brasileira. Ao ponto de até um historia.dor com- petente e autorizado como é o caso de John Henrik Clarke ter hegado a afir~ar por duas _vezes que · 4 Na América do Sul e índias Ocidentais (West- Indies), os senhores de escravos não pmibiam .o tambor africa~o as ' ornamentações africanas, as religiões africanas, ou outras coisas estimadas que os africa,LJOS se lembrava111 do seu antigo caminho de vida. Nas áreas portuguesas, nas índias Oci9entais e freqüentemente na América do ~ui, os fçizendeiros compravam um navio cheio ou meio navio de escravos. Esses escravos geralmente vinham das mesmas áreas da África e, naturalmente falavam a mesma língua e, tinham a mesrr{a cultu;a básica. As · famílias , no geral, eram mantic!as juntas. (1974:118 and 1977:9) No decorrer da leitura destas páginas ·Se verá que o oposto corresponde melhor à verdade histórica. A expressão cultural afric~na, _ esp.ecialmente a religião, tem sido posta à 1~argem ela lei, nao so durante os tempos coloniais: mesmo nos dias presentes, as réligiões de origem africana sofrem toda sorte de restrições, ofensas, perseguições e importun'ações. · · A história do Brasil é uma versão .. concebida por brancos, para os brancos e pelos brancos, exatamente como toda sua estmtura econômica, sócio-cultural, política ·e militar tem sido usurp~da da maioria da população para o beneficio exclusivo de ~1.ma eltte branca/ brancóide·, supostamente de orige~ ário-eu- rope1a. Tei;ios de c?.nsidetar que a informação disponível nos ~stados Untdos e, alias, em .quase todo o mundo, conduz a esse tipo de confusão. Citarei rapidamente, para ilustrar, os Negras no Brasil, de Donald Pierson, e Casa Grande e Senzala de Gilberto Freyre. Ambos fornecem uma visão suave acucarada das r:ela- ções entre n.egros e brancos . no país. Refe 1 i:ente ao C~ribe .quero evocar o 119 Festival Mundial de Arte e Cultura Negras, em Lagos, 1977, quando os executantes da steel band, salvo engano, procedentes de Trinidad, em sua introdução ao público do teatro em que se apresentavam, afirmaram que sua orquestra, a mais original criação da música do caribe negro, tivera origem na proibição, nos tempos coloniai&, de os africanos tocarem seus tambores e outros instrumentos trazidos da Africa. A partir '.lessa proibição, os africanos passaram a batucar sobre qualquer lata vazia, caneco ou vasilhame inútil que podiam encontrar, a fim de não se submeterem ou deixar sucumbir sua música, in.s_ri- minada de atividade delituosa. Em qualquer caso, a falsa imagem de uma escravidão humanizada, benemérita, com certa «liberdade» , tem sido atribuída ao Brasil como também à América Latina, de modo geral. E isto ocorre principalmente sob a justificação freqüente da mistura de sangue, de raças, como se idêntica miscigenação não tivesse ocorrido na própria escravidão norte- americana. A mistura biológica e de culturas, da Africa e da Europa, aconteceu em todos os países do novo mundo onde houve escravidão. Assim, a tenaz persistência da cultura africana no Brasil e em outras partes da América do Sul não pode ra- zoavelmente ser atribuída a uma suposta benevolencia dos ário- latinos, nem ao caráter e cultura dos m smos. Não foram menos racistas nem menos cruéis do que sua e ntraparte ário-angl'o- saxônica. Da mesma forma que nos stacl s Unidos, também na América Latina ou do Sul, e no Brasil, não permitiam aos africanos a prática livre de seus costum tradições. Estes, sim, é que forçaram os brancos a sucumbirem ao fato irreversível de sua integridade cultural através ide sua própria inventividade e perseverança. E, naturalmente, foram auxiliados por deter- minadas circunstâncias históricas que difer nclavam América La- tina e América do Norte, tais como o baixo pr ço do escravo rasi enormes concentrações d africanos tudo fac1 1 ado pela roximidaide das costas brasi l iras e africanas. Contava ainda, naquelas diferenças, as estratégias de div@ir os africanos por meio do estímulo às inimizades tribais, além de outros expedientes empregados, específicos de caida país opressor, os quais variavam segundo necessidades locais, condições dê vida rural ou urbana, etc. A luta comum dos povos negros e africanos requer o conhecimento mútuo e uma compreensão recíproca que nos têm sido negados, além de outros motivos, pelas diferentes línguas 16 u o opressor branco-europeu impôs sobre nós, através do m nopólio dos meios de comunicação, do seu controle exclusivo dos recursos econômicos, das instituições educativas e culturais. Tudo isto tem permanecido a serviço da manutenção da supre- macia racial branca. A publicação deste livro teria como alvo fender esse bloqueio que nos isola, contribuindo, ainda que limitadamente, para iluminar e compreender o processo e as di- versas estratégias utilizadas pelas forças que nos exploram, oprimem e alienam. Para o restabelecimento da integridade de nossa família - a família africana, no continente e fora dele - é imprescindível o reforço dos nossos vínculos ideológicos e culturais, como condição prévia de nosso sucesso. Estamos conscientes de que nossa luta transcende os limites dos nossos respectivos países: o sofrimento da criança, da mulher e do homem negros é um fenômeno internacional. O Presidente da Tanzânia, Julius Nyerere, colocou a questão em seus devidos termos quando disse: . . . os homens e as mulheres da Africa, e de descendência africana, têm tido uma coisa em comum - uma experiência de discriminação e humilhação imposta sobre eles por causa de sua origem africana. Sua cor foi transformada tanto na marca como na causa de sua pobreza, sua humilhação e sua opressão. (1974: 18-19) Um férreo e rígido monopólio do poder permanece, no nas mãos da camada «branca» minoritária, desde os t mpos coloniais até os dias de hoje, como se tratasse de um nômeno de ordem «natural» ou de um perene dfreito «demo- rático». O mito da «democracia racial» está fundado sobre tais pr missas dogmáticas. Daí resulta o fato surpreendente de Ir das as mudanças sócio-econômicas e políticas verificadas no f Is, desde 1500 a 1978, não terem exercido a menor influência 111 estrutura de supremacia racial branca, que continua impávida lntocada e inalterável. O fator raça permanece, irredutivel- t nte, como a fundamental contradição dentro da sociedade r lleira. Aqui cabelembrar as oportunas observações do . Maulana Ron Karenga: 17 _ ... são as. contradições sociais, as quais são básicas à vida e à Juta, que deve~mos e necessitamos estudar e compreender. /. .. / Elas são partkulares· em seu movimento e essência, particulares a · uma respectivá sociedade. / .. ./ Diferentes contradições exigem :diferentes soluções e. cometeríamos sérios enganos não compreendendo iste> e não atuando de acordo. (1975 :28) A concentração racial da renda e do poder exclusiva- mente em mãos dos brancos foi e continua sendo um privilégio considerado «justo» e «necessário» pelas classes dominantes e também pela elite cultural - a famigerada «in tell igentsia» brasileira (Fernandes 1972:265) . Esse fenômeno chega ao ponto em que o regime de classes no Brasil não consegue altera r, nas relações negro/ branco, o fato apontado pelo Dr. Molefi K. Asante em relação aos Estados Unidos, de que a «raça é uma funda- mental categoria de classe» (1978:4). Entretanto, há teóricos, tal é o caso de Carl N. Degler, cientista social, branco norte-americano, o qual foi referido num artigo de Marcelo Beraba, publicado em O Globo (julho 6, 1976 :41) , intitulado «Sociólogos ana lisam a qu stão racial no Brasil», como adotando o «argum nto de u as barreiras enfren- tadas pelos negros no Brasil são de arát r sócio-econômico e não racial ». Opiniões dessa natureza são desmentidas pelos fatos ·da realidade. concreta. Sem nem precisar ir 1 nge, na mesma reportagem pode-se verificar q11e mesmo ntr a populaçÕes fa- mintas e miseráveis do nordeste do pais fat r raça prevalece em suas relações internas. É o que afirma utr i ntista social, Carlos Alfredo Hasenbalg, o qual, depois de inf rmar que 80% da população negra vive ~em zonas rurais, diz: . a discriminação e a desigualdade se mantêm de forma ma i acentuada nas regiões ma is pobres, onde a população negra · majoritária. (grifo nosso) 18 N texfo deste võlume focalizarei esse problema de gu las, incluindo ~o último capítulo uma perspectiva das ntre os marxistas brasileiros e os esforços de liberta- nvolvi·dos pela gente negra. Esse aspecto da luta tem r nhado importante papel também no movimento dos stadunidenses, segundo nota o Dr. Ronald Walters em rtigo «Marxismo-Leninismo e Revolução Negra», publicado Rlack Books Bulletin: Talvez a mais perigosa lição da década dos 30 ( 1930) tenha sido a da cooptação branca das organizações negras, dos indivíduos e ·seus objetivos. Simplesmente não se pode terminar a leitura de The Crisis of the Negro /ntellectual (A crise do intelectual negro) de Harold Cruse, ou as últimas páginas de Pan-Afriwnism or Communism de George Padmore, ou Race and Radicalism de Wilson Record, sem uma esmagadora compreensão da traição e exploração da comunidade negra pela esquerda branca. . (1977: 15) No tocante a mim, cheguei também a idênticas conclu- i! s não como resultado de educação acadêmica ou pel'a leitura livros, mas caminhando através da realidade e da existência povo neg ro do Brasil'. Tempos atrás, durante o transcurso mi nha infância e adolescência, comecei a testemunhar o fenô- 111 no que vem ocorrendo desde os fins do século XIX: ou seja, invasão do país por levas e levas de trabalhadores brancos vindos da Europa, com apoio de seus governos de origem, além lo ajuda financeira e outras facilidades dispensadas pelos gover- 11 s do Brasil. Ao mesmo tempo que isto acontecia, a enorme f rça de trabal'ho negra era rejeitada, ontem como hoje, por nqueles que corporificam o «sistema econômico». O «sistema» tliretamente, e os imigrantes indiretamente, excluíram o povo n gro, de maneira insensível e cruel; de qualquer oportunidade . ignif icativa de trabalho. Amb?s, tanto o chamado «sistema de prod ução», quanto o proletariado-im'grante, se beneficiaram e r sceram mercê da espoliação e do despojamento total do des- . ndente african0. Evocando minha infância distante posso vislumbrar a imagem do meu pai, freqüentemente angustiado, sofrido, tentando obter um precário e mal pago trabalho em alguma fábrica de calçados; mas também consigo rever embaçada na distância sua figura maltratada pela vida e assim mesmo tão elegante e distinta, evadindo da dor cotidiana através ida música. Compreendia aquela sua tristeza cheia de resignação, fustigado pelas pressões inexo- ráveis , que se canalizava para a fuga do violão. E ao findar das tardes melancólicas, pela boca ida noite, lá ia meu pai tocar violão para algum filme do cinema mudo da época, ou integrar o grupo fiel dos choros, valsinhas e serestas da madrugada. Meu pai sa- pateiro, minha mãe cresce, avulta na lembrança, como a doceira da cidaide; costurava também, e quando nascia um novo irmão, minha mãe se transformava em ama-de-leite de filhos de planta- dore~ de café. Foi assim que conheci de perto os grandes ca- fezais e os imigrantes que lá trabalhavam o «ouro negro». Éramos seis irmãos e uma irmã - uma família negra e pobre; desde a .infância, os pés descalços, tentávamos contribuir, eu e o irmão mais velho, para a magra economia da casa. Ele, aprendiz de alfaiate; eu, entregando leite e carne às portas das casas bur..: guesas da cidade, isto bem cedinho, antes de começar as aulas do grupo escolar, às oito da manhã. . . Ganhava alguns tostões nessas tarefas e outros tantos no período da tande, limpando o consultório de um médico ou lavando vidros vazios e entregando remédios para a freguesia de uma farmácia. . . Pelas manhãs, normalmente minha mãe percorria a re- sidência dos seus fregueses de doces, fazendo entrega de enco- mendas, recebendo dívidas. . . Os doces em geral eram feitos à noite, quando minha mãe mexia com a colher de pau de cabo longo os enormes tachos de marmelada ou goiabada, às vezes substituídas pela geléia ide mocotó. A polpa do marmelo e da goiaba formava com o açúcar uma pasta fervente, avermelhada e cheirosa que ide instante a instante explodia em bolhas ígneas nos braços roliços e brilhantes de minha mãe. Vezes sem conta acompanhei minha mãe durante aquelas noites docemente afa- nosas; enquanto o luar, no quintal , derramava sua palidez sobre as laranjeiras em flor, no fogão a lenha crepitava nas labaredas. Naquela luz de fogo eu gostava de contemplar o rosto redondo e sereno de minha mãe. Convivia intimamente com ela nessas noites, recebendo as lições diretas e exemplares da sua energia, Qa sua bondade, da sua esperança e da sua compaixão. Minha 20 e herdaré!2 antiga sabedoria africana da aciência e do u o : ervas; podia-se vê-la cons an emente envol ida na prepara- ide remédios para alguma pessoa da família ou da vizinhança. •rta vez assisti minha..mã ornar a.. defesa de um garoto negro órfão, cole~ meu de grupo e chamado Felismino, a quem uma no a vizinh branc surrav em piedade. inha mãe, inva- rl:ivelrnente tão tranqüila, entrou em luta corporal e arrancou I· •li mino das mãos <la vizinha. Esta cena, perdida nas dobras d longínqua infância, lá na pequena Franca natal, oeste ao I ~ tado de São Paulo, emerge e cresce como minha primeira llçfio de solidariedade racial e de luta pan-àfricana. Naquele r • uado e distante espaço de tempo, testemunhei vários exem- ln concretos que me abriram os olhos, ilustrando para mim dificuldade d e ser negro, mesmo num país de maioria que des- nd • de africanos. Com antecedentes dessa qualidade, aliados à minha p ri nci a biográfica, e ainda acrescidos com o meu testemunho ·xistência levada pelo povo afro-brasileiro, não tenho base l'lll razões para aceitar a versão mitigada, rosificada da escra- hl1 no Brasil. E sem qualquer propósito de elevar à glorifi- 1IÇ il a idéia do auto-sacrifício, considero, contudo, indispensável 1•v1 ca r sempre, lembrar continuamente, o processo de massacre l t 1 tiva dos negros que ainda se encontra em plena vigência. . hawna Maglangbayan é uma das poucas mulheres negras não- 1 rasi lei ras consciente ido fato que No Brasil, é a minoriabranca que reina; isto é, do ponto de vista histórico, cultural, racial, e de classe, são os brancos o elemento dominante e explorador. ( 1972: 87; grifo no original) Nós, os negros, temos sido forçados a esquecer nossa histó ria e nossa condição por um tempo demasiadamente longo. p r que ficarmos quietos, silenciosos, e perdoarmos ou esquecer- mos o holocausto ide milhões sem conta - cem, duzentos, tre- t. ntos milhões? - de africanos (homens, mulheres, crianças) írfamente assassinados, torturados, estuprados e raptados por rim inosos europeus durante a escravidão e depois dela? Ou será que não devemos clamar nem reclamar', cooperando com os es- ·ravocratas de ontem e de hoje, já que para os europeus· a es- 21 cravidão constiti:!_iu =·o «passo necessário» à fundação e desenvol- vimento do capitalismo, e sendo este a etapa obrigatória rumo ao «paraíso» socialista? Podemos ler as páginas da história da hu- manidade abertas diante ·de nós, e a liçã.o fu ndamental que nos transmitem é de uma enorme fraude t órica e ideo lógic~ar ticulada para permitir que a supremacia ârio-euro-norte-ameri- cana pudesse consumar sua imposiçã obr nós; e seu dictate econômico, sócio-cultural, ideológico polltlco nos modelasse qual uma camisa-de-força inevitável. Sob a lógica desse proc s , a massas negras -do Brasil só têm uma opção: d a par c r. jA an iquiladas pel~ força compulsória da miscigenação/assimll nçlio, ou através da ação direta da morte pura e s imples. t:: a s mbr so comprovar que uma dinâmica fatal de erradicação v m ifanido vidas negras, ininterruptamente, há quatro séculos. qu 1 apesar dessa espada sinistra suspensa sobre sua cab çn, negro jamais desfaleceu, nunca perdeu a esperança e a n rgln, s mpre esteve alerta à menor chance de recapturar os fios rompidos de sua própria história: começar e recomeça r f rç de dignificar seu ser, enriquecer sua cul'tura ori inal, 1 v. n 1 -a a um nível de verdadeira instituição nacional. N s ont xt obressai a pl'ena consciência do negro de qu 111 nt pod r ter um fu- turo quando houver a transfonnaçll d ' t cl stru tura do país, em todos seus níveis: cultura, na política. O pov sua participação em todos 1 grnu de sua sobrevivência col tiva - e m nossa perspectiva, no que s r f r negro brasileiro difere da lut americanos. Aqui nos Estad s deada pela sociedade maj rlt ârl debaixo das variadas gradaçõ de descendência africana - o n gro luta do povo brasileiro. Se aband narm 11 tilos de racio- cínio inerentes a cada um d s mro clomln tnl , verificaremos que o Brasil pratica na Américn d ' ui 11111 p lltica racial de conteúdo e conseqüência racistn - dl rlmlnntórla e segrega- donista - baseada no exclu lvl m rn11 ~mln ritário exata- mente nos moldes daquela praticada p 1 apart lstas da União Sul-Afrkana. 22 Não temos, no Brasil, de enfrentar o problema da t rra, que surge como uma questão básica 1ia luta do negro nos lados Unidos. Semelhantemente à situação dos irmãos negros d. União Sul-Africana, o que nos resta fazer é tomar posse e ntrole daquilo que nos pertence - ou seja, do país que edi- ficamos ; e isto deverá ser realizado em fraterna igualdade e mu nhão com os poucos índios brasileiros que sobreviveram a idêntico massacre e espoliação racista sofridos pelos africanos. Não esqueçamos que enquanto os jesuítas tentavam domesticar aculturar os indígenas para, em seguida, serem sistematica- mente dizimados, os africanos e seus descendentes construíam as fundações sócio-econômicas do país. Construíamos, enquanto e escória portuguesa que para aqui veio «COionizar, clVilizar., ristianizar» . torturava africanos, assassinava índios, estuprav negras e índias no fundo das redes, caçava com armas de logo aqueles africanos sublevado nos quilombos. São tempos pas- ados e presentes, duramente produtivos. Uma possível tomada do poder pelos negros foi sempre um pesadelo perturbando o sono tranqüilo das classes dominan- t s e governantes do país, durante todo o decorrer de nossa história. Por isso tornou-se um aspecto básico na concepção de uma técnica e de uma estratégia para o esmagamento e desa- parecimento completo do negro do mapa demográfico. É obvio que não existem leis nem testemunhos escritos estabelecendo as linhas ide uma tal política, mas a documentação existente, do nlc io de 1800 até a metade deste século, é irrefutavelmente clara definitiva, conforme teremos oportunidade de examinar no apitulo 2. Aliás, os interesses que a fundamentam são tão profundos que se tornaram parte do inconsciente atuando ne- S < tivamente nas oportunidades de trabalho, de moradia e de 1· lucação - torna-se imperioso considerar a política imigratória d Brasil, concebida sob o explícito propósito de ário-europeizar população como uma prática metódica de tirar aos africanos 1 seus descedentes os meios necessários de sobrevivência. O hl toriador Clóvis Moura nos recorda que Entraram mais ·imigrantes italianos nos 30 anos depois da Lei Aurea do que escravos que foram beneficiados com a libertação. Com a Lei Aurea, a marginalização do negro estava instituída. (1977:27) 23 Ne$sa onda imigratória participavam também espanhóis, alemães, judeus, sírios, portugueses, poloneses, libaneses e ou- tros; por último vierám os japoneses e os racistas brancos. ex- pulsos ido antigo Congo belga (Zaire), de Angola e Moçamb~que, seguido dos fascistas que sobraram da queda do salazansmo em Portugal. Aí temos o proletariado artificial introduzido no país para deslocar os negros do mercado de trabalho «livr~»; ou, em outras palavras, um episódio cru e simples na his- tória da espoliação do africano e seu descendente, sumaria- mente excluído, violentamente expulso da classe trabalhadora. Todos os velhos barões latifundiários da cana-de-açúcar, do al- godão ou do café, ou da borracha; os grandes comerciantes, os proprietários de terras improdutivas, os industriais e os ban- queiros - toda a aristocracia rural e empresariado urbano -, todos foram e são de origem ário-européia, quer sejam do stock colonial português, quer provenham do stock mais recente da imigração. E enquanto os negros permanecem na base da escada social, durante quatro séculos, os imigrantes brancos que chegaram ao país em algumas décadas, ou, por assim dizer, há alguns dias, ascendem rapidamente a escala social e de todos os poderes, seja o econômico, o político ou o cultural'. Essa vertigi- nosa mobilidade da sociedade brasileira não toca nem a pele negra da população majoritária. Manipuladores da utopia ideológica chamada «demo- cracia racial», coletivo da classe dominante. Para que se ne- cessitaria de uma legislação escrita, quando da prática social, da rotina existencial das camadas dominantes, resultou uma espécie de lei consuetudinária que sutilmente passou a integrar o elenco dos instrumentos básicos da politica do país? O exemplo de confrontação racial nos Estados Unidos aconselhou às nossas classes dirigentes um outro caminho; em lugar de um choque frontal entre pretos e brancos, a solução brasileira seria negar a existência do problema, negar, e sempre negar, que no Brasil exista qualquer tipo de questão ou problema de preconceito e discriminação raciais. Isto a :despeito das incontáveis denúncias da imprensa, das várias pesquisas da ciência social, dos livros publicados, dos depoimentos e das reivindicações coletivas dos afro-brasileiros, afirmando., provando o contrário. A classe do- minante no Brasil procede como uma antecipação dos ensina- mentos de Goebbels, o· famoso ideólogo do III Reich, de que a mentira, sustentada insistente e reiteradamente, é capaz de criar 24 uma nova verdade; em contrapartida, a vêrdade . passa a ser a mentira verdadeira. O Brasil oficial dispendeu grande esforço tentando criar a ficção histórica segundo a qual o país representa o único paraíso da harmonia racial sobre a terra, o modelo a er imitado pelo mundo. Não levou em conta a precariedade a l'ongo prazohistórico, do alcance eficaz da mentira-realidade 'ou da realidade-mentirosa que o próprio Goebbels tão bem exem- plifica. Com a queda do colonialismo na Africa e o levante dos povos negros de todas as partes ido globo, também no Brasil ~ de~i~tegra a parafernália de artifício, de subterfúgio, de h1pocns1a, montada para ocultar o crime que se pratica contra as massas negras. Entre os mecanismos executores do linchamento social do afro-brasileiro - deixando de lado a miscigenação compulsó- ria, que significa o embranquecimento forçado do negro como único meio de melhoria sócio-econômica; indo além do precon- ce ito de cor, da discriminação e ida segregação raciais·, os supre- macistas brancos e brancóides manejam simultaneamente outras ferramentas de controle social' do povo negro, exercendo sobre le constante lavagem cerebral, visando entorpecer ou castrar sua capacidade de raciocínio. Esta tarefa vil quase não encontra bstáculos à sua frente, devido à situação de permanente penúria, fome, degradação física e moral, em que são mantidas as massas afro-brasileiras. Esta forma de mentecídio contribui muito signifi- ativamente para o resultado ótimo buscado pela estratégia do cu aniquilamento total. Florestan Fernandes toca fundo no assunto, alertando-nos pa(á o que chama . . o «complexo» como formação psicodinâmica e sócio-dinâmica reativa, por meio da qual o branco invade a personalidade profunda do negro e debilita seu equilíbrio psíquico, o seu caráter e a sua vontade. (1972:273) Quais poderiam ser as conseqüências do fenômeno re- krido? Uma dessas conseqüências pode ser. observada em São P. ulo, no coração do centro industrial do oaís. Lá se encon- lrilm as tax~s mais altas de desemRrego e de suicídio entre os 111 ros; o maior número de desequilibrados mentais está dentro 25 1 ~ ... Flf. C. H11mana1 VFMG •l•LIOT•OA da comunidade negra; assim como furto, prostitu ição, roubo, enfim, delinqüência ou crime de natureza sócio-econômica, mostram -alta porcentagem· de negros. Mas há ainda a morta- lidade infantil, a criança abandonada, a d linqíll!ncia infantil, setores onde os negros figuram em número u sproporcional à sua porcentagem na população- geral d Paulo. Em face de uma realidade tão chocante, c mo po f r mos esquecer ou perdoar? No Brasil, a minoria bran domina nte jamais hesitou em demonstrar e praticar sua 1 ai lld ri dade, de forma ativa, à sua origem étnica, cultu ral polltlco-militar, à Europa. Seus laços com Portugal, depois da ind p nd n ia d país, com graves implicações com o sangr nt govern e loni li ta de Salazar, testifica enfaticamente a permanência .desse c nluio o qual, seja dito, tem mais de subserviência e colonizaçã m ntal do que propriamente de honesta e dignificante lealdad . Adiante iremos examinar algumas das amostras daquela s lidariedaide entre «arianos» daquém e dalém mar, no capftul fina l do volume. Em tempo algum a autodenominada « n ciência nacional» brasileira questionou seriamente o comportam nt dessa classe dirigente, seus espúrios compromissos. A s li 1 ri dade européia e coesão racial , com sua contrapart brancn Américas, tem produzido enormes benefícios (para 1 s) lidado o poder em ambos os lados. Se a recíproca é v rdad ira, inda qu cm potencial, chegou o instante histórico d a m i ria n gr do Brasil, sem mesmo necessi tar de justificaçã , r .itar 11s liames com a Africa original, solidarizando- e m irma africanos do continente e da diáspora, m t d l n s de sua luta por independência, liberdade e dignlidad . r isa ir além o negro brasileiro: deve ele sustentar sua a fri anidaid m nível de poder, assim firmando um lugar próprio no nc rto das nações afri- canas e negras. Institucionalizar o Bra il N gr - eis a exi- gência que grita sua urgência na encruzi lhada de nossa história. Um Brasil Negro que substitua o poder ora vigente, destituído de legitimidade, ficção do poder ariocapi tal'ista e servo mimé- tico do Euro-Estados-Unidos. Para a institucionalização do poder com base na au- todeterminação das massas afro-brasileiras, temos o exemplo inspirador do Quilombo dos Palmares: isto significa ria a adoção da -estrutura progressist_a do comunalismo tradicional da Africa, 2ô cuja longa experiência demonstrou que em seu seio não há lugar para exploradores e explorados. Aceitar o comunalismo africano, si tuá-lo no contexto das exigências conceituais, funcionais, e práticas da atualidade, significaria nada mais do que tornar a história a favor de nós mesmos. Valeria como optar por uma qualidade de socialismo cujo funcionamento na Africa tem a anção de vários séculos, muito antes que os teóricos europeus formulassem a sua definição «científica» de socialismo. Convém lembrar as palavras de um verdadeiro- líder africano, Amílcar abra!, ao se referir aos positivos valores culturais da Africa: . . . a luta de libertação é, acima de tudo, uma luta tanto para a preservação e sobrevivência dos valores culturais do povo, quanto para a harmonização- e desenvolvimento desses valores dentro da estrutura nacional. (1973:48) Considerando o ser humano como a autêntica base .do p der, a maioria de descendência africana terá condições de liminar, no Brasil, apoiada nesse comunalismo devidamente • lual izaido, os privilégios econômicos, políticos, culturais e so- lais que atualmente institucionalizam as estruturas do poder. l't ra aqueles reacionários decrépitos, paladinos de nosso perma- 11 nte atraso, assumir nossa própria identidade, proclamar nosso dlr ito legítimo ao poder, é o mesmo que praticar um racismo avessas. Estes recusam qual'quer razão ou o esclarecimento 111, Is lógico e justo. São dogmáticos neste ponto. Entretanto, 1 lnki Madhubuti tem uma frase clara, simples e definitiva: É necessário esclarecer que ninguém está contra os brancos porque eles são brancos - estamos contra os brancos por causa da irrefutável documentação de sua guerra continua contra os negros. Nós estamos a favor dos negros ( 1977: 242; grifo no original). Todos os ensaios foram revistos, corrigidos, cortados r scentados, fato que pode ter alterado a dimensão ou a riginal, mas que não modificou o sentido do seu res- 27 p ctivo conteúdo. ~t~anscreve o paper que preparei para o VI Gongresso Pafl-Áfricano, a pedido do Ministro ido Exterior da Tanzânia Mr. John Malecela, Chairman do Steer-ing Committee .do Congresso, realizado em junho de 197 4 em Dar-es-Salaam. Já me encontrava em Nova York, procedente de Buffalo, a fim de participar da reunião na qualidade de dele- gado brasileiro e único sul-americano, quando recebi telegrama de Mr. Malecela, simultaneamente, mas independentes entre si, com a informação de que a delegação da Guiana e o coordenador da região Caribe-América do Sul, o irmão Eusi Kwayama, ti- nham sido impedidos de viajar para a Tanzânia e excluídos do Congresso. Após momentos de perplexidade, vacilando entre não comparecer a Dar-es-Salaam em solidariedade à delegação d'a Guiana - a opção do líder pan-africanista C. L. R. James - e estar presente ao Congresso e protestar contra a inaceitável discriminação, decidi pelo último caminho, comparecendo. En- quanto lia meu discurso para a assembléia, recebi cerca de três ou quatro avisos escritos do presidente do Congresso Mr. Aboud Jumbe, Primeiro Vice-Presidente da Tanzânia, para que não me alongasse em meu pronunciamento; eu deveria terminar no ato, supostamente por carência de tempo. Todavia eu tinha ouvido vários delegados de outros países usarem a tribuna freqüente- mente, e seus longos discursos não eram perturbados. Houve uma linha ideológica imposta rigidamente sobre o Congresso por certas facções, a qual será discutida mais adiante; a tenta- tiva de me fazer calar serve como amostra do clima predominante. Insisti, não abandonei a tribuna, e ao microfone continuei a leitura até o final do paper. Era irônico, naqueles instantes, lembrar que a força inspiradora do VI CongressoPan-Africano e seu original organizador, C. L. R. James, na etapa prepara- tória em Washington D. C., teve um encontro comigo articulado pelo nosso velho companheiro de lutas Roosevelt Brown. Na- quela ocasião Mr. James expressou sua intenção de dedicar um dia inteiro da sessão plenária do Congresso para discutir a si- tuação brasileira; com toda a razão, Mr. James considerava o despertar da consciência do afro-brasileiro um fato de decisiva importância à causa pan-africana. Somos a maior nação negra fora do continente africano, com mais de 70 milhões de des- cendentes dos ex-escravos. E naquele Congresso eu represen- tava não apenas o Brasil, mas todo o continente da América do Sul, além de que apresentava um estudo que me fora solicitado. 28 entanto, tentavam silenciar-me! Embora estivesse limitado p las f.egras do regimento interno, ao finalizar meu discurso d lxei registrado meu desacordo com a política de exclusão ou d intimidação patrocinadas por governos reacionários de ualquer coloração ideológica. Durante uma conferência preparatória do Congresso, r alizada em Kingston, Jamaica, em 1973, tive oportunidade de nhecer pessoalmente a Sra. Amy Jacques Garvey, viúva de Marcus Garvey e autora de idois importantes livros sobre o arveysmo. Em sua agradável casa rodeada de um pomar, p ssamos uma tarde trocando idéias e informações sobre a luta n gra; pequenos desacordos e muitos acordos com aquela ines- quecível mulher negra que doou toda sua energia, inteligência e ração nas muitas batalhas de libertação da raça. Pouco tempo d pois desse encontro Mrs. Garvey faleceu, mas a fortaleza do u espírito continua nos inspirando e transmitindo energias. Na manhã seguinte ao ato inaugural do Congresso em ar-es-Salaam, fui recebido na State House para uma audiência privada com o Presbdente Julius Nyerere que durou duas horas. · 1 urante os poucos minutos que estive ·na sala de espera, revi nn memória a imagem daquele Presidente que conheci no dia:' • nterior, primeiro de longe, no salão cheio do Congresso, 1uando ele pronunciou o discurso inaugural; depois, na noite 1 sse mesmo dia, quando o Presidente deu uma recepção aos ngressistas no jardim da State House, quando comparamos 11 ssos cabelos brancos e rimos. Então vi aquele riso tão puro seu rosto mostrava uma alegria resplandecente de criança; v rdadeiramente eu estava diante da face radiante da Africa, livre e plena de esperanças. . . Mantive com o Presidente yerere uma conversa franca sobre a situação racial no Brasil, deixei seu agradável e simples gabinete com meu espírito en- uecido pela comunicabilidade inteligente e humana daquele lld r africano. Um problema sério que defronta qualquer participação r -brasileira em evento internacional dessa natureza está no lusivismo lingüístico que exige dos africanos que falam por- tu uês - o grande contingente que inclui Brasil, Angola, Mo- mbique e Guiné-Bissau - o uso obrigatório do inglês ou do 111cês, exigência que significa para nós uma dupla colonização m termos de linguagem. A necessidade de tradução especial meu discurso, já que o serviço normal de tradução do 29 Congresso não incluía o português, impunha um tempo dobrado para .minha intervenção. Nesse difícil transe fui assistido _pelo corajoso esforço de. uma mulher francesa, membro do corp_o oficial de tradutores fornecido pela OAU, que, embora nao fosse tradutora de português, fez o melhor que pôde, com o por- tuguês restrito que conhecia, e forneceu uma tradução simultâ- nea do meu discurso para o francês ; isto permitiu que o que ey disse pudesse também transitar pelos canais das línguas i~gles~ e árabe. Quero apresentar minhas sinceras desculpas por nao ter guardado o nome dessa mulher da França, porém, mesmo assim, expresso a ela meu especial agradecimento por sua inesquecível dedicação e gentileza. O Capítulo o meu discurso ao Encounter: African World Alterna 1ves, promovido em Dacar, Senegal, e organizado pelo esforço enérgico de Wole Soyinka, manejan~o ~s arm~s forjadas por Ogun em seu nunca acabado salt_o trans1tóno atra_v~s do abismo existencial, rumo à liberdade afncana. Ao contrano do encontro de Dar-es-Salaam, cujo documento final ressoa como o próprio atestado de óbito da idéia pan-africana, a reunião de Dacar, sem a interferência de poderes governamentais ou de delegações oficiais tocando suas próprias fanfarras, decorreu e!11 clima construtivo. No final dos trabalhos votou-se uma moçao de solidariedade à luta armada do MPLA em Angola; criou-se uma Associação de Pesqu isadores do Mundo Africano, sob a presidência de Cheikh Anta Diop; estes foram f_atos ~ositi_vos pa:a nossa organização internacional, comprometida na llbertaçao total do continente. A União dos Escritores dos Povos Africanos, patrocinadora da conferência, aprovou sua constituição e tomou drásticas decisões para a adoção de uma língua africana - o Swahili - como língua franca pela qual todos os africanos pudessem finalmente comunicar-se entre si. Mas enquanto a língua comum para o continente e a diáspora não for realidade, as dificuldades prosseguem; e eu teria de enfrentar novamente o problema da tradução, e, conseqüentemente, pressionado sob as implacáveis limitações de tempo. Dividido em duas partes, o Ca itulo 3 é constituído de dois seminários ministrados no Departamen o de Línguas e Li- teraturas Africanas, Universidade de Ife, na Nigéria. Àquela época dirigido pelo professor Wande Abimbola, esse depart~ mento cumpria um papel extremamente relevante na errad1caçao dos males produzidos pela colonização mental e cultural dos 30 kanos. Nessa linha de orientação, os val'ores africanos de ltura, religião, língua, filosofia, artes, história, costumes - tcrnat'camente negados, distorcidos ou subestimados durante o lonialismo inglês - estão sendo reafirmados, recuperados marginalização, da degradação e da vergonha, reconhecidos r taurados em suas inerentes e relevantes funções sócio-cultu- 1 numa sociedade nigeriana que progressivamente assegura u;1 orig inalidade e soberan ia . A Universidade de Ife mantém Inda um Projeto das Culturas Africanas na Diáspora - sob a . ponsabilidade dos professores Abimbola, Soremekun e Akin- - o qual, por seus objetivos básicos, i"mplicitamente tfl envolvido em todos os movimentos, esforços ou iniciativas f rentes às culturas de origem africana nas Américas. Seria 111 ato de grande visão e sabedoria, no âmbito da' política ultural pan-africana, se aquela universidade enfatizasse esse rr jcto dentro de sua estrutura acadêmica, com recursos finan- ' lros e todos os meios necessários, a fim de que o Projeto 11t.J sse expandir e estabilizar as atividades que tão auspiciosa- ' •nte iniciou, com apreciáveis trabalhos de pesquisa, estudos e nl rcâmbios entre , Africa: o continente e a diáspora. Aquele 1•minário do Corpo Docente, mantido pelo Departamento de 1 guas e Literaturas Africanas, foi para mim um forum alta- 1111·nte informativo e estimulante. Oportunidade de contato hu- lllí"1 e intercâmbio acadêmico - embora fique consignado o .1r:\ter confessadamente não-acadêmico e não-scholar de minha 1111tribuição. Minhas calorosas congratulações ao Departamento por ter cr iado veículo tão efetivo de izado e ensino. Encerrando o volume, Ca ítulo 4 transcreve minha 1 11tri b11ição ao I Congresso das Culturas Negras nas Américas, wn tecido em Cáli, Colômbia, em agosto de 1977, no qual pr ·ntei, na qualidade de delegado do Brasil, o Projeto das 11lturas Africanas na Diáspora, da Universbdade de lfe, Nigéria. 1 ui eleito pres 'dente do Grupo de Trabalho D - Etnia e f . cigenação; .no fim desta Introdução transcrevo excertos das onclusões e Recomendações votadas por esse Grupo. Infeliz- 1111111 , as recomendações completas do Congresso não se achavam f níveis quando organizava o presente livro. Entretanto estas publicarei no final , votadas pelo Grupo D, foram aprovadas /\ssembléia Geral do Congresso, eoriginalmente redigidas 11 panhol. Como assessora do grupo elegeu-se a antropóloga lnm iana Nina S. de Friedmann. 31 Sem dúvida o congresso de Cáli marcou um passo adiante na história · africana da diáspora; pela primeira vez em 400 anos, os negros das três Américas se reuniram, depois que seus ascendentes africanos, trazidos à força para a escravização no Novo Mundo, foram divididos e isolados. O leitor dos Es- tados Unidos deve ter notado que evitei o uso do termo «afro- americano» ou «negro-americano» para qualificar os negros desse país. Uma tentativa para estabelecer e afirmar o fato de que os Estados Unidos não esgotam as Américas: afro-ameri- canos e negro-americanos podem ser encontrados desde o norte do Canadá ao extremo sul da Argentina. O monopólio no uso dessa expressão pelos negros norte-americanos tende a obscure- cer neles a lembrança dos negros das outras partes do continente. O Congresso das Culturas Negras das Américas reforçou os liames de nossa unidade como povos negros de todas as Américas. Em Cáli atuamos num ritmo e numa atmosfera bastante favorá- veis; nem as discussões, nem as votações sofreram qualquer censura de caráter ideológico ou repressão político-partidária. O único episódio negativo registrou-se nas típicas manipulações burocráticas, tradicionais no comportameoto do racismo brasileiro e da ditaidura militar que nos «governa», impedindo o compareci- mento da delegação brasilei ra ao Congresso, encabeçada pelo historiador Clóvis Moura. Teria sido a mais numerosa dele- gação no congresso, na correta proporção da presença majoritária afro-brasileira na respectiva população do país, bem como relativamente à população n gra pecf fica de cada país ame- ricano. Entre as recom ndaçõ s ad tadas p lo Congresso, houve uma que apresentei ap land dand continuidade à decisão votada pela União id scrít r s African s, em Dacar: a re- comendação do ensino d uma lln ua africana em todas as universidades de pafs s am ri an e m p pulação negra; assim, a longo prazo, em esforç rd nad c m a ação semelhante no continente, todos os african pod rã um d ia dispensar em sua comunicação recíproca lnt rm diári lingüísticos alienígenas. É oportuno mencionar aqui outr fat de relação lingüística: entre os eventos de Dacar de áli , t v lugar o II Festival Mundial de Artes e Cultura N gra e Africanas, em Lagos, Nigéria, em janeiro-fevereiro de 1977. Ne sa ocasião foi apro- vada pelo Colóquio daquele Festival uma proposta de minha autoria incluindo o português como uma das lf nguas oficiais em 32 f do futuro encontro internacional do mund f . 0 a d' - - o a ncano urante . iscussao e votaçao dessa proposta contei co : .. do eminente teórico e lútador negro norte m ~ apo10 . dec1S!VQ Kare o 1 t -amencano Dr Rori nga. re a o completo de minha polêmica f ·. :. , o l ~quio. ~e Lagos, perturbada pelo constante ett~~ç1~1pd;a~el~~ gaçao oficial do governo brasileiro em tentar ·1 ·. ·• nas páginas do meu livro O Genocídio do me si enc1ar,. e_~ta dição Paz e Terra, 1978. Negro Brasileiro, Ao encerramento de . s:us trabalhos, o plenário do ongresso de Cáli tomou a dec1sao de las Culturas Negras nas Américas ~~m~v9e7r9 o II Congress.o i1 s d . . 1 , no Panama . eguran o a continuidade desse laço vital ao f t d ' n gros no No o M d E . u uro os povos ~ . un o. speremos que nessa próxima ·reunião negros braslleiros possam comparecer e pa f . 1 m perturbações, restrições ou ameaças. r icipar p enamen!e, . - Quero por fim tornar públicos meus sentimentos de gra tidao ao Centro de Pesquisas e Estudos p t . Puerto Rican Studies and Research Center) d o~o~nqu~nhos lo Estado de Nova York em Buffalo (State U .ª _niverfsidade Y l t B ff nivers1ty o New or < a u alo)' pelo apoio que tem dis ensad . mais de sete ª .nos . M~us colegas e her!anos ~r~n~~~o d~:~~t: Alfredo Mat11Ja, assim como os estudantes p t . .h t m sido fonte de inspiração coragem e or o-nquen os, li t 1 • esperança, em nossa r a comum pe a descolonizaç~o, liberdade, igualdade é di nid~de ti s povos negros de Porto Rico e Brasil Meus a d !f t t Depa t t d L' · gra ecimen os ' r amen o e mguas e Literaturas Africanas U . . d:tde de lfe, pelo estímulo que me ofereceu durante ' mvers1- I. passei como Professor Visitante em Ilé If. M o ano q~e 1 t t d · ' - e. eu reconheci- ' icln o es e~be:se ainda a todos aqueles que de uma forma ou de •Ili ra contn tttram para a existência deste r . . . l 0111 0 t t ivro, se1a discutindo a~ or os e~as e idéias nele contidos, seja colaborando 11. lraduçao ou datilografando os textos Entre t 1 m CI. . B . - . es es se encon- ov1s .. ngaga~, Nanci Valadares, Vera Beato Kath n 1 v rna, Max1mo Sonano, Érica Fritz e minha mulh ' Er ry 111 m es te livro muito deve. ' er isa, a A. N. Centro Universidade do Estado de Nova y k de Pe · or squ1sas e Estudos Porto-riquenhos Buffalo, 13 de maio de 1978 33 BIBLIOGRAFIA Asante Molefi Kete (1978) Sys- temdtic Nationalism and Lan- guage Liberation .. Buffalo, New Horizons (lmpubhcado). Cabral, Amílcar ( 1973) Return to the Source: Selected Spee- ches of Amilcar Cabral (ed. por Africa Jnformation Service) . New York and London : Monthly Review and Africa Jnformation Service. Clarke John Henrik (1974) Mar- cus 'Garvey and the Vision of Africa. Nova York: Random House. - (1977) <The Develop~ent of Pan-Africanist ldeas m the Americas and Africa before 1900». Lagos: Festac 77 Col- loquium 1977 (Jmpublicado) . Fernande;, Florestan (1972) O Negro no Mundo dos Brancos. São Paulo: Difusão Européia do Livro. Karenga, Maulana Ron (1975) ddeology and Struggle: Some Preliminary Notes>, Black Scho- lar. Sausalito, janeiro-fevereiro (Vol. VI, n9 5) p. 23-30. Madhubuti Haki (1977) Enemies: The Cl~sh of Races. Chicago: Third World Press. 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Tal discrimina ão utiliza as diferen es to de.. co.t:. 1 pidérmica do negro como mecanismo para conseguir que o ho- m m ne ro desa · · en.to, <LJJ.W:LM.a.....WJ....J.l.!.Wl!.S!;!!.....!~~~a~r a~o~b~te~r...2!.m e lho res co · ç.Q_es d e ~ 11Le..caojsm se destrói a solidariedade po- 11 11 a, econômica, religiosa e familiar dos grupos negro-s.-- A- contínua repetição do tratamento daido pelos brancos o negros no passado, sem enfatizar suas realizações criativas e 11 .1 participação na construção da América, é outra maneira de l . criminação. A atitude adotada por intelectuais de orientações polí- particulares que negam a existência da questão racial como 1111 elemento que participa na existência de problemas sociais, sus- t 11 lando que a situação é de ricos e pobres, oprimidos e opressores, uma maneira de discriminação racial. Recç1m~n4_ações · II. Debatendo a situação racial na Colômbia, focalizou-se a ausência de participação do negro na economia e na políticado país, assim como as causas da mesma. Foi aprovada um~ ~ro posta tendo-se em conta que, além do telão de fundo econom1co- social, existe o elemento raça usado para negar ao negro uma devida participação, em todos os níveis, na vida do país. - A criação de uma consciência política e social que promova uma autêntica participação ido negro na Co- lômbia e em outros países da América. E, para esse efeito, desvirtuar todos os esquemas homogeneizantes que reúnem o lumpen branco, negro ou indígena, ou o prole- tariado branco, negro ou indígena, num só bloco que não leva em conta a interiorização do domínio que os grupos brancos exercem sobre os não-brancos. III. Tendo-se em conta o perigo iminente do Brasil , Argentina e Chile, que por inspiração dos Estados Unidos estão em negociações, em colaboração com a União Sul-Africana, p~~a assinar um Tratado do Atlântico Sul que integraria a Umao Sul-Africana no perímetro de defesa dos Estados Unidos e do mundo ocidental, o que efetivamente seria um pacto militar ofensivo contra os negro-africanos do sul da Africa, foi aprovada a seguinte proposta: - Que o Congresso se dirija aos governos dos Esta- dos Unidos, Brasil, Argentina, Chile, às Nações Unidas, à Organização dos Estados Americanos e à Organiza- ção da U nidaide Africana, manifes tando nossa repulsa e nossa enérgica oposição às manobras e conversações, diplomáticas ou militares, ou qualquer tipo de fato que possa conduzir à realização de uma Aliança ou Tratado do Atlântico Sul', ou à criação de qualquer outro orga- nismo que disfarce o objetivo de colaborar com os cri- minosos racistas que encabeçam os governos dos Estados do sul da Africa. IV. Enfrentando a pergunta de como resolver os pro- blemas de discriminação e racismo que o negro sofre E. reco- 36 que eles ·surgem · de um sistema institucionalizado e vasto, afirmamos que - Os descendentes africanos das Américas terão que estar conscientes que seus problemas não se resolverão com pequenas modificações ou reformas de natureza tópica, senão que se necessitará de uma mudança estrutural básica da sociedade e do sistema econômico- político vigente. Portanto, não nos limitaremos a uma atuação no !ano intelectual elitista senão --.!:Lgtremos aos povos trabalhadores, marginalizados, analfabetos, inclusive, a fim de trabalhar com eles rumo a uma ven a eira revo ução de caráter econômico, social, político e cultural que nâo permita nem a exp oraçao nem o racismo. VI. Conside_rando a necessidade de instrumentos para oncretizar os ideais e os objetivos de estudo, intercâmbio de ld ias e de estratégias ide Juta, se propõe: - A criação de organismos dinâmicos em cada país, encarregados de investigar, dirigir, desenvolver e apoiar todas as atividades tendentes a transformar as estru- turas econômicas e sociais, tendo-se em conta a liber- tação do negro nas Américas. Haverá um organismo central confederado no qual cada país tenha um ,dele- gado. Tal organismo constaria das seguintes seções, entre outras: a) Atividades política e estratégica (Ação) b) Atividade cultural (Ciências, Artes, Economia) c) Desenvolvimento tecnológico. VII. Discutindo o problema da comunicação dos ides- ' 11 lentes africanos com seus irmãos no Continente, e conside- 0111d que devemos erradicar todas as formas de colonização, 111 lus ive a lingüística, - Foi proposto aos órgãos educativos dos países da América o ensino de uma língua africana, a qual, a longo prazo, possa ser utilizada como instrumento de 37 educação e comunicação universal entre os negros de todo o mundo. IX. Na discussão do conceito ide que o negro tem sido um co-colonizador em diferentes países da América, surgiu a recomendação seguinte: - Que tendo-se em conta que em muitos estudos es- critos o negro tem sido assinalado como um co-colo- nizador da América e que a colonização foi uma obra de genocídio físico e cul'tural realizado pela cultura ocidental, Solicitamos que se retifique essa noção, es- clarecendo que, pelo contrário, a participação do negro foi como um dos construtores da América. XI. Em todos os países da América se observam fe- nômenos ,de dispersão e de divisão entre pessoas desprevenidas como resultado de manipulação do poder dominante, econômico e sócio-político. Assim, - Esta denúncia exorta aqueles que são vítimas d ( tais manobras, para que impeçam com sua sensatez que se estimule a divisão e a confrontação entre grupos l negros, já que isto só favorece os seus exploradores. 38 DOCUMENTO Nt 2 REVOLUÇÃO CULTURAL E FUTURO DO PAN-AFRICANISMO Apresentado à assembléia geral VI Congresso Pan-Africano 23 de junho de 1974 Dar-es-Salaam, Tanzânia ... nós, negros africanos~ t:m?s sido convidados sem muita ins1stencia . a nos submetermos a uma segunda epoca de colonização - esta v~z por Uf1!ª. abstração universal-humanóide. def 1md~ e conduzida por indivíduos cuias teonas ~ e prescrições são derivadas da apreensao do seu mundo e sua história, suas neuroses sociais e seu sistema de valores. Wole Soyinka M yth, Literature artd the Af rican W orld Em primeiro lugar desejo agradecer ao Presidente Julius Nyerere, ao Partido TANU e ao povo da Tanzânia a calorosa fraterna recepção oferecida a este representante das massas n gras do Brasil. Gostaria de expressar também a incondicional lidariedade dos afro-brasileiros aos movimentos armados de libertação nacional e às guerras contra o colonialismo no con- tinente africano sustentadas por nossos irmãos africanos. Isto que hoje constitui as aspirações do pan-africanismo f i uma realidade para os nossos ancestrais. Eles viveram numa t rra que era deles, possuíam suas próprias culturas, religiões, llnguas, civilizações e estilos de vida; unicamente eles eram os d nos dos frutos resultantes do seu trabalho, dos quais .dispunham gundo seus interesses e desejos (Diop 1977 e 1978). Aquela h rmonia - homem, natureza, trabalho e cultura: existência e lvência no continente - foi rompida pela invasão imperialista t uropéia e sua cons·eqüente espoliação colonial. Presumo que te VI Congresso Pan-Africano real'iza-se sob a é 1ae daquele livre espírito original qu~ inspira toda luta pan-africana. Es pois o Congresso da unidade ferida e inter.!Q!!J ida, .s.-q n. apenãS os africanos do continente, mas os ovos negros 1 todo o mundo, dese·am resgatar, recompor e enriquecer, se- ttndo as necessidades de modernização imposfãSPela constru- ,de uma ~ocieda e industrializa a e p rogress1s a. Em linhas muito grosseiras e gerais, talvez sejam estas circunstâncias his.tóricas existentes na Africa e no cenário rnacional que presidem e tornam significativo este Congresso 11 qual ora participamos. Atravessamos uma longa e árdua estrada de o primeiro desses Congressos, até chegarmos a este que r sexto nà linha de sua sucessão. Com efeito, a partir do domínio colonial, desenvolveu-se os povos africanos a pungente consciência da tragédia que traduziu na ocupação do seu continente, e agora progredimos rumo ao que hoje revela e confirma o processo de libertação pan-africana. Constituíamos o ser invadido, estuprado e explo- rado - a terra africana ocupada, seus filhos e filhas raptados e avaliados apenas por seu serviçalismo; seus recursos naturais desviados do seu destino de direito para a ilegítima acumulação da riqueza material do Ocidente; desse ponto, marchamos agora para a ,direção oposta: rumo ao processo de formação e pro- moção do autogoverno soberano. Aquilo que significava espírito na Africa foi transformado em capital na Europa/ Amériea do Norte. O que era ser -humano foi reêficado nas terras do capi- talismo, ou .nativizado em sua própria pátria de origem, pelos in- teresses e abusos do racismo colonial, primo gêmeo do impe- rialismo europeu. A restituição aos africanos daquilo que era antes uni- camente seu, neste momento histórico de crise aguda do capi- talismo, apresenta necessariamente implicações de relevantefunção ecumênica. Pois uma vez mais a redenção do oprimido, em sua plena consciência histórica, torna-se em instrumento de libertação do opressor encurralado nas prisões a que foi condu- zido pela ilusão ida conquista. Cultura: uma unidade criativa É geral o reconhecimento de que a chamada cultura do Ocidente chegou a um ponto visfv 1 de impasse que denuncia sua exaustão histórica. Extinguiu-se a vigência funcional e criativa que a caracterizava, seu declínio produziu as tensões na humanidade contemporânea, e os pov s se defrontam e con- frontam-se em porções cada vez mais d s integradas e inimigas. O império em decadência aí está, exangu e perplexo, e sua única alternativa são as guerras. Assim c nstatamos facilmente que aquelas sociedades mais intrinsecamente ocidentalizadas são as menos capazes de deter o acelerado processo da própria dete- rioração. Dessa circunstância advém a certeza de que o de- sempenho de um papel não apenas importante, como urgente, está desafiando o potencial criativo de todos os povos, nações, homens e mulheres. E nesta etapa da trajetória humana, vemos emergir, num certo lugar da terra, um ponto insuspeitado, alguma coisa intrigante, talvez um mistério histórico: o fenômeno da cultura de uma área específica, até agora marginaliza 'lia, proje- tando-se na direção da área de expansão ecumênica. 42 . Falo das culturas africanas d dizer, culturas dos africanos e as culturas negras, quer as destes últimos podem ou n~ de se~s ~escendentes na diáspora ; são típicas das comunidad o ser inteiramente africanas, porém E são todas essas culturas es negras em seus respectivos países. colhidas criticamente par ' comt· s~as nuanças características es- . a cons 1tu1r uma unid d Jºb progressista que suportam t a e 1 ertadora e e ' ' e es ruturam a cult f . om Am1Jcar Cabral sabemos ura pan-a ncana. cultura, para fazer a h1"stó . e( lq9ueremos «preservar e criar a na» 73: 14). Neste VI Congresso d , termos de detalhes nert· t po era ocorrer nosso desacordo em " inen es a nossas va · d · assim como a nossas articul . . _na as contnbuições, nho a ser trilhado parap a co ar.e~ vrsuahzaçoes do melhor cami- o elemento básico está n nqurs. a do futuro. Não imporfa ; pois o conceito da unidad f · contra a exploração do . e a ncana na Juta seus agentes que aqui spovof. negro, seja pelo imperialismo ou ' e a 1rma como a es A • nosso encontro Que . senc1a mesma do . · mais poderia ser a lt unidade criativa de forças d cu ura senão a - dispersas e enfraquecidas que, e outra. for~a, poderiam estar T A • em suas próprias singularidades? anzama compreendeu nossa . - . . . deste país está absorv·d pos1çao histórica. O povo · 1 o em autoquestion t interrogativa do futuro. é - amen os, numa reflexão ' por m em açao sim Ir · aquelas experiências do seu ' u anea, incorpora sua existência do presente p~sa~o que se mostram válidas à crescentemente significativa ; o uturo.. Sua cultura torna-se - o Ujamaa por exemplo . ua p~rspectiva global da sociedade gotado conteÚdo histórico ;-- revde a-se uma experiência de ines- ' ornan o-se um símbol convergem a atenção internacional e o para o qual massas dos povos negros O p .d as esperanças das grandes todos nós quando afirma. rdes1 ente Julius Nyerere fala por nosso ever de · Reconquistar nossa antiga atitude mental - nosso tr~dicional socialismo africano - e aplicá-lo nas novas sociedades que estamos edificando hoje. (1974:8) Explícita e lisamente 0 p · li ssa identidade cultural que d" . residente Nyerere aponta ut1 de apelativo, já que Ujama~pensa 0 empréstimo de conceito 43 \ . . . descreve nosso socialismo. Ele se opõe ao capitalismo, o quál procura edificar uma sociedade feliz baseado na exploração do homem pelo homem; ele igualmente se opõe ao socialismo doutrinário que procura edificar uma sociedade feliz baseado na filosofia do inevitável conflito entre o homem e o homem. (1974: 12) Segundo minha própria perspectiva, a noção de auto- suficiência ( selfreliance) mergulha suas raízes na mitopoesia, isto é, no espaço profundo onde a cultura exerce uma função crítica imanente ao seu fundamento criativo e libertador do ser humano e da sociedade nacional. O Presidente da Tanzânia afirmou várias vezes que tanto a terra como o poder da criatividade ar- tística são doações de Deus: ambos constituem instrumentos de similar importância no processo da revolução pan-africana ( 1974 :2). Permitam-me definir o que entendo como sendo o nosso objetivo. Fique desde logo claro que não se trata do problema de introduzir um novo e não provado conhecimento para preen- cher um suposto vazio que importa de imediato para o futuro da Africa e dos africanos, mas de renovar, criticar, ampliar e atualizar nosso conhecimento já existente. Tentarei esquematizar os elementos necessários à revo- lução pan-africana. Um deles está na possibilidade e na pro- messa de libertação da personalidade humana, sem a abdicação de sua responsabilidade como um ser histórico. Conseqüente- mente, os homens e mulheres africanos devem demonstrar a si mesmos que são capazes de transformar as circunstâncias nas quais eles vivem; e que tendo sido um povo que foi submetido e conduzido por outros recuperou a capacidade de conduzir seu próprio de·stino; que são, portanto, capazes de reaver a história roubada e manter permanentemente a soberania sob seu próprio legado cole.tivo; que eles podem e desejam liber a si mesmos daqueles instrumentos estrangeiros .de d~minação que no passado os oprimiram e alienaram; e que vig0rosa e decidi- damente rejeitam todas as forças de exploração e submissão. De um lado, é necessário reafirmar nossa tradicional in- tegridade presidida pelos valores igualitários .de nossa sociedade 44 pan-africana: cooperação criativid d . coletivas. Ao mesmo tem~o t ª e'. prop~1edade e riqueza tradição em um ativo viável ' orn~-se imperativo transformar a pelo crivo crítico seu~ aspect~s o~~rv u~o ser soei:!,. fazendo passar palavras, 'atualizando a tradiç- a ~res _anacronicos; em outras temporâneas as culturas af . ao, mo ernizando-a. Tornar con- lt ncanas e negras na dinâ . d cu ura pan-africana mund' 1 . mica e uma parece ser 0 objetivo pri~~ '. prog~essrsta ~ .anticapitalista, me espera de nós todos Com an?, t a ~r:efa bas1ca que a história ~ínua luta contra o . imperi~li~~~g~a instrument? .de uma ~on J unto com as efetivas estratégias e ôo . neocol??iahsmo, forjada progressista pan-africana ser, co~ mico-pol~ttcas,. essa cul'tura libertação. a um e emento pnmordiaJ da nossa Há os que situam as trad· - f · como pertencentes à fase iço.es ~ ncanas do comunalismo mundial, sendo, portanto tra/r~-cap1tal~sta do .desenvolvimento recedoras de rejeição. 'Esses içoes arca!cas e pe~emptas, só me- ainda pela ausência d . q~e assim raciocmam concluem de economia «primitiv:» r~1onal;dade «ci.entífica» naquele tipo Devemos rejeitar tais juliame~~~ oucorrena «espontaneamente». de. uma perspectiva crítica equivoc~d: e; gera,I se. re.vestem ou matico, de um primarismo in ~ ' e um ap~ionsmo dog- Iógica maliciosa Em genuo.' ou de uma distorção ideo- tradicionais afri~anas év:!a~e,d a dmâm~ca intrínseca às culturas Todo o conhecimento ue a tº que nao pode ser subestimado. oposto çlesse imobilismo \ue sfhe e:erdess?s ~ult.uras demonstra o razão de ser da producão cultur~I e':1 impmg1r, como a própria .de extraordinária rique~a criar africana: sempre foi plástica, fosse xenofobia. Este é um f i~a, . se~ 9ua.Jquer noção do que deixar de reconhecer Se h a o irre utivel que ninguém pode 1 . ouve uma qu·ebra de seu ·t a go como uma parada estática e - . n mo ou senvolvimento histórico, isto se deve n:o~p~og.re~s1va em seu de- por todo um aparato ideoló . . u missao pelas armas e culturas africanas. não consf~i.co !~posto pelo c:_olonialismo às bilismo inerente ~ elas. i i, por anto, um fenomeno de imo- . Em face de tais críticas, sou levado a . . sentimentoexpresso· por Cheikh A t D' . pa~cip.ar do de ciência humana ou ·hi' tó . n ª iop de que um sistema s nca para Africa « -- t um terren~ estritamente científico. Isto é , .... na_o par e de nunca partir do caminho cie t'f o mais importante: acientificismo são óbvias 1 • á qn 1 1_co» d( 1977 :31) · As razões desse ' ue gran e parte da «ciência» tem-se 45 provado apenas como instrumento de ·distorção, de opressão e de alienação. De fato às culturas africanas são aquilo que as massas criam e produzem: por isso elas são flexíveis e criativas, ass im como bastante seguras de si mesmas, a ponto de interagir espontaneamente com outras culturas, aceitando e incorporando valores «científicos» ou/e «progressistas» que porventura possam funcionar de modo significativo para o homem, a mulher e a sociedade africana. Entretanto, convém insistir neste ponto: as culturas africanas, além de conterem sua intrínseca e valiosa cíêné:ia, também oferecem uma variedade de sabedoria necessária, pertinente a nossa existência orgânica e histórica. O mínimo que se pode dizer é que seria um desperdício recusar os fun- damentos válidos de nossos ancestrais. Eles são o espírito e a substância do nosso amanhã que os gastos chavões mecânicos europeus e americanos não quiseram ou não foram capazes de construir para as massas africanas do continente e da diáspora. O exemplo de Palmares ... lá pelos anos de 1590 e pouco, alguns afri- canos escravizados no Brasil romperam os grilhões que os acorrentavam e fugiram para o seio das florestas situadas onde estão hoje os Estados de Alagoas e Per- nambuco. Inicialmente foram uns poucos, pequeno bando de fugitivos. Porém o grupo cresceu pouco a pouco até se tornar uma comunidade de cerca de trinta mil rebeldes africanos, homens e mulheres. Estabelece- ram o primeiro governo de africanos livres nas terras do Novo Mundo, indubitavelmente um verdadeiro Es- tado africano - pela forma de sua organização sócio- econômica e política - conhecido na história como a República dos Palmares. Mais ou menos à época de Palmares, aqui muito perto do nosso Congresso, nas terras vizinhas de An- gola, a rainha Ginga resistia com bravura, à frente de suas tropas, à invasão portu uesa do solo africano Estes são apenas dois exemplos na longa história de lutas e resistência contra a dominação estrangeira, as quais const ituem parte integral <le nossa herança africana no continente e na diáspora. 46 ~ República dos Palmares co laçao relativamente à . d _m sua enorme popu- rial de mais ou meno:poca, t om1nou uma área territo- tugal. Essa terra erten~·m erço do tamanho de Por- resultado do trabafho c /~.a todos os palmarinos, e o comum. Os autolibertos o :f i~o também era propriedade uma produção agrícola div~;s~~-os llant~vam e colhiam nocultura vigente na c IA . ica a, diferente da mo- agrícolas com seus ? _onh1a; permutavam os frutos Ef. . v1zm os brancos . d' ic1entemente organizados t t . e m igenas. mente, em sua m . an_ o social quanto politica- também altamente a~~~~~ic:~ncana tradicional~ foram p 1 os na arte da guerra a mares pôs em quest- . teira: o exército . t ao a estrutura colonial in- . , o s1s ema de po d patnarcas portugueses ou . sse .. ª _terra dos como .desafiou o poder' t d se1a, o lahfund10, assim 1. o o-poderoso da I · 1ca. Resistiu cerca de 27 gre1a cató- çadas pelos portugueses e guerrahsl de destruição lan- d . os o andeses · iram e ocuparam lon que mva- cano. Palmares mant~~e tesmpo o. te:rit_ório pernambu- século: de 1595 a 1695. ua ex1stenc1a durante um Zumbi, de origem banto f . . . mares; é celebrado na ~ o1 .~ ~!timo Rei dos Pal- Brasil como 0 nosso . . xp~ie~~ia pan-africana do Não apenas Zumbi !~~m~ir~ eroi do pan-africanism . mares devem ' 0 0 0 povo heróico de Pal'- ser reconhecidos e 1 b pan-african'smo mundi 1 ce e rados pelo fundador do próprio ª . como exemplo militante e movimento pan-africanista. Lf.ngua: um obstáculo para a unidade . _Todos nós conhecemos os meios subterfug1os utilizados pelos colonial' t visí~eis ass_im como os conder e evitar o avanço da luta ~s as a. fim de impedir, es- contra a opressão a ex 1 - os afncanos e dos negros . 1 ' p oraçao e o racis D' .. iso ~r e solapar nossa for a . . ~.º· iv1d1r, separar, contmuada estratégia emp ç :JS1ca e espmtual têm sido uma resistência. Dentro do sis~=~~ ~eco~tra . noss~ unidade e nossa nós, existe ·este absurdo f t d arre1_ras mterpondo-se entre C • - ª o e necess1tarm omumcaçao recíproca a r d os usar em nossa mgua os opressores. Està circunstân- 47 da lingüística, além de outras, é a razão principal. da ausênci: cios afro-brasileiros nos prévios Congressos Pan-Afncanos ; nesL fa to temos uma trágica instância da separação a nós impost ... pelas barreiras Jingüísticas construídas pelo colonialismo. ) Por causa de suas condições sócio-econômicas, já que- º; negros brasileiros só existem no mais baixo espaço· da escala social, inexistem para eles oportunidad~s de educação, e, muito éspecialmente, para o aprendizado e o treinamento de línguas estrangeiras. Este é um campo de escolaridade quase . comple~a mente inacessível aos negros. Contudo os encontros 111ternac10- rtais do mundo pan-africano têm-se auto-restringido ao usô> exclusivo do francês e . do inglês; a língua portuguesa nunca foi adotada como um dos idiomas oficiais ou mesmo como uma linguagem de fato, _em tais reuniões. O resultado disso é que os negros brasil'eiros têm permanecido do lado de fora e, para todos os efeitos práticos, têm sido barrados ,de participar nos assuntos pan-africanos e na . edificação da sua história. · Quem são aqueles que normalmente participall'! de encontros internacionais? Os brasileiros de origem europêia, das classes média e alta, os únicos que possuem os meios econôm!c~s para a aquisição da habilidade e e.ducaç~o A Jin.gi.iística._ O .. cn- tério das línguas francesa e inglesa, ex1genc1a dos ·'?efJ~gs pan-africanos, abre ·o caminho para que certos estudios-.. '> pro- fissionais do negro e de sua cultura, em geral brancos, ;ejam a:queles invariavelmente escolhidos para falar e representar os afro-brasileiros. De uma perspectiva do negro, entre tanto, esses scholars ou cientistas sociais representam um ponto de vista exógeno, e/ou quando não estranhos à nossa reali.dade sócio- cultural colocam-se como devotos de uma posição estática e imobilis 1 ta cuja verbalização acadêmica somente agencia interesses 1 • • eurocentristas. Assim tais delegados oficiais ou oficiosos 111ev1- tavelmente fornecem aos estrangeiros um retrato altamente dis- forcido quando não completamente falso da situação ~eal do descendente africano na sociedade brasileira. Não importa se ;uas intenções são boas, que isto não altera sua' ignorância de uma intransferível experiência histórica de racismo que pertence única e exclusivamente aos negros. Podem conhecer alguma coisa de fora, mas nunca militaram conosco numa relação de ~ iguais, em face dos problemas que emergem da situação e c_Írcunstância afro-_brasile!ras. 48 • i. Este fenômeno de elitismo lingüístico, obviamen 'do .de outros, representa um dos motivos decisivos que im atem a presença e visibilidade dos negros brasileiros na ar Jas lutas internacionais de sua raça. E, pior ainda, temos sid mal representados naquelas ocasiões por presunçosos delegados, os quais arrogantemente apresentam uma versão .de nossa his- tória, .de nossa identidade e da nossa existência de cuja elabo- ração não participamos. Tem-nos sido imposta uma ausência física; no entanto," jamais houve qualquer negligência por parte dos negros conscientes, durante esse. período de Juta incessante, r.ie batalhas e sofrimentos no mundo africano. Brasil: de escravo a pária A esta altura, não tem muita importância saber com prec1sao a data inicial do regime escravista no Brasil; o registro da história assinala que os primeiros africanos escravizados chegaram logo após a invasão de Pedro
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