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-:f:' C I D A D E C O N T E M P O R Â N E A £ P R O J E T O S U R B A N O S D E N I S E B A R C E L L O S P I N H E I R O M A C H A D O A complexidade crescente e os desafios que a cidade contemporânea nos apresenta, explicitam a dificuldade de agir sobre ela. A cidade contemporânea "nos escapa" (Tsiomis, 1995). Sociedade em crise, exclusão social e económica, nichos de grande qualidade urbana e alta tecnologia, rápidas transformações no tempo, drásticas mutações no espaço formam um amálgama muitas vezes contraditório e mutante com o qual nos toca con- frontar. Num contexto da nova modernização das sociedades ocidentais, surgem transformações nas necessidades urbanas e nos laços sociais, e são intensos os impactos do desenvolvimento de novas ciências e tecnologias. Em consequência, ocorrem mudanças de natureza e de escala das questões individuais e coletivas. Esse quadro requer mutações profundas na concepção, realização e gestão das cidades. Noções como linúte, distância, continuidade, densidade, diversidade necessitam ser repensadas num quadro em que se confundem as diferenças entre cidade e campo, entre o público e o privado, entre interior e exterior; onde as velocidades de deslocamento de bens, infonna- ções e pessoas crescem de maneira considerável. Por outro lado, numa sociedade mutante, individualista e plural - no caso das cidades brasOeiras - caracterizada por ser extremamente desigual, carente e excludente, decidir e agir para o bem da coletividade e priorizar os equipamentos coletivos e os serviços constitue tarefa complexa. A demanda de tuna cidade eficiente, atraente e equitativa, própria da contemporaneidade, se apresen- ta como outro importante desafio. Ascher (2001) identifica o conjimto das práticas atuais como um "neo-urbanismo" cuja particularidade maior seria a elaboração e a implementação de ações e projetos 91 I • K J . num contexto de incertezas. Ao contrário do urbanismo moderno, que propunha um programa de longa duração para a cidade definindo os princípios de organização espa- cial (sobre a forma de planos diretores, por exemplo), numa tentativa de dominar o futuro, reduzir as incertezas e realizar um projeto conjunto, o novo urbanismo surge pautado na "gestão estratégica urbana", de procedimen- tos mais reflexivos, adaptados a uma sociedade complexa e a um futuro incerto. Prevê a constante revisão de seus objetivos e métodos e elabora uma multiplicidade de pro- jetos de natureza variada que buscam coerência entre si e se aglutinam em tomo de uma estratégia de aplicação conjunta, em que deveriam ser considerados, na prática, os acontecimentos, as evoluções, as mutações. Pretende, assim, enfi-entar a crescente dificuldade de reduzir as incertezas e os imprevistos de uma sociedade aberta, democrática e marcada pelas acelerações da nova econo- mia. Articula, por meio de idas e vindas múltiplas, o longo e o curto prazo, a grande e a pequena escala, os interes- ses gerais e os específicos. Vale-se das oportunidades, sendo ao mesmo tempo estratégico e pragmático. A noção moderna de projeto. conforme aponta Ascher, está no cerne desse urbanismo. O projeto não é aqui apenas o destino do desenho, mas é também um instru- mento cuja elaboração, expressão, desenvolvimento e implantação levam em conta as potencialidades e as difi- culdades da sociedade, com seus atores. sítios, circuns- tâncias e acontecimentos. O projeto tem o papel de ana- lista e instrumento de negociação no âmbito da gestão estratégica urbana que \isa explorar os acontecimentos e as forças as mais diversas de maneira positiva em rela- ção a seus objetivos estratégicos. Assim, conclui Ascher, o "neo-urbanismo" pri\ilegia a negociação e o compro- misso sobre a aplicação da regra majoritária; o contrato sobre a lei; a solução ad hoc sobre a norma. Nesse contexto, os Projetos Urbanos ganham expressão como instrumento pri\-ilegiado de ação sobre a cidade contemporânea. Sendo um conjunto de procedimentos, e requerendo competências em vez de ser uma prática afeta a uma profissão (DevUliers, 1994), o Projeto Urbano vem adquirindo potencialidades estratégicas importantes. O termo Projeto Urbano aparece na Europa a partir dos anos 70, significando uma prática que tirúia na sua ori- gem a crise do movimento moderno e as críticas ao urba- nismo funcionalista dos anos 50 e 60. A expressão "Projeto Urbano" começa a ser empregada pelos arqui- tetos como sinónimo de "composição urbana", associan- do-a a um projeto de arquitetura em grande escala. Assim sendo, a noção clássica de "projeto", processo próprio do campo da arquitetura, juntava-se a outra, mais ampla, de "urbano", que se refere à cidade, envol- vendo, portanto, várias competências além daquelas que respondem aos problemas de organização espacial. Tendo sido usado indiscrinúnadamente por arquitetos, prefeitos, cientistas sociais, geógrafos, no início dos anos 90, Devilliers (1994) propõe recuperar o conceito de Projeto Urbano, destacando seus princípios. Aponta que o Projeto Urbano não se faz em um dia, acompanhando a transformação urbana no tempo, e não podendo, por- tanto, responder à lógica de urgência muitas vezes soli- citada pelos prefeitos. Tendo um largo horizonte, o Projeto Urbano requer o debate e a troca com a popula- ção, cujas opiniões são fundamentais. Aplicando-se à cidade que é uma realidade complexa onde interagem formas materiais e sociais, reúne várias competências e demanda uma multiplicidade de saberes técnicos. Pede, assim, um saber específico sobre a cidade, seus proces- sos de transformação, as leis que regulam suas formas, as análises e os instrumentos conceituais a serem utili- zados para estabelecer a mediação entre as diferentes escalas (da parcela à cidade). Refere-se a tecidos cons- tituídos que devem ser valorizados, em particular por meio dos espaços públicos (ou espaços abertos) que constituem a conexão tanto com a História como com os 92 demais espaços da cidade, dando-Ilie sentido. Além disso, ainda como mostra Devilliers, o Projeto Urbano reconstitui a globalidade da cidade por intermédio de um discurso em que os espaços públicos promovem a continuidade espacial. Por último, aponta que, como projeto global, o Projeto Urbano se opõe a uma visão setorial do planejamento que introduziu redes de infra- estrutura provocando rupturas claras entre cidades, e muitas vezes no interior de uma mesma cidade. O Projeto Urbano demanda a disponibilidade de inser- ção na lógica da globalidade e do tempo, buscando a par- ceria entre instituições públicas (no interior de um mesmo município e entre municípios) e privadas. E , como aponta Tsiomis (1996), o Projeto Urbano pode ser tanto uma ação concreta como um procedimento meto- dológico. Assim sendo, fruto de uma convergência ou de compro- nússos entre agentes, o Projeto Urbano é quase sempre relativo e específico, seu valor como referência se dá muito mais pelos métodos que propõe do que pela natu- reza do projeto propriamente dito (Tomas, in: Toussaint e Zimmermman, 1998), caracterizando-se por não pos- suir uma codificação prévia. Diferente do urbanismo normativo, seus códigos e procedimentos são produzi- dos e propostos a cada projeto, e atuam diretamente sobre a forma urbana (Tsiomis, 1996). Segundo Rey (in: Hayot e Sauvage, 2000), o Projeto Urbano é a interven- ção na cidade em crise, não por sua totalidade, mas por seus fragmentos, resultando num conjunto de relações dialéticas entre fragmento e o todo. Além disso, o Pro- jeto Urbano é inscrito no tempo e, sendo plural e coleti- vo, deve conter procedimentos que alimentem continua- damente registros mais ou menos interdependentes, mas ligados a um contexto determinado. O Projeto Ur- bano atua sobre um contexto urbano, em que há interes- ses diferenciados entre atores sociais, econônúcos e políticos. Como observa Barandier (2003), na Europa a prática de projetos urbanos e a formulação de seus princípios econ- ceitos se deram quase conconútantemente, mostrando o processo de construção de uma disciplina na qual teoria e prática se influenciam mutuamente. Tal construção se estende até hoje na Europa e nos Estados Unidos, obser- vando-se desdobramentos mais recentes na América Latina e no Brasil. Os anos 80 e 90 viram a implementação de uma série de Projetos Urbanos tanto na Europa como nos Estados Unidos. Respondem a temas diversos como a reconver- são de antigas áreas produtivas ociosas, requalificação de espaços públicos, reconquistas urbanas e ligações entre bairros. Esses Projetos Urbanos diferem em dimensão, abrangência, tema, mas mantêm uma lógica comum que atende aos interesses gerais, abordando glo- balmente fatores sociais, económicos e espaciais. No Brasil, durante a década de 90, surgem intervenções urbanas de natureza e abrangência diversas que passam a ser denominadas indistintamente "Projetos Urbanos", tanto no meio académico como no âmbito profissional. Os exemplos são vários: Rio de Janeiro, São Paulo, Santo André, Porto Alegre, Belém, Salvador, Recife, entre ou- tros. Tais exemplos se inserem num conjunto significati- vo de grandes cidades latino-americanas que, nas últi- mas duas décadas, vêm introduzindo novos paradigmas de gestão e de ação sobre a cidade. A mudança do papel dos Estados Nacionais no trato com as cidades e os processos mundiais de globalização econó- mica parecem ter contribuído para o surgimento dessas novas formas de atuação e de gestão urbanas. Por um lado, as municipalidades ganham maior autonomia fman- ceira e administrativa, uma vez que há um recuo de inves- timentos dos Estados Centrais nas cidades. Por outro lado, os patamares de competitividade e atratividade das grandes metrópoles influem na maior ou menor inserção 93 dos países no processo de globalização. Guardadas as diferenças históricas e geográficas da urbanização, e da formação social, cultural e política entre os países latino- americanos, observa-se ultimamente uma recorrência desses processos e fatos na gestão das grandes cidades. Em consequência, assistimos a importantes transforma- ções na configuração e na imagem dessas cidades. São, assim, privilegiadas ações estratégicas e pontuais, que se traduzem basicamente em "Projetos Urbanos" em áreas com problemáticas específicas, melhorias dos espaços piiblicos e/ou na implementação de infra-estruturas seto- riais como melhorias nos sistemas de comunicação e trans- porte. Essas ações, que dão visibilidade à cidade, preten- dem buscar um maior acesso à mesma e a boa urbanidade. R I O D E J A N E I R O E A S I N T E R V E N Ç Õ E S U R B A N A S R E C E N T E S O Rio de Janeiro é uma dessas grandes metrópoles latino- americanas que conhecem mudanças recentes nas formas de ação e gestão sobre seu espaço. Um conjunto de ações e projetos no Rio de Janeiro são elaborados na década de 90 (administrações 1993/1996 - 1996/2000), onde se observa uma mudança de visão sobre a cidade, além da participação expressiva de arquitetos nos processos de decisão, de gestão e de concepção de projetos, numa estratégia poHtica de valorização da cidade. Instaura-se assim um novo discurso, que corresponde a uma prática de intervenções marcada por ações com diversas abran- gências, escalas e propósitos, sendo efetivamente implan- tados e realizados projetos, programas e ações. A reabilitação e a modernização do Rio de Janeiro toma- ram-se questões prioritárias nesse período, marcado pelo urbanismo estratégico inscrito explicitamente na lógica da globalização, no quadro de uma poMtica neoliberal. O novo discurso sobre a cidade é caracterizado pela valorização dos espaços públicos, pela busca de atrativi- dade económica e turística, dando prioridade a ações em partes da cidade. Podem-se destacar algumas caracterís- ticas fundamentais desse período: há uma clara referên- cia a modelos externos na concepção das intervenções; há uma intenção de articulação entre as ações locais com o contexto internacional, uma vez que por meio delas busca-se atingir maiores patamares de atrativida- de e competividade metropolitana; a imagem da cidade e sua boa urbanidade tomam-se temas centrais; e o arquiteto toma-se atuante na cena urbana. Apesar de as intervenções terem sido pontuais e de natureza diversa, observa-se uma clara estratégia de conexão entre elas, visando atingir os objetivos mais amplos do desenvolvimento da cidade. Assim, o Plano Diretor aprovado em 1992 perde seu papel de protago- nista principal, dando lugar à primazia de um discurso "contemporâneo", que tinha como base um conjunto de ações articuladas sobre a cidade. Nesse sentido, a noção de centralidade urbana terá papel relevante nas inter- venções numa cidade dividida, espacial e socialmente. Por meio da valorização dos espaços públicos, reforçam- se as centraUdades existentes. Como destaca Farias (2003), as centraUdades serão o lugar do encontro e das identidades, a expressão do civismo e da boa imagem da cidade, em que espaços e equipamentos públicos sejam acessíveis, seguros, polivalentes, dotados de qualidade estética e de simbolismo, e culturalmente significativos. Tendo como referência principal o projeto urbamstico de Barcelona, é proposto como peça de convergência dessas ações um Plano Estratégico para a cidade do Rio de Janeiro. Junto com ele. foram implementados dois projetos de muita visibilidade e que acabaram por se tor- nar as duas grandes "vedetes" das intervenções urbanas recentes do Rio de Janeiro: o Rio-Cidade (requalificação de espaços públicos) e o Favela-Bairro (urbanização de favelas). Complementares a esses projetos, e fazendo 94 parte desse conjunto articulado, está uma série de pro- jetos que visam, de um lado, a reconquista do centro his- tórico e de negócios, e, de outro, a valorização da orla man'tima (Rio-Mar). P L A N O E S T R A T É G I C O O Plano Estratégico do Rio de Janeiro foi elaborado entre 1994 e 1995, com o objetivo de formular imia "estratégia de cidade", identificando suas principais necessidades e potencialidades. Para tanto, foi contrata- da a consultoria internacional de um grupo que havia participado do Projeto Urbano de Barcelona, que deu as bases da formulação desse plano. A exemplo de outros Planos Estratégicos formulados nos países europeus nos anos 80, o do Rio de Janeiro pretendia o consenso da sociedade civil para traçar os principais objetivos e metas. Foram instituídos um Conselho Diretor, um Comité Executivo, bem como Grupos de Trabalho com a participação de representan- tes da sociedade civil. Na prática, porém, o Plano Estratégico do Rio de Janeiro não foi objeto de uma par- ticipação significativa da sociedade civil, e seu processo de elaboração veio apenas referendar uma formulação preconcebida da consultoria internacional para o Plano Estratégico do Rio de Janeiro. A grande intenção era fazer do Rio uma cidade com- petitiva dentro da nova ordem mundial, dotando-a de redes de informação e de centros de decisão, financei- ros e de negócios. O Plano Estratégico apresenta como objetivo geral fazer com que o Rio de Janeiro seja uma metrópole com crescente qualidade de vida, socialmente integrada, respeitando a coisa pública e fortalecendo sua vocação cultural. Além disso, deve ser uma metrópole empreendedora e competitiva, com um forte centro de negócios e uma conexão pri- \"ilegiada com o exterior, tendo como vocação princi- pal o turismo. R I O - C I O A D E O Rio-Cidade teve como inspiração o urbanismo de metástase de Barcelona. Partiu-se do princípio de que a requalificação do espaço público de eixos comerciais e de circulação, estruturantes dos bairros da cidade, obje- to do Rio-Cidade, teria um efeito dissenúnador de posi- tividades, trazendo a melhoria tanto do espaço público como do privado. O Rio-Cidade propunha a requalifica- ção dos espaços públicos dos mais importantes eixos comerciais da cidade, visando valorizar asruas e prover a cidade de espaços públicos em boas condições de con- forto e segurança. Uma das novidades trazidas pelo Rio-Cidade, e que depois se verificou também no Favela-Bairro, foi a intro- dução de um concurso público de ideias de metodologias de projeto, em que as equipes locais multidisciplinares e coordenadas por arquitetos postulavam sua participação no Rio-Cidade. As equipes vencedoras do concurso pú- blico eram posteriormente contratadas pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro para o desenvolvimento dos projetos, cada equipe sendo responsável por um eixo de circulação na cidade. O Rio-Cidade foi lançado em 1993, e em 1994 a Secretaria Municipal de Urbanismo, o IplanRio e o lAB/RJ organizaram o concurso público de metodologias de projeto para requalificação de espaços públicos, dando imcio ao processo. O concurso de metodologias tinha como requisito elimi- nar as ocupações irregulares do espaço público, conce- ber mobiliário urbano de grande qualidade técnica e estética, reconstituir as ruas transversais aos eixos e as praças, renovar a infra-estrutura existente: drenagem, esgotamento, eletricidade subterrânea, novo sistema de sinalização (IplanRio, 1996). Foram escolhidos 17 eixos comerciais localizados tanto na Zona Sul (parte da cida- de que tradicionalmente recebe a maior fatia dos inves- timentos em infra-estrutura) como na Zona Norte (his- toricamente desprovida de melhorias urbanas). Uma 95 segunda fase foi iniciada na segunda gestão desta admi- nistração, incluindo mais 25 eixos, em grande parte loca- lizados na Zona Norte. Os projetos propostos por diferentes equipes de arquite- tos traziam soluções distintas para cada bairro. O Rio- Cidade foi também, como ressalta Farias (2003), a opor- tunidade de instaurar um novo modelo de gestão de obras públicas. A descentralização do processo de con- cepção dos projetos e o confronto de metodologias que o concurso público propiciou constituíram um camirúio para a mudança das mentalidades locais. Rio Cidade. Avenida Rio Branco. Projeto: Cláudio Taulois A visibilidade e o sucesso do Rio-Cidade vieram acom- panhados de muitas críticas sobre o processo e o produ- to resultante. A falta de participação comunitária foi notada como uma das lacunas do processo. As equipes de arquitetura propunham seus projetos livremente, condicionados unicamente por exigências técnicas de serviços e infra-estrutura e pelas dotações orçamentá- rias apresentadas pela prefeitura. Em alguns casos, e não em todos, os projetos eram posteriormente apre- sentados às associações de moradores, que já pouco podiam opinar. Por tratar apenas do espaço público, o Rio-Cidade foi muitas vezes classificado na categoria de interven- ções urbanas superficiais que visam tão-somente o embelezamento e a "maquiagem" urbana, não atingin- do problemas estruturais nem interferindo no uso e na ocupação do espaço privado. A diversidade de padrões de mobiliário urbano (os projetos tinham pro- postas diferenciadas), embora contribuindo na forma- ção da identidade de cada bairro, foi questionada em favor da homogeneidade do mobiliário como um sím- bolo de identificação da cidade como um todo, além da questão recorrentemente levantada de um maior custo de fabricação de elementos díspares no espaço público. Entretanto, esse projeto teve grande impacto e reper- cussão, não apenas no meio dos arquitetos, como tam- bém junto à população em geral. Para os arquitetos, o Rio-Cidade inaugurava uma nova possibilidade de atuar na cidade, com a introdução de concursos públicos para projetos do poder público. Do ponto de vista da popula- ção, o período de obras, inicialmente, e os espaços requalificados se destacando em vários pontos da cida- de, posteriormente, significaram uma mudança qualita- tiva importante, trazendo um melhor sentido de urbani- dade e dinúnuindo a sensação de insegurança urbana, tão próxin\ do carioca. 9 6 F A V E L A - B A I R R O O Favela-Bairro, iniciado em 1994, é um programa que pretende trazer transformações físicas e sociais nas favelas do Rio de Janeiro, por meio da urbanização das favelas e de sua integração com os bairros vizinhos. Os objetivos do Programa Favela-Bairro são basicamente a geração de mecanismos para promover a integração entre os dois diferentes lados da mesma cidade: a cida- de formal e a cidade informal. Tal integração seria alcan- çada por intermédio de: (a) complementação ou cons- trução da estrutura urbana por meio dos sistemas de saneamento e de circulação, pernútindo o livre acesso de pessoas, serviços públicos, saúde e segurança; (b) introdução de símbolos da cidade formal, tais como nomes de rua, sinalização urbana, praças, infra-estrutu- ra e serviços públicos; (c) consolidação da inserção das favelas no sistema de planejamento da cidade, incluindo- as na legislação, planos e programas, mapas e cadastros de uso e ocupação do solo, e em provimento regular de serviços públicos; (d) implementação de iniciativas soci- ais, construindo creches, introduzindo programas de geração de renda, treinamento profissional e atividades culturais, esportivas e de lazer; (e) promoção da legali- zação da propriedade da terra. O Favela-Bairro não inclui melhorias nas habitações, não contemplando também a promessa da regularização fundiária. Provê a melhoria da infra-estrutura e dos es- paços públicos, num programa amplo de urbanização. São propostos projetos de interesse social com o objeti- vo de integrar económica e socialmente a população fa- velada. Em 1994, havia um total de 661 favelas no Rio de Janeiro, onde habitavam cerca de 1 milhão de pessoas. Atualmente. um terço das favelas abriga entre 500 e 2.500 famílias, reunindo cerca de 60% da população favelada da cidade (SHM, 1999). O Programa Favela- Bairro atende esse segmento de favelas de médio porte. A primeira fase do Favela-Bairro aconteceu em 1994, contemplando 16 favelas de pequeno porte (até 500 famílias). As equipes selecionadas por concurso público desenvolveram os projetos para a urbanização das fave- las. Assim como havia ocorrido com o Rio-Cidade, o meio profissional de arquitetos se mobilizou para aten- der a essa nova frente de atuação na cidade que se abria com o Favela-Bairro. O programa recebeu o financia- mento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), o que foi fundamental para sua viabilidade, implementação e expansão. Provocou também uma reorganização institucional na muiúcipalidade, amplian- do as bases do programa e envolvendo vários setores e departamentos municipais. Favela Bairro. Favela da Mangueira A segunda fase do Programa Favela-Bairro incluiu 18 favelas e ampliou ainda mais a necessidade de inter- setorialização municipal, assim como atraiu várias ONGs para realizar projetos complementares. A criação da Secretaria Municipal do Trabalho, em 1997, contribuiu pára incrementar e consolidar os objetivos sociais do Favela-Bairro. Hoje, há mais de 80 favelas de médio porte contempladas com o programa (aproximadamente 75 mil famílias, 300 mil habitantes, um terço da popula- ção favelada do Rio de Janeiro), cerca de 30 pequenas 97 favelas contempladas com o Programa Bairrinho e qua- tro grandes favelas inclm'das no Programa Grandes Favelas (programas complementares ao Favela-Bairro, \dsando atingir favelas de pequeno e grande porte). Há planos de expansão do programa com a previsão de atendimento de mais 66 favelas. Atualmente. os contra- tos para a realização dos projetos Favela-Bairro são fei- tos por meio de licitações públicas, não sendo mais obje- to de concurso público. O Programa Favela-Bairro representou o reconhecimen- to oficial da presença das favelas no Rio de Janeiro, his- toricamente presentes no tecido urbano desde o início do século XX, mas ausentes da representação dos mapas da cidade até os anos 90. Outras ações foram implemen- tadas anteriormente, mas sempre de maneira isolada e sem incorporar as favelas como problema urbanointe- grado ao conjunto. R E C O N Q U I S T A D O C E N T R O H I S T Ó R I C O E D E N E G Ó C I O S E V A L O R I Z A Ç Ã O D A O R L A M A R Í T I M A Outi'os projetos e programas foram propostos visando a reconquista do centro histórico e de negócios e a valori- zação da orla marítima. Esses projetos. entretanto, não tiveram a mesma expressão que os descritos anterior- mente. Alguns foram executados em parte, outros não saíram do papel. A reconquista do Centro não é apenas a repetição de padrões externos contemporâneos. Significa no contex- to urbano do Rio de Janeiro reforçar o centro de negó- cios original, em contraponto com a nova centralidade emergente na Barra da Tijuca (extensão sul da cidade), que concorre em negócios e investimentos com o centro histórico. Um centro financeiro forte significa uma cida- de atrativa e competitiva na economia nacional e mun- dial. Um centro histórico renovado, onde o centro finan- ceiro se localiza, complementa essa centralidade. A orla marítima valorizada significa explorar o potencial turís- tico da cidade, vocação primeira para o seu desenvolvi- mento económico e cultural. Os projetos propostos para o Centro do Rio de Janeiro tiveram em comum a preocupação de estabelecer par- cerias com organismos públicos e privados. Des- tacamos os projetos mais significativos desse período, que podem ser agrupados por temas: aqueles que visa- vam o dinamismo económico, como o Teleporto e parte do Projeto Sás; os projetos de requalificação de espaços púbMcos, como o Praça XV; as propostas de reabilitação de conjuntos urbanos e arquitetônicos preservados, como o Projeto Sás e o projeto Novas Alternativas; e aqueles ligados à zona portuária e à frente do mar. T E L E P O R T O E P R O J E T O S Á S Localizados em área pericentral, próximos aos nós de transporte que dão acessibilidade urbana e regional ao Centro da cidade, e junto com o centro admitústrativo municipal. Se bem-sucedidos. funcionariam como ânco- ra para a expansão do centro de negócios. O Teleporto (projeto proposto em 1993) é uma área que foi infra- Projelo S.AS e Teleporto 98 estruturada para receber edifícios inteligentes, visando prover uma boa comunicação em redes para negócios, com a pretensão de se tornar um centro de decisões. A prefeitura realizou as obras, mas não foi capaz de atrair investimentos privados, ficando a área ainda em espera para desenvolvimento. O Projeto Sás (concluído em 1999), \dzinho ao Teleporto, tem como objetivo trazer o uso habitacional, de serviços e de negócios, basicamen- te preservando uma área habitacional antiga existente e incrementando os investimentos imobiliários para negó- cios e serviços ao longo da avenida principal da região (que faz ligação com o centro de negócios). Até o momento, foram feitas obras básicas de drenagem e infra-estrutura, mas a falta de uma instância de gestão autónoma para implementar esse projeto complexo impediu, a nosso ver, ser desenvolvimento. P R A Ç A X V A Praça X \ é o local onde o Rio de Janeiro foi fundado, tendo posteriormente abrigado a sede do poder colonial Praça X \ e do imperial. Localiza-se na frente de mar da área cen- tral e hoje é um ponto convergente de transportes, onde as estações de barcas fazem a ligação com as demais cidades da baía de Guanabara. Foi restabelecida a ligação direta da Praça XV com o mar. rompida desde os anos 60. com a construção da avenida Perimetral. O novo projeto. de Flávio Marinho Rego, pri\ilegia a circulação de pedestres e valoriza os espaços públicos da área. enterrando um trecho da ave- nida de passagem de veículos e estabelecendo a conti- nuidade entre a praça e o cais. Foi feito ainda um trata- mento de pisos, iluminação e mobiliário urbano. Atualmente, a Praça XV constitui ponto de referência dos novos equipamentos culturais implantados no Centro da cidade. P R O J E T O D E F R E N T E D E M A R - D A P R A Ç A X V À I G R E J A D A C A N D E L Á R I A Com o objetivo de ligar o centro histórico à frente marí- tima, foi proposto um projeto cuja abrangência espacial compreendia a área limítrofe entre o mar e Centro, desde o .Aeroporto Santos Dumont até a Igreja da Candelária. O projeto pressupunha três níveis de inter- venção, a saber: eliminação dos obstáculos visuais, reor- ganização da circulação de automóveis e estacionamen- tos e a variação de funções, sobretudo incentivando a habitação e o lazer O projeto. de autoria do arquiteto catalão Oriol Bohigas em parceria com o arquiteto português Nuno Portas (contratado pela prefeitura e apresentado em 1997), apresentou um programa clássico desse tipo de projeto urbano: aquários, parques e atividades turísticas e culturais. Foram realizadas algumas inter- venções no espaço público e na organização da circu- lação \iária, que dependiam do poder público. O desenvolvimento do projeto, prevendo mudanças de uso e ocupação do espaço construído e a demoHção 99 Projeto Frente de Mar. Projeto: Oriol Bohigas e Nuno Portas desde os anos 80, vem tentando romper com o proces- so de inércia e degradação da área, mas encontra resis- tências dos proprietários fundiários majoritários (RFFSA - ferroviário. Companhia Docas - marítimo) para o seu desenvolvimento. Esse enclave fundiário tem sido o maior responsável pelas dificuldades de gerenciamento da área. Nos anos 90, foram propostos projetos de habitação de renda média e baixa, assim como programas de presentação de áreas históricas remanescentes. R I O - M A R Esse é um programa lançado em meados dos anos 90 que visa recuperar os parques, as praias e os espaços ptjblicos da orla marítima da cidade. Não pretende tra- zer novas estruturas, mas apenas prover a orla de melhorias, visando sua maior utilização. O programa é bem-sucedido e veio intensificar uma prática cultural própria do carioca, que é o uso do espaço ptiblico como espaço de sociabilidade e de lazer C O N S I D E R A Ç Õ E S F I N A I S As intervenções urbanas recentes ocorridas na cidade do Rio de Janeiro inserem-se num quadro de ações sobre a cidade que privilegia ações estratégicas e pon- tuais sobre o espaço urbano. Este parece ser um novo paradigma de intervenção nas metrópoles e grandes cidades contemporâneas, que vem se firmando no con- texto latino-americano nas liltimas duas décadas. de dois prédios públicos, esbarrou em dificuldades de negociação entre os diversos interesses das instâncias do poder público e da sociedade civil. O projeto não foi realizado. Á R E A P O R T U Á R I A A área portuária do Rio de Janeiro é uma grande exten- são do centro de negócios, cujas atividades portuárias encontram-se hoje quase desativadas. A prefeitura. Apesar de os projetos urbanos propostos para o Rio de Janeiro constituírem uma experiência relativamente recente, algumas questões já podem ser apontadas. Fercebe-se que as propostas e intervenções feitas na última década, consideradas positivas em seu conjunto, prescindem de uma efetiva participação do setor priva- do e dos agentes sociais, bem como de formas flexíveis de gestão municipal. Assim, observamos que os projetos efetivamente realizados foram aqueles cuja realização 100 foi assumida pela prefeitura, tanto fmanceira como gerencialmente. Os projetos propostos para a área cen- tral, de formulação mais complexa e que poderiam con- tribuir para uma mudança na forma urbana e metropoli- tana, tiveram dificuldades de implementação, pois não atraíram a adesão do setor privado como investidor, nem tampouco foram criadas agências de gestão próprias a cada situação. Os Projetos Urbanos aparecem como práticas próprias à cidade contemporânea. Privilegiam ações específicas sobre o espaço, tendo especial influência na forma urba- na. Apresentam, contudo, desafios significativos quanto à sua implementação e gestão. Parcerias entre agentes públicos e privados e flexibilidade de gestão parecem ser requisitos primeiros. A complexidade dacidade contemporânea se apresenta hoje como uma questão primordial. Os Projetos Urbanos respondem ãs dificuldades de uma ação globalizante, atendendo a demandas específicas e estratégicas na cidade. Possuem potencial dinamizador e transformador da forma urbana, não só nos limites de suas áreas de ação, mas também na abrangência de suas influências espaciais em escala urbana e mesmo metropolitana. O desafio maior, que significa também sua grande poten- cialidade, reside nas estratégias de implementação e gestão desses projetos e da própria cidade. O o > o n o z 2 -0 O 3 >• Z "O O 0 U) C m > z O Este trabalho é resultado da pesquisa "Projetos f rbanos: Conceitos. Discursos e Práticas", coordenada por Denise Barcellos Pinheiro Machado, realizada no P R O U R B / F A f - U F R J e financiada pelo Conselho Nacional de Pesquisa e DesenvoKiniento TecnológicoAhnistério da Ciência e Tecnologia/Brasil. Denise Barcellos Pinheiro Machado Arquitela - UFRGS, 1979. Doutora em Urbanismo - Université de Paris .\11. 1986. Pos-doutorado - Ecole d'Architecture de Paris-Belleulle. 2002. Professora Titular, F A U - U F R J . Pesquisadora CNPq - IC. Coordenadora do PROURB/FAl . i -UFRJ. 101 R E F E R Ê N C I A S B I B L I O G R Á F I C A S O » O < AASchool/PROURB/FAU-UFRJ. U R B A N P R O J E C T S TO F A V E L A DA PROVIDÊNCIA: A PEDAGOCICAL E X P E R I E N C E . P R O U R B / U F R J e 0 J AA-Arch i t ec tu ra l Association School. Londres/Inglaterra. 50p. 2001. 1 < 0 2 ASCHER. François. L E S NOUVEAUX PRÍNCIPES D E LTJRBANISME - la fin des villes nestpas à lordre du jour. Paris. Ed . de lAube. 5 O 2001. 2 I BARANDIER. Henrique. P R O J E T O S URBANOS NA A R E A C E N T R A L DO RIO D E .lANEIRO (1993-2000). Dissertação de Mestrado em uj z 1 ^ Q. g D E M L L E R S , Christian. "Le Projet Urbain". In: Conférences Paris d'Architectes - Pa\111on de T.Arsenal. Paris. Editions Pavillon de TArsenal. ^ -j Mini PA n_ 2. pp. 7-48. 1994. : o F A R L \ S , José Almir. 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