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Sobre “Valsa n° 6″
Valsa n° 6:
O Público e o Privado em um Nelson Rodrigues de Hoje
Nina Nussenzweig Hotimsky
A peça Valsa nº 6 foi escrita por Nelson Rodrigues em 1951. A primeira montagem que recebeu estreou no Teatro Serrador do Rio, no mesmo ano. Foi a irmã do dramaturgo, Dulce Rodrigues, a escolhida para encarnar a personagem única; a direção foi assinada por Mme. Morineau.
Miroel Silveira fez a seguinte crítica à montagem: “Morineau não soube criar o espetáculo daquele mundo de palavras aparentemente desconexas. A rotunda preta, um piano, e a moça, debaixo da iluminação crua e sem mutações, não chegam a formar a atmosfera pungente de juízo final, que Nelson Rodrigues sopra sobre seus originais. A Valsa nº 6 está chamando por Ziembinski, que dividisse a cena em planos e projetasse em plástica o peso poético da peça – que acreditamos seja grande, mas que foi irrevelado pela direção desinspirada de Morineau”.[1][1] O próprio Sábato Magaldi, na ocasião, reconheceu: “o espetáculo parece-me inferior à peça”.[2][2]
É interessante que a crítica da época desconfiasse da posta em cena de semelhante obra. O fato é que, do ponto de vista formal, a peça apresentava boas inovações (se comparada com a produção dramatúrgica que o Brasil acumulara até então). Valsa nº 6 está longe de ser a peça mais comentada de Nelson Rodrigues: escrita cinco anos após Vestido de Noiva, retoma muitos dos procedimentos e temas de tão aclamada obra. Os delírios e memórias, a morte se aproximando, o universo feminino, a violência, são alguns exemplos.
Entretanto, é preciso reconhecer que ocorreram novas experimentações na escrita do autor. Valsa nº 6 trata-se de um monólogo – difícil categoria dramatúrgica, por não poder apoiar-se no mecanismo da intersubjetividade. Mas Sábato observa boas saídas[3][3]: a duplicação de Sonia em Sonia-menina e Sonia –adolescente; a aparição de outros personagens interpretados pela própria protagonista, que busca rememorar; e a profundidade com a qual se explora a menina-mulher.
Nessa exploração de uma intimidade, o lirismo assume papel importantíssimo. Se o Drama tradicional buscou purificar-se das marcas de outros gêneros, Nelson Rodrigues corajosamente assumia a poesia em sua escrita. Sonia relaciona-se com o mundo à maneira de um Eu Lírico, associando livremente, projetando, imaginando, sentindo com intensidade. O trunfo é que tal característica está pronta a colocar-se a serviço da teatralidade, não se encerrando em si mesma.
Por último, gostaria de observar o diálogo direto que Nelson propõe com a Música. Ele desejou escrever uma peça de teatro que gerasse no espectador impressão semelhante à de quem escuta a Valsa nº 6, de Chopin.
A recusa do ideal puro de Drama, a contaminação da dramaturgia por outros gêneros textuais e o desejo do teatro de “antropofagizar” conquistas de outras artes: tudo isso é característica das vanguardas históricas. É, pois, com razão que Sábato anuncia: “A concepção e a fatura conferem ao monólogo [Valsa nº 6] o estatuto de obra de vanguarda”.[4][4] No Brasil dos anos 50 o texto foi provocação, difícil de ser levada à cena em toda a sua potencialidade.
Ao que parece, o texto guarda ainda a possibilidade de nos inquietar. É por isso que, a partir desse ponto, debruçar-me-ei sobre uma montagem contemporânea de Valsa nº 6, no intuito de seguir refletindo sobre seus temas e proposições.
 
 A Valsa nº 6 da Trupe Sinhá Zózima
A Trupe Sinhá Zózima é composta pelos atores: Anderson Mauricio, Evie Milani, Fernando de Marchi, Priscila Reis, Tatiane Lustoza e Vanessa Cabral. Formou-se na Fundação das Artes de São Caetano do Sul, no ano de 2006. Atualmente, ocupa o Tusp (Teatro da USP), onde apresentou sua montagem de Valsa n º 6.
De partida, nota-se uma escolha peculiar em termos de espaço cênico: a trupe optou por montar a peça dentro de um ônibus. Tal escolha dá prosseguimento à pesquisa do grupo, que montara anteriormente a peça “Cordel do Amor sem Fim” dentro de um coletivo.
Outra constatação imediata é a de que não se precisou circunscrever a personagem “Sonia” a apenas uma atriz. Apesar de o texto ser um monólogo, é da boca de cinco atores (dois homens e três mulheres) que saem as reflexões, lembranças e delírios da quase-morta.
Na primeira montagem, em 1951, a diretora afirmou que tentava transmitir a peça “tornando o mais comunicativa possível a simbologia poética. (…) Não é menosprezo pelo público – mas achei que devia ajudá-lo na compreensão”.[5][5] Interessa perceber que, após décadas de exploração da linguagem teatral em nosso país, a “ajuda na compreensão” não precisa passar pelo realismo. Para espectadores iniciados, não parece complicado compreender que os cinco atores da Trupe representam uma só menina, e ao final todos podem constatar que ela foi assassinada.
Nelson Rodrigues é um autor que preza o indivíduo acima de tudo. É evidente que as artes cênicas só se realizam a partir do encontro entre algumas pessoas (atores, diretores, técnicos, e espectadores). O dramaturgo tinha consciência do fato, ao escrever para o teatro. Ele acreditava que o mergulho profundo na intimidade de seus personagens, ocorrido no espaço coletivo do teatro, purgava a sociedade de diversos males. Após o advento da psicanálise, tornou-se difícil negar os instintos violentos de que todos os homens são povoados (incesto, assassínio, suicídio); resta-nos aprender como lidar com eles.
Para o autor, observar no palco tais violências seria uma maneira de ver desejos escusos realizados sem ter de cumpri-los na vida real. Está presente na vida de Nelson Rodrigues a tristeza de ter de vivenciar situações assim na prática. (É impossível estudar o artista sem tomar conhecimento do absurdo assassinato de seu irmão, Roberto).
Sábato Magaldi atribui a essa e outras vivências terríveis o pessimismo com o qual Nelson enxergava a vida nesse mundo. Digo “nesse mundo” porque o dramaturgo jamais abandonou certas crenças na transcendência, na possibilidade de salvação de uma alma humana. É assim que a morte aparece por vezes como redentora; talvez a morte de Sonia não seja em si um peso tão grande. O peso está nas circunstâncias vis que causaram a morte tão cedo.
Interessa notar que a personagem morre justamente na época em que passa de menina a mulher. Essa transição é tema recorrente no dramaturgo: a dificuldade de lidar com os desejos, o brotar da sexualidade, a necessidade do amor (sentimento com forças redentoras).
Considerando a força que a noção de adolescência tem tomado na contemporaneidade (muitos pensadores anunciam o fim da infância), a escolha de lidar com essa fase em uma arte que se dá em âmbito público pode ser privilegiada. Mas como tratar com delicadeza? Theodor Adorno já observava que a indústria cultural expõe excessivamente a sexualidade. Mas o faz de maneira repressora.
“Este é o segredo da sublimação estética: representar a satisfação na sua própria negação. A indústria cultural não sublima, mas reprime e sufoca. Expondo continuamente o objeto do desejo, o seio no suéter e o peito nu do herói esportivo, ela apenas excita o prazer preliminar não sublimado, que, pelo hábito da privação, há muito tempo se tornou puramente masoquista. Não há situação erótica que não una à alusão e ao excitamento a advertência precisa de que não se deve e não se pode chegar a este ponto. (…) As obras de arte são ascéticas e sem pudor; a indústria cultural é pornográfica e pudica. Ela reduz assim o amor à fumaça(…) A produção em série do sexo realiza automaticamente a sua repressão”. [6][6]
Um texto de Nelson Rodrigues, levado à cena com realismo, tem grandes chances de cair na mesma lógica que os produtos da indústria cultural. Nos idos anos 50, abordar temas relativos ao universo erótico era corajoso e inovador. Diz Sábato sobre o dramaturgo que ele tinha “(…) gosto em devassar a intimidade do indivíduo, libertando-o da carga censora que disciplina o convívio social” [7][7]. Todavia, hoje já fomos bastante longe na produção de mercadorias sexualizadas. Não apenas as pernas de atrizes do teatrode revista, mas todo o resto já parece ter se revelado. Inclusive o que pode haver de perverso, como os inúmeros incestos que Nelson narra.
“Que tudo seja produzido, que tudo se leia, que surja no real, no visível e na contagem da eficiência, que tudo se transcreva em relações de forças, em sistemas de conceitos ou em energia computável, que tudo seja dito, acumulado, repertoriado, recenseado: assim é o sexo no pornô, mas assim é de modo geral a empresa de toda a nossa cultura, da qual a “obscenidade” é a condição natural: cultura da mostração, da demonstração, da monstruosidade “produtiva” (…). Nunca a sedução nisso (…)”.[8][8]
Não afirmo com tudo isso que a Trupe Sinhá Zózima produziu uma obra pornográfica – longe disso. Trago esses pontos porque sinto que o grupo escolheu tratar de temas importantes, e encontrou as dificuldades que estão postas em nosso momento. A adolescência é período marcante de descoberta do próprio corpo; mas será que colocar a masturbação em cena contribui para falar do assunto? E quando atores se acariciavam (pois se todos eram Sonia, acariciar-se era também falar da descoberta da sexualidade), por que algo parecia não realizar-se?
Simplesmente mostrar aquela ação não parecia envolver de fato os espectadores – que estavam a poucos metros de distância. Quais as potencialidades que o espaço cênico do ônibus oferece? Por que não se contaminar por essa proximidade, se o que está em pauta é a erotização das relações, que começava a brotar em Sonia? Quando um dos atores convida um espectador a valsar, algo parece acontecer. Mas na maior parte do tempo, a ação demonstrativa parecia distante, não contaminada pelo olhar da platéia. A proposição de Nelson, já nos anos 50, era que cada personagem “quebrasse todas as convenções, para revelar-se na íntima nudez, equivalendo ao desnudamento do espectador aos próprios olhos”.[9][9] Para constituir tal efeito, seria preciso gerar entre ator e espectador uma relação que incentivasse tamanha entrega. A forma de representação posta se aproximou da hegemônica, já explorada à exaustão pela mídia.
Parece-me que é difícil escapar da cultura do simulacro e da “mostração”, de que nos fala Baudrillard. Se hoje temos Big Brother, para observar o que desejarmos em seres “reais”, qual a potência de um texto Rodriguiano? De que maneira uma obra de arte pode nos dizer respeito? Quão explosivamente erótica ela não pode ser, se comparada à massificante e repressiva indústria cultural… Em seus produtos vemos corpos expostos; mas “desnudamentos” sinceros são bastante raros.
A Trupe Sinhá Zózima optou por figurinos e maquiagem de jovens contemporâneos. Também a trilha sonora compõe com música “de balada”. Opções que não deixam dúvidas sobre o desejo de pensar nossos jovens… Nelson Rodrigues acreditava que “O estigma da humanidade viria, em grande parte, do desamor. Sob outro ângulo, da separação entre sexo e amor”.[10][10] É claro que lidamos com um artista nascido no início do século passado, um artista religioso e moralista. Entretanto, a fricção de obras escritas por ele com a realidade de um adolescente paulistano pode causar boas reflexões. Em uma balada (como a proposta pela Trupe), se pode experimentar o próprio corpo sem que o sentimento ou a constituição de uma família estejam no horizonte. Cabe que cada jovem descubra o lugar de seu desejo, e a parte que é realizada apenas para cumprir os imperativos de “mostração” (de que nos fala Baudrillard).
Cabe também compreender qual o lugar da intimidade, quando a mostração urge. A Sonia escrita por Nelson vivia numa sociedade profundamente repressiva com os desejos da mulher:
“Escondeste tua maldade de todos! Teu rosto, ninguém o conheceu.
(hirta)
Usaste uma face doce e altiva que não era a tua.
(mais paixão).
Só a morte viu o teu rosto verdadeiro e último”.[11][11]
Qual seria o rosto verdadeiro daquelas jovens maquiadas para a balada, e reproduzidas nas atrizes da Trupe? E qual o papel possível de mostrá-las num ônibus, signo da cidade, meio de transporte coletivo, cotidiano? Que reflexões permite a compreensão racional do ônibus como o corpo de Sonia?
A espectadora Joana d’Arc, de 22 anos, declarou à trupe (após assistir a peça no SESC Avenida Paulista):
“Quantos Paulos, quantos Junqueiras, quantos rostos que a gente deixa passar, quantos rostos que a gente não se lembra, e nem dos nomes, eu lembro os rostos, mas não lembro o nome, nessa cidade, nessa metrópole, nessa loucura. O que eu esperava era justamente isso, uma valsa moderna, uma Sonia que sou eu, que é ela, que tem várias por aí… A mudança da mulher, a loucura, ou a simples busca pela realidade de se saber ou não se eu existo”.[12][12]
Aqui se tem um exemplo de como, na recepção, se conectam a esfera íntima da personagem e a opção estética da montagem. Também revela-se o teatro como lugar da discussão da coisa pública, do hoje, do cotidiano. Se enquanto espectadora senti que muitos pontos da montagem não chegaram a me tocar, percebo a pesquisa do grupo por territórios delicados da contemporaneidade…
Diz uma canção: “Só não se perca ao entrar / No meu infinito particular”[13][13]. Difícil não se perder, ao entrar num ônibus e deparar-se com um infinito particular.

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