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1 Conselho Editorial Internacional Presidente: Professor Doutor Rodrigo Horochovski (UFPR – Brasil) Professora Doutora Anita Leocadia Prestes (ILCP – Brasil) Professora Doutora Claudia Maria Elisa Romero Vivas (UN – Colômbia) Professora Doutora Fabiana Queiroz (Ufla – Brasil) Professora Doutora Hsin-Ying Li (NTU – China) Professor Doutor Ingo Wolfgang Sarlet (PUC/RS – Brasil) Professor Doutor José Antonio González Lavaut (UH – Cuba) Professor Doutor José Eduardo Souza de Miranda (UniMB – Brasil) Professora Doutora Marilia Murata (UFPR – Brasil) Professor Doutor Milton Luiz Horn Vieira (Ufsc – Brasil) Professor Doutor Ruben Sílvio Varela Santos Martins (UÉ – Portugal) Comitê Científico da área Ciências Humanas Presidente: Professor Doutor Fabrício R. L. Tomio (UFPR – Sociologia) Professor Doutor Nilo Ribeiro Júnior (Faje – Filosofia) Professor Doutor Renee Volpato Viaro (PUC/PR – Psicologia) Professor Doutor Daniel Delgado Queissada (Ages – Serviço Social) Professor Doutor Jorge Luiz Bezerra Nóvoa (Ufba – Sociologia) Professora Doutora Marlene Tamanini (UFPR – Sociologia) Professora Doutora Luciana Ferreira (UFPR – Geografia) Professora Doutora Marlucy Alves Paraíso (UFMG – Educação) Professor Doutor Cezar Honorato (UFF – História) Professor Doutor Clóvis Ecco (PUC/GO – Ciências da Religião) Professor Doutor Fauston Negreiros (UFPI – Psicologia) Professor Doutor Luiz Antônio Bogo Chies (UCPel – Sociologia) Professor Doutor Mario Jorge da Motta Bastos (UFF – História) Professor Doutor Israel Kujawa (Imed – Psicologia) Professor Doutor Luiz Fernando Saraiva (UFF – História) Professora Doutora Maristela Walker (UTFPR – Educação) Professora Doutora Maria Paula Prates Machado (Ufcspa – Antropologia Social) Professor Doutor Francisco José Figueiredo Coelho (UFRJ – Ensino de Biociências e Saúde) Professora Doutora Maria de Lourdes Silva (UERJ – História) Professora Ivonete Barreto de Amorim (Uneb – Educação, Formação de Professor e Família) Professor César Costa Vitorino (Uneb – Educação/Linguística) Professor Marcelo Máximo Purificação (Uneb – Educação, Religião, Matemática e Tecnologia) Professora Elisângela Maura Catarino (Unifimes – Educação/Religião) Professora Sandra Célia Coelho G. da Silva (Uneb – Sociologia, Gênero, Religião, Saúde, Família e Internacionalização) Claudia Priori Márcio José Pereira (Organizadores) OS ESTUDOS DE GÊNERO E SEUS PERCURSOS: Intersecções possíveis com a História Pública © Brazil Publishing Autores e Editores Associados Rua Padre Germano Mayer, 407 Cristo Rei - Curitiba, PR - 80050-270 +55 (41) 3022-6005 Associação Brasileira de Editores Científicos Rua Azaleia, 399 - Edifício 3 Office, 7º Andar, Sala 75 Botucatu, SP - 18603-550 +55 (14) 3815-5095 Comitê Editorial Editora-Chefe: Sandra Heck Editor Superintendente: Valdemir Paiva Editor Coordenador: Everson Ciriaco Diagramação e Projeto Gráfico: Rafael Chiarelli e Brenner Silva Capa: Paula Zettel Revisão de Texto: Os autores DOI: 10.31012/978-65-5861-023-6 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Bibliotecária: Maria Isabel Schiavon Kinasz, CRB9 / 626 Os estudos de gênero e seus percursos: intersecções E82 possíveis com a história pública / organização de Claudia Priori, Márcio José Pereira – 1.ed. - Curitiba: Brazil Publishing, 2020. [recurso eletrônico] Vários colaboradores ISBN 978-65-5861-023-6 1. Identidade de gênero. 2. Igualdade. 3. Mulheres – Condições sociais. 4. Políticas públicas. I. Priori, Claudia (org.). II. Pereira, Márcio José (org.). CDD 361.3 (22.ed) CDU 396 [1ª edição – Ano 2020] www.aeditora.com.br 5 APRESENTAÇÃO Claudia Priori1 Márcio José Pereira2 Os Estudos de Gênero, numa perspectiva interdisciplinar, têm alcançado nas últimas décadas uma vasta produção científica, assim como compartilhado saberes e práticas para além dos muros das univer- sidades. Variados grupos de estudo e pesquisa que reúnem pesquisado- ras e pesquisadores de diversas áreas do conhecimento têm promovido por meio do debate público e de ações extensionistas uma aproximação com outros públicos e/ou audiências, seja para a difusão de conhecimen- to, seja para a produção conjunta com esses públicos. Atualmente, tanto em nível nacional, quanto internacionalmen- te, as questões de gênero e seus atravessamentos, têm despertado de uma forma ou de outra, o interesse de novos públicos e/ou audiências, e provocado variadas narrativas históricas ao (re) produzir discursos, sa- beres e práticas, muitas vezes amplamente veiculados nas mídias sociais, como: blogs, canais no youtube, sites de divulgação histórica, páginas de grupos e podcasts, por profissionais de distintas áreas, seja da história, da educação, da comunicação social, das artes, entre outras. 1 Professora Adjunta do Curso de Licenciatura em Artes Visuais, da Universidade Estadual do Paraná, Campus de Curitiba II/FAP. Doutora em História (UFPR/2012). Docente no Programa de Pós-Graduação em Cinema e Artes do Vídeo, da Universidade Estadual do Paraná, Campus de Curitiba II/FAP. Docente no Programa de Pós-Graduação em História Pública, e do Programa de Pós-Graduação em Ensino de História/PROFHistória, da Universidade Estadual do Paraná, Campus de Campo Mourão. Líder do Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação, Diversidade e Cultura (GEPEDIC/CNPq), da Universidade Estadual do Paraná. E-mail: claudia.priori@unespar.edu.br 2 Professor do Colegiado de História da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR/2017). Docente no Programa de Pós-Graduação em Ensino de História/PROFHistória, da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Membro do Grupo de Pesquisa: Movimentos autoritários do século XX (UEM); do Grupo de Pesquisa em Direitos Humanos e Políticas de Memória (UFPR), e do Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação, Diversidade e Cultura (GEPEDIC/UNESPAR). mailto:claudia.priori@unespar.edu.br 6 Além disso, de um lado, as questões de gênero também têm es- tado presente em alguns países com políticas públicas mais consistentes e democráticas, em que a promoção de uma educação voltada para a equidade de gênero, os direitos humanos, e ainda, para a prevenção e combate da violência de gênero em suas variadas facetas, seja contra as mulheres e/ou comunidade LGBT+, assumem lugares de destaque por meio dos usos públicos de propagandas pelo Estado - com materiais vi- suais, cartazes, frases, outdoors - espalhados pelas ruas de cidades, trans- porte público, parques e edifícios públicos. Formas visuais e cotidianas de se tornar público assuntos que por tanto tempo estiveram na esfera do privado. No entanto, de outro lado, em variados países, inclusive no Brasil, as questões de gênero e, principalmente o tema da sexualidade, tem estado na pauta do dia, e se tornado um “assunto público” por alguns setores mais conservadores dos poderes legislativo e executivo, assim como de setores religiosos de igrejas de diversas denominações, que têm se utilizado das tribunas e dos púlpitos para a promoção de discursos contrários ao que chamaram de “ideologia de gênero”, apoiando e/ou legislando em tor- no das dezenas de tentativas de impedimento dos estudos e debates de gênero e sexualidade nas escolas, e quiçá, nas universidades. Discursos e práticas que atingiram o nível público e têm alcançado amplas audiências, devido ao uso massivo das mídias sociais, seja canais de televisão, canais no youtube, ou então, rede de compartilhamentos de notícias, amiúde fake news, entre os contatos pessoais e grupos de redes sociais que engrossam o coro. Isso nos revela como estes temas ligados a gênero e sexualidade desperta interesse público, porém, a todo instante são reivindicados para o âmbito do privado, dodoméstico, do familiar, a exemplo de programas como o “Escola sem partido” no Brasil, o movimento Con Mis Hijos No Te Metas, oriundo do Peru e já espalhado em outros países da América Latina como Argentina, Bolívia e Paraguai, que insistem em banir do debate público e educacional toda política pública que tenha enfoque na igualdade de gênero. A publicização das temáticas de gênero, tendem a gerar um cam- po de disputas rico em elementos para análise das Ciências Humanas, 7 dada a complexidade dos posicionamentos do público não especializa- do acerca das mesmas. Inúmeras são as páginas em redes sociais, como Facebook, Twitter e Instagram, que tomam para si a responsabilidade de divulgar, problematizar e muitas vezes fazer juízos estereotipados das políticas públicas acima citadas. Os conteúdos são replicados por entidades de classe, sociedade ci- vil organizada, agremiações não vinculadas a grupos de pesquisa, coletivos ligados ou não à defesa de pautas minoritárias que veiculam, protestam, conscientizam e publicizam conteúdos relacionados às questões de gênero e seus atravessamentos. Vale ressaltar, que ao mesmo tempo que as redes sociais são utilizadas para conscientização das pautas, também o são para resgatar comportamentos “de antigamente”, valorizar conservadorismos e promover a violência contra grupos feministas e LGBT+. Diante do exposto, podemos notar a inter-relação do campo dos Estudos de Gênero com o campo da História Pública, ainda que uma produção mais consistente integrando essas abordagens precisa ser me- lhor viabilizada no sentido de discussão teórico-metodológica, técnicas e formas de ampliação dos modos de se fazer história e de divulgação científica. Nesse sentido, é importante destacarmos que não há uma única definição do que seja História Pública, e sim que é um espaço amplo de debate histórico, cujo grande esforço é defender uma história que não se reduza aos meandros acadêmicos, mas que seja feita para e com o público, tenha como foco a ampliação das audiências, e entenda que os saberes e práticas produzidos fora do ambiente universitário são passíveis de investigação sem prejudicar a credibilidade científica e a responsabilidade da produção e circulação dos saberes históricos. No Brasil, a ideia de História Pública é ainda mais recente que a sistematização dos estudos de gênero, independentemente do “espírito público” da história, que a mídia tenta protagonizar a todo custo no país, deixando os/as historiadores/as à margem, ao tomar para si o direito e a autoridade de narrar os fatos históricos do tempo presente. Acreditamos que cabe aos/as historiadores/as gerenciar esse movimento, que dê conta de sociabilizar a produção acadêmica especializada e os saberes produzi- dos por outras experiências de reflexão do passado. 8 Assim, os Estudos de Gênero e a História Pública já dialogam entre si pelo próprio caráter de uso público de suas interfaces, então, muito já se faz nesta perspectiva de diversos modos, seja pelo envolvi- mento de profissionais de diversas áreas, quanto de outros públicos e/ ou audiências com as temáticas em pauta; seja pelos usos públicos de gênero que se faz socialmente para sua defesa ou refutação; e ainda, pela produção e reprodução de discursos, práticas e saberes que se espalham por diversos cenários, veiculados por uma infinidade de ferramentas, in- clusive pela história digital. Todavia, ainda se requer para essa inter-re- lação a prática de abordagens teórico-metodológicas mais afinadas entre os campos que possibilitaria maior produção e difusão de saberes tendo como enfoque as amplas audiências. As temáticas e abordagens que compõem esta coletânea nos apresentam olhares ampliados acerca das narrativas históricas sobre as relações de gênero; dos usos públicos das questões de gênero; da inser- ção pública de mulheres; do uso das mídias sociais para a (re) produ- ção de práticas e saberes; da utilização de canais digitais de divulgação científica para a difusão de conhecimento dos estudos de gênero e seus atravessamentos. Além disso, nos mostra a importância de promover o debate público acerca de assuntos antes considerados privados, como a violência de gênero, o racismo, por exemplo, o que possibilita mediações do passado e reflexões do presente, e permite alcançar amplas audiências. A presente coletânea reúne capítulos de pesquisadoras e pes- quisadores da área da história, da educação, do direito, das letras, da literatura e da psicologia, e abordam questões que perpassam as rela- ções de gênero, as histórias das mulheres, as sexualidades, as políticas públicas, as representações sociais, as narrativas, as memórias, as lutas e resistências de sujeitos/as historicamente excluídos/as e invisibiliza- dos/as do debate social e da escrita da história, tais como as mulheres, a população negra, a comunidade LGBT+ e as pessoas encarceradas. Os capítulos estão ancorados em três eixos de discussão: a) Relações de gênero e a história pública; b) A figura pública de mulheres: na escrita e na política; c) Assuntos públicos: grupos sociais, visibilidade e políticas de enfrentamento. 9 No primeiro eixo “Relações de gênero e a história pública” nos de- paramos com o capítulo Gênero, sexualidade e divulgação científica: Reflexões sobre uma experiência de História Pública, no qual Georgiane Garabely Heil Vázquez relata sua experiência de escrever um texto ao grande público elucidando para além dos muros da universidade, o que seriam os estudos de gênero e quais temas a área pesquisa e analisa. A autora dialoga com a história pública e possibilita o debate acadêmico-social sobre tais questões diante de uma demanda social que se fazia premente naquele momento, e com isso consegue chegar a audiências amplas. No capítulo Homens e mulheres na Guerra de Espadas em Cruz das Almas – BA (1980-2018), Filipe Arnaldo Cezarinho aborda o ca- ráter público da escrita da História, ao investigar os saberes e as prá- ticas de mulheres e homens, pela perspectiva das relações de gênero, a partir da Guerra de Espadas na cidade de Cruz das Almas – BA. Para isso, o autor utiliza fontes orais e digitais, buscando pela experiência desses/as espadeiros/as com o processo de produção e com a dinâmica geral da Guerra de Espadas. Enfatiza que com o advento de platafor- mas digitais, muitos/as espadeiros/as têm deixado registros sobre essa tradição, além da formação de grupos em defesa desse acontecimento, o que lhe permitiu acessar os discursos e as práticas desses/as sujeitos/ as inseridos/as na Guerra de Espadas. Claudete Maria Petriw e Filipe Arnaldo Cezarinho no capítulo História oral: problemas e possibilidades de análises em (con)textos diferentes, buscam refletir acerca de implicações encontradas na constituição dessa tipologia de fonte histórica – a história oral - aos debates presentes sobre memória, relações de gênero e história pública. A experiência narrada parte de duas pesquisas históricas, desenvolvidas em lugares distintos, e que tiveram em comum o uso do recurso metodológico. Nesse ínterim, o intuito de ambos foi de trazer para o debate os elementos comuns que apareceram nas pesquisas, de certo modo, interligando-as: a pertinência das pesquisas para as comunidades, as disputas pelas memórias, as resis- tências nos discursos e a produção colaborativa. 10 O eixo “A figura pública de mulheres: na escrita e na política” nos contempla com o capítulo Guerra e paz na obra de Maria Lacerda de Moura, em que Patrícia Lessa e Claudia Maia se debruçam sobre a obra da escritora brasileira para pensar seu olhar sobre a guerra e a paz, e nos apontam como isso possibilita a visibilização da escrita e do pensamento de uma mulher que teve sua produção silenciada por longo tempo. Maria Lacerda de Moura deixou uma extensa bibliografia entre livros, textos jornalísticos e conferências proferidas em diversas cidades brasileiras, bem como em outros países, o que inscreve a escritoracomo sendo uma figura pública, e também indica a potência de seus escritos, disseminação e publicização para/por diversos públicos no tempo pas- sado e no presente, e como seus escritos são pensados e repensados por audiências distintas e guarda ainda estreita relação com as lutas feminis- tas e antifascistas contemporâneas. A autora Maiara Cristina Segato, no capítulo Gênero e resistên- cia na narrativa de autoria feminina da pós-modernidade: a representação da identidade feminina em Divã, de Martha Medeiros, analisa a produção de autoria feminina a partir dos anos 1990 e aprofunda ainda a análise acerca da representação da identidade feminina no embate entre os anseios de liberdade de escolha e a segurança oferecida pelo pertencimento, num contexto dilacerante do mundo pós-moderno, marcado pela frugalidade, individualização, liquidez das relações sociais e de gênero e a fragmenta- ção da identidade. Por sua vez, Michele Tupich Barbosa, no capítulo Darcy Vargas: uma trajetória feminina na formulação da Legião Brasileira de Assistência – LBA, nos apresenta como Darcy Vargas esteve associada à crescente participação feminina em associações caritativas filantrópicas no Brasil, evidenciando sua participação e protagonismo na fundação da Legião Brasileira de Assistência (LBA). Denota também como a figura pública de Darcy Vargas é perpassada pelo silenciamento, sendo conhecida ape- nas pelas narrativas e representações que se produziram sobre ela. Ainda que a autora não estabeleça uma relação da trajetória da primeira dama com as práticas da história pública, é notório perceber como outros pú- blicos, seja a imprensa, o próprio marido e ainda sua filha produziram 11 uma imagem de sua figura pública, contribuindo para uma forma com- partilhada de como ela foi retratada pelos documentos, diários, jornais e fotografias. Neste sentido, embora de forma implícita, percebe-se as relações de gênero e suas ligações com a história pública, daquilo que se projetou acerca da atuação de Darcy Vargas no país. No eixo “Assuntos Públicos: grupos sociais, visibilidade e po- líticas de enfrentamento”, os textos nos trazem a luta e resistência de distintos grupos sociais por sua (re) existência, modos de ser, de viver e de amar; grupos que buscam visibilidade, acesso a políticas públicas, respeito à diferença e igualdade de direitos. No capítulo Fotografias his- tóricas arcaicas da população LGBT+, os autores Iran Ferreira de Melo e Richard Fernandes de Oliveira analisam o que chamam de “fotogra- fias” que ao longo do tempo foram sendo reveladas, retratando quadros historicamente disformes, expondo os corpos, as vivências, as sociabi- lidades das pessoas de gêneros e sexualidades não-hegemônicos, como sendo aquelas que não seguiam ou não seguem a “normalidade” das re- lações amorosas e sexuais de cada época e de cada sociedade. Com isso, problematizam como assuntos relegados à esfera da vida privada vão assumindo caráter público, seja pela exposição das sexualidades e dos corpos dissidentes pelos discursos da ciência, da medicina, da igreja, da sociedade civil, seja na luta das pessoas LGBT+ no mundo contempo- râneo em busca de visibilidade, combate às discriminações e violências, ativismos e enfrentamentos sociais. No capítulo Criminalidade feminina: análises e reflexões a par- tir dos prontuários penitenciários e entrevistas de mulheres encarceradas no Paraná (2000-2017), Pamela de Gracia Paiva analisa a documentação jurídica construída na prisão sobre as mulheres reclusas e de como são elaboradas discursivamente “verdades” sobre elas, tanto dentro quan- to fora da vida prisional. Os crimes e violências cometidos ou sofridos por mulheres, é um assunto público, não apenas no aspecto do direito, mas também porque assola a vida pública de milhares de mulheres e de outros grupos. Nesse sentido, a análise evidencia mais uma vez como as desigualdades de gênero e as representações femininas construídas historicamente, são constantemente reiteradas na prisão e na sociedade. Olhar para o tema da prisão é vislumbrar, em pleno século XXI, como se trata e se retrata a população encarcerada, especialmente as mulheres. 12 No capítulo Efeitos da violência contra a mulher negra sobre suas relações socioeconômicas e afetivas, as autoras Carmelita da Cunha Alfaia, Silvia Canaan, e o autor Marcelo Quintino Galvão-Baptista, abordam a dimensão étnico-racial, em intersecção com a categoria gênero, demons- trando como a violência de gênero atinge as mulheres negras em suas relações sociais, tanto em termos socioeconômicos como na esfera afetiva, o que nem sempre é alvo de debate público, minimizando a importância da questão racial no contexto brasileiro. Nos apontam ainda como são importantes as políticas públicas de enfrentamento às violências, desi- gualdades e de segurança pública, bem como sua materialização para a prevenção e combate da violência contra mulheres negras, na busca de visibilidade e espaço social que lhes têm sido negados historicamente. No capítulo Políticas públicas para mulheres no Brasil, Gissele Buzzatti Leal Bertagnolli trata de uma das temáticas que tem demanda- do constantes lutas dos movimentos de mulheres, que é a reivindicação da criação e implementação de políticas públicas por parte do Estado. Políticas públicas voltadas ao combate das desigualdades de gênero, na perspectiva de combater as desigualdades sociais. E na ótica da auto- ra, para a efetivação dessas políticas públicas, é preciso estabelecer um diálogo eficaz e permanente com a sociedade civil, em busca da disse- minação de uma nova cultura política. Uma cultura que seja sensível às desigualdades de gênero e opte por políticas inclusivas, almejando a igualdade. A proposição de políticas públicas de gênero, portanto, exige estabelecer o sentido das mudanças, num caráter emancipatório. Por fim, é importante destacar que as temáticas discutidas nesta coletânea demonstram pressupostos de colaboração, de inclusão e de diálogo entre distintas áreas de conhecimento e variadas abordagens te- órico-metodológicas, e nos apontam percursos, itinerários e intersecções possíveis entre campos de pesquisa. Além disso, os textos problema- tizam questões fundamentais para a construção de saberes e práticas históricas que sejam mais democráticas, mais significativas a diversos públicos, e sobretudo, que promovam todo tipo de emancipação. Outono de 2020. SUMÁRIO EIXO I – RELAÇÕES DE GÊNERO E A HISTÓRIA PÚBLICA . . . . . . .15 GÊNERO, SEXUALIDADE E DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA: REFLEXÕES SOBRE UMA EXPERIÊNCIA DE HISTÓRIA PÚBLICA . . . . . . . . . .16 Georgiane Garabely Heil Vázquez HOMENS E MULHERES NA GUERRA DE ESPADAS EM CRUZ DAS ALMAS – BA (1980-2018) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .34 Filipe Arnaldo Cezarinho HISTÓRIA ORAL: PROBLEMAS E POSSIBILIDADES DE ANÁLISES EM (CON)TEXTOS DIFERENTES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .56 Claudete Maria Petriw e Filipe Arnaldo Cezarinho EIXO II – A FIGURA PÚBLICA DE MULHERES: NA ESCRITA E NA POLÍTICA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .78 GUERRA E PAZ NA OBRA DE MARIA LACERDA DE MOURA . . . . .79 Patrícia Lessa e Claudia Maia GÊNERO E RESISTÊNCIA NA NARRATIVA DE AUTORIA FEMININA DA PÓS-MODERNIDADE: A REPRESENTAÇÃO DA IDENTIDADE FEMININA EM DIVÃ, DE MARTHA MEDEIROS . . . . . . . . . . . . . 105 Maiara Cristina Segato DARCY VARGAS: UMA TRAJETÓRIA FEMININA NA FORMULAÇÃO DA LEGIÃO BRASILEIRA DE ASSISTÊNCIA - LBA . . . . . . . . . . . 129 Michele Tupich Barbosa EIXO III – ASSUNTOS PÚBLICOS: GRUPOS SOCIAIS, VISIBILIDADE E POLÍTICAS DE ENFRENTAMENTO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 156 FOTOGRAFIAS HISTÓRICAS ARCAICAS DA POPULAÇÃO LGBT+ . 157 Iran Ferreira de Melo e Richard Fernandes de Oliveira CRIMINALIDADE FEMININA: ANÁLISES E REFLEXÕESA PARTIR DOS PRONTUÁRIOS PENITENCIÁRIOS E ENTREVISTAS DE MULHERES ENCARCERADAS NO PARANÁ (2000-2017) . . . . . . . . 176 Pamela de Gracia Paiva EFEITOS DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NEGRA SOBRE SUAS RELAÇÕES SOCIOECONÔMICAS E AFETIVAS . . . . . . . . . . . . . 197 Carmelita da Cunha Alfaia, Marcelo Quintino Galvão-Baptista e Silvia Canaan POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MULHERES NO BRASIL . . . . . . . . . 221 Gissele Buzzatti Leal Bertagnolli SOBRE OS ORGANIZADORES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 235 EIXO I RELAÇÕES DE GÊNERO E A HISTÓRIA PÚBLICA 16 GÊNERO, SEXUALIDADE E DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA: REFLEXÕES SOBRE UMA EXPERIÊNCIA DE HISTÓRIA PÚBLICA Georgiane Garabely Heil Vázquez3 RESUMO Esse capítulo resulta da reflexão sobre a experiência de publicação de um texto no site “Café História”, no ano de 2017. O texto “Gênero não é ideologia: explicando os es- tudos de Gênero” foi publicado por mim nesse portal de divulgação de conhecimento científico e teve ampla repercussão. Período conturbado para os estudos de gênero, o ano de 2017 foi marcado por ataques às investigações e até mesmo pelo debate sobre a proibição desse campo de estudos. Desta forma, o texto aqui apresentado proble- matiza sobre a repercussão pública e a estratégia de se usar um portal de divulgação científica para explicar, mesmo que parcialmente, ao grande público, em que consistem os estudos de gênero. O objetivo central deste trabalho foi de analisar a experiência de história pública como estratégia de comunicação e os principais resultados de tal experiência. Palavras-chave: Estudos de Gênero; História Pública; Café História; Divulgação Científica ABSTRACT This chapter is the result of reflecting on the experience of publishing a text on the website “Café História”, in 2017. The text “Gender is not ideology: explaining gender studies” was published by me on this portal for the dissemination of scientific knowledge and had wide repercussions. A troubled period for gender studies, the year 2017 was marked by attacks on investigations and even by the debate over the prohibition of this field of studies. Thus, the text presented here questions the public repercussions and the strategy of using a scientific dissemination portal to explain, even partially, to the general public, what gender studies consist of. The main objective of this work was to analyze 3 *Agradeço à Bruno Leal Pastor Carvalho e Ana Paula Tavares Teixeira por me possibilitarem a experiência com História Pública e divulgação do conhecimento científico via Café História. Professora do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História (mestrado acadêmico) da Universidade Estadual de Ponta Grossa ( UEPG). 17 the experience of public history as a communication strategy and the main results of such experience Keywords: Gender Studies; Public History; Café História; Scientific Divulgation NOTAS PRELIMINARES 21 de novembro de 2017. Liguei o computador em busca de notícias sobre a política nacional e a economia, tendo em vista o recente processo do golpe de 2016. O Brasil vivia uma abrupta mudança de di- recionamento nas políticas sociais, concepções econômicas e, também, uma espécie de “guerra de narrativas” sobre os rumos corretos para a Nação. Todavia, a notícia que ressaltava em diferentes sites de internet e principalmente nas redes sociais vinha da Bahia e se relacionava ao ensino superior. Num primeiro momento, pode-se pensar que tais fatos não esta- vam diretamente ligados. Porém, faziam parte de um mesmo processo de transformação e guerra de narrativas, como já mencionado. Em novem- bro de 2017 diversas/os professoras/es universitárias/os e pesquisadoras/ es foram surpreendidas/os pela notícia que docentes da Universidade Federal da Bahia (UFBA) estavam sendo ameaçados/as inclusive de morte, por pesquisas vinculadas aos estudos de gênero e sexualidade. Além disso, a defesa de uma dissertação de mestrado na referida univer- sidade precisou de reforço policial para que pudesse ocorrer. Segundo Joana Maria Pedro4, a Universidade Federal da Bahia é uma das instituições brasileiras mais relevante nas pesquisas sobre gê- nero e sexualidade, chegando, inclusive, a possuir o único curso brasileiro de Bacharelado em Estudos de Gênero e Diversidade, até o momento. Os docentes e a mestranda ameaçados estavam vinculados ao IHAC- Instituto de Humanidades, Artes e Ciências e, além disso, possuíam pes- quisas vinculadas ao NEIM, Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher ou ao CUS, grupo de pesquisa Cultura e Sexualidades. A onda de ataques e ameaças foi motivada por estudos vinculados a divisão sexual 4 PEDRO, Joana Maria. Relações de Gênero como categoria transversal na historiografia contemporânea. Topoi, v. 12, n. 22, jan.-jun. 2011, p. 270-283. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2237-101X2011000100270 http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2237-101X2011000100270 18 do trabalho e, no caso da defesa de dissertação de mestrado, a pesquisa desenvolvida no CUS sobre sexualidade e diversidade de gênero na edu- cação infantil. Toda essa situação de ameaças levou ao então Reitor da UFBA, João Carlos Salles, divulgar uma moção de repúdio contra tais ataques ao corpo docente e discente da instituição. Além disso, os/as docentes foram orientados/as a prestar queixa judicial referente às ameaças. Toda a comunidade científica brasileira vinculada ao campo das humanidades assistia atônita aos acontecimentos na UFBA. E foram tais aconteci- mentos que me motivaram a escrever sobre estudos de gênero para um portal/site de internet em busca de ampla divulgação. Assim, problema- tiza-se neste texto a experiência de história pública não exatamente por opção teórica ou metodológica, mas como uma forma de divulgação de conhecimento científico (num primeiro momento), motivada por ata- ques ao campo de estudos e pesquisas em gênero. Desde fins dos anos de 1980 os estudos de gênero pareciam ga- nhar amplo fôlego nas pesquisas brasileiras. Com a publicação do texto de Joan Scott5 e a rápida proliferação de cursos de especialização, bem como linhas de pesquisas em programas de pós-graduação em níveis de mestrado e doutorado, grupos de estudos, programas de extensão e mesmo defesas de teses e dissertações na área de história das mulheres e estudos de gênero, parecia haver uma consolidação acadêmica e social sobre tais pesquisas. Contudo, situações como as narradas acima de- monstravam cada vez mais que os estudos de gênero estavam - e creio que ainda estejam - sobre forte ataque. Esses ataques vinham princi- palmente de setores auto-declarados “conservadores”, que poderiam ou não estar vinculados a diversos grupos religiosos. No caso específico da UFBA, um dos temores anunciados pelos grupos conservadores era a imposição de mudança sexual para crianças e adolescentes, ou seja, mui- tos acreditavam que os estudos de gênero eram responsáveis pelo in- centivo à homossexualidade ou mesmo ao estímulo sexual precoce para crianças e adolescentes. 5 SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revista Educação e Realidade. v.l, n.2, jul./dez. 1990. https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/185058/mod_resource/content/2/G%C3%AAnero-Joan Scott.pdf 19 Esses ataques acabaram tirando as pesquisas de gênero desenvol- vidas no interior das Universidades e as levando para o espaço público, onde o debate é muito mais heterogêneo e, até por isso, mais complexo. No mesmo ano de 2017, Toni Reis e Edla Eggert publicaram um artigo na Revista Educação e Sociedade, debatendo sobre o boicote e ataques que os estudos de gênero vinham sofrendo no campo educacional, em especial, analisam o Plano Nacional e Planos Estaduais e Municipais de Educação, verificando o acalorado debate contra a inclusão do termo gênero em diferentes Planos Educacionais.6 Esse artigo já denunciava que o campo de pesquisa em gênero estavasob ameaça. Relacionando parte do discurso religioso com determinadas correntes de pensamento conservador, Reis e Eggert demonstraram que esse fenômeno não era exclusivamente brasileiro. Diferentes países do mundo estavam experi- mentando essa perseguição aos estudos de gênero e a região da América Latina não ficou de fora. No Brasil, diversas cidades tiveram suas câma- ras de vereadores transformadas em palco, onde se confrontaram grupos contrários e favoráveis ao debate sobre questões de gênero em Planos Municipais de Educação ou mesmo a discussão sobre igualdade de gê- nero em escolas. Não havia mais a possibilidade de seguir com pesquisas em gê- nero no isolamento universitário. Seguramente era necessário romper as barreiras dos muros das universidades e dialogar com a comunidade de maneira mais ampla. Desta forma, minhas ambições de história pública em fins de 2017 foi possibilitar, em alguma medida, o debate acadêmi- co-social sobre as tais questões. Foi, portanto, uma resposta à demanda social na tentativa de se fazer compreender. Em outras palavras: uma tentativa de divulgação de conhecimento científico e, neste ponto, deixo claro minha concepção sobre a própria história pública. 6 REIS, Toni; EGGERT, Edla. Ideologia de gênero: uma falácia construída sobre os planos de educação brasileiros. Educação e Sociedade. Campinas, v. 38, nº. 138, p.9-26, jan.-mar., 2017. 20 HISTÓRIA PÚBLICA: ALGUMAS REFLEXÕES CONCEITUAIS A História Pública tem fomentado amplo debate na comunida- de científica vinculada às ciências humanas e sociais. Campo ou moda- lidade tida por alguns/mas como relativamente nova na historiografia, essa forma de história busca construir um arcabouço de características e metodologias se firmando como uma das muitas maneiras de se lançar um olhar, uma abordagem analítica sobre a história e suas questões7. Pesquisadores/as de diversas Universidades nacionais e interna- cionais debatem sobre a História Pública e suas possíveis metodologias e estratégias. Contudo, é necessário dizer que não há uma unanimidade no que se refere ao conceito de História Pública. Juniele Almeida e Marta Rovai8 argumentam que suas reflexões sobre a conceituação e delimitação acerca da História Pública foram ini- cialmente sistematizadas no ano de 2011 com um curso na Universidade de São Paulo (USP) denominado de “Introdução à História Pública”, que resultaria posteriormente na organização de um livro com o mes- mo título ampliando tais reflexões. Para as autoras, a História Pública deveria ser vista como uma possibilidade de se ampliar e difundir o conhecimento histórico. Nesse sentido, a ideia de “amplas audiências” como as possibilitadas por meio de televisão, rádio, jornais, organizações não governamentais e a prória internet poderiam ser sistematicamente utilizadas para o fazer histórico, bem como para a divulgação de tais conhecimentos. Essa concepção extrapolava as tradicionais maneiras de publicização do conhecimento histórico e historiográfico, tradicio- nalmente feito por meio de textos acadêmicos, publicações em revistas especializadas e com circulação mais restrita e até mesmo espaços tradi- cionais de história como museus e centros de memória. Ainda segundo Almeida e Rovai9 deve-se ter claro que a História 7 Vale ressaltar que até o ano de 2020 a Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR), no Campus de Campo Mourão-PR, era a única Universidade brasileira a possuir um mestrado acadêmico com a área de concentração em História Pública no Brasil. 8 ALMEIDA. Juniele Rabêlo; ROVAI, Marta Gouveia de Oliveira (Orgs.). Introdução à História Pública. São Paulo: Letra e Voz, 2011 9 ___________. História pública: entre as “políticas públicas” e os “públicos da história”. IN: XXVII Simpósio Nacional de História. Conhecimento Histórico e Diálogo social. ANPUH Natal: 21 Pública não é apenas ensinar e divulgar certo conhecimento por meio da popularização do saber histórico, mas, também possibilitar a interdisci- plinaridade e a integração de diversos recursos, sejam eles técnicos e ou metodológicos. Nas palavras das autoras: O trabalho fora da Universidade pode se expandir, se po- pularizar, por meios dos arquivos, de museus, da fotogra- fia, do cinema, da história oral, sem, no entanto, perder a seriedade e o seu compromisso com a produção de sa- beres. A pergunta que deve ser feita na realização dessas práticas é como a academia pode, em seu interior e a par- tir de seus pressupostos, colaborar para gerar uma história mais humana e democrática fora dela. Ou ainda se lidar com a história pública fora da universidade é, necessaria- mente, uma exclusividade de historiadores10. A partir de tais reflexões, Almeida e Rovai problematizam que a História Pública ainda é um conceito complexo e, em certa medida, escorregadio, pois pode abrigar variadas tendências e concepções. Bruno Lontra Fagundes11 argumenta no que se refere às origens da História Pública que há um certo consenso entre pesquisadores/as ao afirmar que se localiza nos anos de 1970, vinculada com a historiografia norte-americana e anglo-saxônica e, em alguma medida, estava vincu- lada a necessidade de se ampliar a empregabilidade dos/as profissionais da História. Nesse sentido, ainda segundo Fagundes, não era comum que empresas e organizações não-governamentais mantivessem em seus quadros de funcionários, historiadores e historiadoras. Todavia, com a propagação do conhecimento histórico e, portanto, a disseminação da chamada História Pública, tal fato poderia se modificado. Já Almeida e Rovai ampliam o espaço geográfico do surgimento da História Pública, pois, para as autoras já haviam debates em países como Itália e África do Sul. Contudo, também destacam a preponde- Rio Grande do Norte, 2013. 10 Idem, pg 03. 11 FAGUNDES, Bruno F. Lontra. O que é, como e por que história pública? Algumas considerações sobre indefinições. IN: VII Congresso Internacional de História.1917-2017, Centenários Universidade Estadual de Maringá, 2017. 22 rância dos Estados Unidos e Inglaterra nesse debate inclusive com a fundação, em 1979, do National Council for Public History, nos Estados Unidos.12 Para além das questões sobre o surgimento desta forma de his- tória, o debate central travado no Brasil ainda é sobre as metodologias utilizadas e as abordagens conceituais. Nesse texto procuro compreender a História Pública em sua complexidade, mas delimitando-a principalmente como uma nova for- ma de construção do conhecimento histórico e como uma espécie de ponte entre o saber construído na academia e a popularização de tal conhecimento. Seguindo os apontamentos de Thais Fonseca13, tal forma de construção do conhecimento histórico pode ser vista como um caminho para se pensar as diferentes mídias na divulgação do saber histórico. É evidente que essas novas mídias precisam ser compreendidas de modo amplo, englobando seus usos e também suas limitações. Problematizar sobre o acesso democrático ao conhecimento, bem como a própria his- tória das novas mídias e suas possibilidades de uso para o conhecimen- to histórico possibilitaria, na visão de Fonseca, a construção de novas formas de conhecimento e também com uma espécie de patrimônio coletivo do conhecimento, sem desmerecer o rigor acadêmico e as preo- cupações inerentes ao ofício das/os historiadoras/es. Desta forma, buscando um debate amplo sobre os impasses que as pesquisas na área dos estudos de gênero vinham enfrentando, procurei inteirar-me de metodologias da História Pública e das pos- sibilidades de uso de seus recursos para estabelecer uma comunicação profícua com variados segmentos sociais para além da academia, para além dos muros das universidades. 12 ALMEIDA, Juniele; ROVAI, Marta. História pública: entre as “políticas públicas” e os “públicos da história”. IN: XXVII Simpósio Nacional de História. Conhecimento Histórico e Diálogo social. ANPUH Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2013.13 FONSECA, Thais. Mídias e divulgação do conhecimento histórico. Revista Aedos, n.11, v.4, set.2012. 23 A partir das reflexões desenvolvidas por Foncesa e acreditando na potencialidade que as novas mídias poderiam propiciar ao conheci- mento histórico e sua divulgação, decidi procurar um veículo de divul- gação científica, ou seja, que se dedicava à História Pública para debater o momento pelo qual passavam as pesquisas em gênero, especialmente no Brasil. Nesse caminho de busca procurei articular um espaço de am- pla divulgação, mas que não se limitasse apenas a ideia de rede social pessoal. Meu intuito foi de articular a ampla circulação ao debate acadê- mico ao qual estava adaptada desde o início de minha formação e, por essas questões, entrei em contato com o portal “Café História”. CAFÉ HISTÓRIA: HISTÓRIA FEITA COM CLIQUES O historiador Bruno Leal Pastor de Carvalho14 informa que o site Café História surgiu em 18 de janeiro de 2008, a partir de inicia- tiva pessoal dele. Tal historiador, atualmente professor da Universidade de Brasília ( UNB), é também criador e editor do site Café História e o denomina como uma “rede social para historiadores na internet”15. Carvalho argumenta que esse projeto buscou articular sua dupla for- mação, de um lado a história, e de outro, a comunicação. Tal empreitada foi, portanto, uma demanda pessoal e que não contou com investimento de terceiros ou patrocínio externo. Ainda segundo Carvalho existia no início do século XXI uma lacuna na divulgação e popularização do saber histórico no Brasil. Para ele, outras redes sociais, blogs, fóruns virtuais ou mesmo grupos de e-mails que existiam no período já não davam conta da especificidade da história e da necessidade de sua divulgação. Ao explicar parte do processo tecnológico que sustenta o Café História, Carvalho argumenta: O Café História foi construído em uma plataforma nor- te-americana chamada Ning, lançada em 2004 e desen- 14 CARVALHO, Bruno Leal Pastor. História Pública e redes sociais na internet: elementos iniciais para um debate contemporâneo. Transversos: Revista de História. Rio de Janeiro, v. 07, n. 07, set. 2016.p 35-53. 15 Idem pg 46. 24 volvida pelo experiente Marc Andreessen, criador do antigo navegador de Internet, Netscape Navegator (...) O Ning permite que qualquer pessoa, independente de ter conhecimentos de programação, crie a sua própria rede social. Toda rede construída com a tecnologia Ning pos- sui um pacote de ferramentas colaborativas típicas da Web 2.0: fóruns, grupos, fotos, vídeos, eventos, chat, inbox, mural e caixa de texto. Quem se cadastra torna-se auto- maticamente membro da rede, adquire um perfil e obtém permissão para publicar conteúdos e interagir com os de- mais conteúdos publicados por outros usuários.16 É interessante destacar que Carvalho aponta uma sugestão de trajeto para se iniciar um projeto em História Pública e divulgação do conhecimento histórico e destaca os passos a serem seguidos por histo- riadoras/es que desejem se aventurar. Pontua que, em primeiro lugar, é necessário se ter muito claro a delimitação e elaboração de um projeto, ao seja, os planos gerais que se deseja atingir. Posteriormente enumera a formação de uma equipe e delimita que esta deve ser preferencialmen- te interdisciplinar, formada não apenas por historiadores/as, arquivistas, museólogos/as, sociólogos/as, antropólogos/as, mas também por jorna- listas, comunicadores/as sociais, profissionais de tecnologia da informa- ção, entre outros. Além disso, aponta para a necessidade de se adquirir conhecimento técnico, pois considera necessário para maior visibilidade do projeto em redes sociais que obrigatoriamente necessitam de novas linguagens por parte do/a historiador/a. Ainda tratando de enumerar os passos necessários para se iniciar na divulgação de conhecimento his- tórico e História Pública, Carvalho aponta para a urgência de compre- ensão de que a internet é um grande arquivo e, desta maneira, é preciso se estabelecer uma constante pesquisa digital vinculada ao que deno- mina de “nova arquivologia”, pois as recentes gerações de historiadores/ as estão habituadas a procurar e encontrar documentos de pesquisa na internet, seu mais novo arquivo. E por fim, mas não menos importante, aponta para a necessidade de projetos em História Pública possuírem a 16 Ibidem pg 47. 25 constante gestão de rede, ou seja, a capacidade da equipe interdisciplinar em estabelecer uma mediação, uma moderação na página ou rede social administrada. Tal atividade é fundamental para evitar ataques pessoais ou outros tipos de agressões possíveis quando uma determinada pesqui- sa/publicação não agrada determinado grupo social. Com tais caminhos percorridos para a concretização do projeto de rede social Café História, o “historiador-editor” analisa sua prórpria tra- jetória e a necessidade de adaptar a tecnologia Ning para possibilitar um diferencial em sua rede social Café História. Deste modo, argumenta que: As redes sociais baseadas na plataforma Ning tendem a não se diferenciar muito umas das outras, afinal de contas, operam com um mesmo conjunto de ferramentas, modi- ficando-se apenas no que diz respeito ao lugar destas na página principal. O Café História, no entanto, tem uma estrutura diferente e inovadora graças a uma improvisa- ção técnica: as caixas de texto, pouco acionada em outras redes do tipo, foram ali usadas como seções de conteúdo autoral. Esse material é produzido pela administração da rede e por historiadores (quase sempre professores uni- versitários, mestrandos ou doutorandos) convidados na qualidade de colaboradores. A propósito, a formação des- ta equipe, que é interdisciplinar e flutuante, tem sido vital para o controle de qualidade do Café História.17 Pelos números fornecidos por Bruno Leal Pastor de Carvalho pode-se afirmar que o projeto de divulgação do conhecimento histórico acertou em suas escolhas. Segundo Carvalho o Café História recebe, em média, de 3 a 5 mil acessos únicos por dia. Possui visitantes não apenas do Brasil, mas também de outros países da América Latina como Argentina, Paraguai, México, Colômbia e Chile. Além disso, foi possivel verificar acesso de países como Angola, Espanha, Portugal, Estados Unidos, entre outros18. 17 CARVALHO, Bruno Leal Pastor. História Pública e redes sociais na internet: elementos iniciais para um debate contemporâneo. Transversos: Revista de História. Rio de Janeiro, v. 07, n. 07, set. 2016 pg 47-48. 18 Dados fornecidos a partir de levantamento realizado por Bruno Leal Pastor Carneiro e 26 Sabendo do sucesso que Café História representava na comuni- dade de historiadoras/es optei por iniciar um diálogo com o editor, pro- fessor Bruno Leal Pastor Carvalho, e publicar um texto de divulgação de conhecimento histórico sobre gênero, um texto que articulasse em alguma medida os campos de História Pública e Estudos de Gênero. GÊNERO NÃO É IDEOLOGIA: EXPLICANDO OS ESTUDOS DE GÊNERO Estabeleci contato com professor e editor Bruno Leal Pastor de Carvalho via rede social Facebook. Desde o primeiro momento, acolheu muito bem minha proposta de escrever um texto sobre estudos de gê- nero naquele momento, ou seja, na mesma semana em que tomamos conhecimento das ameaças contra pesquisadoras/es da Universidade Federal da Bahia. Todavia, antes da entrega do texto, tivemos algumas conversas e me foram repassadas ponderações e orientações. Recorro aqui ao artefato da memória para, em alguma medi- da, ressignificar aquelas conversas em fins de 2017, ora acadêmicas, ora de amizade e preocupação. Nesse ponto, me amparo nas reflexões de Beatriz Sarlo19quando faz significativas considerações sobre a memória como um bem comum e a respeito do discurso narrativo que é emitido a partir dela. Desta forma, apresento aqui a “narrativa possível” realizada via memória sobre a conversa que resultou no texto publicado no Café História. Como apontado por Sarlo, sabe-seque as narrativas, por mais verdadeiras que se pretendam, são sempre permeadas de singularidades, de lacunas e reconstruções feitas a partir da memória e acionadas de diferentes maneiras, seja por meio de uma entrevista ou, como é o caso, pela necessidade deliberada de rememorar para produzir uma reflexão acadêmica sobre a conversa passada. Desta forma, e seguindo as ponde- rações de Sarlo sobre a memória, não pretendo oferecer uma narrativa publicado em CARVALHO, Bruno Leal Pastor. História Pública e redes sociais na internet: elementos iniciais para um debate contemporâneo. Transversos: Revista de História. Rio de Janeiro, v. 07, n. 07, set. 2016 pg 48. 19 SARLO, Beatriz. Tempo Passado: Cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Cia das Letras, 1997. 27 com núcleo inquestionável de verdade, tendo em vista a complexidade das teias das lembranças. A primeira ponderação que o editor do Café História me fez foi: “Você precisa ter clareza do impacto que seu texto pode causar, princi- palmente num momento como esse”. E seguindo a isso, complementou: “É possível que venham a sofrer algum tipo de ataque virtual. Você está preparada?”. Essas questões me colocaram pela primeira vez diante da imensidão que é a publicação de um texto num portal de divulgação científica. Pela primeira vez em minha trajetória profissional iria pu- blicar algo que não seria lido exclusivamente – ou predominantemen- te- por meus pares na academia. Senti medo, não apenas pela possível reprovação de alguns trechos de meu texto, que poderia acontecer, mas, principalmente, pela possibilidade de ataques pessoais via rede social. Nesse ponto, o editor me alertou para não responder comentários com ataques e que tais comentários, se surgissem, seriam excluídos do Café História. Também alertou que deveria ficar atenta em minhas redes so- ciais para apagar qualquer tipo de ataque e não responde-los. Outro ponto interessante foi a necessidade de uma adaptação me- todológica de comunicação e de linguagem. Nas instruções passadas pelo editor, havia uma limitação severa quanto ao número de páginas – no máximo três ou quatro-, também havia limitação quanto ao uso de no- tas e até quanto a quantidade de referências bibliográficas – máximo de cinco. Era um modelo de texto sobre gênero que eu nunca havia escrito. Como falar de Joan Scott, Judith Butler, Bell Hooks, Angela Davis e do movimento feminista usando quatro páginas? E mais: como escrever isso sendo uma historiadora sem cair na simplificação extrema? Senti vontade de desistir. Esse primeiro contato me colocou diante da complexidade da História Pública e da imensa responsabilidade inerente a ideia de divul- gação do conhecimento histórico. Acreditei que não seria capaz de fazer pois precisaria de, no mínimo, cerca de quinze páginas para não “jogar na lama” minha carreira de historiadora feminista e membro do GT de Estudos de Gênero da Associação Nacional de História (ANPUH). Contudo, incentivada pelo editor do Café História e tendo firme certe- 28 za que o momento exigia uma postura combativa de pesquisadoras da área de gênero, optei por seguir em frente vencendo minhas limitações e até preconceitos sobre os chamados “textos de divulgação”. Em 2017, assim como em inúmeros outros momentos, a sociedade em geral pre- cisava conhecer o que eram os “Estudos de Gênero” e não precisava de mais um artigo teórico e denso, ao qual teriam até dificuldade de acesso. Outra dificuldade foi estabelecer no texto um equilíbrio entre linguagens. Era evidente que não se tratava de um texto exclusiva- mente acadêmico, mas também não poderia ser um manifesto, ou um texto panfletário. Esse equilíbrio entre o conhecimento universitário, seus ritos e normas e a divulgação em larga escala de tal conhecimen- to foram um jogo tenso no processo de redação do texto para o Café História. Neste ponto, destaco a colaboração e revisão da pesquisadora Ana Paula Tavares Teixeira20, que também atua no Café História e me auxiliou muito para a manutenção deste equilíbrio linguístico. Sem ela, a publicação não teria sido possível. Como estratégia optou-se por usar “palavras-links”, ou seja, pa- lavras e expressões que, ao se clicar nelas, remetiam a outros textos ou reportagens. Já no início do texto publicado no Café História mencionei sobre manifestações violentas contra os estudos de gênero e ao se clicar em “manifestações violentas”, que estava destacado com outra cor de le- tras, o/ leitor/a era direcionado/a para reportagens tratando do ocorrido na Universidade Federal da Bahia. Maneira bastante eficaz de lidar com interesses distintos dos/as leitores/as e desejos de aprofundamento nas temáticas bastante variado. Para contextualizar o movimento feminista e sua derivação – não direta, mas relacionada-, à história das mulheres e dos estudos de gênero foi utilizado do equilíbrio entre linguagens, mencionado acima. Desta forma, o texto foi apresentado: 20 Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais da Fundação Getúlio Vargas (PPHPBC-FGV / 2018), Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ / 2004) e atriz formada pela Casa das Artes das Laranjeiras (CAL / 2010). Subeditora da rede Café História. 29 No espaço universitário, os feminismos – no plural devido à heterogeneidade do movimento – iniciaram uma traje- tória em meados do século XX. Na História, por exem- plo, a incorporação da categoria mulher está relacionada a todo um movimento historiográfico de renovação no campo de conhecimento. A história demográfica, a história da família e a ideia de uma história “vista de baixo”, na qual também deveriam ser contadas as vidas de pessoas comuns, de operários e operárias, de camponeses e cam- ponesas, entre outros, contribuíram significativamente para a compreensão de que era necessário se escrever so- bre Mulher – nesse primeiro momento ainda no singular, ou seja, ainda pensada como uma categoria homogênea. Entre o fim dos anos de 1970 e o início da década de 1980 as historiadoras feministas – principalmente ligadas ao feminismo norte-americano – começaram a proble- matizar as particularidades que existiam entre elas pró- prias. A categoria Mulher já não dava conta de explicar a multiplicidade de experiências e subjetividades. Joana Maria Pedro argumenta que as mulheres negras, parti- cularmente, questionaram o gesto excludente da escrita da História das Mulheres, revelando as fraturas internas não só da História, mas do próprio feminismo acadêmico ao mostrar as armadilhas e ilusões da categoria Mulher. Desde então, feministas como Angela Davis e Bell Hooks, colocaram o dedo na ferida ao dizer que as mulheres não viviam da mesma forma a experiência de ser mulher. Outras variáveis precisavam ser levadas em consideração, como classe, cor, escolaridade, dentre outros aspectos que precisavam ser compreendidos.21 Todas as palavras grifadas na citação são “palavras-links”, que remetem a outros textos ou páginas de internet com explicações e apro- fundamento. Mesclando estratégias e procurando esse equilíbrio entre conhecimento científico e divulgação em larga escala foi possível a reda- ção e publicação do texto em poucos dias. 21 VÁZQUEZ, Georgiane Garabel Heil. Gênero não é ideologia: explicando os Estudos de Gênero (Artigo) In: Café História – história feita com cliques. Disponível em: https://www. cafehistoria.com.br/explicando-estudos-de-genero/. Publicado em: 27 nov. 2017. Acesso: 10 de abril de 2020. https://pt.wikipedia.org/wiki/Hist%C3%B3ria_demogr%C3%A1fica https://pt.wikipedia.org/wiki/Hist%C3%B3ria_vista_de_baixo https://amzn.to/2BowqMJ https://amzn.to/2iS1uwu https://www.cafehistoria.com.br/explicando-estudos-de-genero/ https://www.cafehistoria.com.br/explicando-estudos-de-genero/ 30 A dinâmica dos acontecimentos era frenética e no meu enten- der, o texto precisaria ser publicado já nos diasseguintes às notícias de ameaças vindas da Bahia. Tendo em vista que o objetivo inicial dessa experiência com História Pública era de estabelecer “uma ponte” entre a universidade e a sociedade em geral, o texto deveria ser claro e didá- tico, ou seja, explicar de maneira objetiva a que se dedicavam, de modo geral, as pesquisas em gênero. Para apresentar Scott e Butler ao grande público, o texto foi: Scott aponta, de maneira muito interessante, para um dos eixos mais polêmicos que os Estudos de Gênero enfren- tam hoje no Brasil. Não se trata de negar as diferenças se- xuais e corporais entre homens e mulheres, mas de com- preendê-las não como naturais e determinadas, mas como relações sociais e de poder, que produziram hierarquias e dominação. Para Scott, gênero é a organização social das diferenças sexuais. É um saber que estabelece significa- dos para as diferenças corporais. (...) Para Judith Butler, a ideia de performatividade de gênero compreende a noção de que sexo e gênero são discursivamente criados e que, ao se desnaturalizar o sexo, deve-se também desnaturali- zar o gênero. Portanto, não se trata de negar a existência de sexo ou de gênero, mas de historicizar tais diferen- ças, procurando analisar as estratégias discursivas que as consolidaram. Nesse ponto, a meu ver, encontra-se uma das contribuições mais significativas da obra de Judith Butler: dar visibilidade ao fato de que existem corpos que “importam” – corpos enquadrados no sistema heteronor- mativo – e corpos que “não importam” – o que a autora chama de corpos abjetos. Esses, dentro da lógica binária, podem ser vistos como “corpos desviantes”, culturalmen- te inintelegíveis e que ameaçam as estruturas de poder. Pessoas gays, lésbicas, transexuais e intersexuais acabam por demarcar fronteiras que não deveriam ser cruzadas dentro do sistema heteronormativo e, dentro desse siste- ma excludente, seus corpos não são aceitos, ou melhor, a existência dessas pessoas não é aceita. Tal exclusão acabou por colocar em risco a vida dessas pessoas, gerando into- http://www.conversacult.com.br/2016/03/o-que-e-heteronormatividade.html http://www.conversacult.com.br/2016/03/o-que-e-heteronormatividade.html http://www.conversacult.com.br/2016/03/o-que-e-heteronormatividade.html 31 lerância, mortes e inúmeras outras violências22 (grifos na publicação original). E, por fim, para ser um texto efetivamente explicativo direcio- nado ao grande público, direcionei as considerações finais para formular uma listagem simplificada de algumas das áreas temáticas dos Estudos de Gênero. Os Estudos de Gênero nunca tiveram como objetivo mo- dificar a sexualidade de ninguém – até porque os pes- quisadores e pesquisadoras da área não acreditam que a orientação sexual ou a identidade de gênero das pessoas sejam modificáveis como querem fazer crer seus detrato- res. Nunca defenderam pedofilia ou incentivaram a eroti- zação infantil. Nunca foram “ideologia”.(...) Pesquisas so- bre sexualidades existem dentro dos Estudos de Gênero, porém – e parece ser necessário repetir – não se trata de conspirar para mudar a orientação sexual de ninguém.(...) Também são temas dentro dos Estudos de Gênero: a ma- ternidade, os sentimentos, a religiosidade, a assistência, a participação política, os racismos, as interseccionalidades e o próprio movimento feminista, isso só para citar algu- mas poucas áreas. Não existe ideologia de gênero! E se os Estudos de Gênero puderem impactar de forma trans- formadora em nossa sociedade, será na construção de um mundo mais justo e igualitário. Um mundo em que me- ninas não sejam mortas por namorados. Um mundo sem violência doméstica, sem exploração sexual. Um mundo em que ninguém tenha medo da igualdade de direitos e deveres23. ( grifo no original). CONSIDERAÇÕES FINAIS O texto foi publicado em 27 de novembro de 2017, ou seja, seis dias após a vinculação pela imprensa dos acontecimentos na UFBA. 22 Idem. 23 Ibidem. https://ensaiosdegenero.wordpress.com/2012/10/03/trabalhando-com-a-nocao-de-interseccionalidades/ 32 Conforme alertado por Bruno Leal Pastor de Carvalho, a re- percussão foi ampla. Foram vários compartilhamentos em diferentes redes sociais e grupos do aplicativo para celular whatsapp. Por conta da diversidade de compartilhamentos não é possível ter a exatidão de quantas pessoas tiveram acesso ao texto via Facebook e whatsapp, mas, conforme informado pelo editor do site, o texto “Gênero não é ideolo- gia: explicando os Estudos de Gênero” teve, até abril de 2020, 34.514 acessos apenas via Café História, com tempo médio de permanência na página de 7 minutos e 5 segundos. Também foi possível mapear as cidades que mais acessaram o texto, sendo elas, por ordem: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador e Brasília. Além disso, o texto também foi republicado por diversos outros sites, com a condição de manter a citação original do Café História, chegando até mesmo a ser traduzido para o espanhol. Concluo, portanto, que, para além das dificuldades e adaptações necessárias para se pensar a História Pública e iniciar esse processo mais amplo de divulgação do conhecimento histórico, é fundamental esse “exercício” historiográfico. Repensar linguagens, metodologias, impacto e suporte de divulgação se constituem tarefas fundamentais para maior interação entre universidade e sociedade. REFERÊNCIAS ALMEIDA. Juniele Rabêlo; ROVAI, Marta Gouveia de Oliveira (Orgs.). Introdução à História Pública. São Paulo: Letra e Voz, 2011. ALMEIDA, Juniele; ROVAI, Marta. História pública: entre as “políticas públicas” e os “públi- cos da história”. IN: XXVII Simpósio Nacional de História. Conhecimento Histórico e Diálogo social. ANPUH Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2013. CARVALHO, Bruno Leal Pastor. História Pública e redes sociais na internet: elementos iniciais para um debate contemporâneo. Transversos: Revista de História. Rio de Janeiro, v. 07, n. 07, set. 2016. FAGUNDES, Bruno F. Lontra. O que é, como e por que história pública? Algumas conside- rações sobre indefinições. IN: VII Congresso Internacional de História.1917-2017, Centenários Universidade Estadual de Maringá, 2017. FONSECA, Thais. Mídias e divulgação do conhecimento histórico. Revista Aedos, n.11, v.4, set.2012. 33 PEDRO, Joana. Relações de Gênero como categoria transversal na historiografia contemporâ- nea. Topoi, v. 12, n. 22, jan.-jun. 2011, p. 270-283. REIS, Toni; EGGERT, Edla. Ideologia de gênero: uma falácia construída sobre os planos de educação brasileiros. Educação e Sociedade. Campinas, v. 38, nº. 138, p.9-26, jan.-mar., 2017. SARLO, Beatriz. Tempo Passado: Cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Cia das Letras, 1997. SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revista Educação e Realidade. v.l, n.2, jul./dez. 1990. VÁZQUEZ, Georgiane Garabel Heil. Gênero não é ideologia: explicando os Estudos de Gêne- ro ( Artigo) In: Café História – história feita com cliques. Disponível em: https://www.cafehistoria. com.br/explicando-estudos-de-genero/. Publicado em: 27 nov. 2017. Acesso: 10 de abril de 2020. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2237-101X2011000100270 http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2237-101X2011000100270 https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/185058/mod_resource/content/2/G%C3%AAnero-Joan Scott.pdf https://www.cafehistoria.com.br/explicando-estudos-de-genero/ https://www.cafehistoria.com.br/explicando-estudos-de-genero/ 34 HOMENS E MULHERES NA GUERRA DE ESPADAS EM CRUZ DAS ALMAS – BA (1980-2018)24 Filipe Arnaldo Cezarinho25 RESUMO O objetivo foi investigar os saberes e as práticas dos homens e mulheres, no campo das relações de gênero, por meio da tradicional Guerra de Espadas em Cruz das Almas/ BA. Foram utilizadas, principalmente, fontes orais e digitais. A seleção dos (as) entre- vistados (as) seguiu o princípio de longa experiência com a manifestação cultural e, ao mesmotempo, pelo interesse em acessar a pesquisa, indicando o caráter público da escrita da História. As fontes digitais foram extraídas a partir do recurso Print Screen. A linha de pensamento seguiu as reflexões feitas por Durval Muniz de Albuquerque Júnior sobre o homem nordestino e a constituição dos corpos feminino e masculino. O principal resultado indica que a Guerra de Espadas não apenas conforma corpos em lugares esperados e impostos como, por outro lado, permite transgressões importantes nas relações de gênero. Palavras-chave: História; Guerra de Espadas; Relações de Gênero; Masculinidade; História Pública. ABSTRACT The purpose was to inquire the knowledges and practices of the men and women on relations gender field through the traditional Gerra de Espadas in Cruz das Almas, Bahia. It was used oral and digital sources. The selection of the interlocutors followed the principle of long time in experience with the cultural manifestation and, on the same time, for interesting to access researches, indicating the public character of History 24 A presente pesquisa é parte das investigações realizadas no mestrado em História entre os anos de 2016 a 2018, pela Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO). O texto aqui apresentado foi extraído de um dos capítulos da dissertação e reelaborado. Nesse sentido, grande parte da documentação arrolada – oral e digital – origina-se daquela pesquisa. Naquela oportunidade, o objetivo foi o de analisar o processo de criminalização da Guerra de Espadas. Para consultar a dissertação completa, ver: CEZARINHO, Filipe Arnaldo. A Guerra de Espadas em Cruz das Almas (BA) – (1980-2016). 2018. 195 f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Estadual do Centro-Oeste – UNICENTRO, Irati, 2018. 25 Doutorando em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). 35 writings. The sources were extracted from the print screen resource. The approach followed the author Durval Muniz de Albuquerque junior on the northearsten man and the man and women bodies constitution. The main result indicates that Guerra de Espadas doesn’t conform the bodies in expected places and obligated, but on the other hand, it allows important transgressions in the gender relations. Keywords: History; Guerra de Espadas; Gender Relations; Masculinity; Public History. APONTAMENTOS INICIAIS Na cidade de Cruz das Almas – BA, a Guerra de Espadas sem- pre foi vista por seus moradores e moradoras como maior expressão cultural. Homens e mulheres saem pelas ruas do município para confra- ternizar com suas espadas de fogo em mãos durante os dias 23 e 24 de junho, período de comemoração dos festejos de São João. Normalmente em grupos, os(as) espadeiros(as) adicionam o forró e o licor, estilo mu- sical e bebida alcóolica tradicionais, fomentando a coragem e adrenalina no momento da festa. A dinâmica é simples: em posições opostas, os grupos jogam suas espadas de fogo em direção aos outros e a guerra tem início. Antes de ser proibida, em 2011, a Guerra de Espadas, no dia 24 de junho, não tinha hora de começar e muito menos de acabar. Mesmo com o advento da criminalização, vê-se pelas ruas mais afastadas do centro, pessoas de todas as idades resistindo aos imperativos da lei no intuito de manterem viva sua tradição e principal pilar identitário, a Guerra de Espadas26. Contudo, para que toda essa movimentação pelas vias da urbe se efetive, são necessários meses de preparação e disciplinada atuação 26 Para maiores conhecimentos sobre a Guerra de Espadas, ver os trabalhos de: MELO, Luiz Fernando Basto de. Espadas de São João, da tradição à proibição. A legalidade da manifestação cultural na cidade de Cruz das Almas-BA. 2012. 62 f. Monografia (Direito) – Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB, Vitória da Conquista, 2012; OLIVEIRA, Adriana da Silva. Entre cruz e as espadas: práticas culturais e identidades no São João em Cruz das Almas – BA (1950-1990). 2012. 177 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual da Bahia – UNEB., Santo Antônio de Jesus, 2012; CARVALHO, Moacir. Brincando com fogo: origem e transformação da Guerra de Espadas em Cruz das Almas: In: ENECULT – Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura. 5., 2009. Salvador. Anais... Salvador, 2009. n/p. Disponível em: http://www.cult.ufba.br/enecult2009/19327.pdf. Acesso em: 10 mar. 2020. 36 de espadeiros e espadeiras durante o processo de produção das espadas. Descrever minuciosamente todo o percurso produtivo das espadas se- ria por demasiado cansativo27. Todavia, podemos, de modo elucidativo, indicar os principais passos para a sua elaboração. Para começo de con- versa, todo o empreendimento pode perdurar por cerca de três meses. As etapas são realizadas separadamente. Portanto, a apresentação abaixo serve apenas como modelo para melhor entendimento da produção das espadas: • Extração do bambu, cozimento e secagem sob o sol; • Extração do barro (argila), secagem sob o sol e pilagem; • Enceramento do barbante (sisal) com cera feita de breu, pa- rafina e óleo de cozinha; • Enrolar o bambu com o barbante; • Preparação da pólvora a partir dos seguintes materiais: sali- tre (nitrato de potássio), enxofre e carvão de umbaúba; • Pilagem da pólvora; • Enchimento do bambu com barro, pólvora e barro, sucessiva- mente, utilizando um macete (martelo de madeira) de apro- ximadamente 2kg e um socador (cilindro de ferro). Nessa fase, é comum que sejam atribuídas cerca de 150 macetadas na espada para melhor fixação do material no interior do bambu; • Feitura da broca (perfuração na parte superior da espada) com um pedaço de ferro similar a chave de fenda até al- cançar a pólvora localizada no centro do bambu. (Momento importante, pois exige perspicácia, sendo um dos elementos definidores de uma boa ou ruim espada); • Finalização do processo com a utilização de papel laminado nas extremidades da espada. 27 É possível encontrar todo o processo de produção das espadas, pormenorizado, em: PEIXOTO, Rafael Caldas Barros. A Guerra de Espadas em Cruz das Almas: cultura, turistificação e estigmatização. 2012. 134 f. Dissertação (Ciências Sociais) – Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB, Cachoeira, 2012. 37 As espadas, normalmente, são colocadas em dúzias para que ganhem um aspecto estético mais apropriado e, ao mesmo tempo, se- rem comercializadas. Cada espada pode pesar, aproximadamente, 500g e possui 30cm de comprimento. Obviamente que muitos(as) espadei- ros(as) reservam parte da produção para o próprio proveito, garantindo a diversão e, mais importante, a permanência da Guerra de Espadas. A imagem abaixo apresenta uma espada finalizada e tocada28. Figura 1: Espadas prontas e tocadas. Fonte 1: Disponível em: https://almanaquecruzalmense.wordpress.com/2015/09/19/ as-espadas-de-fogo-do-sao-joao-de-cruz-das-almas-e-a-sua-famosa-guerra-de- espadas-historia-tradicao-e-polemica/. Acesso em: 11 mar. 2020. 28 A palavra “tocar”, no contexto da Guerra de Espadas, refere-se ao ato de acender e lançar a espada. Nesse sentido, essa ação de tocar espadas está muito próximo do ato de tocar um instrumento musical, pois as espadas liberam um tipo de som grave e muito alto que são definidos por muitos(as) espadeiros(as) enquanto música para os ouvidos. O termo também indica outra condição importante. Os(as) mantenedores(as) da tradição usam a palavra “tocar”, enquanto pessoas alheias à tradição manejam, frequentemente, o termo “queimar”, como se as espadas fossem iguais aos outros fogos de artifícios. https://almanaquecruzalmense.wordpress.com/2015/09/19/as-espadas-de-fogo-do-sao-joao-de-cruz-das-almas-e-a-sua-famosa-guerra-de-espadas-historia-tradicao-e-polemica/ https://almanaquecruzalmense.wordpress.com/2015/09/19/as-espadas-de-fogo-do-sao-joao-de-cruz-das-almas-e-a-sua-famosa-guerra-de-espadas-historia-tradicao-e-polemica/ https://almanaquecruzalmense.wordpress.com/2015/09/19/as-espadas-de-fogo-do-sao-joao-de-cruz-das-almas-e-a-sua-famosa-guerra-de-espadas-historia-tradicao-e-polemica/38 É importante salientar que há divisões das tarefas no processo de produção das espadas. Adiantamos que essas alocações de homens e mulheres em fases distintas da produção caracterizam os imperativos sociais estabelecidos historicamente, socialmente e culturalmente sobre seus corpos. Por exemplo, não temos registros de que alguma mulher tenha realizado o enchimento das espadas com o socador e a barra de ferro, estando esse momento reservado exclusivamente aos homens. Por outro lado, é muito comum ver mulheres atuando no enceramento do cordão que enrola as espadas e nos instantes finais das espadas, com o colocar do papel laminado, por exemplo. Portanto, o objetivo proposto é investigar os saberes e as práticas das mulheres e dos homens, pela pers- pectiva das relações de gênero, a partir da Guerra de Espadas na cidade de Cruz das Almas – BA. APONTAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS Se mulheres e homens são designados(as) ao exercício de ativi- dades distintas na Guerra de Espadas, isso acontece por razão de que seus corpos, enquanto resultado de complexas relações de poder na so- ciedade, estão posicionados a partir de hierarquias. Os corpos, conforme dito por Durval Muniz de Albuquerque Júnior, produzidos pelas mãos humanas, são obrigados a estabelecerem performances. Ou seja, há pres- crito na sociedade quais sãos as práticas a serem realizadas por cada um(a). Nesse sentido, a carne, que se transformará em corpo, abre-se como recipiente que acumulará múltiplos saberes. Tais saberes começam a se cristalizar e, dessa maneira, são tidos como frutos da natureza, ele- mentos de uma essência do ser29. Ora, a Guerra de Espadas é uma tradição centenária que remete, automaticamente, ao nível da estrutura social e cultural. Os saberes her- dados e mantidos tendem a estratificar as mulheres em certos espaços e os homens em outros. As demandas dessas estruturas acabam sendo li- 29 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. (MAIS)CULINOS: outras possibilidades de corpo e gênero para as carnes sexuadas pela presença de um pênis. Outros Tempos, v. 17, n. 29, p. 260-281, 2020. 39 das, inconscientemente, como biológicas ou, na pior das hipóteses, como determinadas por seres sobrenaturais e por isso devem permanecer as- sim. Com isso, “as categorias culturais são convenções, são acordos, são consensos que, no entanto, são, muitas vezes, naturalizados, dado o grau de ancestralidade, de antiguidade, de tradicionalidade que possuem”30. Seria, então, a Guerra de Espadas uma prática tradicional que mera- mente reproduziria as hierarquias e saberes sobre os corpos de mulheres e homens? Na tentativa de responder o problema suscitado foi necessário buscar fontes que clareassem nossos caminhos. Os principais documen- tos elegidos para este trabalho foram: os orais e digitais. Traçaremos breves esclarecimentos sobre cada um deles. O critério de seleção das fontes orais partiu, primeiramente, pela experiência desses(as) espadeiros(as) com o processo de produção e com a dinâmica geral da Guerra de Espadas. O segundo motivo priorizou o gênero. Selecionamos uma espadeira e um espadeiro para compor o nosso trabalho. O terceiro, e último, relaciona-se com o caráter público da pro- dução do conhecimento histórico. Especificamente a espadeira Janaina, deixou claro o seu interesse em obter retorno da produção histórica cons- truída a partir de seu relato oral. Ou seja, essa dinâmica tem remodelado o fazer histórico, pois, agora, o público tem buscado acessar os resultados de nossas pesquisas. Se com as fontes orais esse movimento tem sido forte, as fontes digitais surgem como determinantes nesse processo de aproximação do público com o(a) historiador(a). Jurandir Malerba viu nas redes sociais digitais outra possibilidade de acessar a produção dos(as) profissionais em História sem que necessariamente recorrer às bibliotecas. Em suas palavras, “as plataformas digitais subverteram as bases da produção e cir- culação das narrativas sobre o passado”31. Todavia, as mídias digitais vêm abrindo disputas de autoridade sobre a produção da narrativa históri- ca, sendo que o público leigo, não apenas os(as) historiadores(as), pode 30 Ibid., p. 262. 31 MALERBA, Jurandir. Os historiadores e seus discursos públicos: desafios ao conhecimento histórico na era digital. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 37, n. 74, p. 135-154, 2017. p. 142. 40 dispor de conteúdos variados e gozar de visibilidade online: “While it may facilitate more open, democratic history making, the internet si- multaneously raises questions about gatekeeping, authority and who has the right to speak for the past”32. Dessa maneira, novas problemáticas surgem na era digital com relação à escrita da História e a autoridade do(a) historiador(a). Cabe frisar que os diálogos com os (as) colaboradores (as) não se deram apenas por meio da metodologia da história oral. A utilização constante de aplicativos em celulares – a exemplo do WhatsApp – facili- tou a troca de mensagens de texto, imagens, arquivos e muito mais. Essa relação não apenas contribuiu para a produção desta pesquisa como, também, provocou certa pressão para conhecer o seu resultado. As fontes digitais foram capturadas a partir da ferramenta Print Screen. Com o advento da plataforma Facebook muitos(as) espadeiros(as) têm deixado registros sobre a tradição, além da formação de grupos em defesa da Guerra de Espadas que disseminam conteúdos pela rede. Utilizamos para análise três imagens. Duas delas foram extraídas do grupo “Guerra de Espadas”. A outra imagem foi retirada de uma pági- na pessoal, com a devida permissão da proprietária. Mesmo assim, por questões éticas, resolvemos ocultar a sua identidade, assim como nos relatos orais. Os nomes dos(as) colaboradores(as) são fictícios. No caso de Janaina, ela mesma que desejou por esse nome. Em termos concretos, a articulação dessas fontes permitiu aces- sar os discursos e as práticas desses sujeitos inseridos na Guerra de Espadas. Concomitantemente, são os próprios espadeiros e espadeiras que falam por esses documentos e que participam ativamente da nossa operação historiográfica. AS ESPADAS FÁLICAS E AS MULHERES ESPADEIRAS São as práticas discursivas que constituem homens e mulhe- res. Andamos nessa linha de pensamento. Segundo Durval Muniz 32 FOSTER, Meg. Online and plugged in? Public History and historians in the digital age. Public History Review, v. 21, p. 1-19, 2014. p. 2. 41 de Albuquerque Júnior, o nordestino, desde sua invenção no começo do século XX, seria aquele homem viril, forte, valente e corajoso: “O nordestino é definido como um homem que se situa na contramão do mundo moderno, que rejeita suas superficialidades, sua vida delicada, artificial, histérica”33. Essa constituição do homem nordestino é vista por Albuquerque Júnior como resistência às iniciativas feminilizantes em voga. Interessa-nos, em seu texto, o seguinte: “O nordestino será inventado como o macho por excelência, a encarnação do falo [...]”34. Portanto, o simbolismo do falo faz-se fundamental para que entenda- mos de que maneira os corpos masculinos vão sendo produzidos e quais demandas são exigidas dos mesmos. Júnior, espadeiro, atualmente com 38 anos e sem emprego for- mal, faz “bicos” de eletricista na cidade de Cruz das Almas. Nos meses próximos do São João, ele conseguia desviar-se de suas funções infor- mais enquanto eletricista para adentrar no eixo da fabricação das espa- das, trabalho também informal, mas que lhe garantia considerável renda nesse período com a venda das mesmas. Com a proibição da Guerra de Espadas em 2011, Júnior tem buscado novas facetas para sobreviver. Nos dias atuais, Júnior passou a vender churrasquinhos em uma rua de seu bairro acompanhado por sua esposa. Ao rememorar sua infância, ele abre nossos olhares para ques- tões relacionadas à constituição do homem espadeiro. Como de costume na cidade, Júnior aprendeu desde cedo o ofício das espadas: Porque aqui
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