Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
2014 SiStema e OrganizaçãO de Saúde nO BraSil Prof.ª Margot Friedmann Zetzsche Copyright © UNIASSELVI 2014 Elaboração: Prof.ª Margot Friedmann Zetzsche Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. Impresso por: 362.1 Z61s Zetzsche, Margot Friedmann Sistema e organização de Saúde no Brasil / Margot Friedmann Zetzsche. Indaial : Uniasselvi, 2014. 300 p. : il ISBN 978-85-7830-838-4 1. Administração interna. 2. Saúde. 3. Saúde Pública. 4. Política de Saúde. 5. Organização e Métodos. I. Centro Universitário Leonardo da Vinci. III apreSentaçãO Caro acadêmico! Para conhecer o Sistema de Saúde Brasileiro, preparamos esta disciplina com o intuito de introduzi-lo(a) nesta complexa rede de serviços que conjuga instituições públicas e privadas e atende a um amplo leque de funções. Cuidar da saúde significa manter a nação em condições de progresso e trabalho, com uma população saudável e menores índices de adoecimento e transmissão de doenças. Uma tarefa destas é intersetorial e abrangente, e conhecer o conjunto do sistema irá situá-lo(a) melhor entre a multiplicidade de informações existentes. Passaremos, nesta disciplina, pela história das políticas públicas de saúde do país, o que significa que conheceremos também um pouco da história, propriamente dita, que explica muita coisa de como profissionais e sistema de saúde funcionam hoje. Também detalharemos a história do SUS, como este se constituiu durante a Reforma Sanitária Brasileira, como funciona, como está estruturado e sua legislação. Detalharemos as Políticas de Saúde Brasileiras que possuem programas específicos para a atenção básica, para as emergências, e para o enfrentamento de diversas problemáticas referentes a segmentos populacionais ou doenças e agravos específicos, como: HIV/AIDS; saúde do homem, saúde da mulher, saúde da criança, saúde do idoso, programa de controle da tuberculose, da dengue, e uma infinidade de outros. Estudaremos o mercado em saúde no Brasil: setor público e setor privado, seus modelos de financiamento; como funciona a complementaridade entre estes dois setores; como é a gestão da mão de obra qualificada em saúde e a empregabilidade das diversas profissões de saúde e suas funções; como funcionam os diversos níveis de atenção e como se trabalha em rede entre eles e como fica a parceria pública e privada dentro da rede. Como é um curso para gestores, falaremos sobre os financiamentos, sem os quais não se produz trabalho. E, finalmente, detalharemos o funcionamento de uma Secretaria de Saúde para que você possa praticar em atividades como discussões em grupo, autoatividades e, é claro, leitura e estudo. Desejamos bom estudo a você! Prof.ª Margot Friedmann Zetzsche IV Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade. Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos! NOTA V VI VII UNIDADE 1 – O SUS – SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE .................................................................. 1 TÓPICO 1 – SAÚDE COMO DIREITO DE TODOS E DEVER DO ESTADO............................ 3 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 3 2 O QUE É SAÚDE? A OPINIÃO DAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS ..................... 8 2.1 VIDA COM QUALIDADE NA SAÚDE APESAR DA DOENÇA ............................................ 12 2.1.1 Determinantes sociais da saúde (e da doença) ................................................................... 13 2.1.2 Desigualdades e saúde – respondendo às tendências globais ......................................... 15 2.1.3 Uma consideração semântica: paciente ou usuário? ......................................................... 18 2.2 AS CONDIÇÕES CRÔNICAS E A TRIPLA CARGA DE PROBLEMAS DE SAÚDE ............ 18 2.2.1 A inversão do modelo de atenção ........................................................................................ 23 2.2.2 Promoção da saúde e prevenção das doenças .................................................................... 27 2.2.3 Reabilitação e redução de dano ............................................................................................ 30 3 AS REDES DE ATENÇÃO À SAÚDE ............................................................................................... 30 3.1 UNIDADES DE SAÚDE, AMBULATÓRIOS, HOSPITAIS E SERVIÇOS DE EMERGÊNCIA ................................................................................................................................. 33 3.1.1 Como o usuário “passeia” dentro do Sistema – A referência e a contrarreferência ...... 34 4 TERCEIRIZAÇÃO E A RESPONSABILIZAÇÃO DO ESTADO ................................................ 35 4.1 ONGS, OSCIPS, PRESTADORES E ASSEMELHADOS ............................................................. 35 4.2 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE GLOBALIZAÇÃO DA ECONOMIA E AS POLÍTICAS DE ESTADO MÍNIMO .............................................................................................. 39 5 EPIDEMIOLOGIA E PLANEJAMENTO EM SAÚDE .................................................................. 44 5.1 EPIDEMIOLOGIA E NÍVEIS DE GOVERNABILIDADE .......................................................... 46 5.2 DATASUS – O BANCO DE DADOS DO SUS ............................................................................. 47 5.2.1 Sistemas específicos de informação ..................................................................................... 49 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 52 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 54 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 55 TÓPICO 2 – A CONSTRUÇÃO DO SUS – UMA HISTÓRIA DE MOBILIZAÇÃO POPULAR ........................................................................................................................... 57 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 57 2 O BRASIL E A ATENÇÃO À SAUDE ANTES DO SUS ............................................................... 60 3 OS PRIMEIROS EPIDEMIOLOGISTAS......................................................................................... 63 3.1 MEDIDAS SANITÁRIAS E HIGIENISTAS .................................................................................. 65 3.1.1 A Revolta da Vacina ............................................................................................................... 65 3.2 SANTAS CASAS DE MISERICÓRDIA, HOSPITAIS DE CARIDADE .................................... 66 4 AS CAIXAS DE PECÚLIO E PENSÃO ............................................................................................. 67 5 CONFERÊNCIAS NACIONAIS DE SAÚDE .................................................................................. 67 5.1 GUSTAVO CAPANEMA E A PRIMEIRA CONFERÊNCIA DE SAÚDE ................................ 67 5.2 DA SEGUNDA À OITAVA CONFERÊNCIA – UMA LONGA CAMINHADA .................... 68 6 A REFORMA SANITÁRIA BRASILEIRA ....................................................................................... 69 7 MOBILIZAÇÃO POPULAR E SOCIAL E O MOVIMENTO DAS UNIVERSIDADES ......... 70 8 OITAVA CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE – NASCE O SUS...................................... 72 SumáriO VIII 9 MODELOS DE SAÚDE INTERNACIONAIS ................................................................................. 74 9.1 CONFERÊNCIA MUNDIAL DE ALMA-ATA – CUIDADOS PRIMÁRIOS DE SAÚDE ..... 74 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 75 9.2 CONFERÊNCIA MUNDIAL DE OTAWA – A CARTA DE OTAWA ....................................... 78 10 A CONSTITUIÇÃO CIDADÃ DE 1988 – SAÚDE É DIREITO DE TODOS .......................... 78 10.1 LEIS Nº 8.080/90 E Nº 8.142/90 – A REGULAMENTAÇÃO DO SUS .................................... 80 11 A CONTINUIDADE DAS PROPOSTAS DA REFORMA SANITÁRIA BRASILEIRA ....... 81 12 AS NOVAS CONFERÊNCIAS DE SAÚDE ................................................................................... 81 13 OS PACTOS EM DEFESA DO SUS ................................................................................................ 81 RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 84 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 85 TÓPICO 3 – PRINCÍPIOS LEGAIS DO SUS ..................................................................................... 87 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 87 2 PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS ....................................................................................................... 88 2.1 UNIVERSALIDADE ........................................................................................................................ 88 2.2 INTEGRALIDADE .......................................................................................................................... 88 2.2.1 Responsabilização e vínculo ................................................................................................. 91 2.2.2 Complementaridade dos setores público e privado .......................................................... 93 2.2.3 Como o SUS regulamenta outras formas de atenção à saúde .......................................... 94 2.3 IGUALDADE .................................................................................................................................... 94 2.3.1 Equidade – (quando a igualdade não é bem igual) ........................................................... 95 2.3.2 SISREG – Os sistemas de regulação e as filas ..................................................................... 96 2.4 DESCENTRALIZAÇÃO ................................................................................................................. 96 2.4.1 Territorialização ...................................................................................................................... 96 2.4.1.1 A unidade de saúde do bairro como porta de entrada do sistema .............................. 98 2.4.1.2 Distritos sanitários, áreas e microáreas ............................................................................ 98 2.5 A PARTICIPAÇÃO POPULAR: OS CONSELHOS DE SAÚDE ............................................... 98 2.5.1 CONASS e CONASEMS – O que é isto? ............................................................................. 99 3 EDUCAÇÃO EM SAÚDE..................................................................................................................100 RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................102 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................103 UNIDADE 2 – O MERCADO EM SAÚDE NO BRASIL ................................................................105 TÓPICO 1 – O SETOR PÚBLICO E O SETOR PRIVADO ............................................................107 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................107 2 O QUE SÃO E COMO FUNCIONAM OS SISTEMAS NACIONAIS DE SAÚDE ...............109 3 EMPRESAS PÚBLICAS E EMPRESAS PRIVADAS DE SAÚDE .............................................115 4 COMPLEMENTARIDADE DOS SETORES PÚBLICO E PRIVADO ......................................115 RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................118 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................119 TÓPICO 2 – LEGISLAÇÃO, FUNCIONAMENTO E FINANCIAMENTO DO SISTEMA PÚBLICO ..........................................................................................................................121 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................121 2 O MERCADO EMPREGADOR NO SISTEMA PÚBLICO ........................................................122 3 A GESTÃO NO SISTEMA PÚBLICO – TÉCNICA OU POLÍTICA? .......................................124 4 PERFIL DO GESTOR EM SAÚDE DO SETOR PÚBLICO ........................................................125 5 CONSÓRCIOS INTERMUNICIPAIS DE SAÚDE ......................................................................128 IX 6 INSTÂNCIAS GESTORAS COLEGIADAS..................................................................................128 6.1 BIPARTITE E TRIPARTITE – O QUE É ISTO? ..........................................................................129 7 COSTURANDO UM POUCO DE TUDO: A REDE DE ATENÇÃO À SAUDE .....................130 8 FINANCIAMENTO DO SISTEMA PÚBLICO DE SAÚDE .......................................................135 8.1 O ORÇAMENTO DA SEGURIDADE SOCIAL .........................................................................139 8.2 SISTEMAS DE GESTÃO E FINANCIAMENTO MUNICIPAL ..............................................141 8.3 O FUNDO MUNICIPAL DE SAÚDE..........................................................................................141 8.4 O PLANO MUNICIPAL DE SAÚDE ..........................................................................................145 8.5 PACTUAÇÕES E PROGRAMAÇÕES ........................................................................................147 8.6 PPI – PROGRAMAÇÃO PACTUADA INTEGRADA ..............................................................147 8.7 SIOPS – SISTEMA DE INFORMAÇÃO DE ORÇAMENTOS PÚBLICOS EM SAÚDE ......149 8.8 JUDICIALIZAÇÃO, GASTO PÚBLICO E FINANCIAMENTO .............................................149 9UNIÃO, ESTADO E MUNICÍPIO – DIVISÃO DE CONTAS E DE COMPETÊNCIAS ......150 9.1 MONITORAMENTO DOS RECURSOS FINANCEIROS E DE RESULTADOS ...................151 9.2 DOTAÇÕES ORÇAMENTÁRIAS POR BLOCOS: ORÇAMENTO FIXO E EXTRATETO ...............................................................................................................................153 10 ECONOMIA DE ESCALA E AS REDES DE ATENÇÃO À SAÚDE – (RAS) .......................154 10.1 SETOR PRIMÁRIO E PREVENÇÃO – ECONOMIA DE ESCALA E INVESTIMENTOS .......................................................................................................................155 11 REGRAS PARA O REPASSE DE RECURSOS ............................................................................157 12 COM A PALAVRA: AS CÂMARAS TÉCNICAS ........................................................................157 RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................159 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................160 TÓPICO 3 – LEGISLAÇÃO, FUNCIONAMENTO E FINANCIAMENTO DO SETOR PRIVADO .........................................................................................................................161 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................161 2 SETOR PRIVADO DE ASSISTÊNCIA À SAÚDE NO BRASIL – HOSPITAIS E CLÍNICAS ............................................................................................................................................161 3 A ASSISTÊNCIA MÉDICA (E HOSPITALAR) PRIVADA NO BRASIL NOS ANOS ANTES DO SUS .....................................................................................................................163 3.1 O QUE MUDA NOS HOSPITAIS DEPOIS DE 1990? ...............................................................164 3.2 FORMAS DE GESTÃO DE HOSPITAIS .....................................................................................165 3.3 HOSPITAIS E CLÍNICAS – REGIME DE FUNCIONAMENTO .............................................167 4 REDE PRIVADA E FINANCIAMENTO PÚBLICO .....................................................................168 4.1 O MERCADO EMPREGADOR E A GESTÃO NO SISTEMA PRIVADO: TÉCNICA OU POLÍTICA? ...........................................................................................................169 4.2 PERFIL DO GESTOR EM SAÚDE NO SETOR PRIVADO ......................................................169 5 ANS - AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE SUPLEMENTAR E A REGULAÇÃO DOS CONVÊNIOS .............................................................................................................................170 6 MARKETING E PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS EM SAÚDE .....................................................175 7 A EMPRESA PRESTADORA DE SERVIÇOS DE SAÚDE .........................................................176 8 PROGRAMAS DE MONITORAMENTO DA QUALIDADE EM SAÚDE ............................177 8.1 AMAQ – “UM FANTASMA ASSOLA AS UNIDADES DE SAÚDE!” ...................................178 8.2 QUALIDADE E REGISTROS – PARCERIA INSEPARÁVEL ..................................................180 8.3 ACREDITAÇÃO HOSPITALAR ..................................................................................................180 8.4 HOSPITAL AMIGO DA CRIANÇA ............................................................................................181 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................182 RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................183 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................184 X TÓPICO 4 – RECURSOS HUMANOS EM SAÚDE ......................................................................185 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................185 2 COMPETÊNCIAS PROFISSIONAIS ............................................................................................186 2.1 O PAPEL DAS ENTIDADES DE CLASSE E ASSOCIAÇÕES CIENTÍFICAS. COMO SE FORMA UM PROFISSIONAL DE SAÚDE. COMO SE REGULAMENTAM AS CATEGORIAS PROFISSIONAIS ..........................................................................................187 2.2 AS ASSOCIAÇÕES CIENTÍFICAS .............................................................................................190 2.3 ANÁLISE E DESCRIÇÃO DE FUNÇÕES DE CARGOS EM SAÚDE ..................................190 3 O PROCESSO DE TRABALHO EM SAÚDE - “UMA CARTOGRAFIA DO TRABALHO VIVO” ..........................................................................................................................190 4 A GESTÃO DO TRABALHO EM SAÚDE ...................................................................................192 5 GESTÃO DE PESSOAS NOS SETORES PÚBLICO E PRIVADO ...........................................193 6 EDUCAÇÃO PERMANENTE EM SAÚDE...................................................................................194 7 TRABALHO CRIATIVO: A VIDA DA ESPÉCIE ........................................................................195 RESUMO DO TÓPICO 4.....................................................................................................................197 AUTOATIVIDADE ..............................................................................................................................198 UNIDADE 3 – POR DENTRO DE UMA SECRETARIA DE SAÚDE (POLÍTICAS MAIS RELEVANTES DO SISTEMA DE SAÚDE) ..............................................199 TÓPICO 1 – O GESTOR PÚBLICO E A LEGISLAÇÃO ...............................................................201 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................201 2 GESTÃO MUNICIPAL E A LEGISLAÇÃO – “NAVEGANDO NUM MAR DE PORTARIAS E NORMAS” ..............................................................................................................202 2.1 ORGANOGRAMA FUNCIONAL DE UMA SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE ....205 2.2 FUNÇÃO DO CONSELHO MUNICIPAL DE SAÚDE (CMS) ..............................................207 2.3 A INTERSETORIALIDADE ........................................................................................................207 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................208 RESUMO DO TÓPICO 1.....................................................................................................................214 AUTOATIVIDADE ..............................................................................................................................215 TÓPICO 2 – NÍVEIS DE ATENÇÃO: PRIMÁRIO, SECUNDÁRIO E TERCIÁRIO ...............217 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................217 2 NÍVEL DE ATENÇÃO PRIMÁRIO ................................................................................................218 2.1 VOLTANDO À CONFERÊNCIA DE ALMA-ATA ..................................................................218 2.2 A ATENÇÃO BÁSICA - PORTA DE ENTRADA DO SISTEMA DE SAÚDE ......................220 2.3 A ESTRATÉGIA DE SAÚDE DA FAMÍLIA ..............................................................................222 2.3.1 PACS – Programa Nacional de Agentes Comunitários de Saúde ................................223 2.3.2 Organização dos agentes comunitários de saúde...........................................................225 2.3.3 Responsabilização e Vínculo: A “1ª Chave” do Funcionamento da ESF .....................226 2.3.4 A Rede de Atenção à Saúde: A “2ª Chave” do Funcionamento da ESF .......................229 3 NÍVEL DE ATENÇÃO SECUNDÁRIO .........................................................................................230 3.1 A FARMÁCIA MUNICIPAL .......................................................................................................230 3.1.1 Medicamentos de alto custo ...............................................................................................232 3.1.2 Tecnologia e ontologia – uma reflexão necessária ..........................................................232 4 NÍVEL DE ATENÇÃO TERCIÁRIA ..............................................................................................234 4.1 HOSPITAIS PÚBLICOS E HOSPITAIS PRIVADOS: ATÉ ONDE VAI A COBERTURA DOS CONVÊNIOS? ......................................................................................................................234 4.1.1 Tratamentos oncológicos - quimioterapia e radioterapia ..............................................234 4.2 TRANSPORTE DE PACIENTES: UMA LOGÍSTICA COMPLEXA ......................................235 XI LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................236 RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................238 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................239 TÓPICO 3 – PROGRAMAS E POLÍTICAS DE SAÚDE ................................................................241 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................241 2 GERÊNCIA NACIONAL DE IMUNIZAÇÕES ............................................................................241 2.1 A REDE DE FRIO ...........................................................................................................................243 3 POLÍTICA NACIONAL DE VIGILÂNCIA EM SAÚDE ............................................................244 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................246 3.1 PROGRAMAS ESPECÍFICOS DE COBERTURA ......................................................................250 3.1.1 Dengue ...................................................................................................................................250 3.1.1.1 O controle do vetor ............................................................................................................252 3.1.2 Tuberculose ..................................................................................................................................253 LEITURA COMPLEMENTAR 2 ..........................................................................................................254 3.1.3 Hanseníase .............................................................................................................................255 3.1.4 “Doenças negligenciadas” - Chagas, Leishmaniose e outras .........................................257 LEITURA COMPLEMENTAR 3 ..........................................................................................................259 3.1.5 HIV – AIDS ............................................................................................................................261 3.2 POLÍTICA NACIONAL DE ATENÇÃO BÁSICA ....................................................................264 3.3 POLÍTICA NACIONAL DE ALIMENTAÇÃO E NUTRIÇÃO ...............................................264 LEITURA COMPLEMENTAR 4 ..........................................................................................................270 3.4 POLÍTICA DE ATENÇÃO MATERNO-INFANTIL NA ATENÇÃO BÁSICA E A IMPORTÂNCIA DA QUALIDADE DOS REGISTROS ............................................................272 3.4.1 O SISVAN – Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional .........................................273 3.5 SAÚDE SEXUAL E REPRODUTIVA ..........................................................................................274 3.6 O BRASIL SORRIDENTE E A POLÍTICA NACIONAL DE SAÚDE BUCAL ......................275 LEITURA COMPLEMENTAR 5 ..........................................................................................................276 3.7 A RAPS – REDE DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL - SAÚDE MENTAL E SAÚDE COLETIVA ......................................................................................................................................278 3.7.1 A psiquiatria asilar e a reforma psiquiátrica .....................................................................280 3.7.2 Os CAPS – modelo substitutivo de cuidado .....................................................................283 3.7.3 Internação compulsória – “limpeza da cidade” ou tratamento? ...................................284 RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................287 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................290 ANEXO ....................................................................................................................................................291 REFERÊNCIAS .......................................................................................................................................293 XII 1 UNIDADE 1 O SUS – SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS Nossos objetivos para esta unidade são para que você, acadêmico: conheça os conceitos internacionais de saúde e prevenção; entenda a saúde como direito; familiarize-se com a história de implantação do SUS; conheça os princípios do SUS; contextualize a história de nosso país com a história do SUS; entenda os diversos níveis de atenção e a sua complementariedade com o setor privado. Esta unidade está dividida em três tópicos. No final de cada um deles, você encontrará atividades visando à compreensão dos conteúdos apresentados. TÓPICO 1 – SAÚDE COMO DIREITO DE TODOS E DEVER DO ESTADO TÓPICO 2 – A CONSTRUÇÃO DO SUS – UMA HISTÓRIA DE MOBILIZAÇÃO POPULAR TÓPICO 3 – PRINCÍPIOS LEGAIS DO SUS 2 3 TÓPICO 1 UNIDADE 1 SAÚDE COMO DIREITO DE TODOS E DEVER DO ESTADO 1 INTRODUÇÃO “Em última análise o desafio é político, exigindo um engajamento contínuo pela sociedade brasileira como um todo, para assegurar o direito à saúde para todos os brasileiros.” (VICTORA, César et al. In: THE LANCET. Saúde no Brasil, maio, 2011) Algumas palavras sobre o SUS – Sistema Único de Saúde De acordo com os dados do DATASUS, a população residente no Brasil em 2012 era de 193.976.530 habitantes. Este fato, somado à dimensão continental do país, e sua diversidade geográfica, étnica e cultural constituem um desafio de grandes dimensões para a governabilidade e para a gestão dos diversos sistemas que garantem a vida com qualidade e dignidade para todos que nele residem. NOTA DATASUS é o banco de dados do SUS e está disponível à consulta pública e acessível eletronicamente. Falaremos muito dele nesta disciplina. Acesso: <www.datasus. gov.br>. O desafio às gestões de políticas de alcance populacional, como as áreas da saúde e da educação, entre outras, está lançado. A cada dia se torna mais evidente a necessidade de preparo técnico e instrumentação daqueles que estão nas gerências e coordenações das políticas públicas na esfera governamental e nos serviços privados que com ela se inter-relacionam. Competência administrativa,visão política e gerencial, profundo conhecimento da história do país e de sua dinâmica social, visão epidemiológica e crítica, e visão ontológica – visão de respeito e reconhecimento do ser humano UNIDADE 1 | O SUS – SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE 4 – (alvo dos programas e políticas de saúde) são requisitos mais que necessários àquele ou àquela que vai trabalhar em gestão de saúde, quer seja de caráter público ou privado. O Sistema Único de Saúde Brasileiro, que doravante será chamado neste caderno pela sigla SUS, constitui um serviço nacional de saúde de características ímpares no mundo. Nosso país, embora inserido em uma economia de mercado globalizada, com todas as implicações sociais que isto traz, tem um sistema de saúde estatizado, o que significa que a saúde, no Brasil, é um direito garantido pela Constituição Federal e que deverá ser assegurado pelo Estado Brasileiro. NOTA Trabalhar com políticas públicas de saúde em nossos dias é um “fazer saúde” num mundo de insustentáveis desigualdades sociais e em notável piora das condições de vida e trabalho. A este cenário econômico mundial, que a cada dia aumenta o número de miseráveis, Breilh - autor de Epidemiologia crítica: ciência emancipadora e interculturalidade – chama de “holocausto neoliberal” ou, com não menos veemência, de “cenário montado em favor da morte”. (BREILH, 2006, p. 26-27). Não é possível ignorar o aumento da desigualdade decorrente das práticas econômicas e sociais do mercado globalizado. E seus impactos em nosso país, apesar dos indicadores positivos de desenvolvimento. Apesar de regulamentado há quase 23 anos pelas leis nº 8.080/90 e nº 8.142/90, o SUS, tal qual foi concebido, ainda não foi totalmente implantado. Dir-se-ia que se trata de um processo contínuo de construção, sujeito a muitas variáveis e controvérsias. Há pressões políticas e econômicas, de muitas direções e demandas profissionais, que se chocam com interesses do SUS, como mostra o polêmico projeto do Ato Médico. Também, na pauta de debates do momento em que está sendo escrito este Caderno de Estudos, figura a discussão do projeto Mais Médicos, lançado em julho de 2013, pela presidente da República Dilma Rousseff, que tenta organizar a distribuição de médicos para áreas remotas do território nacional. Discussões à parte, estes debates mostram que apesar de regulamentado e em franca expansão, o SUS necessita de reformas profundas. Reformas que também devem atingir a universidade e a sociedade, ainda fortemente dividida em classes, o que se reflete no comportamento dos profissionais de saúde e seu compromisso e atuação nas equipes multiprofissionais e com o povo brasileiro, de que fazem parte. TÓPICO 1 | SAÚDE COMO DIREITO DE TODOS E DEVER DO ESTADO 5 A saúde é item de relevância pública e de governabilidade. Isto significa que se a saúde não funcionar, o governo também não funcionará, ou terá a sua credibilidade comprometida. Para que um sistema de saúde funcione bem, precisa estar protegido por leis. E o cumprimento destas mesmas leis requer a ação dos poderes Executivo e Judiciário. Proteger a saúde da população e a rede de serviços que dela se encarrega requer, muitas vezes, que se acione a justiça. Você de vez em quando não ouve falar, por exemplo, que alguém acionou o Ministério Público por causa de algum problema de saúde? O SUS também é único porque tem a mesma filosofia de atuação em todo o território nacional. Todos os serviços particulares e filantrópicos que a ele prestam serviços sob a forma de convênios devem se submeter às mesmas leis ou à mesma lógica de atuação do Sistema. A construção e a implantação do SUS foram frutos de anos de reflexão, discussão, debate e mobilização popular. Este é um dos pilares de seu funcionamento: o Controle Social ou participação popular. O Controle Social, que significa a participação popular na administração, prestação de contas, auditorias, enfim, em qualquer lugar onde o SUS preste seus serviços, se trata de um dos princípios fundamentais do SUS. E foi este o ponto mais polêmico de sua implantação, no ano de promulgação de sua lei, em 1990. NOTA A parte da Lei no 8.080/90, que tratava da participação popular, sofreu veto presidencial por Fernando Collor de Mello, na época presidente da República, e foi aprovada meses mais tarde, sob intensa pressão popular, como Lei no 8.142/90. (BRASIL, 1990). Promoção de saúde, prevenção de agravos e vigilância em saúde são fortes áreas para as quais o SUS é o maior provedor, pois estas geralmente não interessam à iniciativa privada. No entanto, a legislação e fiscalização que vai nos garantir a tranquilidade de ingerirmos um alimento, consumir uma marca de remédio, ou beber um copo de água, seja ela mineral e comercializada ou água da rede pública, está garantida, em última instância, pelas amplas áreas de atuação do SUS. Você já parou para pensar que toda a água que a gente bebe, seja engarrafada ou de torneira, precisa ser fiscalizada? UNIDADE 1 | O SUS – SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE 6 FIGURA 1 – BEBENDO ÁGUA FISCALIZADA FONTE: <https://encrypted-tbn1.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcQFhlj4VSJZ8x8- RZK1Z3JiUcBSVlQgp6As-YKo6iDKBEK2DhAjww>. Acesso em: 3 out. 2013. O SUS é o grande financiador das ações de vigilância para que as doenças contagiosas como a raiva, a dengue, a tuberculose, as gripes como H1N1, entre outras, estejam sob controle e tenham estratégias precisas e definidas de enfrentamento, notificação de eventos, prevenção e tratamento eficaz. Os serviços privados de saúde têm concentrado seus investimentos em áreas que lhes proporcionam retorno financeiro, como os setores hospitalares e tecnologia diagnóstica. São em sua maioria serviços de médio e alto custo e atendem sob a forma de convênios também ao SUS, cuja rede de serviços próprios é insuficiente para fazer frente à crescente demanda. Muitas vezes ouvimos falar mal do SUS. A mídia é impiedosa em denunciar filas, hospitais lotados, e problemas no atendimento. Tal fato confere ao sistema uma visibilidade negativa. É importante que haja liberdade de imprensa e que as denúncias cheguem ao conhecimento da população. Mas a imprensa costuma mostrar muito mais os defeitos do sistema. Dificilmente se vê uma reportagem sobre um serviço que está funcionando bem. O resultado é uma imagem ruim do SUS em geral, o que também não corresponde com a realidade. Vejamos alguns números do SUS para um ano: TÓPICO 1 | SAÚDE COMO DIREITO DE TODOS E DEVER DO ESTADO 7 • O SUS assume quase que integralmente a assistência aos usuários portadores de HIV, doentes renais crônicos (hemodiálises), maioria dos transplantes e assistência e tratamento do câncer. • 113 milhões de atendimentos pelo SAMU. • Mais de 2 milhões de partos/ano. • 150 milhões de consultas médicas. • 15.000 transplantes. • Distribuição anual de mais de 200 milhões de preservativos. • 185.000 usuários recebendo terapia antirretroviral (para HIV/AIDS). • Mais de um milhão de internações por mês. • 60.000 unidades de saúde. • 85% de todos os procedimentos em tratamento de saúde do país. FONTE: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/sus/index.php>; <http://www.youtube.com/ watch?feature=player_detailpage&v=lZ4wYSWcgUc>. Acesso em: 2 out. 2013. Estes são dados do ano de 2009 e que podem ser acessados no sistema DATASUS. Os números mostrados acima são uma pequena amostragem, mas podem lhe dar ideia do tamanho do SUS. Naturalmente que estes números ainda estão longe da cobertura ideal desejada, mas, ainda assim, são representativos do enorme desafio que este país enfrenta em termos de saúde pública. O SUS, tendo como porta de entrada a Estratégia de Saúde da Família – ESF, apesar das controvérsias, segue em expansão, sendo de longe, nos dias de hoje, o maior mercado empregador dos egressos das graduações na área da saúde [...]. Não obstante todos os entraves e contradições decorrentes do desenvolvimento do modelo de medicina privatista e de alto custoem nosso país, respaldada por lobbys poderosos, existe um significativo contingente populacional dependente exclusivamente da assistência à saúde que o Estado pode e deve prestar. Outros, ao entrar nos critérios de exclusão de seus planos privados, ou perder a cobertura por desemprego ou inadimplência, passam a depender exclusivamente da assistência prestada pelo Estado. Exemplificando o fato: somente o SUS cobre integralmente tratamentos para AIDS, câncer, doenças transmissíveis – pelo risco e ou alto custo que representam. (ZETZSCHE, 2009, p. 39). O SUS é uma conquista de todos os brasileiros, e assim deve ser conhecido por aqueles que trabalham na área da saúde. E como todas as conquistas sociais, podemos dizer que é um processo contínuo. Isso depende da fiscalização, participação política e debate popular para sua manutenção e funcionamento. UNIDADE 1 | O SUS – SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE 8 NOTA ESF – Estratégia de Saúde da Família UBS – Unidades Básicas de Saúde USF – Unidades de Saúde da Família Estas siglas doravante são utilizadas neste caderno. A ESF e os dois tipos de unidades acima constituem a porta de entrada do sistema, isto é, o território onde o usuário vive, e onde é cadastrado no sistema e recebe os cuidados em nível básico (primário). É a partir deste nível que será encaminhado aos níveis de maior complexidade, como hospitais e especialistas. Estes conceitos estão detalhados mais à frente neste Caderno de Estudos. 2 O QUE É SAÚDE? A OPINIÃO DAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS Quando falamos em saúde e suas definições, é bom pautar-se pelas organizações internacionais que reúnem a opinião de muitos especialistas de diversas nacionalidades e nas cartas ou declarações produzidas nas diversas conferências internacionais em que se reuniram. Estas devem ser conhecidas por todos aqueles que vão trabalhar com saúde, principalmente os profissionais ligados à gestão em saúde. A definição de saúde que se tornou mais conhecida é a da OMS – Organização Mundial de Saúde – e que é quase parecida com a noção de felicidade: “Saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doenças”. <http://pt.wikipedia.org/wiki/Sa%C3%BAde>. Ora, se pensarmos neste estado de completo bem-estar, chegaríamos à conclusão de que a maioria de nós não conseguiria se enquadrar nestes parâmetros, pois nela o conceito de saúde está muito próximo do conceito de felicidade. No entanto, este é o enunciado que está no preâmbulo da Constituição da Organização Mundial da Saúde, texto conjunto redigido na época de sua fundação. NOTA OMS – Organização Mundial de Saúde – também conhecida pela sigla WHO – World Health Organization, foi fundada em 7 de abril de 1948, logo após o fim da Segunda Guerra Mundial e teve entre seus 61 países fundadores o Brasil. A data de sua fundação em 7 de abril tornou-se conhecida como o Dia Mundial da Saúde. Os países membros da OMS reúnem-se anualmente nas Assembleias Mundiais de Saúde, que têm caráter deliberativo. TÓPICO 1 | SAÚDE COMO DIREITO DE TODOS E DEVER DO ESTADO 9 Apesar de utópica, ainda é esta a definição mais conhecida e aceita e poderíamos dizer que é um “horizonte a se ter em vista” quando se quer fazer e produzir saúde. Vista desta forma, a amplitude do escopo de ações em saúde vai abranger intervenções e estratégias nos mais variáveis setores, como meio ambiente, sustentabilidade, manejo agrícola, controle de endemias e pandemias, definição dos níveis aceitáveis de desenvolvimento e qualidade de vida, saneamento básico, manejo de recursos hídricos e naturais, ambientes de trabalho, acesso ao lazer, educação, moradia, entre tantos outros, pois é nestas boas condições de vida que a saúde é mais fácil de se obter e de se conservar. A OMS, da qual falamos há pouco, é uma organização internacional, que apoia os governos e ajuda a instituir pactos e políticas de saúde internacionais e cujas publicações e acordos são de grande ajuda aos governos e programas nacionais para definir metas de saúde e indicadores de qualidade de vida saudável e linhas gerais de enfrentamento das doenças mais comuns. Mas há quem discuta o poder de decisão da OMS, pois esta organização passou, a partir dos anos 90, a atuar muito perto das políticas do Banco Mundial (MATTA, 2005). Desta forma, programas nacionais obtêm o respaldo internacional. Poderíamos dizer também, que quem tem a “última palavra” no assunto saúde é a OMS, porque ela reúne o consenso de especialistas das mais variadas áreas de conhecimento de todos os lugares do planeta. “O Brasil se encontrava entre as 61 nações signatárias da Constituição da OMS em 1946, e um brasileiro, Marcolino Candau, foi seu diretor-geral durante quase 20 anos (1953–1973), a mais longa permanência nesse posto na história da OMS”. (BUSS, 2011, p. 2). RELEMBRANDO: Organização Mundial de Saúde: Instituição especializada das Nações Unidas. Foi fundada em 7 de abril de 1948 com o objetivo de apoiar a cooperação internacional para a melhoria das condições de saúde. As ações da OMS incluem o controle de epidemias, emprego de medidas de quarentena, estandardização de medicamentos, regulamentação sanitária e o planejamento e a execução de campanhas de vacinação, rastreio e prevenção de doenças nomeadamente através de informação prestada às populações. A instituição é financiada pelas contribuições anuais dos estados membros e tem sede em Genebra (Suíça). FONTE: OMS. <http://www.who.int/es/index.html>. Acesso em: 18 ago. 2013. UNIDADE 1 | O SUS – SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE 10 NOTA Você sabia que a organização internacional de saúde mais antiga do mundo é a OPAS, Organização Pan-americana de Saúde, que foi fundada nas Américas em 1902 para o enfrentamento de uma epidemia de febre amarela? E que a OPAS juntou seus esforços aos da OMS, Organização Mundial de Saúde, quando esta foi fundada, engajando as políticas de ambos os organismos internacionais, sendo em geral citados juntos nas Américas como OPAS/OMS? Sugerimos a você, acadêmico(a), consultar o portfólio da OPAS/OMS que está <http://www.paho.org/bra/index.php?option=com_docman&task=doc_details&gid=1371&tm pl=component&Itemid=801>. NOTA Na época do surgimento da “hegemonia” da OMS, a OPAS era uma instituição muito mais poderosa e atuante, e esta transição, segundo Matta (2005), não foi exatamente uma coisa pacífica. O mesmo autor também menciona que as entradas de bancos internacionais para prestar apoio aos investimentos em saúde a partir dos anos 90 fizeram com que a OMS perdesse parte de sua credibilidade.Por orientar políticas internacionais que eram submissas às orientações do BIRD – Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento, ao Banco Mundial e ao FMI, Fundo Monetário Internacional. E a saúde mental, faz parte da saúde? Foi a OMS que primeiramente incluiu a saúde mental no conceito de saúde. Saúde mental tem sido um termo utilizado para determinar um nível de qualidade da vida psíquica, cognitiva e emocional e, ainda, ausência de doenças mentais, que possibilite o desenrolar da vida do indivíduo dentro de suas capacidades esperadas. TÓPICO 1 | SAÚDE COMO DIREITO DE TODOS E DEVER DO ESTADO 11 FIGURA 2 – SAÚDE MENTAL FONTE: <www.Google.combr/imghp>. Acesso em: 3 out. 2013. A definição de saúde mental pode ainda ser mais controversa de que a definição de saúde, pois a maioria de nós, membros da espécie humana, já passou por períodos de intenso sofrimento mental e psíquico diante de dificuldades comuns da vida. E também porque a sociedade em geral considera saudável “aquele que é capaz de produzir”, isto é, o indivíduo que se encaixa na vida produtiva assim como a comunidade a enxerga, e que não significa necessariamente uma vida saudável. Os altos índices de LER e DORT (lesões por esforços repetitivos, e doenças ocupacionais referentes ao trabalho), mais os afastamentos por depressões, o abuso de álcool e outras drogas entre os trabalhadores, comprovamque estar inserido no mercado formal de trabalho e produzindo não é indicador de que o trabalho produza saúde psíquica ou contribua para a conservação da mesma. Outra das definições de saúde, conhecida da OMS e mais utilizada no seu Escritório Regional Europeu, define a saúde como: A medida em que um indivíduo ou grupo é capaz, por um lado, de realizar aspirações e satisfazer necessidades e, por outro, de lidar com o meio ambiente. A saúde é, portanto, vista como um recurso para a vida diária, não o objetivo dela; abranger os recursos sociais e pessoais, bem como as capacidades físicas, é um conceito positivo. FONTE: OPAS/OMS Brasil. <http://www.paho.org/bra/index.php?option=com._content&view= article&id=885&Itemid=672>. Acesso em: 18 ago. 2013. UNIDADE 1 | O SUS – SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE 12 Este conceito mostra bem uma visão de funcionamento da saúde, ou seja, como o indivíduo vive e trabalha; como afeta a natureza e seus entornos, e como se relaciona com seu ambiente e com as pessoas de sua convivência. Esta é uma visão funcional que interessa muito aos profissionais da saúde, principalmente aqueles dedicados à saúde pública. Mais um conceito importante para ter em mente quando falamos em saúde é que não existe separação real entre os seus setores de âmbito público e de âmbito privado individual, pois quando ocorre um agravo à saúde, – como uma epidemia, ou um vazamento de substância tóxica no ambiente – são afetados indivíduos (campo privado da saúde – individual) e coletividade (campo coletivo ou público da saúde – populacional). 2.1 VIDA COM QUALIDADE NA SAÚDE APESAR DA DOENÇA Com base no quadro atual de crescimento de doenças crônicas que inserem o indivíduo em uma rede de cuidados permanentes, e ainda falando sobre o conceito de saúde, poderíamos dizer: é possível ter vida com qualidade, apesar de uma doença crônica não curável e que requer atenção contínua, e ser o “mais saudável possível” apesar da doença. Exemplificamos com uma pergunta para você leitor pensar, lembrando que o diabetes não tem cura, mas pode ser cuidado, compensado e tratado. Quem tem a vida mais saudável? Um diabético, na casa dos quarenta anos, que está no peso adequado, exercita-se todos os dias e mantém uma dieta saudável, com índices glicêmicos adequados, ou um jovem de 20 anos com todos os exames normais, mas com obesidade, sedentário, uso abusivo de álcool e comportamento de risco no trânsito? Provavelmente, você escolherá o primeiro, o diabético, como o mais saudável, apesar de portar uma doença. Isto é o conceito ampliado de saúde: vida com qualidade apesar de uma doença ou limitação crônica. Esta reflexão nos mostra que apesar do envelhecimento, da limitação física causada por um acidente ou por uma doença congênita, apesar de portar uma doença crônica como diabetes, hipertensão ou esquizofrenia, um indivíduo pode ser cuidado e suas potencialidades de vida saudável desenvolvidas, para que possa usufruir a melhor saúde possível dentro das suas condições. Uma doença crônica, muitas vezes, é o alarme para que o seu portador adquira comportamentos mais saudáveis e desenvolva seu autocuidado, possibilitando que, desta forma, este acabe vivendo mais e melhor depois de seu adoecimento, por mais incrível que isto pareça, à primeira vista. TÓPICO 1 | SAÚDE COMO DIREITO DE TODOS E DEVER DO ESTADO 13 2.1.1 Determinantes sociais da saúde (e da doença) O Relatório Lalonde, sob o nome de A new perspective on the health of Canadians (Uma nova perspectiva da saúde dos canadenses), foi produzido em 1974 no Canadá e ganhou este nome por causa de seu Ministro da Saúde: Marc Lalonde. É considerado o "primeiro relatório governamental moderno no mundo ocidental a associar a saúde com a promoção de coisas que não têm a ver diretamente com a assistência médica ou sanitária”. E apesar de ser um documento nacional com quase 40 anos, e produzido antes ainda do que a “Declaração de Alma-Ata”, ainda hoje é considerado um documento moderno. FONTE: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Relat%C3%B3rio_Lalonde>. Acesso em: 24 set. 2013. Memorize este nome: “Declaração de Alma-Ata”. É um documento importante para a Organização Mundial de Saúde. Falaremos dele mais adiante! ESTUDOS FU TUROS O Relatório Lalonde firmou quatro determinantes gerais da saúde: • Biologia humana. • Ambiente. • Estilo de vida. • Organização da assistência sanitária. Assim, tornou-se um consenso científico, que ações assistenciais são apenas uma parte da tarefa de manter a população saudável. Outros fatores são igualmente importantes, como manter a qualidade no abastecimento de água, coibir contaminantes e poluentes, estimular exercícios físicos e comportamentos saudáveis, promover ambientes de trabalho com condições dignas e manter as cidades e aglomerações urbanas saudáveis, com saneamento básico, espaços de lazer, arborização, entre outros. Também a fiscalização da publicidade faz parte de manter a população saudável, e isto implica um novo enfrentamento: a propaganda desenfreada de comida não saudável, hoje, é tão ou mais prejudicial à saúde do que foi a propaganda do cigarro e do álcool décadas atrás. Por causa das mudanças no estilo de alimentação induzidas em grande parte pela publicidade e pela industrialização dos alimentos, podemos dizer que estamos vivendo uma epidemia mundial de obesidade e sobrepeso. UNIDADE 1 | O SUS – SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE 14 Desincentivar o tabaco e o consumo abusivo de álcool são políticas internacionais que já têm avançado bem, principalmente a Convenção-Quadro para controle do tabagismo e da qual o Brasil é um importante signatário. Porém, existe quase que uma nova guerra que se vislumbra no que diz respeito a enfrentar a publicidade que incentiva o consumo de alimentos nocivos e altamente industrializados. Este ainda é um grande desafio que está posto a todos os formuladores de políticas e programas de saúde. NOTA Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (CQCT) é o primeiro tratado internacional de saúde pública da história da Organização Mundial da Saúde. Representa um instrumento de resposta dos 192 países membros da Assembleia Mundial da Saúde à crescente epidemia do tabagismo em todo mundo. A CQCT foi adotada pela Assembleia Mundial da Saúde em 21 de maio de 2003 e entrou em vigor em 27 de fevereiro de 2005. Desde então é o tratado que agregou o maior número de adesões na história da Organização das Nações Unidas. Até 30 de maio de 2011, 173 países ratificaram sua adesão a esse tratado. Para mais detalhes consulte o site: <http://www.who.int/fctc/signatories_parties/en/index. html>. A lista de itens que se deseja e necessita para a produção e manutenção da saúde é infindável: acesso à educação, a estradas seguras, a políticas habitacionais, enfim, ambiente econômico e social que possibilite o desenvolvimento da vida com qualidade. Destes itens de produção e manutenção da saúde existem aqueles que vão depender de comportamentos individuais, como manutenção do peso, exercícios, alimentação e sono adequados, limitação do consumo de álcool e cessação do hábito de fumar. Outros serão aqueles que dependem de instâncias governamentais, como o fornecimento de água ao consumo na rede pública e a manutenção do ambiente saudável, redução de poluentes, pesticidas e contaminantes agrícolas, entre outros. TÓPICO 1 | SAÚDE COMO DIREITO DE TODOS E DEVER DO ESTADO 15 FIGURA 3 – TRÊS MANEIRAS DE SALVAR VIDAS FONTE: <www.google.com/search?site=&tbm=isch&source=hp&biw=128 0&bih=685&q=convenção+quadro+para+o+controle+do+tabaco>. Acesso em: 5 out. 2013. Como você, acadêmico, pode concluir: promover assistência adequada à saúde vai muito além de construir e administrar hospitais, clínicas e postos de saúde. Promover a saúde passa por uma interferência geral na sociedade, trabalho, educação, hábitos de vida e estrutura de uma cidade e um país. Coisas com as quais o Estado precisa se preocupar, pois de acordo com a nossa Constituição,saúde é direito de todos e dever do Estado. 2.1.2 Desigualdades e saúde – respondendo às tendências globais Como pudemos ver no item anterior, a produção, a promoção e a recuperação das condições de saúde são muito mais complexas do que parece. E como estamos vivendo em um período de globalização econômica, estes desafios não podem ser enfrentados isoladamente. Complexas relações internacionais estão na pauta dos promotores de políticas públicas. As migrações populacionais, em decorrência do trabalho, das desigualdades e dos conflitos, têm mudado o perfil populacional de quase todas as nações e o comportamento epidemiológico de muitas doenças. Exemplificando: no Vale do Itajaí, que fica na Região Sul do país, existem notificações feitas à vigilância epidemiológica de malária hemorrágica e outras doenças tipicamente tropicais que foram contraídas na África por trabalhadores brasileiros que foram ao Congo prestar serviços temporários. Outra doença emergente nesta mesma região é a Leishmaniose, doença ulcerativa transmitida pela picada de mosquitos e cujo surgimento é atribuído ao UNIDADE 1 | O SUS – SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE 16 intensivo desmatamento de florestas da região e rápida urbanização dos espaços desmatados. Estas doenças, historicamente, não existem no sul do Brasil. Poderiam aparecer em regiões quentes como a Amazônia ou o norte do Brasil. Mas como os trabalhadores estão se movimentando pelo planeta, eles “carregam” estas doenças. Para fazer frente a estas tendências de globalização dos problemas sociais e de saúde, os encontros e associações internacionais adquirem uma importância cada vez maior. E devem ser conhecidos por aqueles que trabalham com saúde, mesmo que estes não estejam ligados à gestão ou execução de políticas da área. Não é possível ser cidadão sem conhecer o nível macro, e nem sequer exercer o direito de voto com consciência sem conhecer o que se passa pelo mundo e suas implicações com a nossa vida local e trabalho diário. Observe o seguinte texto produzido pela Rede de Megapaíses, um dos subgrupos da OMS em sua primeira reunião em Genebra – Suíça em 1998: Estamos vivendo em um período de globalização no qual muitos problemas de saúde transcendem limites nacionais. O desenvolvimento global da saúde tem sido afetado negativamente pela expansão de agentes tóxicos e nocivos, armas, substâncias lícitas e ilícitas e o “marketing” multinacional de produtos insalubres. As tendências que vêm mudando de maneira rápida, em nível internacional, com impacto no desenvolvimento da saúde mundial, incluem: • duplo impacto das doenças transmissíveis e não transmissíveis sobre os custos de saúde; • crescimento da população e mudanças demográficas; • degradação do meio ambiente; • globalização dos mercados com aumento do livre comércio; • urbanização crescente e isolamento rural; • desigualdades na distribuição de renda; • diminuição contínua de oportunidades e o baixo status das mulheres; • transformações nas características dos sistemas de apoio social e comunitário e de democratização societária; • desenvolvimento da comunicação; • aumento de agressões, conflitos e de catástrofes provocadas pelo homem; • aumento progressivo da transferência do trabalho de risco para países em desenvolvimento. Todas estas tendências possuem consequências econômicas, socioculturais, políticas e ambientais de dimensão tão ampla, que alguns países, sozinhos, não conseguem lidar satisfatoriamente com elas. Combinando esforços, os megapaíses podem direcionar os seus graves temas de saúde, reforçando as atuais tendências mundiais na direção de resultados mais positivos em saúde. FONTE: <http://www.prosaude.org/publicacoes/diversos/Declaracoes_e_carta_portugues.pdf>. Acesso em: 1 set. 2013. TÓPICO 1 | SAÚDE COMO DIREITO DE TODOS E DEVER DO ESTADO 17 Demos este “passeio” pela história da OMS para familiarizá-lo(a), caro acadêmico, com os conceitos internacionalmente aceitos do que é saúde, e de como os governos devem orientar as suas ações para promovê-la. E de como os determinantes do que é saúde vêm se aproximando cada vez mais do social e da qualidade de vida. Sugerimos que você continue a sua pesquisa sobre as declarações internacionais que as Conferências Mundiais de Saúde produziram ao longo da história recente da saúde coletiva, lembrando que boa parte destes documentos foi fundamental para a construção do SUS (BRASIL, 2001 p.15): • Declaração de Alma-Ata. (Conferência Internacional sobre cuidados primários de saúde; 6-12 de setembro 1978) – País: Cazaquistão (na antiga URSS) • Carta de Ottawa – 1986 (Canadá) • Declaração de Adelaide – 1988 (Austrália) • Declaração de Sundsvall – 1991 (Suécia) • Declaração de Santafé de Bogotá – 1992 (Colômbia) • Declaração de Jacarta – 1997 (Indonésia) • Rede de Megapaíses – 1998 (Suíça) • Declaração do México – 2000 (México) Também não menos importante é citar a parceria e cooperação científica do Brasil em organismos internacionais de saúde que têm a presença mais centrada na América Latina, como a UNASUR – União das Nações Sul- Americanas (no âmbito do Conselho de Saúde da União das Nações Sul- Americanas com seu Plano quinquenal para 2010-15, e pelo Plano Estratégico de Cooperação em Saúde da Comunidade dos Países Lusófonos – CPLP). (THE LANCET apud BUSS, 2011, p. 7). NOTA A UNASUR – UNIÃO DAS NAÇÕES SUL-AMERICANAS desponta no cenário internacional macroeconômico e político como importante instrumento de coalizão dos países latino-americanos, em favor de sua soberania, e posicionando-se contra- hegemonicamente aos discursos do Banco Mundial e do FMI acerca dos financiamentos sociais aos países chamados “em desenvolvimento”. A nova sede da UNASUR está em construção nos arredores de QUITO, capital do Equador e se assenta exatamente sobre a Linha do Equador, localização altamente simbólica. A autora teve a grata oportunidade de visitar o canteiro de obras da mesma em julho de 2013. UNIDADE 1 | O SUS – SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE 18 2.1.3 Uma consideração semântica: paciente ou usuário? O termo paciente tem sido amplamente utilizado para designar aquele que recebe os cuidados durante uma doença ou tratamento. Porém, neste caderno adotaremos o termo que tem sido mais corretamente usado pela literatura atual, que o designa simplesmente por “usuário” do sistema de saúde. O termo paciente tem a ver com aquele que sofre. Ora, quem está com dor não vai ter a paciência de esperar por horas por um remédio ou por atenção. A palavra paciente pode implicar uma relação de humilhação ou resignação daquele que espera pela solução de seu problema. Vejamos o que diz o blog do Humaniza SUS: Se, nos serviços de saúde, o paciente é aquele que sofre, conceito reformulado historicamente para aquele que se submete, passivamente, sem criticar o tratamento recomendado, prefere-se usar o termo cliente, pois implica capacidade contratual, poder de decisão e equilíbrio de direitos. Usuário, isto é, aquele que usa, indica significado mais abrangente, capaz de envolver tanto o cliente como o acompanhante do cliente, o familiar do cliente, o trabalhador da instituição, o gerente da instituição e o gestor do sistema. FONTE: <http://www.redehumanizasus.net/60231-usuario-cliente-ou-paciente>. Acesso em: 1 set. 2013. Então, na hora de atender a uma pessoa, ou fazer um pronunciamento ou documento, lembre-se: na maioria das vezes é melhor usar a palavra usuário. Podemos dizer que o termo paciente, aos poucos, cairá em desuso, pois é considerado politicamente incorreto. 2.2 AS CONDIÇÕES CRÔNICAS E A TRIPLA CARGA DE PROBLEMAS DE SAÚDE O cenário que hoje se apresenta nas condições de saúde do povo brasileiro mostra que a expectativa de vida melhorou, o que em si é um indicador de qualidade e melhora de condições de vida. De acordo com os dados do instituto internacional de pesquisas em saúde Gapminder, a esperança de vida ao nascer, para um brasileiro é de 72,7 anos contra a taxa de 54,5nos anos 60. Este ganho no tempo de vida de mais de 18 anos sinaliza alguns fatos importantes: TÓPICO 1 | SAÚDE COMO DIREITO DE TODOS E DEVER DO ESTADO 19 • O índice populacional cresce, pois as pessoas vivem mais tempo. • O aumento da expectativa de vida, juntamente com a redução do número de filhos por mulher e a respectiva queda na taxa de natalidade, faz com que a população envelheça, demograficamente falando. Outro dado importante deste mesmo Instituto Gapminder é sobre os nascimentos. A taxa de natalidade caiu de 6,2 filhos por mulher nos anos 60 para 1,8 filhos por mulher no ano de 2009. (THE LANCET apud BUSS, 2011, p. 90). Podemos nos basear pelos dados acima para dizer que o Brasil está enfrentando uma rápida transição no seu perfil demográfico e epidemiológico. Como nascem menos crianças por mulher e como as pessoas estão vivendo mais, a população envelhece. Quanto mais velhas as pessoas, mais chances de terem problemas crônicos de saúde. Os dados do DATASUS também mostram as causas de mortalidade no Brasil. Nos dias de hoje, se morre muito menos em decorrência de doenças transmissíveis e muito mais em decorrência de doenças crônicas que vão se tornando mais comuns com o envelhecimento da população. Analisando as taxas de adoecimento e de mortalidade, também verificamos outro fato: ao contrário do que se esperava, algumas doenças que são típicas da pobreza e do subdesenvolvimento não foram completamente erradicadas e ainda apresentam índices preocupantes: podemos citar a tuberculose, a dengue e a malária, entre outras tantas. Cada uma destas doenças requer um montante de investimentos estratégicos para sua resolução ou controle e também para o seu enfrentamento, tratando as pessoas acometidas. É necessário que haja um programa nacional para o controle da tuberculose, da dengue, da malária e de outras tantas doenças que são fáceis de prevenir, mas que continuam acometendo a população brasileira. Algumas destas doenças, como a tuberculose e a hanseníase, podem complicar e necessitar de tratamentos longos. Os tratamentos deverão ser em rede – quer dizer, todos cooperando juntos: o hospital, caso seja necessária a internação, o especialista no ambulatório, os profissionais do posto de saúde. Todos precisam tratar estes casos de forma conjunta. Isto significa que o tratamento pode ser longo e demorado, como o de uma doença crônica, e a pessoa pode ficar muitos anos sendo monitorada, fazendo exames e se consultando por causa daquela doença específica. UNIDADE 1 | O SUS – SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE 20 UNI Pense no caso da tuberculose: uma doença de prevenção simples e barata. Vacina e boas condições de alimentação e higiene. E de tratamento simples também. No entanto, entre os portadores de AIDS e os usuários de crack esta doença é comum, e bastante difícil de tratar. Os usuários de drogas não aderem com facilidade ao tratamento, começando e abandonando. O bacilo de Koch, causador da tuberculose, fica resistente porque se “acostuma” com os remédios, e da próxima vez que o doente tomar o remédio, este não vai fazer efeito. Estas pessoas continuam transmitindo a doença e, como estão em contato com outras pessoas frágeis, usuárias de drogas, espalham a doença. Além destas doenças (como tuberculose e hanseníase), que tínhamos a esperança de erradicar há alguns anos, temos as novas, que emergiram, como o HIV-AIDS, que também vão inserir o usuário numa longa e complexa rede de intervenções e que fará o seu seguimento ao longo da vida. Estas doenças mencionadas até aqui devem ter um enfrentamento programado, organizado e continuado. E mesmo que o doente procure um médico ou uma clínica particular para tratar este problema, este profissional ou serviço deverá fazer a notificação desta doença (que é obrigatória) à VE – Vigilância Epidemiológica do município e seguir as diretrizes de tratamento previstas para esta doença. De forma muito diferente o sistema se mobilizará para atender a uma crise de vesícula, que necessite de uma cirurgia de emergência. Sanado o problema, por extirpação cirúrgica, a doença se desvanece assim como veio. Este enfrentamento do problema agudo, mesmo com a ocorrência da cirurgia, pode ser dito como “episódico e desorganizado”. Quer dizer que em muitas vezes não se pode prevenir o “episódio da crise”, mas que assim que resolvido o problema, deixará de fazer parte da agenda da unidade de saúde. Já outras situações, que nem são caracterizadas como doenças, também vão exigir longo tempo de acompanhamento e demanda programada. São aquelas que fazem parte do ciclo reprodutivo e requerem atendimento mensal, como o pré-natal e a puericultura. Também se encaixam nesta questão outras transformações decorrentes do ciclo de vida, como a atenção aos idosos, ou aos escolares e adolescentes, estes últimos para prevenção de uso de drogas e álcool, das DSTs – Doenças Sexualmente Transmissíveis e da gravidez indesejada. Quanto aos idosos, além do acompanhamento habitual, e da prevenção e promoção de saúde tão importante para este grupo, precisamos lembrar que: TÓPICO 1 | SAÚDE COMO DIREITO DE TODOS E DEVER DO ESTADO 21 Uma população em processo rápido de envelhecimento significa um crescente incremento relativo das condições crônicas, em especial das doenças crônicas, porque elas afetam mais os segmentos de maior idade. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, PNAD 2008, demonstrou que na medida em que a idade avança aumentam as doenças crônicas, de tal modo que 79,1% dos brasileiros de 65 ou mais anos relatam ser portadores de um grupo de doze doenças crônicas. Ademais, 31,3% da população geral, 60 milhões de pessoas, têm essas doenças crônicas e 5,9% dessa população total tem três ou mais dessas doenças crônicas. (MENDES, 2012, p. 34-35). Para acrescentar ainda, ao complexo conjunto de toda esta demanda, há a carga de causas externas, ou os chamados traumas, e ainda as doenças ocupacionais ou LER e DORT (veja a lista de siglas). Existe grande quantidade de domicílios onde reside algum doente acidentado: um pós-traumatizado que enfrentará meses ou anos de recuperação e que precisa de atenção domiciliar. Estes doentes também ficarão por longo tempo inseridos nesta rede intensiva de cuidados (curativos, cirurgias ortopédicas, fisioterapia). Esta é uma situação que tende a aumentar, dada a violência cada vez maior de nosso trânsito. Também configura outra mudança no perfil epidemiológico populacional que exige novas formas de enfrentamento e prevenção por parte do Sistema de Saúde. E que vai ter graves implicações no Sistema Previdenciário, dada a perda da capacidade para o trabalho em caráter temporário ou definitivo. Eugênio Vilaça Mendes, em seu novo livro “O cuidado das condições crônicas na atenção primária à saúde”, lançado pela OPAS/OMS no ano passado (2012), descreve esta complexa situação como “tripla carga de doenças, porque envolve, ao mesmo tempo, uma agenda não superada de doenças infecciosas e carenciais, uma carga importante de causas externas e uma presença fortemente hegemônica das condições crônicas”. (MENDES, 2012, p. 23). UNI O livro “O cuidado das condições crônicas na atenção primária à saúde: o imperativo da consolidação da estratégia da saúde da família”, de Eugênio Vilaça Mendes, serviu de base para a Portaria no 4.279, de 30.12.2010, e está disponível gratuitamente em PDF. A autora sugere que você baixe este arquivo em seu computador para tê-lo disponível para consultas rápidas. É uma referência bastante atual (2012). <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/cuidado_condicoes_atencao_primariasaude.pdf>. UNIDADE 1 | O SUS – SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE 22 Neste livro, o autor se detém especialmente no desafio das doenças crônicas e de seus fatores de risco, como tabagismo, sobrepeso, inatividade física, uso excessivo de álcool e outras drogas, alimentação inadequada, entre outros, e o forte crescimento das causas externas (acidentes e violência emgeral). As pessoas que trabalham no primeiro nível, mais chamado de atenção primária e que é prestado nas unidades de saúde, sabem que não é incomum encontrar várias doenças representantes desta tripla carga de doenças convivendo debaixo de um mesmo teto e na mesma família. Uma casa do território pode ter um casal de idosos, sendo um deles diabético, uma gestante portadora de sífilis, e um acamado em decorrência de um acidente de motocicleta e que necessitam de curativos todos os dias. E não raro, com um quadro familiar destes, um ou mais membros da família apresentarão problemas depressivos, acrescentando o agravante do sofrimento psíquico, tão prevalente nas rotinas dos que trabalham em hospitais, ambulatórios e unidades de saúde. A prevenção das doenças crônicas tem levado empresas privadas de prestação de serviços cooperados em assistência à saúde a implantar práticas de qualidade de vida, como academias e caminhadas orientadas. Estas práticas, além de melhorar a qualidade de vida de seus usuários, trazem à empresa um marketing positivo e a longo prazo reduzirão os custos com a assistência à saúde. É uma conclusão óbvia: um indivíduo que se exercita regularmente e se mantém no peso saudável terá seu risco diminuído para doenças crônicas. Mesmo que o participante dos programas de exercícios já seja portador de doenças crônicas, como transtornos depressivos, diabetes e hipertensão, poderá mantê-las sob controle com muito mais facilidade. Este é um desafio que está dado em todos os locais de trabalho em saúde. Independente de seu cenário de trabalho, seja ele hospital, ambulatório, convênio médico ou serviço público, as doenças que se apresentam ao cuidado e tratamento refletem a situação e perfil de saúde descrito como “tripla carga de problemas de saúde”. Você já deve ter percebido, caro acadêmico, que estamos todo o tempo falando em prevenção e promoção da saúde. Não dá para pensar o cuidado em saúde sem estas duas palavras. Elas aparecerão ao longo de todo este caderno. Sugerimos que você descreva ambas com as suas próprias palavras e compare depois com as definições de seus colegas. AUTOATIVIDADE TÓPICO 1 | SAÚDE COMO DIREITO DE TODOS E DEVER DO ESTADO 23 2.2.1 A inversão do modelo de atenção O modelo de atenção à saúde demandado pela maioria das pessoas é a queixa-conduta. Explicando: aparece uma dor, uma tontura, um sintoma e as pessoas vão ao médico procurando por um medicamento que resolva rapidamente o problema. Acontece que a dor, a tontura, o sintoma são condições que podem sinalizar uma doença de maior gravidade e, em geral, o médico, além de prescrever o medicamento para aliviar o incômodo, solicitará exames para investigar a causa do problema. Porém, boa parte das pessoas, ao ter sua dor resolvida, sequer retorna para buscar os resultados dos exames. Assim, tempos mais tarde, o problema tenderá a voltar. Vamos pensar: se o que causava o problema estava ligado a taxas altas de colesterol ou glicemia, o problema se agravará com o passar do tempo. Se era uma dor articular que foi resolvida com analgésicos ou anti-inflamatórios sem investigar a causa (uma LER, por exemplo), em breve o problema retornará. Então a pessoa voltará ao médico para solicitar nova conduta: mais remédios e mais exames. Esta é uma maneira de atender cara, improdutiva e que não promove saúde de ninguém. Mas esta também é uma maneira de atender bastante comum, porque modificá-la nem sempre é fácil. Se o médico pedir para o doente emagrecer ou fazer exercícios e investigar as causas da alimentação incorreta, ou do estresse excessivo, pode ser que este usuário procure outro médico ou fique insatisfeito com o atendimento. Ou pior: vá a alguma ouvidoria reclamar que foi mal atendido. Muitas vezes, ao sair de um consultório com uma lista de exames e uma receita de muitos medicamentos, o usuário se sente valorizado e bem atendido. As indústrias farmacêuticas e as empresas que realizam exames de alto custo lucram bastante com este tipo de atendimento. E fazem bastante propaganda de seus produtos para médicos e para usuários consumidores dos serviços de saúde e tratamento. Mas adquirir estes produtos e serviços não faz com que necessariamente as pessoas melhorem. Nosso sistema público de saúde sempre comprou exames e serviços de empresas privadas desde muito antes que o SUS existisse, e continua comprando. Muitos modelos de atendimento públicos ou privados “espremem” o tempo da consulta e assim fica mais fácil passar logo um remédio, pedir logo um exame e atender o próximo da fila. E a pessoa atendida e que sai com uma receita e um pedido de exames, em geral não vai reclamar. Assim a doença vai muitas vezes se cronificando e demandando atenção cada vez mais complexa (e mais cara). Este é o chamado modelo de atenção queixa-conduta, o modelo a ser invertido com a promoção da saúde e mudança de estilos de vida. Muitos administradores de serviços de saúde, sejam eles privados ou públicos, se debatem com esta questão: Serão necessários tantos exames? O sistema pode pagar toda esta despesa? O problema, naturalmente, não está nos UNIDADE 1 | O SUS – SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE 24 exames e remédios, eles são necessários e importantes. O problema está em demandar tecnologia sem escutar as pessoas. Muitas vezes o problema é bastante simples, mas vai se agravando por angústia, sofrimento psíquico, automedicação, ou condução errada do tratamento: muitas pessoas, sem encontrar resposta ao seu sofrimento, vão peregrinando de médico em médico, de serviço em serviço, misturando os tratamentos e piorando ainda mais seus problemas. Inverter este modelo de atenção (queixa-conduta), também chamado de medicocêntrico, vai implicar que, além do tratamento (e escuta) das queixas, se faça a prevenção das doenças e promoção da saúde. Mas como se faz isto? Há muitas respostas e estratégias, porém, será necessário educar a população usuária dos serviços. Veja esta historinha cômica, mas bastante real: A dentista nova daquele posto é uma droga! Eu fui lá pra arrancar um dente que estava doendo, e consertar estes dois aqui que estão cariados e pretos, e primeiro precisei participar de uma reunião onde eles mostravam uns dentes gigantes, escovavam, explicavam e falavam. Uma palhaçada! Depois ela olhou, olhou, me deram um kit com escova e fio dental, passaram um remedinho pra desinflamar e me mandaram escovar bem os dentes, como se eu fosse um guri pequeno, e ainda me mandaram voltar semana que vem. E o pior: não vai arrancar coisa nenhuma, imagine que ela disse que eu vou ter que ir umas três vezes lá só por causa daquele dente que eu queria arrancar. Pense no tempo que eles vão levar com isto! Quanta conversa fiada. Com o tempo todo que eu perdi, ela já tinha arrancado dois dentes e obturado os outros dois! FONTE: Zetzsche (2009) Esta conversa pode parecer piada para quem tem os dentes bem cuidados. Mas foi uma reclamação real que um indignado usuário, na casa dos 30 anos, fez à autora, quando gestora de uma unidade de saúde. Porém, a dentista “que só manda a gente escovar os dentes!” estava exatamente tentando inverter o tal modelo de queixa-conduta: de que adianta restaurar dentes de uma pessoa que não cuida deles? Dentro de um ano esta pessoa pode estar lá, mais uma vez, e apresentando novamente dentes doentes. E extrair dentes é coisa que só se faz em último caso, embora as pessoas que tenham os dentes inflamados, infeccionados e doendo tenham realmente vontade de arrancá-los e acabar de uma vez com a dor e o incômodo que estão sofrendo. TÓPICO 1 | SAÚDE COMO DIREITO DE TODOS E DEVER DO ESTADO 25 É essencial que no primeiro mês de vida, a criança seja incluída num grupo de ações educativas em saúde bucal, onde a equipe discutirá com as mães ou cuidadores os cuidados necessários para a manutenção da sua saúde bucal e da saúde bucal dos bebês! FONTE: NASCENDO E CRESCENDO COM SAÚDE BUCAL. Atenção à saúde bucal da gestante
Compartilhar