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( Escola, Currículo e Cultura ) ( Autores: Profa. Dra. Viviane Patrícia Colloca Araújo Profa. Ms. Cristiane Rodrigues da Silva Prof. Dr. Nonato Assis de Miranda Colaboradores: Profa. Silmara Maria Machado Prof. Nonato Assis de Miranda ) ( P r ofessores conteudistas: P r ofa. Dra. V iviane Patrícia Colloca Araújo / P r ofa. Ms. Cristiane Rodrigues da Silva / P r of. D r . Nonato Assis de Miranda ) A professora Viviane é natural de São Carlos, interior do Estado de São Paulo. Cursou graduação em Pedagogia na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), mestrado e doutorado em Educação, também pela UFSCar. Realizou estágio no exterior, na Universidade do Porto, em Portugal, durante o doutorado. Lecionou no Ensino Fundamental como professora da rede municipal de São Carlos, no período de 2000 a 2008. Foi professora substituta no Departamento de Metodologia de Ensino da UFSCar, antes de ingressar na UNIP. Iniciou o trabalho na UNIP como professora no curso de Pedagogia, nos campus Ribeirão Preto e São José do Rio Pardo, em 2009. Em 2011, iniciou a função de coordenação local do curso no campus Ribeirão Preto, lecionando somente nesse campus. As principais áreas de pesquisa concentram‑se na análise de políticas educacionais, multiculturalismo, formação de professores e currículos educacionais. A professora Cristiane é natural de São José dos Campos, interior do Estado de São Paulo. Pedagoga e mestre em Educação Escolar pela UNESP/Araraquara – SP, com a dissertação A construção do currículo da Educação Infantil nas décadas de 1980 e 1990. Experiência como professora de Educação Infantil na rede municipal de Araraquara. Experiência em Cursos de Formação Continuada para professores das séries iniciais do Ensino Fundamental e Educação Infantil – Programa de Formação de Professores Alfabetizadores (Profa/MEC) e no Programa Teia do saber (SEE/SP). Atua como professora alfabetizadora no Ensino Fundamental da rede municipal de educação de Ribeirão Preto. Há mais de dez anos atua como professora no Ensino Superior, em cursos de graduação e pós‑graduação. Em 2009, iniciou as atividades como docente na UNIP, no campus Ribeirão Preto/Vargas. As principais áreas de pesquisa concentram‑se na discussão sobre formação de professores, alfabetização, Educação Infantil e avaliação educacional. O professor Nonato é natural da cidade de Sabinópolis, Estado de Minas Gerais. É licenciado em Letras pela Faculdade de Filosofia e Letras Professor José Augusto Vieira e em Pedagogia pelas Faculdades Integradas Campus Salles. É mestre em Administração pela Escola de Comércio Álvares Penteado e em Educação pela Universidade São Marcos. Obteve o título de doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Atuando na área de Educação desde 1990, desenvolve pesquisa na área de Gestão e Políticas públicas de educação. Foi professor da Educação Básica, ministrando aulas de inglês em escolas públicas e particulares, de 1990 a 1999, quando passou a exercer a função de professor coordenador, até 2002. Em 2003, passou a exercer a função de diretor de escola, tornando‑se titular de cargo em 2008, até o momento. Iniciou sua carreira no Ensino Superior em 2002, na UNIP; a partir de 2009, passou a acumular as funções de docente e coordenador, em um primeiro momento em nível local e, de 2010 em diante, como Coordenador Geral de Pedagogia dessa mesma instituição. ( A663e Araújo, Viviane Patrícia Colloca. Escola, currículo e cultura / Viviane Patrícia Colloca Araújo, Cristiane Rodrigues da Silva, Nonato Assis de Miranda. ‑ São Paulo, 2013. 136 p., il. 1. Escola. 2. Currículo. 3. Cultura. I. Título. CDU 37.015.4 )Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Prof. Dr. Yugo Okida Vice-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona‑Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcelo Souza Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dra. Divane Alves da Silva (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Dra. Valéria de Carvalho (UNIP) ( Escola, c urrículo E c u l tura ) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Andréia Andrade Amanda Casale Sumário Escola, Currículo e Cultura APRESENTAçãO 7 INTRODUçãO 8 Unidade I DEFININDO OS CONCEITOS: ESCOLA, CURRíCULO E CULTURA 11 TEORIAS DE CURRíCULO 22 Teorias Tradicionais 25 Teorias Críticas 29 Teorias pós‑críticas 41 MUDANçAS SOCIAIS E CULTURAIS: O CURRíCULO NA REALIDADE ATUAL 44 O CURRíCULO E O TRABALHO DOCENTE: OS NOVOS DESAFIOS 55 Unidade II DIRETRIzES CURRICULARES NACIONAIS 67 Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica 69 Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Infantil 76 Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Fundamental 80 Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das relações étnico‑raciais e para o ensino de História e cultura afro‑brasileira e africana 87 Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Especial 89 Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos (EJA) 93 ORIENTAçõES CURRICULARES 96 Referencial Curricular Nacional para Educação Infantil (RCNEI) 96 Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) 97 Unidade III CONSTRUçãO E IMPLEMENTAçãO DOS CURRíCULOS 106 PROPOSTAS ALTERNATIVAS – PROJETOS 109 ( Escola, c urrículo E c u l tura ) APRESENtAção Neste material, serão discutidos os diversos conceitos de currículo, suas dimensões, fundamentações e as várias teorias existentes sobre ele, localizado numa relação espaço‑temporal, sofrendo, portanto, as influências dos diversos momentos históricos e lugares nos quais essas teorias foram elaboradas. Dessa forma, será possível verificar que não se trata de algo estático, neutro ou isolado da sociedade, mas que há uma intrínseca relação entre currículo, sociedade e cultura. Localizaremos também as orientações curriculares brasileiras presentes nas Diretrizes Curriculares Nacionais que atualmente orientam e direcionam os diferentes níveis e modalidades da educação nacional. Pretende‑se, com isso, colaborar com a formação de profissionais capazes de compreender as entrelinhas das orientações curriculares, perceber suas intenções, seus interesses e ser capaz de adequar sua atuação, a fim de contribuir para uma sociedade mais justa, democrática e igualitária para todos. A capacidade de criticar, avaliar e reelaborar as orientações curriculares que chegam às escolas só é possível a partir do conhecimento acerca do currículo e dos aspectos que o envolvem. Pensando nessas questões e buscando oferecer conhecimentos e subsídios para a atuação profissional, este livro‑texto é composto da seguinte estrutura: Na Unidade I, daremos início à discussão sobre o currículo definindo esse conceito e os diversos sentidos que lhe foram atribuídos em diferentes momentos históricos, além de pensar um pouco sobre os conceitos de escola e cultura, buscando estabelecer as relações entre eles. Em seguida, teremos a oportunidade de estudar as diferentes Teorias do Currículo que foram elaboradas em três perspectivas diferentes: as Teorias Tradicionais, as Teorias Críticas e as Teorias Pós‑Críticas, perpassando, dessa forma, por diversos autores em diferentes compreensõesda relação escola, currículo e cultura. Ainda nessa unidade, abordaremos os novos desafios ao currículo e a atuação profissional docente face às mudanças e exigências atuais de nossa sociedade. Na Unidade II, buscaremos localizar as principais orientações curriculares brasileiras, pois são elas que definem o que deve ou não ser ensinado nas escolas de todo o país. Assim, estudaremos diversas Diretrizes Curriculares Nacionais, definindo um panorama geral das orientações curriculares na Educação Básica, na Educação Infantil e no Ensino Fundamental, além das modalidades Educação Especial e Educação de Jovens e Adultos, possíveis áreas de atuação do pedagogo. Também abordaremos as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das relações étnico‑raciais e para o ensino de História e cultura afro‑brasileira e africana, os Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (RCNEI) e os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). Na Unidade III, para sistematizar as discussões realizadas, repensaremos o currículo, ou seja, destacaremos os projetos como alternativas que o professor pode utilizar no sentido de atender às Diretrizes Curriculares Nacionais sem perder de vista as individualidades e características locais, ou seja, formas de construir e implementar o currículo. ( 8 ) ( 7 ) INtRoDução Pensar o currículo é pensar a forma como o conhecimento escolar é estruturado, escolhido e desenvolvido nas salas de aula. De uma visão macro da educação chegamos a uma visão micro da sala de aula. Convidamos você a pensar conosco, a refletirmos juntos sobre as questões curriculares e a sua importância na educação. Provavelmente em outras disciplinas do curso você pode discutir um pouco sobre o currículo da Educação Infantil, do Ensino Fundamental; mas faremos aqui uma incursão mais detalhada no assunto, tentando esmiuçar diversos aspectos que envolvem o currículo escolar; por exemplo, suas várias formas, seus significados, suas teorias, focando no currículo no Brasil e as orientações curriculares nacionais que orientam e regulamentam o ensino em todo o país. Você perceberá, ao longo do nosso percurso, que o currículo é bastante discutido na literatura educacional, vários autores já se debruçaram e continuam se debruçando sobre o tema, demonstrando a sua relevância na educação e na melhoria da qualidade do ensino. A partir da década de 1990, no Brasil, o currículo passou a estar na ordem do dia, ou seja, tornou‑se alvo privilegiado da atenção de autoridades, políticos, professores e especialistas. Segundo Moreira (1997, p. 7), “sua centralidade no panorama educacional brasileiro contemporâneo pode ser atestada pelas constantes reformas dos currículos dos diversos graus de ensino, bem como pelo incremento da produção teórica do campo”. A elaboração das várias diretrizes curriculares nacionais, dos referenciais e parâmetros curriculares demonstra claramente essa centralidade do currículo na educação e na sua qualidade. O currículo corresponde, portanto, a uma seleção da cultura, à escolha de determinados conhecimentos que deverão ser ensinados nas escolas, por meio dos conteúdos das várias disciplinas (Língua Portuguesa, Matemática, História, Geografia, Ciências, entre outras), que se faz em um universo mais amplo de possibilidades. Essa seleção, por sua vez, não é desinteressada, pois, ao enfatizar determinados saberes e omitir outros, expressa uma posição político‑ideológica que opera a favor dos interesses de determinados grupos em detrimento de outros. Dessa forma, “presenças e ausências nos currículos constituem, sim, o resultado de disputas culturais, de embates e conflitos em torno dos conhecimentos, das habilidades e dos valores que se consideram dignos de serem transmitidos e apreendidos” (CANEN; MOREIRA, 2001, p. 7). Nesse sentido, o currículo constitui significativo instrumento de poder. Ele pode ser utilizado tanto para manter a sociedade do jeito que ela está, desenvolvendo processos de conservação, como possibilitar mudanças e renovação dos conhecimentos historicamente acumulados. São essas questões em torno do currículo que o fazem um assunto de destaque no conhecimento pedagógico; por isso, é um tema extremamente importante na formação de professores. Canen e Moreira (2001) advertem‑nos de que o currículo, assim como a cultura, deve ser visto como uma prática de significação que, se desenvolvendo em meio a relações de poder, contribui para a produção de identidades sociais. Dessa forma, constitui‑se num território de lutas por diferentes significados do indivíduo, do mundo e da sociedade. Nas palavras desses autores, Nesse território, ao se acolherem certas vozes e ao se silenciarem outras, intenta‑se produzir determinadas identidades raciais, sexuais, nacionais, confirmando‑se ou não relações de poder hegemônicas (CANEN; MOREIRA, 2001, p. 7). Assim, o currículo não é inocente nem neutro. Ele está carregado de poder, pois selecionar os conhecimentos implica atitude de poder, de decisão, de escolha, que normalmente está pautada numa visão de sociedade, de escola, de cidadão, de cultura. Portanto, “o currículo não é um elemento transcendente e atemporal, ele tem uma história, vinculada a formas específicas e contingentes de organização da sociedade e da educação” (MOREIRA; SILVA, 2002, p. 8). Tendo em mente esses elementos iniciais do diálogo, convidamos você a nos acompanhar no desbravamento da temática e, para tanto, busque responder às seguintes questões: o que é o currículo e quais as suas implicações na educação? Por que é importante discutir esse assunto no curso de formação de professores? Que relação há entre escola, currículo e cultura? Por que o currículo envolve poder? Estaremos, juntos, buscando as respostas sobre o currículo e suas implicações na educação. ( 9 ) Unidade I CuRRÍCuLoS: CoNCEItoS E tEoRIAS Iniciaremos nossa discussão buscando compreender as definições de currículo. Para tanto, faz‑se necessário entender alguns conceitos inerentes a esse assunto. Vale ressaltar que, apesar de o termo currículo ser encontrado em registros do século XVII, as discussões a seu respeito, pelo menos numa perspectiva mais crítica, datam do início do século XX, em especial nos Estados Unidos, cujo conceito, grosso modo, está relacionado a um projeto de controle do ensino e da aprendizagem, ou seja, da atividade prática da escola. Não obstante, em um primeiro momento, o currículo envolvia uma associação entre o conceito de ordem e método, caracterizando‑se como um instrumento facilitador da administração escolar, mas sofreu muitas modificações nos últimos anos, tendo em vista as diferentes correntes de estudos que passaram a pesquisar o assunto. Diante disso, propomos, para esta unidade de estudo, um resgate do conceito do termo currículo, a análise das teorias curriculares existentes, além da discussão acerca dos novos desafios ao currículo e à atuação profissional docente decorrentes das mudanças e exigências da atualidade. 1 DEfININDo oS CoNCEItoS: ESCoLA, CuRRÍCuLo E CuLtuRA Você pode estar se perguntando se a discussão sobre currículos não seria um assunto a ser tratado nos cursos de Gestão de pessoas. E mais, por que o curso de Pedagogia traz uma discussão dessa natureza? Ou, ainda, afinal, o que discute essa disciplina? Se você tem essas dúvidas, cremos que serão bastante enriquecedoras para a compreensão do texto e o sucesso na disciplina. Portanto, vamos à busca de respostas às suas prováveis indagações. A priori, vale dizer que o currículo, pelo menos o que vamos estudar no curso de Pedagogia, tem múltiplos conceitos e significados. Em função disso, você perceberá que é um assunto bastante interessante e que nos ajuda na compreensão da dinâmica da escola com relação, entre outros aspectos, àqueles que tratam dos conteúdos, métodos, processo ensino‑aprendizagem e avaliação. ( Unidade I ) ( Escola, c urrículo E c u l tura ) ( 12 ) ( 11 ) Figura 1 Considerando‑se que nossa disciplina é intitulada Escola, Currículo e Cultura,entendemos que é necessário compreender esses conceitos e propósitos tal qual ela nos apresenta, ou seja, de forma composta. Por outro lado, acreditamos que, para analisar a relação existente entre os três termos, seria prudente, primeiro, compreender o significado de cada um dos vocábulos, para depois justificarmos a junção. Começaremos com o termo Escola. A escola é conhecida e vivida por todos nós! Meninos, meninas, brancos, negros, pardos, amarelos, católicos, evangélicos, umbandistas, judeus, americanos, brasileiros, nordestinos, paulistas, sulistas, ricos, pobres; enfim, independentemente das diferenças, todos têm direito a frequentar a escola, a vivenciar as experiências educativas que nessa instituição se desenvolvem, ou seja, a receber instrução e conhecimento. Esse direito de todo ser humano está registrado no artigo 26 da Declaração Universal dos Direitos Humanos. ( Saiba mais Você encontra a Declaração Universal dos Direitos Humanos no site da Organização das Nações Unidas no Brasil (Onubr), disponível em: <http://www . onu.org.br/a‑onu‑em‑acao/a‑onu‑e‑os‑direitos‑humanos>. É importante ler o documento e conhecer os direitos universais de todos nós! ) É também na escola, portanto, que a educação ocorre. A Constituição Federal da República de 1988 fala‑nos da responsabilidade compartilhada da educação, que é tanto responsabilidade do Estado como da família. Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (BRASIL, 1988). Dessa forma, a educação oferecida pelo Estado é desenvolvida num espaço específico chamado escola. O termo escola tem sua origem no latim schola e refere‑se ao estabelecimento onde se dá qualquer processo de instrução. No Dicionário Aurélio Básico de Língua Portuguesa, encontramos a seguinte definição para o verbete escola: 1. Estabelecimento público ou privado onde se ministra, sistematicamente, ensino coletivo. 2. Estabelecimento onde se recebe o ensino primário. 3. Alunos, professores e pessoal de uma escola. 4. Edifício onde funciona a escola (FERREIRA, 1995, p. 263). observação A escola pode ser caracterizada como um espaço físico localizado ou uma instituição que oferece ensino. No caso da Educação a Distância, a relação espaço e tempo não é fixa. Figura 2 O termo escola também permite pensar sobre o ensino que é oferecido, o conjunto de professores, o grupo de alunos que frequenta essa instituição, os métodos de ensino utilizados; enfim, podemos pensar uma série de questões quando tratamos do termo escola. Podemos pensar sobre o seu espaço físico, arquitetônico, material, estado de conservação, disposição dos materiais dentro dos ambientes escolares. Podemos pensar como esse espaço se organiza, os horários, a hierarquia, a rotina. Podemos pensar nas relações humanas, na relação professor/aluno, na relação aluno/aluno, na relação aluno/ direção da escola, na relação professor/direção da escola, na relação escola/comunidade. Podemos pensar nas questões relacionadas ao ensino e aprendizagem, nos métodos, nas estratégias, nos conteúdos, na avaliação. Enfim, como você pode observar, é possível analisar o termo escola por vários ângulos, tudo depende do seu olhar, do seu objetivo de análise. Mas você deve estar se perguntando: qual será o nosso objetivo aqui nesta disciplina? Em nosso caso, tomaremos como ponto de análise as questões relacionadas ao processo de ensino‑aprendizagem, mais especificamente no que se refere aos conhecimentos que são ensinados na escola. A partir disso, podem surgir várias dúvidas, como, o que se ensina na escola? Por que se ensina isso e não aquilo? Quem define o que será ensinado: o professor, a escola, a Secretaria Municipal de Educação, o governo estadual, o Ministério da Educação? Por que alguns alunos aprendem e outros não? Será que o problema da não aprendizagem é algo individual do aluno ou uma questão curricular que deve ser analisada pela escola? Todas as escolas ensinam a mesma coisa? Quais são os conteúdos comuns a todos e os conteúdos específicos de uma localidade? Isso é possível? Serão essas questões que nortearão nossas discussões. Buscaremos, juntos, as possíveis respostas a essas indagações que são fundamentais à formação do pedagogo. Mas e o termo currículo? Vamos agora falar um pouco sobre ele. Figura 3 Para explicitarmos o conceito de currículo, podemos recorrer a vários autores que discutem o assunto. Entretanto, tendo em vista a diversidade de sentidos, talvez isso possa causar certa dificuldade para a compreensão de seu significado. Sendo assim, apontaremos algumas pistas para a elucidação de seu conceito. Mas como fazer isso? Podemos nos valer de alguns recursos, como: recorrer ao léxico ou realizar um levantamento bibliográfico, pois são as formas mais comuns de pesquisa, quando buscamos respostas para algo que desconhecemos do ponto de vista acadêmico‑científico. Nesse caso, optamos pelas duas formas. Portanto, dialogaremos com os dicionários e os estudiosos que tratam do assunto ao mesmo tempo. observação Léxico – refere‑se ao conjunto de palavras disponíveis numa língua para que as pessoas possam expressar‑se de forma oral ou escrita. Nesses termos, iniciada a busca ao léxico, mais precisamente no dicionário Aurélio, verificamos que currículo é definido como “programação de um curso ou de matéria a ser examinada”. Conforme você pode observar, trata‑se de um significado bastante simples de ser compreendido; mas é evidente que não podemos ficar somente com esse, precisamos de outros. Afinal, dissemos, no início, que o currículo tem muitos significados, e é a partir dessa premissa que pretendemos excursionar por eles. Mas como estamos, neste momento, recorrendo ao léxico, antes de prosseguirmos, cabe aqui um questionamento: desde quando esse termo é dicionarizado? Esse fato não é recente. Ao contrário, data de 1633, quando o termo currículo aparece, pela primeira vez, no Oxford English Dictionary, e é utilizado para designar um plano estruturado de estudos numa escola ou universidade (PACHECO, 2005); portanto, o termo é relativamente similar a alguns dos conceitos utilizados na atualidade. Vale destacar, contudo, que a dicionarização do currículo não significa sua gênese na educação. Recorrendo à literatura especializada que trata do assunto, verificamos que, [...] por volta da metade do século XIX, o uso comum da palavra, significando apenas um curso de estudos, estava mais ou menos estabelecido e era aplicado rotineiramente não só às disciplinas estudadas nas escolas politécnicas e nas universidades, mas também aos níveis pré‑universitários de instrução (JACKSON apud PACHECO, 2005, p. 29). Diante do exposto, nota‑se que dois séculos após o processo de dicionarização de currículo, é possível observar que o termo foi se expandindo na área da Educação. Por outro lado, sabemos que a educação sistematizada é anterior a esse período, e aí podemos questionar se na Antiguidade Clássica, por exemplo, tínhamos ou não um currículo escolar. De acordo com Pacheco (2005), embora se localize, por vezes, a origem do termo nesse período, o certo é que a realidade escolar sempre coexistiu com a realidade curricular, principalmente quando a escola se institucionalizou numa construção cultural com fins socioeconômicos. Não obstante, ainda se valendo das contribuições do autor, verificamos que a palavra currículo é de origem recente e aparece com a acepção de organização do ensino, tendo o mesmo significado de disciplina, que foi relativamente bem assimilado pelas pessoas. Pois bem, agora que sabemos um pouco mais sobre a origem, vamos continuar nossa pesquisa em busca de seus significados. Do ponto de vista etimológico, por sua vez, o termo currículo vem da palavra latina Scurrere, que corresponde a correr, e refere‑se a curso, à carreira, a um percursoque deve ser realizado. Portanto, quando elaboramos um curriculum vitae, por exemplo, apresentamos, conforme sugere Libâneo (2004, p. 169), nossa “carreira da vida”, nosso “percurso de vida”. observação Etimologia – parte da Gramática que trata da história ou origem das palavras e da sua explicação por meio da análise dos elementos que as constituem. Algumas palavras derivam de outras línguas. Por outro lado, na perspectiva do senso comum, ainda predomina a ideia de currículo como o conjunto das disciplinas que o aluno deve percorrer, ou seja, o plano de estudos ou a matriz curricular, a fim de obter uma titulação, um diploma (LIBÂNEO, 2004). Dessa forma, percebemos que não há nada de tão complexo no processo de conceituação do currículo, entretanto, analisá‑lo apenas na perspectiva lexical e etimológica talvez seja uma visão reducionista, e não é o que propomos e, muito provavelmente, também não seja o que você espera. Portanto, buscamos outros significados para ampliar nossa análise. A pesquisa bibliográfica mostra‑nos que significados mais ampliados acerca do currículo surgiram somente no início do século XX, identificando, segundo Libâneo (2004, p. 169), “quase sempre o conjunto de saberes e/ou experiências que alunos precisam adquirir e/ou vivenciar em função de sua formação”. Grosso modo, podemos afirmar que uma vez dentro do campo pedagógico, apesar das diversas definições que o termo currículo recebeu ao longo da história da educação, tradicionalmente, passou a significar uma relação de disciplinas com seu corpo de conhecimento organizado numa sequência lógica, com o respectivo tempo de cada uma, ou seja, matriz curricular. Essa conotação, quando analisada na perspectiva da dicionarização do termo currículo, guarda estreita relação com plano de estudos; nesse caso, tratado como conjunto de matérias a serem ensinadas em cada curso ou série e o tempo reservado a cada uma. Não obstante, os significados e sentidos de currículo são muitos, posto que, segundo Schmidt (2003), se quisermos, podemos listar aproximadamente cinquenta definições para o currículo, cada uma com uma diferente conotação, pois há, na literatura, dados disponíveis para isso. Mas não é o que pretendemos, pois acabaríamos criando uma teia de significados que em nada contribuiria para nossa reflexão. Diante do exposto, depreendemos que as concepções, os significados e as funções do termo currículo são variadas e diferentes e nos levam a crer que não existe uma definição certa, nem tampouco a mais reconhecida ou a mais atual; pois, ao decidirmos por uma delas, estaríamos optando por uma determinada concepção, que inclui compromissos sociais e políticos (SCHMIDT, 2003). Não obstante, considerando‑se que as principais contribuições sobre a conceituação do currículo datam do início do século XX, pelo menos enquanto teoria, entendemos, assim como inúmeros pesquisadores da área, que a publicação do livro The curriculum, em 1918, nos Estados Unidos, por Franklin John Bobbitt, representa um marco no processo de teorização do currículo. ( Saiba mais Caso queira consultar a obra, o livro está disponível para acesso público no seguinte site : <http://archive.org/details/curriculum00bobbgoog>. ) Mas o que esse autor pensa sobre o assunto? Para Bobbitt (1918 apud PACHECO, 2005), o currículo é todo leque de experiências, sejam essas dirigidas ou não, que visam ao desdobramento das capacidades do indivíduo; ou é a série de experiências instrutivas conscientemente dirigidas que as escolas usam para completar e aperfeiçoar o desdobramento. Conforme podemos observar, Bobbitt definiu o currículo como conjunto ou série de coisas que as crianças e os jovens devem fazer e experimentar a fim de desenvolver habilidades que os capacitem a decidir assuntos na vida adulta. A partir dessa definição, fica evidente que a educação, na visão de Bobbitt, é essencialmente para a vida adulta, não para a vida infantil. Portanto, sua responsabilidade fundamental é preparar para os cinquenta anos de vida adulta, e não para os vinte anos de infância e adolescência (PACHECO, 2005). Não há um conceito único do termo currículo, como já dissemos anteriormente, nem podemos escolher um, pois estaríamos assumindo uma posição política e ideológica. Todavia, concordando com Libâneo (2004), poderíamos ficar com duas definições que, apesar de serem pontuais, nos ajudam a compreender melhor o significado do termo, pois de um jeito ou de outro se complementam. Portanto, [...] o currículo é a ligação entre a cultura e a sociedade exterior, à escola e à educação; entre o conhecimento e cultura herdados e a aprendizagem dos alunos; entre a teoria (ideias, suposições e aspirações) e a prática possível, dadas determinadas condições (SACRISTÁN, 1989, apud LIBÂNEO, 2004, p. 170). Ademais, [...] o currículo não é um conceito, mas uma construção cultural. Isto é, não se trata de um conceito abstrato que tenha algum tipo de existência fora e previamente à experiência humana. É, antes, um modo de organizar uma série de práticas educativas (GRUNDY, 1987, apud SACRISTÁN, 2000, p. 14). Observamos, no primeiro caso, que o currículo é visto como a concretização do posicionamento da escola, em face da cultura produzida pela sociedade. A esse respeito, Libâneo (2004) entende que existe ensino porque há uma cultura, e o currículo é a seleção e a organização dessa cultura. Portanto, para Gimeno Sacristán, o papel social da escola realiza‑se por meio do currículo. A segunda opção complementa a primeira, pois o currículo é visto como uma construção cultural que orienta as práticas educativas realizadas na escola a partir do que é produzido na sociedade, levando a crer que o currículo não é neutro, ao contrário, tem uma intencionalidade muito bem definida. Também pode ser entendido, segundo Hérnandez e Ventura (1998, p. 19), “como um campo de conhecimentos no qual confluem decisões políticas, pesquisas, propostas dos especialistas e realizações dos docentes”. Diante disso, Libâneo (2004) afirma que, quando os professores e a equipe escolar planejam o currículo, eles realizam uma escolha para responder a essas indagações: · O que nossos alunos precisam aprender? · Para que aprender? · Em função de que aprender? Parafraseando o autor, entendemos que há aí uma espécie de diálogo com a sociedade e entre a própria equipe de professores sobre o que, de fato, é relevante que os alunos aprendam, em função de suas necessidades pessoais e das necessidades e exigências de interesses em jogo na sociedade. Conforme se vê, o currículo é intencional, pois é orientado em função de objetivos e das ações, ou seja, conhecimentos, procedimentos, valores, formas de gestão, de avaliação etc., e se torna real a partir do trabalho dos professores, de determinadas condições previstas pela organização escolar, tendo em vista a qualidade do processo de ensino‑aprendizagem. Portanto, não é de um todo autônomo, mas construído socialmente em função de objetivos e interesses. Uma vez demonstrado que o conceito de currículo não é único, ao contrário, é multifacetado, vamos falar um pouco do terceiro termo que compõe o título da nossa disciplina, ou seja, cultura. Começaremos, assim, como fizemos nos conceitos anteriores, pela definição léxica do termo. Segundo o dicionário da língua portuguesa, a palavra cultura tem múltiplos significados, variando desde a criação de animais a padrões de comportamento em uma sociedade. Observe as definições que encontramos: Cultura: 1. Ato, efeito ou modo de cultivar. 2. Cultivo. 3. O complexo dos padrões de comportamento, das crenças, das instituições e doutros valores espirituais e materiais transmitidos coletivamente e característicos de uma sociedade; civilização; 4. O desenvolvimento de um grupo social, uma nação, etc., que é fruto do esforço coletivo pelo aprimoramento desses valores; civilização, progresso. 5. Apuro, esmero, elegância. 6. Criação de certos animais, em particular os microscópicos (FERREIRA, 1995, p. 190‑191). Comovocê pode observar, o termo cultura pode significar desde o cultivo da terra até as normas de comportamento, valores, conhecimentos que são produzidos por uma sociedade. A origem da palavra cultura está no latim colere, significando cultivar. Essas diversas formas de entendimentos do termo demonstram o longo processo de evolução que o termo sofreu até apresentar‑se num sentido figurado. De acordo com Cuche (2002), a origem desse termo data do final do século XIII, momento em que o termo cultura foi utilizado para designar o estado de cultivo da terra. Em seguida, no começo do século XIV, o termo passou a significar uma ação – o fato de cultivar a terra. Somente no século XVIII, o termo cultura começou a ser entendido no sentido figurado como cultura do espírito. Figura 4 A princípio, o sentido figurado do termo cultura aparecia sempre seguido de um complemento (cultura das artes, cultura das letras, cultura das ciências). Após algum tempo é que começou a ser empregado desvinculado de seus complementos, para designar a formação, a educação do espírito, a ação de instruir. Porém, em um movimento inverso a esse sentido, a cultura passou a ser entendida como estado – o estado do espírito cultivado pela instrução, o indivíduo que tem cultura. Esse sentido foi utilizado pelos pensadores iluministas, que entenderam a cultura como a soma dos saberes acumulados ao longo da história e transmitidos pela humanidade. Para eles, o progresso nasce da cultura entendida como única e própria do homem, com toda distinção de povos ou de classes (CUCHE, 2002). A contraposição a esse reducionismo do Iluminismo com relação à cultura pode ser encontrada no pensamento do alemão Johann Gottfried Herder, de 1774, citado por Cuche (2002), que já nessa época defendia a diversidade de culturas como uma riqueza da humanidade, contrariando o pensamento uniformizante e empobrecedor do Iluminismo. Esse autor pretendia devolver para cada povo o seu orgulho, começando pelo povo alemão. Para Herder, na realidade, cada povo, através de sua cultura própria, tem um destino específico a realizar. Pois cada cultura exprime à sua maneira um aspecto da humanidade. Sua concepção de cultura caracterizada pela descontinuidade, que não excluía, no entanto, uma possível comunicação entre os povos, era baseada em Uma outra filosofia da história (título de seu livro de 1774), diferente da filosofia do Iluminismo (CUCHE, 2002, p. 28). Seguindo o fio temporal da história e a evolução desse pensamento, Franz Boas (1858‑1942) também contribui para a reflexão sobre o conceito de cultura. Esse pensador, por meio da etnografia, buscou pensar a diferença, porque, para ele, a diferença entre os grupos era de ordem cultural, e não racial. Também partindo de uma visão relativista de cultura, Boas (apud CUCHE, 2002) defendia que cada cultura é dotada de um “estilo” particular que se exprime por meio da língua, das crenças, dos costumes, da arte etc. que influem sobre o comportamento dos indivíduos. Na nossa perspectiva, sua maior contribuição para o conceito de cultura está na definição de um princípio ético que afirma a dignidade de cada cultura e exalta o respeito e a tolerância em relação às culturas diferentes: “Na medida em que cada cultura exprime um modo único de ser homem, ela tem o direito à estima e à proteção, se estiver ameaçada” (CUCHE, 2002, p. 46). ( Saiba mais Para saber sobre pesquisa etnográfica, consulte: LÜDKE, M.; ANDRÉ, M. Pesquisa em Educação : abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986. ) O conceito de cultura é, segundo Cuche (2002), fundamental na reflexão sobre a unidade da humanidade na diversidade além dos termos biológicos, pois é a cultura que fornece a resposta mais satisfatória à questão da diferença entre os povos (ARAUJO, 2009). A história remota da humanidade comprova que o homem é essencialmente um ser de cultura (CUCHE, 2002). É a cultura que permite a ele não somente se adaptar ao meio como adaptar esse meio a ele próprio, as suas necessidades e projetos. Sendo assim, a cultura torna possível a transformação da natureza. Se todas as “populações” humanas possuem a mesma carga genética, elas se diferenciam por suas escolhas culturais, cada uma inventando soluções originais para os problemas que lhe são colocados. No entanto, estas diferenças não são irredutíveis umas às outras, pois considerando a unidade genética da humanidade, elas representam aplicações de princípios culturais universais, princípios suscetíveis de evoluções e até de transformações (CUCHE, 2002, p. 10). Essa citação é muito esclarecedora porque evidencia algo relevante para nossa compreensão do conceito de cultura. As populações, em seus respectivos agrupamentos, desenvolvem e recriam constantemente suas características culturais, algumas resultantes de tradições de longa data e outras que são diariamente criadas e reinventadas, muitas vezes por influência de outras culturas. Essas diferenças culturais dos povos representam a diversidade cultural existente no mundo. No entanto, nessa diversidade há uma característica unificadora de toda a humanidade – o fato de todos os povos serem formados por seres humanos (ARAUJO, 2009). A cultura pode explicar o comportamento do homem e suas ações na sociedade em que vive; por isso, não há uma cultura única e, sim, culturas, uma para cada sociedade. Todo comportamento humano é informado pela cultura, desde a divisão sexual dos papéis e das tarefas nas sociedades até as funções fisiológicas do homem (como fome, sono, desejo sexual etc.). Assim, pode‑se afirmar que “[...] as sociedades não dão exatamente as mesmas respostas a estas necessidades” (CUCHE, 2002, p. 11), tudo depende da cultura estabelecida em cada sociedade. As culturas não são puras, elas sofrem influências externas pelo contato com outras culturas; por isso, são dinâmicas, estão sempre em processo de desestruturação e reestruturação, que, segundo Cuche (2002, p. 137), é o próprio princípio de evolução de qualquer sistema cultural: “Toda cultura é um processo permanente de construção, desconstrução e reconstrução”. Você pode estar se perguntando por que fizemos todas essas considerações sobre esses conceitos, mas é importante compreender a relação existente entre eles. Como você pode observar, a cultura fornece ao currículo pistas de conhecimentos e saberes que devem ser ensinados para cada sociedade, pois são significativos e importantes para aquelas pessoas. Você irá perceber durante a leitura deste livro‑texto que o currículo não pode ser estático, rígido, ele é flexível porque deve absorver aspectos da cultura local onde o ensino (a escola) ocorre. O currículo é sempre uma seleção de conhecimentos a partir de uma gama maior, pense em todo o conhecimento produzido pela humanidade, em toda a sua existência, é preciso selecionar o que é mais relevante para que as novas gerações possam continuar a progredir e a reconstruir os conhecimentos, além de produzir novos a partir de suas necessidades. Lembrando Silva (2003, p. 15), “o currículo é sempre o resultado de uma seleção: de um universo mais amplo de conhecimentos e saberes seleciona‑se aquela parte que vai constituir, precisamente, o currículo”. Nesse sentido, ele precisa estar junto com a cultura, podemos falar em culturas, pois, como vimos, não existe uma única cultura, cada grupo humano produz e reconstrói a sua. Partindo do que dissemos até agora, poderíamos demonstrar as relações existentes entre os três conceitos‑chave deste livro‑texto no seguinte ciclo interdependente, sendo que um influencia o outro. ( Escola ) ( Currículo ) ( Cultura ) Figura 5 O que você entende desse ciclo? A escola desenvolve o currículo e é por ele constituída, por sua vez, a cultura influencia o currículo e é por ele reconstruída cotidianamente, pois novos conhecimentos são produzidos e as pessoas daquele grupo cultural passam a se modificar e a modificar seus costumes, suas maneiras, seus gostos, enfim, a sua cultura. Não obstante, a cultura influencia a escola e, da mesmaforma, é por ela influenciada, porque as novas gerações produzem mudanças culturais em seus grupos. Agora que conhecemos um pouco mais sobre escola, currículo, cultura e suas relações, vamos ver o que alguns estudiosos que ficaram conhecidos como críticos do currículo pensam sobre o assunto. Para tanto, analisaremos, no próximo tópico, as teorias curriculares. 2 tEoRIAS DE CuRRÍCuLo Para começar nosso diálogo acerca das teorias curriculares, recorremos a Silva (2003, p. 11), que propõe uma série de indagações sobre o currículo, conforme seguem: · O que é uma Teoria de Currículo? · Quando se pode dizer que se tem uma Teoria do Currículo? · Onde começa a teoria e como se desenvolve a história das teorias do currículo? · O que distingue uma Teoria do Currículo da teoria educacional mais ampla? · Quais são as principais teorias do currículo? · O que distingue as teorias tradicionais das teorias críticas do currículo? · E o que distingue as teorias críticas do currículo das teorias pós‑críticas? observação Atualmente, Tomaz Tadeu da Silva é professor colaborador do Programa em Pós‑Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atua na área de educação, com ênfase em Teoria do Currículo. A partir dessas indagações, percebemos que o assunto é um tanto complexo e que não podemos nos ater ao senso comum. Portanto, faremos uma viagem na história do currículo na busca de respostas que nortearão nossas discussões. Grosso modo, o currículo escolar pode ser analisado a partir de dois grandes eixos: as concepções tradicionais ou conservadoras e as concepções críticas. Diante dessa afirmação, surge um questionamento: qual a origem de cada uma delas? Verificamos que ambas se originaram nos Estados Unidos e tanto as visões conservadoras como as críticas influenciaram sobremaneira o campo no Brasil; por isso, as estudaremos. Entretanto, como Silva (2003) propõe uma abordagem mais detalhada acerca das teorias, nos basearemos em sua proposta. Em primeiro lugar, conforme ressalta o autor, precisamos saber o que é uma teoria, pois, em geral, “está implícita, na noção de teoria, a suposição de que a teoria ‘descobre’ o ‘real’, de que há uma correspondência entre a ‘teoria e a ‘realidade’” (SILVA, 2003, p. 11). Em termos mais específicos, nos valendo das contribuições do autor, podemos dizer que a teoria é uma representação, uma imagem, um reflexo, um signo de uma realidade que – cronologicamente, ontologicamente – a precede. observação Uma teoria define‑se pelos conceitos que utiliza para conceber a realidade. Os conceitos dirigem nossa atenção para determinados aspectos dessa realidade que, sem eles, não conseguiríamos enxergar (SILVA, 2003). Mas, como estamos interessados em estudar as teorias curriculares, vamos nos ater ao fato de que uma teoria de currículo começaria por supor que existe, segundo Silva (2003, p. 11), “lá fora’, esperando para ser descoberta, descrita e explicada, uma coisa chamada ‘currículo’”. Portanto, o currículo seria o objeto que precederia a teoria, a qual só entraria em cena para descobri‑lo, descrevê‑lo, explicá‑lo, conforme pretendemos. Não obstante, a questão central que deve servir de pano de fundo para qualquer teoria do currículo é a de saber qual conhecimento deve ser ensinado. Ou seja, mais especificamente, temos como questão central: o quê? Como dissemos anteriormente, o currículo é sempre o resultado de uma seleção e, portanto, as teorias do currículo, tendo decidido quais conhecimentos devem ser selecionados, buscam justificar porque esses conhecimentos e não outros foram e devem ser selecionados. Nas palavras de Silva (2003, p. 15): Nas teorias do currículo, entretanto, a pergunta “o quê?” nunca está separada de uma outra pergunta: o que eles ou elas devem ser?”, ou, melhor, “o que eles ou elas devem se tornar?”. Afinal, um currículo busca precisamente modificar as pessoas que vão “seguir” aquele currículo. [...] as teorias do currículo deduzem o tipo de conhecimento considerado importante justamente a partir de descrições sobre o tipo de pessoa que elas consideram ideal. Qual é o tipo de ser humano desejável para um determinado tipo de sociedade? Será a pessoa racional e ilustrada do ideal humanista de educação? Será a pessoa otimizadora e competitiva dos atuais modelos neoliberais de educação? Será a pessoa desconfiada e crítica dos arranjos sociais existentes preconizada nas teorias educacionais críticas? A cada um desses “modelos” de ser humano corresponderá um tipo de conhecimento, um tipo de currículo. Partindo dessa afirmação, podemos perceber que as discussões das teorias do currículo justificam as escolhas dos conhecimentos da cultura que serão abordados nas escolas. O que essas teorias irão focar em suas discussões depende do tipo de sua argumentação; por exemplo, as teorias tradicionais irão argumentar no sentido de reforçar as reafirmações padrões de comportamento e modos de pensar de acordo com as necessidades do capitalismo. Assim, tendo esse objetivo maior, essas teorias focam no ensino a sua discussão, não realizando críticas à estrutura social existente. Já as teorias críticas focam seu olhar para a crítica da estrutura social existente e como determinados conhecimentos escolhidos para serem ensinados nas escolas reforçam a estrutura capitalista. Dessa forma, essas teorias discutem, com muita propriedade, a questão do poder, já que “selecionar é uma operação de poder” (SANTOS, 2003, p. 16). Para as teorias pós‑críticas, a formação da identidade e da subjetividade são os aspectos mais analisados no currículo. Dessa forma, discutir o que ensinar não é o suficiente na atualidade, as teorias mais recentes afirmam isso; faz‑se necessário também pensar o porquê desse conhecimento por meio de um conjunto de reflexões e práticas vivenciadas na escola. Vamos sintetizar, segundo Santos (2003), as principais diferenças no modo de argumentação e raciocínio das teorias de currículo: · as teorias tradicionais pretendem ser neutras, científicas, desinteressadas das relações sociais e econômicas da sociedade mais ampla; por isso, aceitam mais facilmente o status quo, os conhecimentos e os saberes dominantes, e acabam por se concentrar em questões técnicas e de organização do ensino do currículo que deve ser desenvolvido na escola. · as teorias críticas e as teorias pós-críticas, ao contrário das anteriores, não aceitam a neutralidade, pois toda teoria está implicada em relações de poder. Essas teorias não se limitam à pergunta “o que ensinar?”, querem compreender e “denunciar” o “por que esse conhecimento e não outro”? Quais interesses estão por trás da escolha de determinados conhecimentos no currículo. Enfim, estão preocupadas com as conexões existentes entre saber, identidade e poder. Lembrete Status quo significa estado atual. Trata‑se de um termo em latim que está relacionado ao estado de fatos, situações e coisas, independentemente do momento. Para melhor compreensão das teorias curriculares, é importante que você tenha em mente os principais conceitos abordados por cada uma delas, pois, como dissemos anteriormente, eles organizam e estruturam nosso olhar para a análise da realidade, ou seja, o currículo e a escola. Quadro 1 - Principais conceitos das Teorias de Currículo apresentados por Silva (2003) Teorias Tradicionais Teorias Críticas Teorias Pós-Críticas ensino ideologia identidade, alteridade, diferença aprendizagem reprodução cultural e social subjetividade avaliação poder significação e discurso metodologia classe social saber‑poder didática capitalismo representação organização relações sociais de produção cultura planejamento conscientização gênero, raça, etnia, sexualidade eficiência emancipação e libertação multiculturalismo objetivos currículo oculto resistência Fonte: Silva (2003). Abordaremos, a partir de agora, cada uma das principais tendências de análise do currículo. 2.1 teorias tradicionais As Teorias Tradicionais foram as primeiras organizadas sobreo currículo. Elas surgiram nos Estados Unidos, na primeira década do século XX, a partir das seguintes condições: [...] associadas com a institucionalização da educação de massa; a formação de uma burocracia estatal encarregada dos negócios ligados à educação; o estabelecimento da educação como um objeto próprio de estudo científico; a extensão da educação escolarizada em níveis cada vez mais altos a segmentos cada vez maiores da população; as preocupações com a manutenção de uma identidade nacional, como resultado das sucessivas ondas de imigração; o processo de crescente industrialização e urbanização (SANTOS, 2003, p. 22). Essas teorias pretendem ser neutras e, por isso, acabam por reforçar as situações sociais e econômicas do jeito que são – os ricos continuarão a ser ricos e ter os melhores empregos, e os pobres, a ser pobres, realizando trabalhos braçais e com menores remunerações. É exatamente por querer manter as coisas como estão que essas teorias têm como principal foco de análise a identificação dos objetivos da educação escolarizada, com vistas a formar o trabalhador especializado ou proporcionar uma educação geral, acadêmica, à população. Silva (2003) explica que essas teorias tiveram como principal representante Bobbit, que escreveu sobre o currículo em um momento em que diversas forças políticas, econômicas e culturais procuravam envolver a educação de massas para assegurar que sua ideologia fosse mantida. Sua proposta era de que a escola funcionasse como uma empresa comercial ou industrial. Segundo Silva (2003, p. 23), [...] de acordo com Bobbit, o sistema educacional deveria começar por estabelecer de forma precisa quais são seus objetivos. Esses objetivos, por sua vez, deveriam se basear num exame daquelas habilidades necessárias para exercer com eficiência as ocupações profissionais da vida adulta. Conforme se observa, o modelo curricular de Bobbit estava focado na Teoria da Administração Científica, proposta por Frederick W. Taylor, e tinha como palavra‑chave a eficiência. Nesses termos, o currículo era uma questão de organização e ocorria de forma mecânica e burocrática. Dessa forma, a tarefa dos especialistas em currículo consistia em fazer um levantamento das habilidades, em desenvolver currículos que permitissem que essas habilidades fossem desenvolvidas e, finalmente, em planejar e elaborar instrumentos de medição para dizer com precisão se elas foram aprendidas. Essas ideias influenciaram muito a educação nos Estados Unidos até os anos 1980. Mas não foi somente lá, pois foram marcantes em muitos países, inclusive no Brasil. Figura 6 – John Franklin Bobbitt Para Bobbitt, a finalidade da educação era preparar as crianças e os jovens para a sociedade tal qual ela se apresentava. Assim, o currículo deveria proporcionar habilidades para o exercício de uma ocupação profissional na vida adulta. Era visto como uma questão de organização, de técnica; portanto, tecnocrata. Não obstante, segundo Silva (2000, p. 23), bem antes de Bobbitt, Dewey escreveu, em 1902, um livro que tinha a palavra “currículo” no título, The Child and the Curriculum. Figura 7 – John Dewey ( Saiba mais Caso queira consultar a obra, o livro está disponível para acesso público no seguinte site : <http://archive.org/stream/ childandcurricul00deweuoft#page/n3/mode/2up>. ) Vale dizer que Dewey era representante da Teoria Progressista, cuja concepção de currículo, nesse caso, parte da totalidade de experiências vivenciadas pela criança, sob a orientação da escola, levando em conta e valorizando os interesses do aluno. Esse autor estava mais preocupado com a construção da democracia que com o funcionamento da economia (SILVA, 2003). Ao contrário das teorias tradicionais, as progressistas começaram a se delinear a partir do século XVIII, e se constituíram como tentativa de buscar respostas aos problemas socioeconômicos advindos dos processos de urbanização e industrialização ocorridos nos Estados Unidos no final do século XIX e início do século XX. A escola, nesse contexto, era vista como a instituição responsável pela compensação dos problemas da sociedade mais ampla. O foco do currículo foi deslocado do conteúdo para a forma, ou seja, a preocupação foi centrada na organização das atividades, com base nas experiências, nas diferenças individuais e nos interesses da criança. Entretanto, segundo Silva (2003), a influência de Dewey não se refletiu da mesma forma que a de Bobbitt na formação do currículo como campo de estudos, que, por sua vez, teve seu modelo de currículo consolidado com a publicação do livro de Ralph Tyler, em 1949. Segundo Silva (2003), as ideias de Tyler dominaram o campo do currículo nos Estados Unidos, com influência em diversos países, inclusive no Brasil, nas quatro décadas seguintes. Mas, então, qual era o paradigma curricular proposto por Tyler? Seu paradigma centra‑se em questões de organização e desenvolvimento, pois sendo um discípulo de Bobbitt não poderia ser diferente. Para Tyler, citado por Silva (2003), o currículo é essencialmente uma questão técnica. Dessa forma, deveria buscar respostas para quatro questões básicas: · Que objetivos educacionais a escola deve procurar atingir? A resposta a essa questão define o currículo. · Que experiências educacionais podem ser oferecidas que tenham probabilidade de alcançar esses propósitos? A resposta a essa questão define o ensino. · Como organizar eficientemente essas experiências educacionais? A resposta a essa questão define a metodologia. · Como podemos ter certeza de que esses objetivos estão sendo alcançados? A resposta a essa questão define a avaliação. ( Saiba mais KLIEBARD, H. M. Os princípios de Tyler. Currículo sem fronteiras , v. 11, n. 2, p. 23‑35, jul./dez. 2011. Disponível em: <http://www.curriculosemfronteiras. org/vol11iss2articles/kliebard‑tyler.pdf>. ) Conforme se observa, no início do século XX tivemos dois modelos de currículo surgindo em um mesmo local e período. Assim, podemos questionar: será que havia algo em comum entre os modelos? A resposta é sim, pois tanto o modelo de Bobbitt e Tyler quanto o de Dewey constituíram, de certa forma, uma reação ao currículo clássico, humanista, que havia dominado a educação secundária desde sua institucionalização. observação E o que era o modelo clássico? Tratava‑se de um currículo herdeiro das chamadas artes liberais, originário da Antiguidade Clássica, focado nas seguintes áreas do conhecimento: trivium, ou seja, gramática, retórica, dialética, e quadrivium: astronomia, geometria, música e aritmética. Cada um dos modelos curriculares contemporâneos (o tecnocrático e o progressista) ataca o modelo humanista de um jeito ou de outro (SILVA, 2003). O tecnocrático destacava a abstração e a suposta inutilidade – para a vida moderna e para as atividades laborais – das habilidades e dos conhecimentos cultivados pelo currículo clássico. Já o modelo progressista entendia que o currículo clássico distanciava‑se dos interesses e das experiências das crianças e dos jovens. Por fim, ressaltamos que o currículo está intimamente relacionado ao contexto. Dessa forma, os modelos tradicionais foram contestados a partir dos anos 1970. Lembrete As teorias tradicionais de currículo são compostas por teorias tecnocráticas (que fundamentaram o tecnicismo no Brasil), representadas principalmente por Bobbitt e Tyler e pela teoria progressista de Dewey, a qual fundamentou os princípios da Escola Nova. 2.2 teorias Críticas Para situar melhor esta discussão, salientamos que a Teoria Crítica, em seu sentido mais formal e usual, remonta a um período anterior ao surgimento das Teorias Curriculares Críticas. Ela surgiu na Alemanha, a partir dos estudos de autores que faziam parte da Escola de Frankfurt, criada em 1923, como: Adorno, Horkeimer, Marcuse e Benjamim. A princípio, a Teoria Crítica faz uma análise minuciosa das relações de cultura e política cultural de massas no capitalismo e, posteriormente, suas análises vão para além do capitalismoe suas formas, pois se aproximam dos aspectos cognitivos e do conhecimento técnico como formas de dominação. ( Saiba mais GIROUX, H. A. Teoria crítica e resistência em educação: para além das teorias de reprodução. Tradução Angela Maria B. Biaggio. Petrópolis: Vozes, 1986. ) No que se refere às suas finalidades, em termos mais específicos, podemos dizer que as Teorias Críticas do Currículo surgiram em oposição às teorias tradicionais e se preocuparam em desenvolver conceitos que permitissem compreender, com base em uma análise marxista, o que o currículo faz. Portanto, “efetuam uma completa inversão nos fundamentos das teorias tradicionais” (SILVA, 2003, p. 29). Uma característica importante dessas teorias críticas que, a nosso ver deve ser destacada, é que, no desenvolvimento de seus conceitos, existiu uma ligação entre educação e ideologia. Nesses termos, verificamos que vários pensadores elaboraram teorias que foram identificadas como críticas e, embora tivessem uma linha semelhante de pensamento, apresentavam suas individualidades. Mas, afinal, quais são as contribuições dessas teorias e quando elas surgiram? No que diz respeito às suas contribuições, a literatura mostra que o mérito dessas teorias está principalmente em realizar uma inversão nos fundamentos das teorias tradicionais, sendo que isso ocorre porque elas invertem as perspectivas colocadas pelos enfoques tradicionais ao efetuarem os necessários questionamentos com relação à formação social dominante. Quadro 2 - Principais diferenças dos fundamentos das teorias tradicionais e das teorias críticas (Silva, 2003) Teorias tradicionais · tomam o status quo como referêncial desejável, concentram‑se nas formas de organização e elaboração do currículo. · restringem‑se à atividade técnica de como fazer o currículo. · teorias de aceitação, ajuste e adaptação. Teorias críticas · desconfiam do status quo, responsabilizando‑o pelas desigualdades e injustiças sociais. · teorias de desconfiança, questionamento e transformação radical. · o importante é desenvolver conceitos que nos permitam compreender o que o currículo faz. Fonte: Silva (2003, p. 25). Quanto à sua origem, entendemos que não podemos dizer que houve uma data específica para o fato, mas, sim, um período de transição que, por sua vez, veio acompanhado de uma série de movimentos sociais e culturais que caracterizaram os anos 1960 em todo o mundo, surgindo, portanto, as primeiras teorizações questionando o pensamento e a estrutura educacional tradicionais, em específico, aqui, as concepções sobre o currículo. Grosso modo, podemos dizer que as críticas advindas dos movimentos sociais expressavam a insatisfação com a escola seletiva e excludente, despreocupada com o processo de aprendizagem dos alunos e esvaziada de conteúdos com significados vitais. Diante disso, podemos questionar: o que esses movimentos sociais tinham a ver com a questão curricular? Valendo‑se de sua não neutralidade, podemos afirmar que os movimentos que eclodiram nos anos 1960 articularam algumas experiências alternativas de currículo que, historicamente, representaram outra possibilidade de pensar e fazer uma escola, mas não como estava e, sim, uma escola inclusiva e que atendesse aos interesses das classes menos favorecidas. Na década seguinte (1970), surgiram várias publicações sobre o assunto, sendo que, para exemplificar o exposto, recorremos a uma cronologia feita por Silva (2003, p. 30), quando apresenta alguns marcos fundamentais tanto da teoria educacional crítica mais geral quanto da teoria crítica sobre o currículo, conforme segue: · 1970 – Paulo Freire: Pedagogia do oprimido. · 1970 – Louis Althusser: A ideologia e os aparelhos ideológicos do Estado. · 1970 – Pierre Bourdieu e Jean‑Claude Passeron: A reprodução. · 1971 – Baudelot e Establet: L’école capitaliste en France. · 1971 – Basil Bernstein: Class, codes and Control, vol. 1. · 1971– Michael Young: Knowledge and control: new directions for the sociology of education. · 1976 – Samuel Bowles e Herbert Gintis: Schooling in capitalist America. · 1976 – William Pinar e Madeleine Grumet: Toward a poor curriculum. · 1979 – Michael Apple: Ideologia e currículo. · 1981 – Henry Giroux: Ideologia, cultura e o processo de escolarização. A partir da teoria marxista, esses autores, com ênfases diversas, investigaram a estreita relação entre a educação e a produção e disseminação da ideologia, apontando a escola como um espaço de reprodução da sociedade capitalista. Dessa forma, entendemos que as contribuições desses autores, de uma forma ou de outra, enquadram‑se em duas correntes teóricas que não se excluem, ao contrário, complementam‑se e são compreendidas como: · a sociologia do currículo, com origem nos Estados Unidos, voltou‑se para o exame das relações entre currículo e estrutura social, currículo e cultura, currículo e poder, currículo e ideologia, currículo e controle social. De acordo com Moreira e Silva (2002), nesse enfoque, observava‑se uma preocupação maior no sentido de entender a favor de quem o currículo trabalha e como fazê‑lo trabalhar a favor dos grupos e das classes oprimidas. Para tanto, discute‑se o que contribui, tanto no currículo formal como no currículo em ação e no currículo oculto, para a reprodução de desigualdades sociais. A nova sociologia do currículo, com origem na Inglaterra, fortaleceu os elos entre as mudanças na sociologia e a difusão dos movimentos sociais em defesa dos direitos das mulheres, dos negros, dos homossexuais etc. Segundo Moreira e Silva (2002), os sociólogos voltaram‑se, então, para o exame da relação entre conhecimento e ação e para a necessidade de eliminar do trabalho sociológico prevalecente seus aspectos patriarcais e sexistas. De acordo com Moreira (1990), a sociologia da educação difundiu‑se e transformou‑se, em decorrência de dois fatores. O primeiro foi a mudança ocorrida no curso de formação de professores, que passou de três para quatro anos, reservando‑se esse ano adicional para estudos pedagógicos. Tais estudos incluíram a sociologia da educação, o que aumentou a demanda e a formação de professores para ensiná‑la. O segundo fator foi o fracasso das reformas e iniciativas educacionais promovidas pelo governo (educação compensatória, educação compreensiva, educação comunitária etc.), buscando reduzir as desigualdades. Tal fracasso lançou sérias dúvidas quanto à validade da fundamentação teórica dessas iniciativas – o funcionalismo. A tradição da aritmética política perdeu sua hegemonia, e uma nova abordagem começou a emergir. Uma vez apresentada uma cronologia, bem como um preâmbulo da sociologia do currículo e da nova sociologia do currículo, propomos, a seguir, uma síntese das contribuições dos autores expoentes desse movimento: Paulo Freire Ao analisar a obra desse autor, percebemos que, embora não tenha elaborado uma teoria sobre currículo, acaba discutindo essa questão em suas pesquisas. Percebemos que sua análise está mais baseada na filosofia e voltada para o desenvolvimento da educação de adultos em países subordinados à ordem mundial. A teorização de Freire é claramente pedagógica, não se limita a analisar como são a educação e a pedagogia existentes, mas apresenta uma teoria bastante elaborada de como elas devem ser. Figura 8 A crítica de Freire ao currículo está resumida ao conceito de “educação bancária”, que concebe o conhecimento como constituído por informações e fatos a serem simplesmente transferidos do professor para o aluno, instituindo, assim, um ato de depósito bancário. Critica também que a educação se resume a apenas transmitir o conhecimento e que o professor tem um papel ativo, enquanto o aluno, de recepção passiva, pois nessa perspectiva o currículo está, na concepção do autor, desligado da situação existencial das pessoas envolvidas no ato de conhecer (HORNBURG; SILVA, 2007). ( Saiba mais Dica de leitura: FREIRE, P. Pedagogia do oprimido . 44. ed. Rio de Janeiro: Paze Terra, 2005. FREIRE, P. Educação como prática da liberdade . Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967. ) Freire propõe uma “educação problematizadora”, ou seja, uma compreensão diferente do que significa conhecer como alternativa à “educação bancária”. O autor utiliza‑se do conceito fenomenológico de “intenção” para justificar a educação; sendo assim, o conhecimento é sempre “intencionado”, está sempre dirigido para alguma coisa. “O ato de conhecer não é, entretanto, para Freire, um ato isolado, individual. Conhecer envolve intercomunicação, intersubjetividade” (SILVA, 2003, p. 59). É por meio dessa intercomunicação que os homens mutuamente se educam, ou seja, tanto aquele que ensina quanto aquele que aprende se educam intermediados pelo mundo cognoscível, pois há muito o que aprender, ninguém sabe tudo de tudo que é possível conhecer. É essa intersubjetividade do conhecimento que permite a Freire conceber o ato pedagógico como um ato dialógico. Assim, na perspectiva da educação problematizadora, todos os sujeitos estão ativamente envolvidos no ato de conhecimento. “[...] Educador e educando criam, dialogicamente, um conhecimento do mundo” (SILVA, 2003, p. 60). Na concepção da educação problematizada, o currículo é construído a partir da experiência do educando, que se torna fonte primária de busca dos temas significativos ou temas geradores que vão constituir o conteúdo programático do currículo dos programas de educação de adultos. Dessa forma, o conteúdo programático da educação não é uma doação ou imposição, mas a devolução organizada, sistematizada e acrescentada ao povo daqueles elementos que este lhe entregou de forma desestruturada (SILVA, 2003). Por isso, os educandos participam ativamente das várias etapas da construção do currículo. Paulo Freire realiza, por meio da sua maneira de conceber o currículo, uma resignificação do conceito de cultura. A escola, na perspectiva da educação bancária, privilegia conhecimentos advindos, ou melhor, produzidos, por uma elite, denominados cultura “alta” ou “erudita”. Para esse educador, não há cultura melhor que outra, há várias culturas que devem ser valorizadas, pois todas são produções humanas. Nesse sentido, o autor apaga as fronteiras entre cultura erudita e cultura popular. Resumidamente, são essas as contribuições de Paulo Freire para a Teoria Crítica do Currículo. Louis Althusser No livro A ideologia e os aparelhos ideológicos de Estado, esse filósofo fornece as bases para a crítica marxista da educação. Para ele, a permanência da sociedade capitalista depende da reprodução de seus componentes propriamente econômicos (força de trabalho, meios de produção) e da reprodução de seus componentes ideológicos. Além da continuidade das condições de sua produção material, a sociedade capitalista não se sustentaria se não houvesse mecanismos e instituições encarregadas de garantir que o status quo não fosse contestado. Isso pode ser obtido através da força ou do convencimento, da repressão ou da ideologia (SILVA, 2003, p. 31). Dessa forma, Althusser identifica os principais aparelhos que reproduzem a ideologia dominante por meio de dois veículos: os aparelhos repressivos (a polícia, o judiciário) e os aparelhos ideológicos (a religião, a mídia, a escola e a família) do Estado. Lembrete Ideologia, segundo Althusser, citado por Silva (2003, p. 31): “a ideologia é a constituída por aquelas crenças que nos levam a aceitar as estruturas sociais (capitalistas) existentes como boas e desejáveis”. Assim, a escola é um aparelho ideológico muito importante porque, segundo o autor, atinge praticamente toda a população por um período prolongado de tempo. Nesse sentido, como você acha que a escola transmite essa ideologia? É justamente por meio do currículo que ela reproduz a ideologia dominante (capitalista, neoliberal), por meio do que ensina. Essa transmissão pode ser observada de duas formas (SILVA, 2003): · de uma forma mais direta, por meio das disciplinas mais suscetíveis à divulgação de crenças explícitas sobre a continuidade das estruturas sociais existentes, como História, Geografia e Estudos Sociais, por exemplo; · ou, de forma indireta, por meio de disciplinas mais técnicas, como Ciências e Matemática. Além dos conteúdos ensinados nessas disciplinas, o autor destaca que a ideologia atua de forma discriminatória ao ensinar as pessoas das classes subordinadas à submissão e à obediência, enquanto as pessoas das classes dominantes aprendem a comandar e a controlar, pois os mecanismos seletivos da escola não facilitam a chegada dos filhos das classes subalternas aos níveis mais elevados do ensino (SILVA, 2003). Como você pode observar, a análise de Althusser revoluciona a forma de pensar o currículo. Ele incorpora conceitos (ideologia, aparelhos ideológicos do Estado, sendo a escola um deles) que nos permitem enxergar na escola e no currículo, especificamente, aspectos críticos que nos fazem repensar os conhecimentos que ensinamos e o que estamos formando com essas ideias. Será que é possível ensinar ou desenvolver um currículo neutro, isento de ideologias? Segundo Paulo Freire, ensinar é um ato político, é impossível desenvolver educação sem pensar no tipo de homem e de sociedade que se quer formar. Vamos guardar essas questões, pois as retomaremos em breve. Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron Figura 9 – Pierre Bourdieu Figura 10 – Jean‑Claude Passeron Esses autores desenvolveram o conceito de reprodução. Eles veem o funcionamento da escola e da cultura por meio de metáforas à economia. “A cultura funciona como uma economia, como demonstra, por exemplo, a utilização do conceito de ‘capital cultural’” (SILVA, 2003, p. 34). A reprodução da cultura dominante garante a reprodução mais ampla da sociedade. Assim, a cultura que tem prestígio e valor social é justamente a das classes dominantes. A citação a seguir demonstra exatamente como é adquirido o capital cultural. [...] a cultura das classes dominantes: seus valores, seus gostos, seus costumes, seus hábitos, seus modos de se comportar, de agir. Na medida em que essa cultura tem valor em termos sociais; na medida em que ela vale alguma coisa; na medida em que ela faz com que a pessoa que a possui obtenha vantagens materiais e simbólicas, ela se constitui como capital cultural (SILVA, 2003, p. 34). O capital cultural existe em diversos estados. Ele pode apresentar‑se em estado objetivado, ou seja, algo material, palpável, como, por exemplo, as obras de arte, as obras literárias, as obras teatrais etc.; ou de forma institucionalizada, sob a forma de títulos, certificados e diplomas; ou, ainda, de forma incorporada, introjetada, internalizada, habitus. Mas e a escola? Como ela fica nesse caso? Mais do que isso, e o currículo? Afinal, estamos discutindo o currículo escolar! Na análise de Silva (2003), fica evidente que a escola não atua pela inculcação da cultura dominante às crianças e jovens das classes dominadas, ao contrário, por um mecanismo que acaba por funcionar como instrumento de exclusão. A escola legitima a cultura dominante e exclui aqueles que não compreendem os valores e códigos dos quais as crianças pertencentes à cultura dominantes aprendem naturalmente em suas famílias, resultando no fracasso daqueles oriundos das classes dominadas, pois não conseguem reconhecer sua cultura na escola, enquanto aqueles que vêm das classes dominantes conseguem reconhecer e fortalecer seu capital cultural na escola. Assim, é por meio dessa reprodução cultural que as classes sociais se mantêm tal como existem, garantindo o processo de reprodução social. Dessa forma, o currículo da escola estaria baseado na cultura dominante, e as crianças dessa classe poderiam facilmente compreender o código, pois é natural a elas, mas o mesmo não ocorre com as crianças das classes dominadas. Nesse caso, de acordo com Silva (2003, p. 35), esse “código funciona como uma linguagem estrangeira”, sendo, portanto, incompreensível. Esses autores propõem, então, uma pedagogia racional,em que as crianças das classes dominadas pudessem ter na escola uma educação que lhes proporcionasse a mesma imersão duradoura na cultura dominante que faz parte da experiência das crianças das classes dominantes. Dessa forma, Bourdieu e Passeron defendem uma pedagogia e um currículo que reproduzam, na escola, para as crianças das classes dominadas, aquelas condições que apenas as crianças das dominantes têm na família (SILVA, 2003). Christian Baudelot e Roger Establet Esses autores, na obra A escola e o capitalismo na França, desenvolveram uma teoria sobre o funcionalismo dualista do sistema educacional. Sinalizaram que, longe de ser único ou homogêneo e de oferecer chances a todos, o sistema escolar é profundamente seletivo e gera a desigualdade, na medida em que se assenta em duas redes bem estanques e pouco visíveis, ou seja, de um lado, uma rede primária e profissionalizante destinada a fornecer uma mão de obra de execução, e, do outro, uma secundária e superior que prepara às funções de concepção e de comando. Esses autores, na verdade, aprofundaram a teoria de Althusser de que a escola contribui para a reprodução da sociedade capitalista ao transmitir, por meio das matérias escolares, as crenças que nos fazem ver os arranjos sociais existentes como bons e desejáveis (SILVA, 2003 p. 32). Basil Bernstein De acordo com Silva (2003), ele elaborou sua teoria na linha sociológica, definindo que a educação formal encontra sua realização em três sistemas de mensagem: o currículo, a pedagogia e a avaliação. Diante disso, percebemos que Berstein entende que o currículo define o que conta como conhecimento válido, a pedagogia, por sua vez, define o que conta como transmissão válida do conhecimento, sendo que a avaliação resgata o que conta como realização válida desse conhecimento. No dizer de Silva (2003), a preocupação de Basil Berstein estava centrada em dois pontos básicos, a saber: na organização estrutural do currículo e como os diferentes tipos de organização estão ligados a princípios diferentes de poder e controle. Esse autor apresenta dois tipos de organização estrutural do currículo: o currículo tipo coleção e o currículo integrado. No currículo tipo coleção, as áreas e os campos de conhecimento são mantidos fortemente isolados, separados. Não há permeabilidade entre as diferentes áreas do conhecimento. No currículo integrado, as distinções entre as diferentes áreas de conhecimento são muito menos nítidas e marcadas (SILVA, 2003). Berstein desenvolveu alguns conceitos importantes ao analisar o currículo (SILVA, 2003): · classificação: quanto maior o isolamento das áreas de conhecimento, maior a classificação. A classificação é uma questão de fronteiras. Que coisas podem ficar juntas? Um currículo tradicional seria fortemente classificado. Um currículo interdisciplinar seria fracamente classificado; · enquadramento: quanto maior o controle do processo de transmissão por parte do professor, maior é o enquadramento; · poder: está essencialmente ligado à classificação; · controle: está associado ao enquadramento, ao ritmo, ao tempo, ao espaço da transmissão; · código: adquirido diferencialmente pelas pessoas das diferentes classes – uma gramática (regras) que permite às pessoas distinguir entre os diferentes contextos, distinguir quais são os significados relevantes em cada contexto e como expressar publicamente esses significados nos contextos respectivos. Assim, a posição ocupada na divisão social determina o tipo de código aprendido. O tipo de código determina a consciência da pessoa, o que ela pensa e, portanto, os significados que ela realiza ou produz na interação social. Para o autor, há dois tipos de códigos: o código elaborado (destinado à classe dominante) e o código restrito (destinado à classe dominada). O código é implicitamente aprendido por meio da maior ou menor classificação do currículo ou do maior ou menor enquadramento da Pedagogia. É a estrutura do currículo ou da Pedagogia que determina quais modalidades do código serão aprendidas. Michael Young Segundo Silva (2003), a proposta do teórico é delinear as bases de uma sociologia do currículo, pois a antiga Sociologia não questionava a natureza do conhecimento escolar ou o papel do próprio currículo na produção daquelas desigualdades. O currículo tradicional era simplesmente tomado como dado e, portanto, como implicitamente aceitável. Na Nova Sociologia da Educação (NSE), a preocupação era com o processamento de pessoas, e não com o processamento do conhecimento, ou seja, seu principal objetivo era destacar “[...] o caráter socialmente construído das formas de consciência e de conhecimento, bem como suas estreitas relações com estruturas sociais, institucionais e econômicas” (SILVA, 2003, p. 66). Dessa forma, “[...] uma perspectiva curricular inspirada pelo programa da Nova Sociologia da Educação (NSE) buscaria construir um currículo que refletisse as tradições culturais e epistemológicas dos grupos subordinados, e não apenas dos grupos dominantes” (SILVA, 2003, p. 69). Assim, na NSE a questão das categorias curriculares, pedagógicas e avaliativas é desnaturalizada, mostrando seu caráter histórico, social, contingente e arbitrário. No fundo, esses autores fazem uma crítica sociológica e histórica dos currículos existentes, buscando investigar as conexões entre, de um lado, os princípios de seleção, organização e distribuição do conhecimento escolar e, de outro, os princípios de distribuição de recursos econômicos e sociais mais amplos, ou seja, uma conexão entre currículo e poder (SILVA, 2003). Samuel Bowles e Herbert Gintis Figura 11 – Samuel Bowles Na obra A escola capitalista na América, esses autores introduziram o conceito de correspondência para estabelecer a natureza da conexão entre escola e produção. Nesse caso, percebemos a ênfase atribuída à aprendizagem, por meio da vivência das relações sociais da escola, das atitudes necessárias para se qualificar como um bom trabalho capitalista. Isso se deve ao fato de que: As relações sociais do local de trabalho capitalista exigem certas atitudes por parte do trabalhador: obediência a ordens, pontualidade, assiduidade, confiabilidade, no caso do trabalhador subordinado; capacidade de comandar, de formular planos, de se conduzir de forma autônoma, no caso dos trabalhadores situados nos níveis mais altos da escala ocupacional (SILVA, 2003, p. 33). Nesses termos, observamos que a escola contribui para esse processo não propriamente por meio do conteúdo explícito de seu currículo, mas ao espelhar, no seu funcionamento, as relações sociais de trabalho. Assim, é por meio da correspondência (conceito‑chave na teoria curricular desses autores) entre as relações sociais da escola e as relações sociais do local de trabalho que a escola contribui para a reprodução das relações sociais de produção da sociedade capitalista (SILVA, 2003). William Pinar William Pinar e outros autores começaram a perceber que a compreensão do currículo como uma atividade meramente técnica e administrativa, como ocorria com os modelos de Bobbitt e Tyler, não se enquadrava muito bem nas teorias sociais. Diante disso, instituíram um movimento que ficou conhecido como movimento de reconceptualização, que exprimia a insatisfação crescente de pessoas do campo do currículo com os parâmetros tecnocratas vigentes até então. Mas vamos entender um pouco mais o que pensavam os autores desse movimento teórico. A base teórica de análise do currículo para os reconceptualistas é a fenomenologia. Nessa perspectiva, o currículo é visto como experiência e como local de interrogação e questionamento da experiência. observação Fenomenologia é um tratado científico sobre a descrição e classificação dos fenômenos que se propõe a ser uma ciência do subjetivo, dos fenômenos e dos objetos como objetos. No currículo fenomenológico, os alunos são encorajados a aplicar à sua própria experiência, ao seu próprio mundo vivido. Os temas submetidos à análise na literatura fenomenológica sobre currículo parecemquase sempre banais, porque são retirados da experiência banalizada da vida cotidiana. O currículo é compreendido como um aspecto formativo da experiência vivida. Assim, autores como Pinar utilizam‑se de recursos como a autobiografia para análise do currículo. Ele sugere que examinemos autobiograficamente nossa vida escolar e educacional: “como foi nossa experiência educacional quando entramos na escola; quais episódios lembramos; quais foram nossos sentimentos nesses episódios; quais as conexões entre nosso eu e o conhecimento formal?” (SILVA, 2003, p. 44). Segundo esse autor, essa investigação autobiográfica seria extremamente importante no processo de formação docente. Michael Apple Segundo Silva (2003), Apple vê o currículo em termos estruturais e relacionais, sua perspectiva de análise é política. A partir da publicação de seu livro Ideologia e currículo (Estados Unidos, 1979), ele sinaliza que o currículo está estreitamente relacionado às estruturas econômicas e sociais mais amplas. Nesses termos, fica evidente que o currículo não é um corpo neutro, inocente e desinteressado de conhecimentos. Dessa forma, contrariamente ao que supõe o modelo de Tyler, o currículo não é organizado por um processo de seleção que recorre às fontes imparciais da filosofia ou dos valores supostamente consensuais da sociedade (SILVA, 2003). Apple deixa claro que a questão não é saber qual conhecimento é verdadeiro, mas qual conhecimento é considerado verdadeiro. Com isso, devemos nos preocupar com as formas pelas quais certos conhecimentos são considerados como legítimos, em detrimento de outros, vistos como ilegítimos ao contrário do que preconizavam os modelos tradicionais cujo conhecimento existente era tomado como dado e inquestionável. Na perspectiva política postulada por Apple, a seleção que constitui o currículo é o resultado de um processo que reflete os interesses particulares das classes e dos grupos dominantes. Nesse sentido, os porquês é que são importantes: por que esses conhecimentos e não outros? Por que esse conhecimento é considerado importante e não outro? Trata‑se de conhecimentos de quem? Quais interesses guiaram a seleção desse conhecimento particular? Quais são as relações de poder envolvidas no processo de seleção que resultou nesse currículo particular? (SILVA, 2003). Apple procura, em sua análise do currículo, enfatizar tanto os conteúdos explícitos no currículo oficial como o ensino implícito nas normas, nos valores e nas disposições. Ele enfatiza as relações de classe, embora admita a importância, secundária, das relações de gênero e raça no processo de reprodução cultural e social exercido pelo currículo. Henry Giroux Para Giroux, as teorias tradicionais do currículo concentram‑se em critérios de eficiência e racionalidade burocrática, deixando de levar em consideração o caráter histórico, ético e político das ações humanas e sociais, e, particularmente, no caso do currículo, do conhecimento, contribuindo para a reprodução das desigualdades e das injustiças sociais. É no conceito de resistência que o autor busca as bases para sua teorização crítica. Ele critica o pessimismo das teorias críticas de reprodução e sugere que existem mediações e ações no nível da escola e do currículo que podem trabalhar contra os desígnios do poder e do controle (SILVA, 2003). Segundo Giroux, é possível canalizar o potencial de resistência demonstrado por estudantes e professores para desenvolver uma pedagogia e um currículo que tenham um conteúdo claramente político e que seja crítico das crenças e dos arranjos sociais dominantes. Assim, é por meio de um processo pedagógico que permita às pessoas tornarem‑se conscientes do papel de controle e de poder exercido pelas instituições e pelas estruturas sociais que elas podem se tornar emancipadas ou libertadas de seu poder e controle. De acordo com a análise de Silva (2003), Giroux vê a Pedagogia e o currículo por meio da noção de política cultural. O currículo envolve a construção de significados e valores culturais e não está simplesmente envolvido com a transmissão de fatos e conhecimentos objetivos. Trata‑se de um local onde, ativamente, se produzem e se criam significados sociais. Esses significados estão estreitamente ligados a relações sociais de poder e desigualdade. Um último conceito importante presente nas Teorias Críticas do currículo é o currículo oculto. Mas você tem ideia do que seja o currículo oculto? O currículo oculto é constituído por todos aqueles aspectos do ambiente escolar que, sem fazerem parte do currículo oficial explícito, contribuem, de forma implícita, para as aprendizagens sociais relevantes (SILVA, 2003). Na perspectiva crítica, segundo Silva (2003), o que se aprende no currículo oculto são fundamentalmente atitudes, comportamentos, valores e orientações que permitem ajustes às estruturas e funcionamento da sociedade capitalista (conformismo, obediência, individualismo). Numa perspectiva mais ampla, aprendem‑se, por meio do currículo oculto, atitudes e valores próprios de outras esferas sociais, como aqueles ligados à nacionalidade. Mais recentemente, nas análises que consideram as dimensões de gênero, da sexualidade ou da raça, aprende‑se, no currículo oculto, como ser homem ou mulher, como ser heterossexual ou homossexual, bem como a identificação com uma determinada raça ou etnia. São várias as fontes do currículo oculto: · as relações sociais da escola – professores e alunos, entre a administração e os alunos, entre alunos e alunos; · a organização do espaço escolar; · tempo – pontualidade, controle do tempo, divisão do tempo para cada atividade; · rituais, regras, regulamentos e normas; · divisões e categorias – os mais capazes, entre meninos e meninas, entre currículo acadêmico e currículo profissional. Por fim, recorremos a Pacheco (2005), que nos sinaliza que a complexidade dos estudos educacionais críticos, em que se reconhecem contradições, significa a existência de lutas por ideias e práticas associadas a uma problematização constante daquilo que fazemos e naquilo que pretendemos praticar. Portanto, não podemos nos esquecer de que o currículo precisa ser visto, mais do que nunca, como um território contestado, e as decisões sobre o que deve ser ensinado nas escolas e a forma de ensinar ainda criam um ambiente de conflito que merece uma atenção especial por parte de todos os atores envolvidos no contexto educacional. 2.3 teorias pós‑críticas Para a Teoria pós‑crítica, o currículo é uma prática discursiva que tem autoridade textual, uma natureza subjetiva e cultural, sendo que podemos ver isso na escola, por conta da diversidade; afinal, nessa proposta são discutidos assuntos como: identidade, alteridade, diferença, subjetividade, significação e discurso, saber‑poder, representação, cultura, gênero, raça, etnia, sexualidade e multiculturalismo (SILVA, 2003). Parafraseando Hornburg e Silva (2007), portanto, podemos começar a falar sobre as Teorias pós‑críticas analisando o currículo multiculturalista, que destaca a diversidade de formas culturais do mundo contemporâneo. Mesmo sendo considerado estudo da Antropologia, mostra que nenhuma cultura pode ser julgada superior à outra. Em relação ao currículo, o multiculturalismo aparece como movimento contra o currículo universitário tradicional, que privilegiava a cultura branca, masculina, europeia e heterossexual, ou seja, a cultura do grupo social dominante. Com as Teorias pós‑críticas do currículo, percebemos que a análise do poder é ampliada para incluir os processos de dominação centrados na raça, na etnia, no gênero, na sexualidade, na cultura colonialista. Essas teorias rejeitam a ideia de consciência coerente e centrada, questionam a ideia de subjetividade dizendo que ela é social. Além do mais, não existe um processo de conscientização e libertação possível (SILVA, 2003). Depreendemos, portanto, que o currículo, dentro da visão pós‑crítica, deve possibilitar a ampliação do espaço político e social no interior da escola para discutir nocoletivo, o que significa uma boa sociedade e quais as melhores maneiras de alcançá‑la. Nesses termos, indagamos: que questões deveriam orientar um currículo na perspectiva das teorias pós‑críticas? A título de sugestão, propomos as que seguem: · O que conta como conhecimento? · Como o currículo está implicado na formação da masculinidade? · Que conexões existem entre as formas como o currículo produz e reproduz a masculinidade e as formas de violência, controle e domínio que caracterizam o mundo social mais amplo? · Quais são os mecanismos de construção das identidades nacionais, raciais e étnicas? · Como a construção da identidade e da diferença está vinculada à relação de poder? · Como a identidade dominante tornou‑se a referência invisível por meio da qual se constroem as outras identidades como subordinadas? · Quais são os mecanismos institucionais responsáveis pela manutenção da posição subordinada de certos grupos étnicos e raciais? · O que torna algo pensável? · O que torna algo correto ou incorreto? · O que torna algo moral ou imoral? · O que torna algo normal ou anormal? · Onde, quando, por quem foram criados os conteúdos ensinados? · Em que medida o currículo é moldado pela visão colonial? · Por que trabalhamos com divisão rígida de disciplinas em vez de situações‑problema? · Em que medida as definições de nacionalidade e raça, forjada no contexto da conquista e expansão colonial, continuam predominantes nos mecanismos de formação da identidade cultural e da subjetividade embutidos no currículo oficial? · De que forma as narrativas que constituem o núcleo do currículo contemporâneo continuam celebrando a soberania do sujeito imperial europeu? · Como, nessas narrativas, são construídas concepções sobre raça, gênero e sexualidade que se combinam para marginalizar identidades que não se conformam às definições de identidade considerada normal? · Como as formas culturais que estão no centro da sociedade de consumo contemporânea expressam novas formas de imperialismo cultural? · Qual o papel dessas novas formas de imperialismo cultural na formação de uma identidade cultural hegemônica e uniforme? · Como o currículo, considerado como um local de conhecimento e poder, reflete e, ao mesmo tempo, questiona formas culturais que podem ser vistas como manifestações de um poder neocolonial ou pós‑colonial? · Quais conhecimentos são considerados válidos? Acreditamos que esses questionamentos são importantes para refletirmos sobre o assunto que não se esgota nele mesmo, pois eles nos ajudam a ampliar as discussões sobre o currículo na contemporaneidade. A despeito disso, não podemos nos esquecer de que eles não têm respostas, mas sugerem pistas para analisarmos o cotidiano escolar nos seus diferentes aspectos. Por outro lado, entendemos também que esses questionamentos são importantes para justificar o fato de que grande parte da produção que surgiu a partir da década de 1990 foi influenciada pelo pensamento pós‑moderno, com ênfase na análise da relação entre currículo e construção de identidades e subjetividades. Constatamos que essa linha de trabalho está presente nas produções de Giroux (anos 1990), McLaren, Cherryholmes e Popkewitz. Esses teóricos defendem que o currículo constrói identidades e subjetividades, uma vez que, junto com os conteúdos das disciplinas escolares, se adquirem, na escola, valores, pensamentos e perspectivas de uma determinada época ou sociedade. Por isso, os estudos sobre a cultura escolar, a cultura que a escola privilegia, as diferenças culturais dos grupos sociais e as relações entre esses elementos têm sido preocupações crescentes no campo curricular. Os estudos multiculturais enfatizam a necessidade de o currículo dar voz às culturas excluídas, negadas ou silenciadas. Apenas para ilustrar, no estudo do currículo multicultural, destacam‑se pesquisadores como: José Gimeno Sacristán, Henry Giroux, Antonio Flávio Moreira, Tomaz Tadeu da Silva, Peter McLaren e Jurjo Santomé. Verificamos também que as questões raciais e étnicas começaram a fazer parte das teorias pós‑críticas do currículo quando a problemática da identidade étnica e racial se inseriu no bojo das análises e discussões. Tal fato ocorreu porque o currículo não pode se tornar multicultural apenas se incluindo nele informações sobre outras culturas. Ainda sobre o assunto, precisamos considerar as diferenças étnicas e raciais como uma questão histórica e política. Não obstante, para uma análise mais contemplativa desses aspectos, é essencial, por meio do currículo, desconstruir o texto racial, questionar por que e como valores de certos grupos étnicos e raciais foram desconsiderados ou menosprezados no desenvolvimento cultural e histórico da humanidade e, pela organização do currículo, proporcionar os mesmos significados e valores a todos os grupos, sem supervalorização de um ou de outro (HORNBURG; SILVA, 2007). A seguir, poderemos compreender um pouco mais a ideia do currículo multicultural e suas implicações para a educação. 3 MuDANçAS SoCIAIS E CuLtuRAIS: o CuRRÍCuLo NA REALIDADE AtuAL Após termos estudado as principais teorias do currículo, consideramos importante compreender um pouco da realidade atual, a fim de percebermos as principais indicações para o currículo e para a escola na atualidade. Sendo assim, primeiro vamos pensar um pouco sobre a realidade atual em que vivemos. Você já parou para pensar nisso? Quais são as demandas atuais? O que se espera do cidadão atualmente? Quais os principais desafios ao estudante? Pensando nessas questões, buscaremos pistas para “desvelar” o momento atual e suas “exigências” ao currículo e à escola. Para começar, podemos dizer que a questão cultural é um fator importante a ser considerado no currículo escolar atualmente. Por que fazemos essa afirmação? Vivemos numa sociedade globalizada. Você sabe o que é globalização? Quais as principais características desse processo que é mundial? Segundo Boaventura de Souza Santos, citado por Araujo (2009), o processo de globalização foi intensificado nas últimas três décadas e é caracterizado como um fenômeno multifacetado com dimensões econômicas, sociais, políticas, culturais, religiosas e jurídicas interligadas de modo complexo. Com relação à questão econômica, há uma divisão desigual da riqueza mundial. Nesse processo de globalização, podemos dividir os países em três grupos. Os países centrais são os mais ricos e presidem a globalização hegemônica, e dela tiram vantagens, maximizam as oportunidades criadas e transferem para outros países menos desenvolvidos os custos sociais e outros que ela produz. Ao contrário, os países periféricos são aqueles que já eram pobres e, nos últimos anos, vêm sofrendo ainda mais uma degradação da sua posição no sistema mundial; concomitantemente, uma degradação dos seus já baixos padrões de vida, justamente porque são os mais afetados com os custos da globalização hegemônica, sem terem condições de usufruir das oportunidades por ela geradas. Além desses dois, que são extremos, há os chamados países semiperiféricos, que podem tanto conseguir alcançar as vantagens da globalização e prosperar no sistema mundial como culminar na despromoção de sua economia e imagem. Podemos dizer que o nosso país encontra‑se nesta última categoria (ARAUJO, 2009). Esse processo de globalização foi intensificado no final da década de 1970, quando houve a implantação de políticas neoliberais e a reestruturação econômica global. ( Saiba mais Dica de leitura : MALAGUTI, M. et al. (Org.). Neoliberalismo : a tragédia do nosso tempo. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2000. SANTOS, B. S. (Org.). A globalização e as Ciências Sociais . 3. ed. São Paulo: Cortez, 2005. ) A lógica neoliberal intensificou‑se nas décadas de 1970 e 1980, quando houve uma enorme expansão do liberalismo como reação político‑ideológica à crise dos anos 1970, quando o Estado de Bem‑Estar Social foi pressionado a se afastar de seu papel de árbitro entre o trabalho e o capital porque não estava maisconseguindo cumprir com os seus gastos, devido à situação complicada que o capitalismo atravessava na época, com os trabalhadores lutando para manter seus altos salários e os concorrentes estrangeiros pressionando para reduzir os preços, além de outros fatores sociais. Assim, essas ideias neoliberais surgem como funcionais e adequadas aos interesses da classe dominante e, evidentemente, em contrapartida à derrocada do socialismo real na antiga União Soviética (ARAUJO, 2009). Na década de 1990, houve o desenvolvimento do processo de internacionalização do capital – a globalização da economia –, caracterizado principalmente por: crescimento das atividades internacionais das firmas e dos fluxos comerciais; ampla mudança da base tecnológica; reordenação dos mercados, com maior importância para a Ásia; intensificação da circulação financeira, com expansão na mobilidade e na intermediação do capital internacional; predomínio das trocas intrassetoriais; reorganização dos grupos industriais em redes de firmas etc. (CARCANHOLO, 2000, apud ARAUJO, 2009, p. 47). Assim, dentro dessas mudanças, os países periféricos e semiperiféricos são os mais atingidos pelos impactos neoliberais, que são transformados pelas agências financeiras multilaterais (por exemplo, Banco Mundial e FMI) em condições para a renegociação da dívida externa, por meio dos programas de ajustamento estrutural. Essas agências multilaterais, por sua vez, são consideradas responsáveis pela globalização da pobreza, resultante não da falta de recursos humanos ou materiais, mas pelo desemprego, pela destruição das economias de subsistência e da minimização dos custos salariais à escala mundial. Essa situação agrava ainda mais a pobreza mundial, aumentando e acelerando as desigualdades sociais. Santos (2005, citado por Araujo, 2009) apresenta dados estatísticos que comprovam essa triste realidade. Segundo estimativas da Organização das Nações Unidas (ONU), um bilhão e meio de pessoas (¼ da população mundial) vivem na pobreza absoluta, ou seja, com rendimento inferior a um dólar por dia, enquanto outros dois bilhões, com o dobro desse rendimento. De acordo com o Relatório do Banco Mundial de 1995, os países pobres (85 da população mundial) detêm apenas 21 dos rendimentos mundiais; já os ricos (15 da população mundial), 79 . A globalização produz, também, transformações significativas em nível cultural, como a mudança nos meios de comunicação globais (TV a cabo, satélites, internet); a cultura comercial (por exemplo, McDonald´s, Nike e outras marcas); maior mobilidade, com setores de viagens e turismo bastante ampliados; distribuição mundial de filmes, televisão e produtos musicais; maior presença e visibilidade de religiões globais que mudam rituais locais, transformando‑os em rituais transnacionais; mundo global dos esportes, entre outras. Nesse sentido, Lingard (2004), citado por Araujo (2009), argumenta que há uma disjunção entre economia, cultura e política que pode ser representada em diversos cenários; entre eles, cenários étnicos, tecnológicos e ideológicos. Assim, os cenários étnicos referem‑se a um grande e rápido movimento de pessoas ao redor do globo e entre nações por uma variedade de razões, evidenciando a desterritorialização da experiência contemporânea. Os cenários tecnológicos permitem a comunicação instantânea como parte da relação de distância espaço‑temporal da globalização, facilitando a comunicação entre legisladores e, assim, aumentando a probabilidade de um campo e uma comunidade de políticas educacionais globais. Os cenários ideológicos referem‑se ao rápido fluxo global de ideias recontextualizadas em diferentes contextos nacionais e locais. Mas e a educação, de que forma ela é afetada pela globalização econômica e cultural? A educação, por meio de políticas educacionais, também é afetada pelos impactos da globalização hegemônica pautada numa ideologia neoliberal, efetivada por organizações bilaterais, multilaterais e internacionais que impõem uma agenda educacional, a qual privilegia políticas de avaliação, financiamento, padrões, formação de professores, currículo, instrução e testes (ARAUJO, 2009). No entanto, os impactos da globalização na educação variam de país para país, segundo sua posição na ordem econômica: país central (impactos menores) ou periférico e semiperiférico (impactos maiores), por exemplo, do ponto de vista econômico, as pressões impostas externamente (como as condições para empréstimos do FMI) em alguns países poderão levar a reduções brutais nos gastos com a educação; em outros contextos, o desejo por maior competitividade e produtividade poderá levar a maiores gastos com a educação. Do ponto de vista político, alguns contextos irão organizar a educação em torno de uma concepção revitalizada de nacionalismo e lealdade do cidadão; em outros, uma noção de cidadania cosmopolita pode prevalecer, encorajando viagens, estudo de línguas estrangeiras e tolerância multicultural. E, do ponto de vista cultural, algumas nações irão aceitar, e até encorajar, uma confiança maior na mídia, na cultura popular, ou novas formas de comunicação e informática, como uma possibilidade de se localizarem no mundo global; já outras nações mostrarão resistência e suspeição às influências externas (ARAUJO, 2009). Dessa forma, as principais consequências da globalização hegemônica para as políticas educacionais são promovidas por fatores econômicos, políticos e culturais. Nessa direção, Burbules e Torres (2004), citados por Araujo (2009), destacam algumas influências do setor econômico nas políticas educacionais. Num sentido específico, a educação profissional deverá rever a formação do futuro trabalhador, atendendo e adequando‑se às mudanças nesse setor; por exemplo, reconsiderando a sua missão à luz de mercados instáveis, com vista a um novo ambiente de trabalho, ou seja, pós‑fordista, buscando novas habilidades e a flexibilidade de adaptação às novas demandas do trabalho, lidando com uma mão de obra internacional e cada vez mais competitiva. Num sentido mais amplo, alguns efeitos perpassam a organização e a captação de recursos para todos os níveis educacionais, principalmente das escolas públicas, que contam, agora, com um Estado neoliberal que busca apenas regular e gerenciar, e não mais investir e prover recursos. Os efeitos econômicos mais amplos da globalização tendem a forçar políticas educacionais nacionais em uma estrutura neoliberal que enfatiza impostos mais baixos; redução do setor estatal e “fazer mais com menos”; aproximação das abordagens de mercado às escolhas escolares (particularmente por meio de vales); administração racional de organizações escolares; avaliação de desempenho (testes); e desregulamentação para encorajar novos provedores (incluindo provedores on‑line) de serviços educacionais (BURBULES; TORRES, 2004, p. 23). Seguindo esse raciocínio, as questões culturais também irão fornecer novos desafios à educação; por exemplo, a questão da multiculturalidade, uma realidade incontestável que não permite mais ser negada ou ignorada. De que maneira o discurso do pluralismo liberal – que tem sido o modelo dominante para a educação multicultural em sociedades desenvolvidas que estão aprendendo a conviver com outras, dentro de um modelo de tolerância e respeito mútuos – estende‑se a uma ordem global em que o leque de diferenças torna‑se mais amplo, o senso de interdependência e interesse comum mais atenuado, os fundamentos da afiliação mais abstratos e indiretos (se existirem de fato)? Com as crescentes pressões globais sobre as culturas locais, será papel da educação ajudar a preservá‑las? De que maneira a educação deveria preparar os estudantes para lidarem com elementos de conflitos locais, regionais, nacionais e transnacionais, à medida que culturas e tradições, cujas histórias de antagonismo podem ter sido mantidas parcialmente suspensas por Estados‑nação fortes e poderosos, se desintegram, quando essas instituições perdem um pouco de sua força e legitimidade? Até que ponto a educaçãopode ajudar a sustentar a construção do self e, em um nível mais geral, a constituição de identidades? (BURBULES; TORRES, 2004, apud ARAUJO, 2009, p. 56). Essas questões demonstram que a globalização oferece à educação uma nova realidade que precisa ser levada em consideração na elaboração e na definição do currículo. A educação não pode mais restringir‑se apenas às necessidades locais e individuais dos alunos, deve formar pessoas para viver num mundo global, além da sua própria comunidade. Assim, os objetivos educacionais vão em direção à flexibilidade e adaptabilidade, a aprender a coexistir com o outro em espaços públicos diversos (carregados de conflitos) e a ajudar a formar e sustentar um senso de identidade que possa permanecer viável dentro de contextos múltiplos de afiliação (ARAUJO, 2009). Figura 12 Uma característica das instituições sociais hoje, dentre elas, a escola, é a presença de diversas culturas num mesmo espaço. Como a mobilidade das pessoas hoje é maior, além da presença da tecnologia, como a internet, na qual as fronteiras de espaço e tempo são redefinidas, a convivência e as relações entre as pessoas de diferentes culturas são inevitáveis e precisam ser repensadas. Você pode estar se perguntando: que tipo de relação cultural estamos querendo? É possível aceitar, ainda hoje, a supremacia de uma cultura em relação às demais, como foi o caso do nazismo? Não, isso não pode jamais ser aceito; caso contrário, corremos o risco de reviver momentos lamentáveis da história da humanidade. Figura 13 Vamos pensar um pouco sobre a realidade da convivência das diferentes culturas dentro do espaço escolar. Podemos dizer que essa realidade apresenta‑se como multicultural, pois são várias as culturas dentro do ambiente escolar. Reconhecendo‑a, podemos afirmar que não podemos mais olhar o currículo de forma única, abordando e destacando apenas aspectos e conhecimentos oriundos de uma única cultura, a cultura vinda do homem branco, rico, católico, heterossexual, ou seja, o currículo não deve mais ser monocultural. Nesse sentido, faz‑se necessário uma nova configuração da escola e do currículo diante dessa realidade, nas palavras de Candau (2008, p. 13): O que parece consensual é a necessidade de se reinventar a educação escolar para que possa oferecer espaços e tempos de ensino‑aprendizagem significativos e desafiantes para os contextos sociopolíticos e culturais atuais e as inquietudes de crianças e jovens. Essa autora destaca que não há educação que não esteja imersa nos processos culturais do contexto em que se situa, ou seja, a educação, e o currículo mais especificamente, só faz sentido se estiver de acordo com as necessidades da sociedade, incluindo as questões culturais. Não há como conceber um currículo separado da relação intrínseca entre educação e cultura(s). A relação entre escola, currículo e cultura foi analisada por autores no sentido de denunciar esse caráter monocultural no currículo escolar e nas práticas educacionais, favorecendo e intensificando as diferenças sociais e econômicas entre os diferentes grupos existentes. Hoje há uma tendência em reconhecer esse caráter monocultural do currículo e buscar formas diferenciadas de pensar e refazer o currículo escolar e as práticas educativas, nos quais a questão da diferença e do multiculturalismo se façam presentes. A escola atual deve ser reconhecida como um espaço de cruzamento de culturas, fluido e complexo, carregado de tensões e conflitos. Segundo Candau (2008), a escola é caracterizada como um espaço de mediação reflexiva das influências plurais que as diferenças culturais exercem de forma permanente sobre as novas gerações. A autora utiliza‑se da fala de Perez Gómez para explicar essa ideia: O responsável definitivo da natureza, do sentido e da consistência do que os alunos e alunas aprendem em sua vida escolar é este vivo, fluido e complexo cruzamento de culturas que se produz na escola, entre as propostas da cultura crítica, alojada nas disciplinas científicas, artísticas e filosóficas; as determinações da cultura acadêmica, refletidas nas definições que constituem o currículo; os influxos da cultura social constituída pelos valores hegemônicos do cenário social; as pressões do cotidiano da cultura institucional presente nos papéis, nas normas, nas rotinas e nos ritos próprios da escola como instituição específica; e as características da cultura experimental adquirida individualmente pelo aluno através da experiência nos intercâmbios espontâneos com seu meio (PEREz GÓMEz, 2001, apud CANDAU, 2008, p. 16). Essa citação demonstra que o cruzamento de culturas está presente no contexto escolar e, portanto, faz‑se necessário uma nova dinâmica escolar repensando os diferentes componentes curriculares – conteúdos que são ensinados – e as práticas desenvolvidas de forma homogeneizadora e padronizadora. A escola passa por um momento de crise, justamente porque tem dificuldade em lidar com a pluralidade e a diferença, pois está acostumada com a homogeneidade e a padronização. Seu grande desafio é quebrar esse comodismo e abrir espaços para a diversidade, a diferença e o cruzamento de culturas. Nas palavras de Veiga Neto (2003), citado por Candau (2008, p. 16): Sentimos que a escola está em crise porque percebemos que ela está cada vez mais desenraizada da sociedade. [...] A educação escolarizada funcionou como uma imensa maquinaria encarregada de fabricar o sujeito moderno. [...] Mas o mundo mudou e continua mudando rapidamente sem que a escola esteja acompanhando tais mudanças. Dessa forma, as relações entre escola, currículo e cultura tendem a passar pelas questões colocadas hoje pelo multiculturalismo. Mas você pode estar se perguntando: o que é multiculturalismo, do que se trata? Vamos pensar um pouco sobre esse conceito. Primeiro, é importante destacar que o conceito multiculturalismo possui sentidos muito variados, fato que o caracteriza como polissêmico. Temos, na literatura, muitas interpretações, correntes de pensamento que defendem esse conceito e outras que o abominam. De todo modo, é importante compreender algumas dessas interpretações. Araujo (2009) analisa as várias compreensões que os autores têm desse conceito. Segundo a autora, as análises europeias reduzem o conceito multiculturalismo apenas à constatação, nas instituições sociais, da existência de grupos ou indivíduos de culturas diferentes e, por isso, utilizam a expressão educação multicultural referindo‑se à aceitação passiva da diversidade. No entanto, esses autores utilizam o termo intercultural para representar um contexto de criação da igualdade de oportunidades, supondo o conhecimento e reconhecimento de cada cultura, garantindo, por meio de uma interação crescente, o seu enriquecimento mútuo. Nessa perspectiva, a educação intercultural seria a busca desse conhecimento e reconhecimento das diferentes culturas, buscando a interação crescente e o recíproco enriquecimento. Além do acesso escolar, a educação intercultural proporcionaria um sentido aos alunos para frequentar a escola. Ou seja, para além da igualdade de oportunidades de acesso à escola, a educação proporcionaria condições de igualdade na sua concretização. Assim, Araujo (2009) conclui que essas análises europeias utilizam o termo multiculturalismo apenas como constatação da diversidade de culturas numa sociedade. No entanto, o termo intercultural é utilizado para definir um comportamento diante dessa diversidade de culturas, num sentido de interação e enriquecimento mútuo, utilizado por autores brasileiros e norte‑americanos, envolvendo muito mais que a tolerância ao outro diferente, implicando o reconhecimento e o diálogo entre os diferentes grupos sociais/culturais visando à construção de um projeto comum, no qual as diferenças sejam integradas fazendo parte do patrimônio comum. Dessa forma, alguns autores utilizam o termo multi/interculturalismo para demonstrar que estão entendendo o multiculturalismo americano no mesmo sentido do termo interculturalismo adotado pelosautores europeus. O multiculturalismo, sendo um conceito polissêmico, apresenta‑se com diferentes interpretações. Aqui abordaremos a análise que Peter McLaren (2000) desenvolve sobre o conceito. Esse autor faz uma tentativa de mapear essas diversas correntes, distinguindo quatro concepções de multiculturalismo: conservador ou empresarial, humanista liberal, humanista liberal de esquerda e crítico. Essa rotulação serve apenas como um recurso interpretativo, pois as características de cada posição tendem a se misturar umas com as outras dentro da dinâmica da sociedade. O multiculturalismo conservador diz respeito a uma interpretação da diversidade cultural numa sociedade a partir de visões estereotipadas das pessoas. Há duas tendências principais nesse tipo de interpretação: as visões coloniais (que veem as pessoas afro‑americanas representadas como escravos e serviçais) e as teorias evolucionistas (que biologizam as populações africanas como criaturas em estágios primordiais do desenvolvimento humano). Nessa concepção de multiculturalismo, prevalece o legado colonialista da supremacia branca. Sendo assim, os conservadores aceitam a ideia de que os negros são cognitivamente inferiores e utilizam‑se desse argumento para justificar o poder dos brancos e a manutenção da ordem preestabelecida. Eles pretendem construir uma cultura comum que busque anular o conceito de fronteira, deslegitimando as línguas estrangeiras e os dialetos étnicos e regionais. O multiculturalismo humanista liberal admite, ao contrário do conservador, uma igualdade natural entre as pessoas, sejam brancas, afro‑americanas, latinas, asiáticas, entre outras. Essa igualdade intelectual entre as raças permite que todas as pessoas possam competir igualmente em uma sociedade capitalista. Para os adeptos dessa vertente, nos EUA a igualdade entre as pessoas não se efetiva porque os latinos e negros não possuem as mesmas oportunidades educacionais e sociais e, por isso, não podem competir igualmente no mercado capitalista. Para eles, as restrições econômicas e socioculturais existentes podem ser amenizadas buscando‑se uma igualdade relativa entre as pessoas. O multiculturalismo liberal de esquerda, ao contrário da vertente anterior que enfatiza a igualdade, destaca a diferença cultural e sugere que a ênfase na igualdade abafa aquelas diferenças culturais importantes entre elas, que são responsáveis por comportamentos, valores, atitudes, estilos cognitivos e práticas sociais diferentes (MCLAREN, 2000, p. 120). Uma das críticas aos adeptos desse entendimento do multiculturalismo é que eles tendem a essencializar as diferenças culturais, ignorando as condições históricas e culturais, carregadas de significados e de poder que produziram essas diferenças. Dessa forma, McLaren (2000) esclarece que, quando o multiculturalismo não está engajado numa agenda política de transformação, ele pode ser mais uma forma de acomodação ao status quo, como as posições humanista liberal e liberal de esquerda, que não avançam num projeto de transformação social. Por isso, o autor desenvolve a ideia do multiculturalismo crítico, vislumbrando a transformação social como seu grande objetivo. O multiculturalismo crítico compreende a representação de etnia/raça, classe social e gênero como resultado de lutas mais amplas sobre signos e significações e enfatiza a linguagem e os discursos como forma de resistência e possibilidade de transformar as relações sociais, culturais e institucionais (ações concretas) nas quais os significados são gerados, pois são esses significados que produzem as diferenças dentro das categorias classe social, etnia/raça e gênero. Assim, no multiculturalismo crítico, a cultura é vista como conflituosa, desarmoniosa e não consensual, e a democracia, como um processo de tensão. A diversidade é entendida como um compromisso com a justiça social, e as diferenças são sempre produto da história, da cultura, do poder e da ideologia e produzidas por meio de uma política de significação, isto é, de práticas de significação (atitudes e comportamentos) que são tanto reflexivas quanto constitutivas de relações políticas e econômicas prevalecentes. Por isso, as diferenças são produzidas de acordo com a produção e recepção ideológica de signos culturais e devem ser compreendidas em termos das especificidades de sua produção (ARAÚJO, 2009). Podemos verificar, nessas quatro posições do multiculturalismo, duas abordagens distintas: uma descritiva (é o caso das interpretações conversadoras, da humanista liberal e da liberal de esquerda) e uma propositiva (é o caso da posição crítica). Vamos compreender um pouco mais as proposições trazidas pela análise do multiculturalismo crítico. Araujo (2009) resume, com propriedade, as propostas para a educação a partir do multiculturalismo crítico. As principais indicações feitas por McLaren à educação são: · práxis revolucionária – que se iniciaria pela desconstrução do social, por meio da conscientização intersujetiva reflexiva. Essa conscientização precisa iniciar‑se no professor por meio de um esforço pessoal que lhe possibilitará localizar‑se como pertencente a uma determinada classe social, a uma etnia/raça e a um gênero e, a partir disso, desnaturalizar conhecimentos arraigados e refletir criticamente tanto sobre o micro (o seu trabalho, o currículo que desenvolve, as políticas educacionais etc.) como sobre o macro (as questões políticas, econômicas e culturais do seu país e do mundo). Partindo dessa conscientização intersubjetiva, o professor terá mais facilmente condições de estimular a consciência nos seus alunos. observação Paulo Freire, na obra Educação como prática da liberdade (2006), argumenta que a criticidade implica a apropriação crescente pelo homem de sua posição no contexto em que vive. Nesse sentido, a conscientização é a tomada de consciência. · narrativas de fronteiras – dar nova autoria aos discursos e construir espaços de possibilidade e de capacitação. Nesse sentido, McLaren (2000) destaca que só a autorreflexão sozinha não é suficiente para a emancipação (apesar de ser uma condição para esta), são necessárias mudanças nas condições materiais e sociais por meio da ação contra‑hegemônica. · currículo multicultural – que proporcione a integração de minorias sociais, étnicas e culturais ao processo de escolarização. Essa integração deve ocorrer por meio de um currículo multicultural que vise a uma educação para acolher a diversidade. Dessa forma, tanto as políticas curriculares como as escolas precisam rever os currículos que estão sendo desenvolvidos e encarar o assunto da diferença como algo sério. O multiculturalismo crítico sugere uma reforma no currículo escolar e aponta algumas atenções ao elaborar um currículo que positivamente responda ao multicultural: · ir além da aceitação de livros que representam apenas as tradições ocidentais, e não a realidade local. Dessa forma, é preciso legitimar múltiplas tradições de conhecimento; · os educadores precisam interrogar os discursos que informam suas práticas curriculares com respeito à etnia/raça, classe social, gênero e orientação sexual; · é preciso refletir sobre os nossos discursos, sobre a superioridade branca e a racionalidade do pensamento ocidental; · a reforma curricular significa reconhecer que os grupos estão diferencialmente situados na produção do conhecimento superior ocidental e afirmar as vozes daqueles que são oprimidos nos currículos, permitindo que os alunos façam suas próprias leituras do conteúdo curricular. Essas indicações fornecem algumas pistas em direção a uma educação multicultural. Porém, a elaboração de um currículo multicultural não é algo simples. Segundo Gimeno Sacristán (1995), citado por Araujo (2009, p. 83), para se elaborar um currículo nessa perspectiva, é preciso repensar a representatividade cultural do currículo; por isso, esse autor destaca que: [...] o currículo multicultural exige um contexto democrático de decisões sobre os conteúdos do ensino, no qual os interesses de todos sejamrepresentados. Mas, para torná‑lo possível, é necessária uma estrutura curricular diferente da dominante e uma mentalidade diferente por parte de professores, pais, alunos, administradores e agentes que confeccionam os materiais escolares. Uma educação multicultural requer, portanto, um repensar sobre a escola como um instrumento de homogeneização e de assimilação de todos os alunos à cultura dominante, independentemente de suas origens sociais e culturais. O currículo precisa ser pensado não somente como uma declaração de intenções, mas como a soma de todo tipo de aprendizagens e de ausências que os alunos obtêm como consequência de estarem sendo escolarizados. Dessa forma, o currículo escolar constitui-se tanto pela intenção, plano ou prescrição que explicam desejos concretos nas escolas, como por aquilo que realmente ocorre dentro dela, ou seja, as decisões prévias acerca do que se vai fazer no ensino, as tarefas acadêmicas reais que são desenvolvidas, a forma como a vida interna das salas de aula e os conteúdos de ensino veiculam‑se com o mundo exterior, as relações grupais, o uso e o aproveitamento de materiais, as práticas de avaliação etc. Assim, uma mudança curricular envolveria todos esses processos e, por isso, não basta mudar apenas as intenções, é preciso repensar os processos internos que são desenvolvidos na educação, ou seja, mudar o currículo real. Por tudo isso, Araujo (2009) destaca que a mudança curricular só pode ser concretizada a partir de uma nova formação docente que estimule uma perspectiva cultural, a qual abarque a complexidade da cultura e da experiência humana. Nas palavras de Gimeno Sacristán (1995), citado por Araujo (2009, p. 84): Exige sensibilidade diante de qualquer discriminação no trato cotidiano, evitando que os próprios docentes sejam a fonte de juízos, atitudes e preconceitos que desvalorizem a experiência de certos grupos sociais, culturais, étnicos ou religiosos; sugere a importância de se cultivar atitudes de tolerância diante da diversidade e de se organizar atividades que as estimulem. O currículo multicultural exige, pois, mudanças muito profundas em mecanismos de ação muito mais sutis. Assim, a escola, na concepção do multiculturalismo crítico, precisa colocar a ênfase no planejamento dos conteúdos que formam o tronco comum da escolaridade obrigatória de todos os cidadãos. “É o currículo comum para todos que a visão multicultural deve incorporar, para que a integração de culturas se realize dentro de um sistema de escolarização único que favoreça a igualdade de oportunidades. Do contrário, só é possível a assimilação de uns por outros” (GIMENO SACRISTÁN, 1995, apud ARAUJO, 2009, p. 84). Mas como seria construído esse currículo comum? Araujo (2009) destaca as principais indicações de Gimeno Sacristán (2005), no sentido de atender à diversidade cultural dentro desse currículo comum. Primeiro, o autor destaca a necessidade de incluir a diversidade no currículo, e exemplifica isso com a introdução de unidades específicas de conteúdos, com seus correspondentes materiais dedicados a países, crenças e sistemas culturais diferentes do dominante. O tratamento dos direitos humanos, individuais e dos povos deve ser refletido na educação como um componente específico. Outra indicação é modificar as áreas curriculares que parecem mais propícias à introdução de elementos interculturais, como os Estudos Sociais, o agrupamento da História e Geografia, a Economia, a Sociologia e a Antropologia, introduzindo o conhecimento dessas áreas de outra maneira que a costumeira forma academicista. Enfim, a função básica do currículo multicultural é introduzir os estudantes no conhecimento acadêmico, ordenado de acordo com a lógica disciplinar, mas com o objetivo último de capacitar todos com uma série de conhecimentos, habilidades e valores que lhes permitam entender a sociedade e a cultura na qual vivem, participar dela responsavelmente e melhorá‑la. Como ressaltamos no início deste tópico, a presença multicultural é inegável, uma constatação que não pode ser ignorada na atualidade. Ela afeta todos os setores da sociedade por envolver um novo olhar para essa constituição social, um reconhecimento da diversidade. Nesse sentido, a educação não tem como ignorar ou expulsar essa realidade das escolas, e a visão multicultural tem a pretensão de uma educação democrática que busque uma relação de convivência harmoniosa e respeitosa entre os indivíduos de tradições culturais muito diferentes. Partindo dessas colocações, no próximo item, buscaremos compreender um pouco mais o papel e o trabalho docente dentro desse contexto do currículo multicultural. 4 o CuRRÍCuLo E o tRAbALho DoCENtE: oS NoVoS DESAfIoS No Brasil, a preocupação do currículo com a realidade multicultural presente nas escolas começou a ser difundida pelo currículo oficial, por meio de documentos oficiais, nos anos 2000. Essa discussão será aprofundada na próxima unidade deste livro‑texto, mas a priori é importante você ter em mente que é esse currículo oficial que possibilita mudanças no currículo local, no currículo vivido nas escolas. Assim como no Brasil, em Portugal a introdução das questões multiculturais no currículo oficial, nos anos 1990, também deu uma nova orientação para o currículo desenvolvido nas escolas portuguesas, como demonstra Leite (2008, p. 129): Foi difundida a ideia de que o currículo nacional era um referencial a partir do qual cada escola e cada comunidade educativa devia fazer as adequações necessárias, de forma a permitir a concretização de um currículo comum dentro de processos de gestão curriculares diversificados. A introdução dessas questões no currículo oficial é importante porque fornece novas diretrizes ao trabalho desenvolvido nas escolas e redireciona o currículo local. Nessa perspectiva, Leite (2008) destaca que o currículo passa a enfatizar a importância das vivências dos alunos e dos problemas reais vividos pela comunidade em que se desenvolve o currículo, podendo assim permitir a reflexão dos alunos acerca do mundo a sua volta, estabelecendo relações entre o saber escolar e a intervenção social. Nesse sentido, há uma mudança de perspectiva na forma de se pensar o currículo com ênfase na sua dimensão social. Corresponde, pois, a uma opção pedagógica e curricular que, em vez de impor a cultura do silêncio, tem como grande intenção conduzir à libertação dos “oprimidos”, porque se rege por princípios e atitudes democráticas (LEITE, 2008, p.130). Assim, o aluno passa a ter um papel ativo na construção de sua aprendizagem, já que são valorizados os processos de autoconstrução dos saberes, visando a uma aprendizagem mais significativa para todos os alunos. Mas e a prática docente, será possível desenvolver um currículo nessa perspectiva com a mesma concepção de atuação e prática docente utilizada num currículo pautado pela visão tradicional de ensino? Essa nova orientação do currículo oficial precisa repensar a prática docente dos professores que fazem o currículo vivido. Nas palavras de Leite (2008, p. 131): [...] há que perspectivar uma práxis profissional docente que rompa com as propostas conservadoras, nomeadamente com as que defendem a existência de currículos distintos de acordo com os capitais culturais e econômicos de origem das crianças e jovens em idade escolar. Primeiro, faz‑se necessária uma nova maneira de elaboração do currículo. O professor não pode ser concebido como um mero executor de atividades, precisa fazer parte da elaboração do currículo. O currículo oficial, prescritivo, deve ouvir e atender às indicações dos professores. A separação entre os que pensam (normalmente os acadêmicos) e os que executam (os professores das escolas da educação básica) precisa ser minimizada para que as diferenças entre as diferentes realidade e culturas estejam representadas no que é desenvolvido nas escolas de todo o país. O exercício profissional docente, dentro dessa abordagem do currículo multicultural, passa nas exigências, como considerar tanto as ideologiascomo os valores que orientam o currículo, ou seja, “[...] do ‘para que se ensina’, quer o domínio do conhecimento do que se ensina, a quem se ensina e como se deseja e deve ensinar” (LEITE, 2008, p. 133). Dessa forma, faz‑se necessário uma postura profissional ativa e crítica na organização e no desenvolvimento do currículo, pautada em situações que primem pelo princípio da igualdade de oportunidades de sucesso. O que é ensinado nas escolas precisa ser legítimo para quem está aprendendo, ou seja, os conteúdos escolhidos e desenvolvidos nas escolas de todo o Brasil precisam ter certas afinidades com a comunidade que frequenta aquela escola. Segundo Forquin (1993), citado por Leite (2008, p. 135), “não há ensino possível se o reconhecimento, por parte daqueles a quem o ensino é dirigido, de certa legitimidade da coisa ensinada”. Dessa forma, não faz sentido a elaboração de currículos nacionais sem a adequação, ou possibilidade de tal ação, nos currículos locais, pois a escola só será de todos se todos tiverem a chance de se sentirem reconhecidos dentro do ambiente escolar, nos conhecimentos que lhes são ensinados, reconhecendo e conhecendo as especificidades de cada contexto e de cada situação. Para Carlinda Leite (2008), o reconhecimento pela escola e na escola de diferentes manifestações e comportamentos culturais tem repercussões na autoestima das pessoas pertencentes aos grupos minoritários, gerando confiança e predisposição para a aquisição de outros saberes. Alguns caminhos para a prática docente e o currículo escolar são apontados por zeichner (1993) e analisadas por Araujo (2009). Esse autor destaca que as expectativas que temos dos nossos alunos interferem em seu sucesso. Assim, os professores precisam acreditar que todos os alunos podem ser bem‑sucedidos e devem comunicar essa convicção a eles. Do mesmo modo, o professor precisa se empenhar para conseguir êxito de todos. Outro ponto importante é a criação de um contexto na sala de aula no qual os alunos sintam‑se valorizados e capazes de obter êxito nos estudos. É preciso criar laço pessoal entre professor e alunos. O professor deixa de os ver como os outros e dedica‑se tanto ao seu desenvolvimento social e psicológico como escolar, depositando esperanças nos seus êxitos, cuidando para que sejam criadas autoimagens positivas no sentido de eficiência dos alunos (ARAUJO, 2009) zeicher (1993, apud Araujo, 2009) argumenta também que não basta elaborar um currículo mais exigente continuando a desrespeitar as tradições culturais do aluno. O autor destaca a necessidade de se criar uma ponte entre a cultura da escola e a cultura do aluno, em que o professor busque ajudá‑los a aprender a cultura da escola, mantendo, simultaneamente, a identificação e o orgulho pela cultura de casa. Assim, o programa curricular deveria incluir uma variedade maior de tradições e estar relacionado com as experiências dos alunos. Outro aspecto destacado pelo autor é que os professores precisam ter um sentido muito claro da sua própria identidade étnica e cultural, para poder compreender a dos seus alunos e respectivas famílias. Esse aspecto também é destacado por Candau (2008), quando salienta a importância de nós, professores, reconhecermos nossas identidades culturais. Nas suas palavras: Tendemos a uma visão homogeneizadora e estereotipada de nós mesmos, em que nossa identidade cultural é muitas vezes vista como um dado “natural”. Desvelar esta realidade e favorecer uma visão dinâmica, contextualizada e plural das nossas identidades culturais é fundamental, articulando‑se a dimensão pessoal e coletiva destes processos. Ser conscientes de nossos enraizamentos culturais, dos processos de hibridização e de negação e silenciamento de determinados pertencimentos culturais, sendo capaz de reconhecê‑los, nomeá‑los e trabalhá‑los constitui um exercício fundamental (CANDAU, 2008, p. 26). Dessa forma, podemos perceber que tanto zeichner (1993) como Candau (2008) destacam a importância de os professores se autorreconhecerem como um começo para respeitar seus alunos e os ajudar a também se reconhecerem, construindo e afirmando suas identidades. Ações desse tipo são importantíssimas para que os alunos desenvolvam sentimentos positivos de suas pertenças étnico‑raciais, culturais e sociais, possibilitando comportamentos mais críticos (ARAÚJO, 2009). zeichner (1993) sugere também algumas estratégias para os professores obterem informações sobre seus alunos e a comunidade local, que serão importantes para as práticas docente e para a adequação do currículo prescrito ao currículo da escola: visitas a casa dos alunos, troca de ideias com membros da comunidade, conversas com os pais e a observação dos alunos dentro e fora da escola. Essas estratégias são importantes para o professor compreender os padrões de comportamento que podem estar relacionados com background cultural dos alunos. Com relação às estratégias de ensino, o autor destaca a necessidade do estabelecimento de um verdadeiro diálogo entre professor e alunos. Nessa abordagem, o diálogo e a escrita são meios de aprendizagem. Dessa forma, a interação aluno‑aluno, em um contexto cooperativo de aprendizagem, seria favorecida com o diálogo. Outros dois pontos importantes são: a avaliação e a participação dos pais. Os pais precisam ser encorajados a participar da educação dos filhos e, para isso, é necessário atribuir um papel significativo na determinação do que é uma formação adequada para os alunos pertencentes às minorias em determinadas escolas, e a avaliação precisa compreender o desempenho do estudante em variados contextos, por exemplo, cadernetas, listas, inventários, observações dos professores, portfólios e outros registros que o professor pode utilizar‑se para acompanhar a aprendizagem dos alunos. Essas indicações e exemplos metodológicos para uma educação multicultural demonstram que há alternativas, há formas diferenciadas para o trabalho docente, para uma educação mais justa e democrática para todos os alunos. Essas indicações servem com pistas para cada professor repensar, replanejar e rever a sua forma de trabalho, seus objetivos, conteúdos e métodos. Na próxima unidade, abordaremos o currículo no Brasil, apresentaremos e discutiremos algumas das diretrizes curriculares nacionais que se configuram como o currículo prescritivo, o currículo nacional, que deve orientar o currículo vivido, e o currículo local. Além disso, comentaremos as orientações curriculares para a Educação Infantil, os Referenciais Curriculares Nacionais para Educação Infantil (Rcnei), e para o Ensino Fundamental, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). Resumo O currículo é um termo polissêmico, pois possui vários sentidos e diferentes interpretações. No entanto, aqui, está sendo entendido como a ligação entre a cultura e a sociedade exterior, a escola e a educação. Refere‑se à seleção de conhecimentos que serão transmitidos e aprendidos pelas novas gerações. Portanto, esse conceito refere‑se tanto ao que é prescrito, ao conhecimento que deve ser aprendido na escola para formar pessoas compatíveis com os interesses e necessidades da sociedade como um todo, como também à prática docente realizada nas escolas. Assim, podemos perceber a estreita relação entre escola, currículo e cultura: só há ensino (escola) porque há uma cultura, e o currículo é a seleção e organização dessa cultura. Portanto, o papel social da escola realiza‑se por meio do currículo. O currículo também é visto como uma construção cultural que orienta as práticas educativas realizadas na escola a partir do que é produzido na sociedade, levando a crer que ele não é neutro, ao contrário, tem uma intencionalidade muito bem definida. O currículo, portanto, é intencional, pois é orientado em função de objetivos e das ações, ou seja, conhecimentos, procedimentos, valores, formas de gestão, de avaliação etc., e torna‑se real a partir do trabalho dos professores, de determinadas condições previstas pela organização escolar, tendo em vista a qualidade do processoensino‑aprendizagem. Há, basicamente, duas formas diferentes de pensar e interpretar o currículo, as chamadas Teorias do Currículo. Essas teorias podem ser agrupadas em Teorias Tradicionais e Teorias Críticas e Pós‑Críticas do Currículo. Nas Teorias Tradicionais do Currículo, a tarefa dos especialistas em currículo consistia em fazer um levantamento das habilidades, em desenvolver currículos que permitissem que essas habilidades fossem desenvolvidas e, finalmente, em planejar e elaborar instrumentos de medição para dizer com precisão se elas foram aprendidas. Essas teorias se consideram neutras em relação à sociedade; no entanto, tomam o status quo como referência desejável e concentram‑se nas formas de organização e elaboração do currículo. Elas se restringem à atividade técnica de como fazer o currículo e, por isso, são denominadas teorias de aceitação, ajuste e adaptação. As Teorias Críticas, por outro lado, como o próprio nome diz, criticam o currículo, desconfiam do status quo, responsabilizando‑o pelas desigualdades e injustiças sociais. São teorias de desconfiança, questionamento e transformação radical. Buscam desenvolver conceitos que nos permitam compreender o que o currículo faz. Nesse sentido, encontramos duas vertentes nas análises curriculares das Teorias Críticas: as que enfatizam o currículo oculto, de Bowles e Gintis, que chamaram a atenção para o papel exercido pelas relações sociais da escola no processo de reprodução social, e Bernstein, que centrou sua análise menos naquilo que é transmitido e mais na forma como é transmitido. Outras teorias focaram mais sua análise no currículo explícito, oficial, no conteúdo, como é o caso de Althusser, que pontuou que a sociedade capitalista depende da reprodução de suas práticas econômicas para manter sua ideologia. Além disso, sustentou que a escola é uma forma utilizada pelo capitalismo para manter sua ideologia, pois atinge toda a população por um período prolongado de tempo. Apple, por sua vez, buscou dar igual importância aos dois aspectos do currículo, tanto ao papel do currículo oculto quanto ao do explícito. O currículo oculto é constituído por todos aqueles aspectos do ambiente escolar que, sem fazerem parte do currículo oficial, explícito, contribuem, de forma implícita, para as aprendizagens sociais relevantes, como atitudes, comportamentos, valores e orientações que permitem ajustes às estruturas e ao funcionamento da sociedade capitalista (conformismo, obediência, individualismo). Para as Teorias pós‑críticas, o currículo é uma prática discursiva que tem autoridade textual, tem uma natureza subjetiva e cultural, sendo que podemos ver isso na escola, por conta da diversidade; afinal, nessa proposta são discutidos assuntos como identidade, alteridade, diferença, subjetividade, significação e discurso, saber‑poder, representação, cultura, gênero, raça, etnia, sexualidade e multiculturalismo. Com as Teorias pós‑críticas do currículo, percebemos que a análise do poder é ampliada para incluir os processos de dominação centrados na raça, na etnia, no gênero, na sexualidade, na cultura colonialista. Essas teorias rejeitam a ideia de consciência coerente e centrada, questionam a ideia de subjetividade dizendo que ela é social. Além do mais, não existe um processo de conscientização e libertação possível. O contexto social, cultural, econômico e político da atualidade impõe novas demandas e necessidades à educação, de forma geral, ao currículo e à escola, de forma mais particular. Nesse contexto, as questões culturais também irão fornecer novos desafios à educação, como a questão da presença de diferentes culturas dentro do ambiente escolar. O currículo e a educação, na atualidade, precisam ser pensados numa perspectiva multicultural. Essa ideia requer um repensar sobre a escola como um instrumento de homogeneização e de assimilação de todos os alunos à cultura dominante, independentemente de suas origens sociais e culturais. O currículo precisa ser pensado não somente como uma declaração de intenções, mas como a soma de todo tipo de aprendizagens e de ausências que os alunos obtêm como consequência de estarem sendo escolarizados. Dessa forma, o currículo escolar constitui-se tanto pela intenção, plano ou prescrição que explicam desejos concretos nas escolas, como por aquilo que realmente ocorre dentro dela, ou seja, as decisões prévias acerca do que se vai fazer no ensino, as tarefas acadêmicas reais desenvolvidas, a forma como a vida interna das salas de aula e os conteúdos de ensino se veiculam com o mundo exterior, as relações grupais, o uso e o aproveitamento de materiais, as práticas de avaliação etc. O que é ensinado nas escolas precisa ser legítimo para quem está aprendendo, ou seja, os conteúdos escolhidos e desenvolvidos nas escolas de todo o Brasil precisam ter certas afinidades com a comunidade que frequenta aquela escola. Alguns caminhos para a prática docente e o currículo escolar foram apontados, como acreditar que todos os alunos podem ser bem‑sucedidos; criar um contexto na sala de aula no qual os alunos sintam‑se valorizados e capazes de obter êxito nos estudos; criar pontes entre a cultura da escola e a cultura do aluno; além dos professores terem clareza da sua própria identidade étnica e cultural, para poderem compreender a dos seus alunos e suas respectivas famílias. Questão 1. Exercícios No estudo sobre o significado de currículo, pudemos observar que há diversas compreensões e sentidos para esse termo. Tendo em vista a compreensão do currículo na perspectiva da educação escolar, analise as afirmações a seguir e assinale a alternativa correta: A) O termo currículo, ao longo da história, passou a significar uma relação de disciplinas, com seu corpo de conhecimento organizado numa sequência lógica, com o respectivo tempo de cada uma, ou seja, matriz curricular. B) Não sofreu variações ao longo tempo, significando sempre um conjunto de livros que o aluno deve consultar para a realização de exames. C) Sempre significou o caminho da verdade, um manual para que se alcancem conhecimentos diversos ao longo da vida. D) Desde a Antiguidade Clássica, o termo currículo configura‑se como o conjunto de saberes empíricos a serem apreendidos pelos filhos da classe social dominante. E) No século XVIII, como o Iluminismo, passa a constar de dicionários filosóficos e pedagógicos. Análise das alternativas A) Alternativa correta. Justificativa: podemos afirmar que, uma vez dentro do campo pedagógico, apesar das diversas definições que o termo currículo recebeu ao longo da história da educação, tradicionalmente, passou a significar uma relação de disciplinas com seu corpo de conhecimento organizado numa sequência lógica, com o respectivo tempo de cada uma, ou seja, matriz curricular. B) Alternativa incorreta. Justificativa: a definição do termo currículo sofreu, sim, várias definições ao longo da história da educação. C) Alternativa incorreta. Justificativa: o currículo não foi entendido como o caminho da verdade nem como um manual de conhecimentos ao longo da vida. D) Alternativa incorreta. Justificativa: não há registros sobre o termo currículo antes do século XVII. E) Alternativa incorreta. Justificativa: a dicionarização do termo currículo aparece, pela primeira vez, no século XVII, e não no século XVIII. Questão 2. Pierre Bourdieu e Jean‑Claude Passeron desenvolveram o conceito de capital. Como esse conceito pode ser utilizado no âmbito da Teoria do Currículo? A) O currículo da escola estaria baseado na cultura dominante, e as crianças das classes dominantes poderiam facilmente compreender o código, pois é natural a elas. O mesmo não ocorre com as crianças das classes dominadas. B) A escola oferece a cultura popular a todos os educandos. C) Não há diferenciação de classe quando o assunto é educação. D) As diferenças culturais são entendidas a partir das diferenças cognitivas entre as crianças da classe social dominada. E) Não há espaço para a crítica da cultura, já que vivemos na sociedadedo conhecimento e na era da informática. Análise das alternativas A) Alternativa correta. Justificativa: Pierre Bourdieu e Jean‑Claude Passeron são críticos da maneira como a cultura da classe dominante é imposta às classes dominadas. B) Alternativa incorreta. Justificativa: segundo esses autores, a escola prioriza a cultura dominante, excluindo a cultura popular. C) Alternativa incorreta. Justificativa: para esses autores, há, sim, uma diferenciação de classes quando se analisam o currículo e a educação. D) Alternativa incorreta. Justificativa: as diferenças culturais promovem uma diferenciação na forma como os conhecimentos são compreendidos pelas crianças da classe dominada, pois a escola prioriza somente a cultura dominante; mas isso não significa diferenças cognitivas, e sim diferenças culturais. E) Alternativa incorreta. Justificativa: precisamos, sim, repensar a cultura, aliás, as culturas, pois não existe uma única cultura. No contexto em que vivemos hoje, de grande acesso aos meios tecnológicos, as diferentes culturas devem ser valorizadas.