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Manual de educação infantil: de 0 a 3 anos - uma abordagem reflexiva. Bondioli, Anna e MANTOVANI, Susanna. Diferentemente de todas as outras instituições educativas, atualmente a creche e colocada em discussão na sua própria existência, embora seja a única instituição a registrar - juntamente com, e mais do que a escola superior - um excesso de demanda nos grandes centros urbanos. É considerada - pelo Estado e por várias administrações que devem garantir sua existência - um serviço não essencial e dispendioso que poderia ser substituído, de modo eficaz, por medidas "privadas" mantidas pela família. O discurso sobre a creche articulou-se em planos diferentes que deveriam andar interligados. Uma primeira perspectiva, do tipo político-social, considera a creche essencialmente como serviço cuja problemática entra no quadro mais amplo das "políticas para a infância" e das instituições a ela destinadas. Uma segunda perspectiva possui prevalentemente objetivos de reconhecimento: a creche e um observatório privilegiado onde e possível colher elementos inéditos sobre o desenvolvimento infantil Enfim, uma terceira perspectiva salienta o caráter de instituição formadora da creche, de agência de socialização cujas práticas educativas subentendem uma pedagogia que, mesmo embrionária, deve ser reconhecida e sustentada. No interior desta pedagogia particular adquirem destaque as figuras adultas - e as funções a elas atribuíveis - que acompanham as crianças dentro e fora da creche. Na creche, idealmente a criança pode experimentar as mais variadas possibilidades de troca, de construção de planos de ação, de resoluções de conflitos em um ambiente protegido e pensado para ela. Autonomia não significa separação, significa, pelo contrário, segurança da relação e capacidade de modular, por parte da criança, as suas exigências de cantato ou de controle a distância do adulto (Appell & David, 1965), não sendo distraída pelo medo de ser abandonada, ou pelo temor de ser interrompida, podendo assim dedicar-se com concentração e determinação às várias atividades: aspectos esses - ainda, uma vez mais muito próximos do conceito montessoriano de "normalização" - que freqüentemente parecem ausentes na vida escolar posterior. Para delinear uma "cultura" da creche contribuíram agentes diversos: educadores, pesquisadores, especialistas no assunto, administradores, pais, cada qual produzindo e contribuindo para difundir, através das próprias práticas, conteúdos, formas, níveis diferentes de saber sobre a primeiríssima infância, sobre as condições de possibilidade de uma educação precoce extradoméstica, sobre a praticabilidade de situações, experiências, projetos formativos com os pequeninos. Trata-se de um patrimônio muito rico de conhecimento, imagens mais ou menos compartilhadas, de competências, escassamente capitalizado e integrado, no qual convergem sem sistematicidade, e frequentemente sem encaixes racionais, saberes científicos e competências práticas, cultura erudita e bom senso, vivências e reflexões, experiências e teoria. Desse ponto de vista, não se pode negar que exista - e a creche contribuiu amplamente para isso - uma cultura da infância; por outro lado, devido à fragmentação e a não-sistematicidade que a caracterizam, tal "cultura" ainda não se define na forma do modelo orgânico, e a pedagogia que nela se delineia e somente embrionária. Se de fato por pedagogia se entende um modelo formativo coerente, onde dialeticamente e organicamente se entrelaçam um saber científico e algumas experiências práticas, um saber-fazer guiado por - e que, reciprocamente guia - para a creche, pode-se falar somente de estado inicial da pedagogia, de pedagogia em seu nascedouro. A pesquisa científica relativa a creche, se por um lado mostrou a especificidade e a complexidade dos primeiros comportamentos infantis, assinalando necessidades irrenunciáveis das crianças muito pequenas, evidenciando espaços oportunos de intervenção por parte das figuras adultas, por outro, pela sua marca tipicamente psicológico-recognitiva, raramente configurou-se como indagação pedagógica, isto é, voltada a controlar e verificar a eficácia de projetos particulares e/ou estratégias educativas. Portanto, ela funcionou essencialmente como filtro através do qual olhar-se a criança, e as suas possibilidades de crescimento, com olhos diversos em relação ao senso comum, desmantelando estereótipos ainda difundidos (a criança como objeto, ser puramente receptivo e necessitado, incapaz de intencionalidade comunicativa e de interação social) e reforçando novas imagens da infância. No plano tipicamente pedagógico, tal caracterização da pesquisa, mais no sentido de reconhecimento que de projeto, mais centrada na criança inserida em um contexto do que sobre o contexto, como elemento de formação da criança, não permitiu superar a fragmentação das intervenções educativas e freqüentemente induziu a adesão irrefletida a uma pedagogia da espontaneidade. Para delinear um projeto educativo coerente não basta que intervenções educativas extradomésticas em relação às crianças sejam teoricamente plausíveis. Tais intervenções devem ser pensadas, projetadas e realizadas. Analogamente, no plano da operatividade, a existência de experiências educativas inteligentes e interessantes é condição necessária mas não suficiente para garantir sua eficácia, a transferibilidade e a integração racional. "Pedagogia da relação" é uma expressão pouco clara que foi freqüentemente usada para designar a especificidade educativa da creche. Ela se define, em primeiro lugar, em contraposição a uma pedagogia que considera a creche uma versão miniaturizada da escola materna. Aderir a esta pedagogia significa dizer não a uma relação educadoras/crianças que não permite uma relação individualizada e, sobretudo, personalizada. Significa dizer não a atividades que mais se parecem com pequenas lições do que com brincadeiras de livre descoberta. Significa dizer não a uma organização demasiado rígida dos tempos, dos espaços, dos grupos infantis que pode enfraquecer a espontaneidade das relações. Considerada mais positivamente e em termos gerais, a pedagogia da relação é uma intervenção educativa que age sobre o sistema de trocas sociais, utilizando-o como instrumento de crescimento. Através das trocas sociais, isto é, através das relações que progressivamente se entrelaçam e se aperfeiçoam entre a criança sozinha e os adultos - e entre crianças no grupo de jogo -, cria-se um conjunto de significados compartilhados, uma espécie de "historia social" que é típica de uma determinada creche em um período específico, constituído pelo conjunto das rotinas (que criam expectativas), pelas regras, pelas divisões temporais (que criam ritmos reconhecíveis), permitindo assim também o gosto pelo imprevisto, pelos significados e pelas funções que objetos e pessoas assumem naquele contexto particular. A criança então é acompanhada e sustentada na conquista do progressivo conhecimento da realidade externa, de modo a favorecer o processo de adaptação, isto é, a dialética "assimilação/acomodação". Trata-se de um processo em que a manipulação e a exploração dos objetos e dos materiais é de fundamental importância, um processo de descoberta que pode ser solicitado, mas não imposto ou ensinado. Uma vez que a creche configura-se como integração e não como substituição da rede familiar, a relevância dada às figuras adultas assume conotações peculiares: de uma parte significa impossibilidade de cortar as figuras parentais do processo educativo extradoméstico; de outra, significa valorizar particularmente aquelas figuras adultas - os educadores - que estão próximas à criança fora da família. Isso comporta a solução de uma série de problemas que não são fáceis de resolver, entre os quais nos parecem fundamentais os de: - identificar estratégias de união entre família e creche, com o objetivo de garantir permeabilidade entre as duas instituições que a criança cotidianamente freqüenta, dando continuidade a experiência infantil; - delinear para a educadora de creche um papel peculiar que não reproduza o materno e que se caracterize profissionalmente. Como referente da creche, a família pode ser vista tanto como usuária do serviço, quanto como agência educativa à qual a creche, com análogas funções, se alia. Neste segundo sentido, a família vem a ser depositária de um saber/poder sobre seus próprios filhos com o qual a creche não pode comparar-se e se configura como rede de relações que a abertura a outras figuras, como a da educadora, tende a modificar. Do ponto de vista afetivo, a decisão por parte de uma família de mandar o filho a creche significa superar o temor da separação, aceitar enfrentar o ciúme que a comparação com outras figuras de referência comporta, significa a família estar preparada para acolher como efeito do processo de crescimento, e sem lamentar, a progressiva autonomia do filho. Sobre o mesmo plano, a educadora também experimenta, em relação à criança, sentimentos mais ou menos marcados por vínculos de apego, simpatia/antipatia, ciúmes. Então, trata-se também - e isso não deve ser desconsiderado - de conduzir e governar afetos profissionalizando a função de educador, tanto no sentido de especificar modalidades relacionais com as crianças que, sem ser competitivas em relação às parentais, garantam segurança e conteúdo afetivo, quanta no sentido de identificar estratégias de relacionamento com os pais que permitam uma gestão controlada e proveitosa da separação. Do ponto de vista ideológico, o relacionamento creche/família se configura como confronto entre crianças, valores, atitudes educativas. Entrelaçam-se, então, modos diversos de pensar na criança, nas suas necessidades fundamentais, naquilo que lhe serve para poder crescer, nas estratégias a serem utilizadas para fazê-la progredir. Enfim, trata-sedo relacionamento entre duas instituições que, por definição, são interligadas e não paralelas, e que necessitam portanto, também em um plano formal,de momentos de encontro e ligação. O educador da creche pode, então, desenvolver um papel único para a criança e para a família, de consultor da normalidade e profissional da vida cotidiana.
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