Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1 MICHAEL WHITE: UM TERAPEUTA ACROBATA Nina Vasconcelos Guimarães1 Resumo Inicio este artigo estabelecendo uma diferença entre os movimentos estruturalista e pós- estruturalista, como também exploro os pressupostos epistemológicos da terapia narrativa de Michael White. Escrevo sobre o conceito de desconstrução de Derrida, a terapia enquanto ação política de Michel Foucault, a concepção de mente social de Jerome Bruner e me estendo pela prática clínica do autor. Enfatizo a externalização do problema, as conversações de re-autoria e re-membramento, além de expor a importância de elevar o setting com as denominadas testemunhas externas, todas metáforas narrativas que representam o trabalho terapêutico criativo desse teórico. Palavras-chave: narrativa; linguagem; estruturalismo e pós-estruturalismo. Abstract In this article the author presents the difference between structuralism and pos-structuralism movements and explores the epistemological principles of the Michael White´s narrative therapy. She quotes Derrida´s concept of deconstruction as political action, by Michael Foucault, Jerome Bruner´s concept of social mind and extends to the clinical practice of the author. She continues emphasizing the problem externalization, the conversations of re- authoring and re-membering, highlighting the setting with external witness, everyone narrative methaphors that represents the creative work of this author. Key words: narrative; language; structuralism and post-structuralism. 1 Psicóloga, Terapeuta de Família, Mestra em Família na Sociedade Contemporânea (UcSal-Ba). Professora e Supervisora dos cursos de Graduação da Faculdade Ruy Barbosa (FRB – Salvador-Ba) e Co-Diretora do Instituto Humanitas de pesquisa e intervenção em sistemas humanos (Salvador - Ba). 2 Da Modernidade à Pós-Modernidade “Toda a palavra, sobretudo a palavra da política ou mesmo da ciência, é uma palavra que sai de uma fonte de poder. Um poder a gera e ela enuncia, queira ou não, um lugar do poder, porque o simples classificar, estabelecer o certo e o errado, o alto e o baixo, o quente e o frio, o selvagem e o civilizado, o homem e a mulher, já contem um ato de poder. Já é um gesto de quem, de algum modo, se sente capaz de ordenar o mundo. Ordenar o mundo da natureza, o mundo da vida, o mundo humano”. (Carlos, Rodrigues Brandão, 2006 apud Barthes, 1979 p. 67). Segundo Gergen e Kaye (1998), a era modernista, nas ciências, esteve comprometida com a elucidação empírica das essências, visando estabelecer corpos de conhecimento sistemático e objetivo que favorecessem previsões exatas baseadas nas relações de causa e efeito, como também na obtenção de domínio futuro. Para o modernista, a sociedade era regida pelo conhecimento empírico (linguagem científica) obtido através de uma observação que refletia, mapeava e representava o mundo. As narrativas eram estruturas de linguagem, geradas por códigos cientificistas que funcionavam como transmissores de conhecimento objetivo. As expostas pelos clientes não eram exatas, portanto, indignas de confiabilidade, contrárias às científicas que tinham a aprovação profissional. Dentro desta perspectiva moderna, a narrativa do cliente era destruída a partir das perguntas e redefinições do terapeuta, além de substituída pela versão do profissional. A modernidade, também caracterizada pelo Estruturalismo e a famosa “Revolução Científica”, prosperou como um período em que vários povos na Europa começaram a acreditar que o universo e tudo que havia nele poderia ser compreendido pelas leis (estruturas) que governavam os fenômenos físicos, enaltecendo a exploração científica objetiva, como a única válida e universal. Foi um período de avanços significativos nas ciências físicas, promovendo invenções e tecnologias que se difundiram e transformaram o mundo (Russel & Carey, 2004). As ideias “estruturalistas” seguiram influenciando as ciências sociais e outras disciplinas (como a antropologia, lingüística, sociologia, psicologia e terapia familiar). Seu olhar se debruçava sobre as estruturas internas essenciais das pessoas, das famílias, das sociedades, das culturas e da linguagem, impondo que o indivíduo fosse estudado da mesma forma que os objetos – dentro de uma ótica imparcial. No campo dos estudos literários, esse movimento repercutiu num conjunto de critérios objetivos para a análise e num novo rigor intelectual. 3 Na psicologia, as ideias estruturalistas defendiam o conhecimento da “verdade” sobre uma pessoa, “descascando” as camadas do seu self - em algum lugar, encontrar-se-ia o self interno, compreendido como a “verdade” da identidade da pessoa. O comportamento do indivíduo era influenciado por estas estruturas fundamentais. Segundo Russel e Carey (2002), o estruturalismo propiciou aos terapeutas e a outros profissionais acreditarem que sua função era conhecer as “verdades” emocionais e psicológicas sobre os clientes, interpretando e diagnosticando o comportamento manifestado, relacionando-o com o funcionamento do self, da psiquê interna da pessoa. O tratamento seguia a partir de alguma descrição do dilema trazido pelo cliente. Segundo as autoras supracitadas, é possível reunir alguns pressupostos estruturalistas: O objetivo da investigação é pesquisar “estruturas profundas” ou “verdades essenciais” sobre as pessoas; Tais “verdades essenciais” são investigadas objetivamente; É a “estrutura profunda” (isto é, o self interior) que molda a vida; Nossas idéias, nossos problemas e nossas qualidades estão vinculadas a algum self interno; Nossas identidades são fixas, essenciais e consistentes – encontradas em nossos selves interiores. Uma das críticas severas dirigidas a esta versão modernista de terapia diz respeito ao cuidado e à preocupação excessiva com o indivíduo, negligenciando as condições culturais com as quais as dificuldades psicológicas podem ter uma relação significativa. Embora as terapias modernas e pós-modernas coincidam no objetivo final de autonomizar a pessoa e empoderá-la para a assunção de suas características auto-realizadoras, aqui no modernismo esse projeto terapêutico ainda se baseia na existência de uma ontologia mentalista (o ego) e o processo se dá através tanto da avaliação racional quanto da experiência emocional do paciente, associada a uma imagem modernista de “funcionamento pleno” e indivíduo “bom”. O “ser humano saudável” consistia em uma “receita” legitimada por uma cultura e reforçada pelos processos terapêuticos. Autores como Gergen e Warhus (2001), como também Gergen e Kaye (1998) defendem que a mudança pós-moderna propõe um desafio à concepção modernista de narrativa científica, questionando as concepções tanto da patologia quanto da cura, assim como o 4 status irreparável do terapeuta enquanto autoridade científica e suas narrativas estandarizadas, assumindo outras possibilidades disponíveis na cultura, diferentes da visão única adotada até então. Essa hierarquia tradicional é substituída por uma escultura compartilhada por terapeuta e cliente que oferece contornos para um futuro caleidoscópico de alternativas distintas daquela limitada do presente, considerando-se que qualquer versão adotada está imersa em uma cultura e dela não pode se dissociar. As práticas construcionistas rompem com as premissas tradicionais a respeito do conhecimento, da pessoa e da natureza do “real”, privilegiando um total relativismo das expressões de identidade. Convida-nos a uma multiplicidade de versões de realidade situadas histórica e socialmente. Essas versões existem nas conversações, mas não devemos nos “filiar” a nenhuma delas. Desta forma, o cliente, vulnerável, é encorajado a acreditar numa multiplicidade de entendimentos do self, porém,nenhum deles assume o status de verdadeiro. Como dizem Gergen e Kaye (1998), “a ênfase pós-moderna está na flexibilidade da auto-identificação, mas isto não implica simultaneamente que o indivíduo seja um charlatão ardiloso” [...] O self somente é constituído como um subproduto das relações (p. 217). O Pós-Estruturalismo, por outro lado, movimento difundido desde 1960, influenciou outros campos de conhecimento como a filosofia crítica, a antropologia cultural, a linguística, a teoria literária e a sociologia. Sempre difícil de se impor enquanto pensamento, já que se contrapunha ao “imperialismo” estruturalista moderno, o pós-estruturalismo apresenta como principais expoentes que influenciam a terapia narrativa de Michael White, os filósofos franceses Michel Foucault e Jacques Derrida, que serão melhor explorados no decorrer deste artigo. A pós-modernidade enfatizará as perspectivas dialógicas/múltiplas referendadas pelo texto e pela narrativa. O colorido proposto por seus autores mais proeminentes (ANDERSEN, 1987,1991; BOSCOLO et al, 1978; SELVINI el al, 1980; GOLISHIAN & ANDERSON, 1987, 1990; LYNN HOFFMAN, 1988, 1990; WHITE & EPSTON, 1990) permitiu um salto que resultou em mudanças significativas. As estruturas universais deram lugar ao multiverso e as famílias passaram a ser consideradas como sistemas sociais orientados pela linguagem, geradoras de significados e em estado de desequilíbrio. O modelo hierárquico que enaltecia o terapeuta enquanto expert cede lugar a uma responsabilidade mais igualitária. Como afirma Lax (1998), “o eu é concebido não como uma entidade reificada, mas como uma narrativa; o texto não é algo a ser interpretado, mas um processo em evolução; o indivíduo é considerado dentro de um contexto de sentido social, e não como uma entidade intrapsíquica. E o 5 conhecimento científico ou o que seria considerado como fatos inegáveis a respeito do mundo dá lugar ao conhecimento narrativo com uma maior ênfase colocada sobre as crenças comuns a respeito de como o mundo funciona” (p. 87). Russel e Carey (2004), sustentadas em ideias pós-estruturalistas, compreendem que: (1) as nossas identidades não são fixas, mas estão sempre num processo de criação; (2) os terapeutas ajudam seus clientes a criarem e re-criarem suas identidades; (3) estas são construídas na relação com os outros, daí a importância de trazer para a terapia testemunhas que relatem situações semelhantes aos dilemas apresentados pelos clientes; (4) reconhecer que as identidades são construídas socialmente, significa admitir que nossas vidas são influenciadas pela história, pela cultura, pelo gênero, pela sexualidade, classe e por outras relações mais amplas de poder; (5) não podemos conhecer a “verdade” sobre a identidade das pessoas; (6) as compreensões do terapeuta nunca são objetivas, neutras ou isentas de valor. Isto força o profissional a revisar suas perspectivas, impedindo- o de impor suas idéias ao cliente; (7) é importante manter-se em alerta quanto àquilo que não se encaixa no “normal”. As autoras (idem) levantam questionamentos a respeito do terapeuta pós-estruturalista que é convidado a: Ajudar as pessoas (quando relevante) a pararem de mensurar suas vidas de acordo com o que certas normas sociais dizem sobre como a vida deveria ser; Indagar sobre sua prática profissional – sua “objetividade”, “perícia” e “interpretações”; Questionar ideias dadas como certas e suposições que podem ser apoiadas através da linguagem usada em terapia; Considerar que histórias, rituais e outros aspectos representativos são relevantes para a compreensão do processo da terapia; Externalizar idéias, problemas e qualidades do cliente em conversações na terapia. Aceitar seriamente que cada conversação na terapia moldará a identidade (até certo ponto) de ambos – a pessoa que nos consulta e o próprio terapeuta Refletir, do começo ao fim, como podemos envolver testemunhas no trabalho que está sendo desenvolvido no contexto da terapia; 6 Considerar como as histórias dos clientes moldam suas vidas e o quanto a terapia favorece a descrição de historias saturadas que constroem suas identidades. Hermenêutica e Construcionismo Social “Sem Duvida, é o leitor que captará e traduzirá em construções próprias as ideias da obra; e é, a partir de então – momento sagrado – que tais ideias deixam de ser patrimônio exclusivo do autor para passar a formar parte do universo de conhecimento do leitor”. (Cebério & Watzlawick, 1998 p. 13). Segundo Anderson (1999), “a hermenêutica filosófica contemporânea e o construcionismo social veem os sistemas humanos como entidades complexas integradas por indivíduos que pensam, interpretam e compreendem” (p. 72). Ambos questionam os princípios tradicionais de análise do ser humano baseados em pré-concepções de um discurso modernista, que perpetua a noção de metáforas universais a serem descobertas. Confrontam o conhecimento e a verdade como sendo construídos a partir de uma hierarquia – o terapeuta se sobrepondo ao cliente, pois consideram que esses limites impedem a apreciação da complexidade humana. As duas correntes compartilham uma perspectiva compreensiva de um sentido que não é imposto, mas sim, construído por indivíduos que interatuam e conversam até que venham à tona significados e interpretações variados de experiências de vida, incluindo as identidades. Nesse processo, a linguagem desempenha um papel fundamental. Para Gergen (1990 apud Anderson, 1999), “tanto os construcionistas sociais como os hermeneutas questionam que o entendimento pode refletir, revelar ou ser revelado” (p. 73). A hermenêutica foi um dos primeiros questionamentos à teoria cartesiana do conhecimento, que separava o observador do observado. Surgiu no século XVII, como enfoque de análise e interpretação correta de textos bíblicos e literários onde o leitor descobria e interpretava a palavra escrita. A tradição hermenêutica antiga focalizava o texto e não o intérprete ou o questionador do texto. A partir do final do século XVIII e XIX, ela foi rompendo com essa tradição textual, convertendo-se em um método de interpretação e compreensão da conduta humana. No século XX, associada ao pensamento de Gadamer, Habermas, Hiedegger e Ricoeur, dentre outros, adotou um tom pós-moderno. Não há uma definição universal para a hermenêutica, porém, em termos gerais, ela se ocupa da compreensão e interpretação – um texto ou um discurso sofre influências de crenças e intenções do intérprete. Para Anderson (1999), “a hermenêutica não é uma tentativa de alcançar o significado verdadeiro ou a interpretação correta, e não deve se confundir com a explicação 7 causal” (p. 74). Assim, a autora completa afirmando que “o significado de uma pessoa não pode ser compreendido plenamente, e muito menos reproduzido por outra pessoa [...]. Cada descrição, cada interpretação é uma versão de verdade [...]. A interpretação, a compreensão e a busca da verdade nunca acabam” (p. 74). Para Gadamer (1975, apud Anderson, 1999), o intérprete contribui para a experiência interpretativa e o significado emerge da fusão de horizontes entre o leitor e o texto, analogamente ao domínio da psicoterapia entre o terapeuta e o cliente. A compreensão singular que surge desse encontro não pode ser atribuída nem a um, nem a outro e todo ato de interpretação se situa na linguagem, na história e na cultura. Para Anderson (1999), “compreender é submergir no horizonte de outra pessoa, é um processo recíproco onde um se abre ao outro” (p. 75). Gergen (1994) critica Gadamer quanto à ênfase dada ao indivíduo e sua influência na interpretação. Para ele, as implicações da hermenêutica transcendem o indivíduo e alcançam as interações entre indivíduos. Sua insistência numa “descrição relacional”, em uma teoria relacional do sentido humano é um aspecto fundamental do discurso construcionista nas ciências sociais.O autor defende que a relação é o locus do conhecimento – as ideias, verdades e o próprio ser são produto das relações humanas, de uma comunidade de pessoas e relações. Como afirma Anderson (1999), “os significados da linguagem, ou seja, o significado que atribuímos às coisas, aos acontecimentos, às pessoas e a nós mesmos são o resultado da linguagem que usamos: do diálogo social, do intercâmbio e da interação que construímos socialmente” (p. 77). Teoria Literária “[...] Por não pretender dizer nada sobre como uma interpretação complexa e Teórica, por tentar apenas apreender, sabendo que aquilo é uma entre muitas leituras fugazes do beija-flor, do código genético ou do ser humano, a literatura é absolutamente realista. Ela se abre ao real em sua primeira existência, antes que ele seja explicado, codificado, interpretado, classificado”. (Carlos Rodrigues Brandão, 2006 apud Barthes, 1979 p. 70) A teoria literária é uma descrição dos princípios subjacentes (ferramentas) através dos quais tentamos compreender a literatura. Toda a interpretação literária parte de uma base teórica, mas pode servir de justificativa para vários tipos de atividade crítica. É a teoria literária que formula a relação entre o autor e a obra. Também denominada de “teoria crítica”, hoje vem-se transformando em “teoria cultural”, podendo ser entendida dentro da 8 disciplina dos estudos literários como o conjunto de conceitos e pressupostos em que se fundamenta o ato de explicar ou interpretar os textos literários. A teoria literária refere-se a quaisquer dos princípios derivados da análise interna dos textos literários ou de conhecimentos externos ao texto que podem ser aplicados em várias situações interpretativas. Usando as diversas teorias pós-estruturalistas e pós-modernas, que frequentemente se utilizam de outras disciplinas além das literárias - linguísticas, antropológicas, psicanalíticas e filosóficas - para formar as suas percepções primárias, a teoria literária tornou-se um corpo interdisciplinar de teoria cultural. Tendo como premissa o fato das sociedades e do conhecimento humano serem, de uma forma ou de outra, constituídos de textos, a teoria cultural é agora aplicada às variedades destes, visando ambiciosamente se tornar o modelo proeminente de questionamento da condição humana. A crítica literária acabou influenciando o campo da Psicologia no que diz respeito ao conceito de significado, considerando o privilégio de um tipo de interpretação em detrimento de outro. Tradicionalmente, Gergen (1994, apud Grandesso, 2000) compartilha de uma visão intersubjetiva de significado em que, segundo ele, o intérprete busca, por meio de sua análise, capturar o significado interno do trabalho literário, equivalente ao significado privado que o autor tentou expressar por meio de sua obra. Portanto, nesta ótica, o significado refere-se à intenção do autor. Para Michel Foucault, filósofo desconstrucionista, que desenvolve uma noção particular sobre o poder, explorada em outra seção deste artigo, o autor de uma obra literária não pode ser identificado com um ser humano individual, mas sim, com o um sujeito sob influências da linguagem, de uma concepção de literatura daquele período e território em particular, com seus elementos sócio-culturais e históricos. Em 1950, a nova crítica literária, condizente com o pensamento moderno, convocou a importância do trabalho literário em si como uma unidade, defendendo a ideia de que a obra dizia mais sobre si mesma do que o próprio autor. Com a virada paradigmática da pós-modernidade, a teoria literária passou a enfatizar o ponto de vista do intérprete. De acordo com Grandesso (2000), o foco de atenção proposto por Gadamer se debruça sobre a participação do leitor na construção do significado do texto – seus sentimentos, ideologias, pressuposições e disposições cognitivas são fatores determinantes de uma interpretação. Diz ela, “nesse sentido, tanto a intenção do autor como a estrutura do texto perdem sua importância diante das disposições do intérprete” (p. 179). 9 A seguir, abordar-se-á um dos principais expoentes da crítica literária, o filósofo francês Jacques Derrida e o significado por ele proposto ao termo desconstrução. Derrida e a Desconstrução A desconstrução foi um termo utilizado pelo filósofo francês Jacques Derrida como método ou processo de análise crítico-filosófica situado dentro do movimento denominado pós- estruturalismo. Surge como uma ruptura ao estruturalismo nos meios universitários norte- americanos, dentro de amplos debates, sobretudo nas décadas de setenta e oitenta. Desconstruir um texto é fazer com que as suas palavras subvertam as próprias suposições desse texto, reconstituindo os movimentos paradoxais dentro da sua própria linguagem. Derrida propõe uma nova reflexão sobre a maneira da linguagem operar. Questionando os valores de verdade, de significado inequívoco e de presença, a desconstrução aponta para a possibilidade de escrever não mais como representação de algo, mas como a infinitude do seu próprio “jogo”. Nesse sentido, o filósofo se abstém da busca de qualquer significado através ou dentro do texto, já que o considera impossível de ser fixado – cada escolha pressupõe um estado de indecisão anterior. Desconstruir um texto não é procurar o seu sentido, mas seguir os trilhos em que a escrita, ao mesmo tempo se estabelece e transgride os seus próprios termos, produzindo então um desvio [dérive] assemântico de différence. Todo o signo só significa na medida em que se opõe a outro signo, por isso pode-se dizer que é essa condição da linguagem, que constantemente diferencia e adia os seus componentes, o que concede significado ao signo. Segundo o autor, a leitura crítica de um texto literário não objetiva um sentido único, mas a descoberta da sua pluralidade de sentidos. Para Derrida (1976; 1978 apud Gergen & McNamee, 1998), “a linguagem é um sistema de signos que não têm um valor positivo ou negativo inerente. Os valores são atribuídos a eles somente pela nossa produção de sentido. A existência de uma palavra automaticamente inclui todas aquelas distinções tanto dela mesmo quanto de sua relação com as outras palavras que não estão presentes. Assim sendo, múltiplos entendimentos estão sempre disponíveis através da distinção do que está presente no texto em relação às ideias e palavras opostas que não estão presentes. Estes outros entendimentos possíveis podem ser compreendidos como traços no texto, ‘sempre já’ disponíveis para serem invocados. 10 Seguindo a perspectiva da ‘resposta do leitor’ (ver CULLER, 1982), estas novas distinções não são como artefatos esperando para serem descobertos, mas visões diferentes disponíveis para cada leitor a partir da perspectiva dentro da qual aquela pessoa vê o texto” (p. 90). Bateson e Derrida apresentam semelhanças com relação ao termo diferença: “ambos descrevem relações, não entidades”. A différence acrescenta outra qualidade à ideia de Bateson sobre diferença. Segundo Lax (1998), “Derrida propõe que existe aquilo que é dito e o que não é dito, e a tensão entre os dois é a différence” (p. 91). Uma nova compreensão surge dessa tensão. No interjogo do dito e do não dito, daquilo que está presente e do que não se apresenta, existe um potencial para uma nova perspectiva, pois nenhum deles adquire valor de objeto de realidade – ambos são, portanto, uma construção particular da leitura que o leitor faz do texto. Segundo o filósofo, devemos sempre buscar essa outra posição, ao mesmo tempo que desconstruímos o mundo como estamos habituados a conhecê-lo, procurando pelo inesperado que substitua a visão habitual. Levando em consideração as proposições dissimuladas ou impronunciadas do texto, as lacunas e contradições internas de maior sutileza podem significar algo muito diferente daquilo que a princípio o texto parecia querer dizer. Existem momentos em que o textonão pretende dizer algo específico, mas dá margem a diferentes sentidos, inclusive, versões distantes daquela que, inicialmente, o autor pretendia. Mostrando os efeitos de différence em que o sentido é constantemente diferido e distinguido, estamos diante de uma cadeia infinita de significados que constitui o texto. Derrida mostra que o texto pode dizer sobre sua própria história, deixando então entrever um novo texto que, por sua vez, está sujeito ao idêntico trabalho desconstrucionista que permite um retorno dialético infinito ao texto. Nessa técnica de leitura não se valida o antigo pressuposto do New Criticism dos anos 40 e 50, de que o sentido está contido no texto e pode ser controlado, pois ele coexiste no jogo linguístico e deste participa, nunca garantindo o absolutismo (ou presença) de um sentido (ou interpretação) em relação a outros sentidos (interpretações). A intenção do autor fica sempre dissolvida no jogo diferencial/protelador (jogo da différence) dos significantes. Os críticos da desconstrução de Derrida têm fundamentado as suas observações, sobretudo no estilo hermético e excessivamente retórico do filósofo francês que se entretém com complexos jogos de linguagem e engenhosos conceitos, mas Derrida defende-se afirmando que o jogo faz parte da própria natureza da linguagem. Outra crítica a seu trabalho diz respeito ao grau de arbitrariedade em que a desconstrução implica: se a linguagem e a metafísica são estruturadas pelas diferenças não é possível fundar nenhum tipo de critério ou criar uma referência que sirva de orientação no processo de interpretação 11 de uma obra literária, o que nos permite acreditar que tudo é aparentemente permitido e nada permanece, seja o sentido do texto, do autor ou a autoridade do leitor. Esta posição deriva de um entendimento da desconstrução como mera destruição do texto, correlação que os desconstrucionistas se empenham em negar. A analogia do texto com a prática clínica tem sido usada por alguns autores da pós- modernidade, dentre eles David Epston e Michael White (1990). Essa perspectiva vislumbra uma posição ativa dos leitores, defendendo que cada leitura de interpretação depende da interação entre cliente e terapeuta – é dessa interação que surge o texto e de onde emerge a narrativa de uma vida. Assim, os autores afirmam que “o desenrolar do texto é sempre algo que acontece entre pessoas. Os clientes revelam a história de suas vidas em conjunto com um leitor/terapeuta específico e, portanto, este é sempre co-autor da história que está sendo contada. O texto resultante não é a história do cliente nem a do terapeuta, mas uma construção dos dois” (p. 91). A Terapia Narrativa de Michael White “A ‘história’ é um passado que aconteceu e acontece sempre, porque isso que você diz não é o que aconteceu, mas o que está sempre acontecendo”. (Rubem Alves, 2006 referindo-se a Guimarães Rosa). Michael White, considerado um verdadeiro antropólogo terapêutico, é um dos mais consagrados terapeutas narrativos da atualidade. Trabalha no Dulwich Centre em Adelaide, Austrália, ministrando cursos de formação e aperfeiçoamento, desenvolvendo trabalhos em comunidades e viajando pelo mundo disseminando suas ideias. Sempre esteve interessado em ampliar sua teoria com estudos de áreas afins, como a antropologia, a critica literária, a filosofia, incluindo as leituras referentes à noção de poder, tema pelo qual demonstra interesse a partir das ideias do filósofo Michel Foucault. O resultado dessa diversidade é um modelo narrativo original e “acrobático”. Segundo ele, ao contarmos nossas experiências, acabamos por atribuir-lhes significados, deste modo, a vida deve ser vista como um relato e os seres humanos como seres interpretantes. O autor parte do pressuposto de que interpretamos nossas experiências quando vivemos nossas vidas. Esta idéia é confirmada por Alice Morgan (2007), quando afirma que 12 “como humanos, somos seres que fazemos interpretações [...]. As histórias que temos a respeito de nossas vidas são criadas através de interligação de certos eventos numa seqüência particular através de um período de tempo, e do encontro de uma maneira de explicá- las ou dar-lhes sentido. Essas formas de significado formam o enredo da história. Nós, constantemente, damos significados às nossas experiências conforme vivemos nossas vidas. Uma narrativa é como um fio que tece os eventos formando uma história” (p. 17). O trabalho dele foi também influenciado no início pelas idéias de Gregory Bateson (1972), principalmente pelos conceitos de impedimentos, descrição dupla e a explicação negativa. Esta descreve o desenvolvimento de uma informação como algo que se desenvolve em uma certa direção “ao invés” de em outras. Assim, qualquer evento, comportamento ou discurso pode ser considerado como um “impedimento” na medida em que, uma vez tendo sido selecionado, faz com que outros eventos, comportamentos e discursos passem a ser negligenciados. Quando o problema é visto como um impedimento, White propõe separá-lo da pessoa, o que permite que ela passe a compreendê-lo de forma diferente do habitual. Para o autor, os problemas não estão localizados nem na pessoa (caráter intrapessoal do problema), nem na família (caráter interpessoal). Eles são construídos em separado das pessoas e das famílias e vistos como entidades únicas que as influenciam. O efeito desta consideração sobre o problema é que ele saia da vida das pessoas, bem como de que elas se unam contra ele, ao invés de serem isoladas em categorias diagnósticas que as patologizam. Nessa prática, White propõe a objetivação dos problemas, que se opõe à objetivação das pessoas. As conversas de externalização consistem, num primeiro passo, em falarmos sobre o problema, sobre sua história e o efeito de separá-lo enquanto identidade independente do cliente. Nomeia-se o problema (em separado da pessoa), mapeiam-se os efeitos do problema na vida dela e vice-versa, o que permite um rastreamento da história do problema, colocando-o num enredo. Muitas vezes é possível identificar que os problemas são influenciados pelas relações mais extensas de poder (classe, gênero, identidade sexual, etc), fato que repercute em um aproveitamento de Michael White das ideias desenvolvidas por Foucault. Ao situar seu modelo narrativo em um enquadre Construcionista Social, os problemas se situam em contextos interacionais e culturais. Para Foucault (1987), a subjetivação é um processo ativo do indivíduo de se autoavaliar a partir das normas vigentes e a tentativa de 13 se adequar a elas, levando as pessoas a se transformarem em corpos dóceis que atuam independentemente de seus próprios desejos, uma vez que estão “acopladas” a uma padronização cultural. A noção de poder é análoga a uma tecnologia – a técnica pela qual a sociedade regula seus membros, segundo Strathern (2000), ao citar as ideias de Foucault da década de 70. A Psicologia e as psicoterapias têm um papel relevante na reprodução da cultura dominante, pois, enquanto profissional, o terapeuta não pode ser cúmplice absoluto desta. Ao mesmo tempo em que permanece dentro de uma linguagem adotada pelo contexto cultural, não pode estar à margem dele, devendo explorar modos de vida e de pensamento alternativos. Zimmerman e Diekerson (1996) se referem às ideéias de Foucault sobre como o poder está nas mãos daqueles cujos discursos são adotados e estabelecidos como padrões de normalidade. Dentro da perspectiva da narrativa, os problemas só sobrevivem quando estão sustentados por ideias, crenças e princípios particulares. Morgan (2007) afirma que “os atos de violência contra as mulheres e o abuso contra elas, por exemplo, só podem existir se eles são sustentados por ideias de patriarcado e domínio masculino que servem para justificar e desculpar essas violências. A anorexia e a bulimia nervosa só podem sobreviver em culturas que valorizam a magreza,onde o sucesso e a competência são julgados em termos da forma do corpo e o tamanho, e em culturas que promovem a autovigilância e o individualismo” (p. 53). Em seu livro Reiscribir la Vida (2002), White comenta o seu trabalho com os veteranos da Guerra do Vietnã. Segundo ele, o diagnóstico “elegante” de estresse pós-traumático legitimava a patologização desses homens que sofriam por não conseguirem se reconciliar consigo próprios, não suportando conviver com a memória daquilo que viram e fizeram no período da Guerra. O autor se preocupa em transformar um significado particular dado pessoalmente pelo indivíduo em um significado culturalmente construído. Ao propor o termo “compaixão violada”, White “brinda” uma descrição mais próxima à experiência desses veteranos, uma vez que enfatiza a questão do contexto, mesmo que não deixe de implicá- los nos fatos, porém, com este diagnóstico alternativo, ele apresenta opções para uma ação de índole reparatória – oferece a esses homens a possibilidade de revisarem a relação com eles mesmos. Além disso, o autor agrega o reconhecimento civil de que a nossa sociedade, cabalmente, foi cúmplice ao enviar esses homens para o Vietnã. Dessa forma, considerar os aspectos políticos da terapia significa, de certo modo, trazer o mundo à terapia e transformar em político o social (White, 2002). 14 Essas acrobacias narrativas que Michael White realiza em suas práticas clínicas terão as suas construções mais claras a partir do próximo tópico, quando serão explorados os instrumentos terapêuticos mais importantes na sequência que devem ser abordados durante o processo, considerando a interdependência entre eles. Além disso, vale ressaltar que todos os mapas seguidos em entrevistas narrativas intencionam a transformação de histórias pobres em densas e ricas. Externalização do problema A prática narrativa de externalização do problema surgiu na década de 80 a partir de tratamentos com crianças e tem como pressuposto básico a idéia de que a pessoa não é o problema, o problema é o problema. Dessa forma, a externalização não localiza o problema dentro do indivíduo, mas sim o vê como produto de uma cultura e uma história, socialmente construídos no tempo (Russel & Carey, 2004). É uma prática que permite às pessoas se separarem dos relatos dominantes que têm dado forma às suas relações, retomando aspectos que há muito tempo foram ignorados de suas experiências e que serão essenciais para o surgimento de uma leitura que divirja daquela habitual e dominante. Segundo Barbara Myerhoff (1986 apud White & Epston, 1993), a terapia inspirada na externalização de problemas facilita a ‘re-escritura’ de vidas e relações. Para externalizar um problema, White utiliza o conceito de Bateson de “dupla descrição” ao inserir um método de “questionamento de influência relativa”. Neste, o terapeuta aponta duas descrições sobre o mesmo evento: (1) que influência o problema tem sobre a vida da pessoa, de seus familiares e demais relacionamentos; e (2) que influência tem a pessoa ou a família na narrativa do problema. É nesta segunda descrição, menos usual e mais criativa, que se encontra a fonte para o surgimento de uma história alternativa que fuja da versão saturada dominante. As perguntas de influência relativa são feitas ao cliente para que ele possa experimentar um mundo de flutuações, contrário àquele fixo e estático onde compreendia seus problemas como intrínsecos a si mesmo. Com essas perguntas, as pessoas encontram possibilidades novas e oportunidades de atuar com flexibilidade. Algumas intervenções terapêuticas facilitam a externalização, dentre as quais, quando se propõe que os adjetivos sejam substituídos por substantivos que o cliente se auto-impõe. Por exemplo, ao se referir como uma pessoa deprimida, o terapeuta passa a substituir este adjetivo usado pelo cliente por um substantivo, questionando-o “Há quanto tempo esta depressão está te influenciando?”. Uma outra maneira de externalizar o problema consiste 15 em questionar o cliente convidando-o a personificar seu problema, criando um espaço que seja útil para ele revisar a relação que tem estabelecido com o mesmo. Ex: uma cliente psicótica com crises repentinas de alucinação visual e auditiva pode ser convidada a externalizar “D. Crise”. O terapeuta prossegue o tratamento entrevistando D. Crise: Em que momentos D. Crise lhe visita? Quem mais se incomoda com a visita de D. Crise em sua família? Ela mora em sua casa ou é uma hóspede temporária? Todas essas questões permitem que o cliente se perceba como alguém que não é, em si, o problema, mas sim, está com esta dificuldade e conta com o terapeuta para combatê-la. Segundo White e Epston (1993), as práticas associadas à externalização de problemas fomentam uma sensação nova de regência da própria vida no cliente, sensação esta que lhe permite assumir responsabilidade para investigar novas possibilidades e experimentar uma nova capacidade de intervir sobre seu mundo. Re-autoria “dizer algo, sobretudo dizer com beleza –ou com ternura, com saudade, com emoção – significa, de alguma maneira, ressuscitar aquilo que já não existe mais. Ou, ainda, trazer para perto o que está longe [...]”. (Carlos Rodrigues Brandão, 2006 p. 57). Uma das razões mais frequentes das pessoas procurarem por terapia é o fato de assumirem concepções negativas de si mesmas – considerarem-se inúteis, perdedoras, deprimidas, infelizes, ou seja, quando concluem ser uma identidade problemática. Os fatos que ocorrem em nossas vidas terão uma maior ou menor relevância a depender de como os interpretamos. Quando nos sentimos culpados de algo desagradável ocorrido e acreditamos que isso sempre acontece conosco, damos um amplo significado ao fato. Contrariamente, o mesmo evento pode passar despercebido quando acreditamos que estamos sendo injustiçados, pois não nos consideramos comprometidos com o mesmo. De acordo com Russel e Carey (2004), a prática de re-autoria parte do pressuposto de que nenhuma história trazida pelo sujeito é totalizante, no sentido de abarcar tudo que ele é ou representa. Desta forma, ao acreditarmos que há sempre espaço para contradições e inconsistências, cabe ao terapeuta ir em busca de um repertório mais amplo de histórias estocadas que intercedam a favor do indivíduo e da imagem saturada que ele “carrega” de si. As autoras consideram que somos seres multi-historiados, logo, nossa identidade não pode ser representada por uma única história. 16 Para White e Epston (1993), as histórias moldam a identidade das pessoas e necessitam de alguns elementos para que se configurem: primeiro, um evento, segundo, que ele esteja organizado numa seqüência temporal e, por fim, que se desenvolva ao redor de uma trama ou de um tema. Quando qualquer destes elementos não está presente, não existe história. É função do terapeuta se manter em alerta frente ao discurso do cliente a tudo aquilo que possa contrapor a versão dominante trazida por ele, que o empobrece e o adoece. O elemento que distoa da versão dominante e é garimpado pelo terapeuta denomina-se acontecimento extraordinário. São acontecimentos que contrariam o discurso dominante, estão fora do território da história-problema, verdadeiros lampejos “amortecidos” que, de repente, com auxílio terapêutico, dão luminosidade à vida do cliente, oferecendo histórias alternativas que comprometem e transformam a concepção que o cliente em sofrimento tem de si mesmo (Russel & Carey, 2004). A partir de uma exploração detalhada de um acontecimento que, a priori, era amorfo e esquecido, mas que, com a investigação, torna-se “luminoso” e “significativo”, o terapeuta busca associá-lo a outros eventos para que, dessa união, surja uma história preferida. Se o acontecimento extraordinário permanecer isolado e desconectado de outros eventos, não permitirá que surja material consistente que possa compor histórias alternativas.Após localizar um acontecimento extraordinário e associá-lo a outros eventos que possam se unir ao redor de um tema, é chegada a hora de nomear a história alternativa. Depois de nomeá-la, a atenção se volta para espessá-la – tornar mais “densa” uma história que era “fina”. White (1993; 2002) estrutura a narrativa em dois cenários de acordo com Bruner (1986): o cenário de ação, que trata da seqüência temporal, como os temas se apresentam no passado, presente e futuro dentro de uma trama relacional com determinados efeitos morais e comportamentais; e o cenário de identidade, que consiste nas interpretações e significados atribuídos a estes temas – está relacionado aos meios pelos quais o cliente produz resultados inéditos e diz respeito às preferências, desejos, metas, intenções, valores e crenças das pessoas. Este último grupo pode ser considerado como um compromisso que se transforma em “estilo de vida”. Vale ressaltar que Jerome Bruner (1950 apud Correia, 2003), um dos maiores expoentes dos estudos de construção de significados, dá ênfase ao papel da cultura enquanto sistema fundador do pensamento, contexto a partir do qual a mente se constitui e funciona. Falar dele significa nos remetermos ao conceito de mente social que, segundo o autor, nada mais é do que considerar a mente como constituída por uma cultura que organiza e interpreta a 17 vida, reconhecendo, portanto, que os seres humanos produzem significados mediados por uma cultura na qual estão inseridos. Para o autor (idem, ibidem), as narrativas são fontes valiosas de dados para o estudo da mente e seguem alguns princípios universais: (1) suas estruturas temporais não seguem os relógios, mas sim, as ações humanas mais importantes; (2) é fácil avançar ou retroceder no tempo quando se trata de narrativas; (3) as ações implicam em estados intencionais, crenças, desejos e valores; sendo assim, não são determinadas pelo princípio de causa e efeito; (4) não possuem uma única interpretação, uma vez que sempre dão margem a questionamentos; (5) abrem espaços à contestação, negociam-se outras versões para as histórias; e, por fim, (6) têm que romper com o canônico para valer a pena serem contadas. De acordo com Bruner (2001, apud Correia, 2003), “vivemos a maior parte de nossas vidas em um mundo que é construído e que obedece às regras e aos recursos da narrativa” (p. 509). Além disso, a narrativa também lida com o material da ação e da intencionalidade humanas – considera o significado dado pelo autor aos eventos, envolvendo, inclusive, a negociação de significados entre os seres humanos. Daí, Bruner (1986) referir-se ao self transacional – um self em negociação com os outros sociais e com a cultura. Ele situa os significados no reino da cultura e afirma que eles encontram na linguagem o seu veículo de expressividade. Assim, as entrevistas terapêuticas favorecem ao terapeuta uma investigação e um conhecimento dos aspectos culturais que influenciam as experiências de vida do cliente. Russel e Carey (2002), comentando o trabalho do mestre Michael White, descrevem uma hierarquia a ser seguida na aplicação do mapa (entrevista-guia) de re-autoria: (1) pergunta- se sobre intenções e propósitos, (2) valores e crenças que apoiam isso, (3) esperanças e sonhos que estão associados a esses valores, (4) princípios de vida que estão representados por essas esperanças e esses sonhos e, finalmente, (5) os compromissos ou significados disso na vida das pessoas. Enquanto intervenção terapêutica narrativa, a aplicação do mapa referente às conversações de re-autoria dividem-se nas duas categorias supracitadas: o cenário de ação (eventos e ações) e o cenário de identidade (convida o cliente a refletir diferentemente do habitual sobre sua própria identidade e as daqueles que o cerca). Quanto ao cenário de ação, o cliente é convidado a falar sobre o fato ocorrido, quem estava presente, o que o fez agir diferentemente daquela maneira, se ele já havia agido assim antes, etc. Quanto ao cenário de identidade, é questionado ao cliente sobre o significado dessa guinada em sua vida, se alguns valores estariam associados a essa guinada, que esperanças e sonhos poderiam estar atrelados a esses valores, que outros momentos podem ser lembrados, quando esses valores foram importantes para ele, se algo do passado reflete este valor, 18 que conexão poderia ser feita entre esses fatos do passado e o que hoje está acontecendo com ele, como ele se sente ao conectar o passado a hoje, etc. Como os problemas são geralmente muito competentes em separar as pessoas umas das outras, é função do trabalho de re-autoria resgatar uma re-conexão a partir da lacuna que, até então, foi instalada para isolar os indivíduos entre si. Quando re-construímos uma história de re-autoria com nosso cliente, fica evidente o quanto os “outros” recuperados em sua existência assumem um papel vital na história de suas vidas. Além disso, é uma prática que não se restringe à terapia, mas, ao invés disso, se estende para outros contextos de vida da pessoa, uma vez que sempre se criam e se revisam as histórias de vida, incluindo aqueles ao nosso redor e o contexto cultural em que vivemos. A eficácia de uma história de re-autoria pode ser selada com um documento que o cliente leve para casa, propiciando-lhe, assim, manter-se conectado com o trabalho desenvolvido na sessão. Re-membramento e/ou Re-associação Esta prática terapêutica utilizada por Michael White é influenciada diretamente pelos trabalhos desenvolvidos pela antropóloga Bárbara Myerhoff, que estudou algumas comunidades judias do sul da Califórnia, chegando a considerar a importância do termo re- membering (re-membrar, re-associar), cujo significado é ressaltar pessoas importantes em algum momento de nossas histórias de vida que permanecem “apagadas”. Ao trazê-las à tona, remetemo-nos ao quanto elas foram importantes na construção de nossas identidades e, consequentemente, influenciaram na forma como nos percebemos. Esses indivíduos que apresentam status diferentes em determinados momentos de nossa existência são os sócios ou membros do que se denomina clube da vida. O pensamento subjacente a essa prática de re-membramento baseia-se na concepção pós- estruturalista de que nossas identidades são tecidas pelos relacionamentos que estabelecemos com outras pessoas. Ela proporciona um contexto para as pessoas revisarem e re-organizarem os sócios de seu clube da vida. É um tipo de intervenção terapêutica que envolve não apenas recordar histórias estocadas, mas ainda, “re-organizar” os membros do clube da vida, elevando-os ou rebaixando-os. Vale ressaltar que nós, terapeutas brasileiros, não chegamos ainda a um consenso sobre qual seria o termo mais apropriado para traduzir re-membering, desta forma, temporariamente me apropriarei dos significados supracitados. 19 A investigação de novos sócios ou o ressurgimento de um sócio antigo, embora esquecido, pode facilitar a densidade de histórias alternativas que ampliam o repertório do cliente, favorecendo a tomada de atitude, por parte dele, de “fugir” da versão dominante-saturada. Podemos considerar que a nossa identidade é construída e “encorpada” pelos outros; como eles nos vêem, como nos percebemos a partir do olhar deles sobre nós, considerando, portanto, que somos compostos por “múltiplas vozes”. Coerente com a visão pós- estruturalista, Gergen (1994) escreveu que nossos relacionamentos criam nossos selves, ao invés de nossos selves criarem nossos relacionamentos. Esta concepção difere da visão estruturalista de identidade, que concebe um self essencialista no interior da pessoa, essência de sua natureza (self individual). Existem três circunstâncias úteis para as conversações de re-membramento: (1) quando o cliente se refere a alguém importante de seu passado; (2) quando se refere a uma habilidade ou conhecimento próprio que facilite tratar seu problema do presente; (3)quando ele tem uma visão negativa de si mesmo e, desse modo, a conversação funciona como antídoto. Ao se sentirem desanimados e desesperançosos enquanto indivíduos e com a vida, a prática de re-membramento proporciona a ampliação ou o resgate de sócios significativos que promovam imagens adversas mais positivas do que aquelas saturadas ressaltadas pelo cliente. As perguntas de re-membramento, muitas vezes, engatilham o começo de uma história alternativa, pois revelam pessoas que vislumbram um novo olhar sobre o cliente. São elas: De que forma essa pessoa contribui em sua vida ou proporcionou diferença na sua existência? A maneira como essa figura importante via e agia com você mudou sua forma de ser e pensar sobre si mesmo? Por que será que essa figura demonstrou interesse por você? O que acha que você representou/significou na vida dela e que diferença você fez quanto à maneira dessa figura levar a vida dela? Quem, no passado, se surpreenderia menos ao te ouvir falar assim? O que essas pessoas testemunharam na sua vida que atestasse valores, compromissos que são importantes para você? Que significado teve para eles perceberem isso? Ainda em relação a essa prática, é relevante mencioná-la em casos de iminência de morte ou quando as conversações incluem pessoas que já morreram. É interessante interrogar: Como o cliente deseja manter viva a memória de um ente querido falecido? Como o cliente que está para morrer deseja ser lembrado, que legado quer deixar e para quem? Essa união de vidas através de temas compartilhados reduz a sensação de isolamento experimentada pelo cliente e estabelece conexões entre a história dele e as de outras 20 pessoas, favorecendo uma narrativa mais rica e mais densa para as histórias alternativas. Este é o aspecto principal da prática de conversações de re-membramento. Em casos em que o cliente não tem sócios proeminentes no clube de suas vidas, o terapeuta pode resgatar personagens fictícios por quem demonstra apreço, como autores de livros, animais, brinquedos, etc. O objetivo de tal prática é resgatar compromissos, valores e pessoas significativas na vida do indivíduo. É interessante lembrar que as habilidades, as promessas, os valores e os propósitos de alguém não são construídos no vazio, mas sim, foram modelados pela história da pessoa e seus relacionamentos com os outros e com o mundo (Russel & Carey, 2004). Há momentos em que é necessário renegociar, rebaixar ou até, em situações extremas, abolir alguém de sócio do clube da vida – esta é uma situação extrema que deve ser cuidadosamente avaliada. Documentos e cerimônias ajudam nessa passagem. Também ocorrem situações em que é necessário elevar a reputação de pessoas que estavam mal vistas no clube da vida e proporcionar ao cliente uma restauração na identidade dele, bem como de qualidades até então imperceptíveis na vida do cliente. Testemunha Externa A prática da testemunha externa foi fortemente influenciada pelos trabalhos da antropóloga Bárbara Myerhoff (1982; 1986) que introduziu o termo cerimônia de definição para descrever o processo pelo qual as pessoas de uma comunidade efetivamente constroem suas identidades. Referiu-se, inicialmente, a atividades desenvolvidas em uma comunidade judia, de pessoas pobres e abandonadas em Los Angeles. Os seus integrantes eram relativamente “invisíveis” para a comunidade mais abrangente, carecendo de reflexões importantes sobre suas próprias vidas. Desta forma, corriam o risco de se tornar “invisíveis” para eles mesmos, risco este de duvidarem de sua própria existência. Foi a partir das cerimônias de definição que essas pessoas “combateram” essa ameaça, uma vez que as cerimônias passaram a ser uma “arena para se mostrarem”, dando-lhes oportunidade de fazer proclamações individuais e coletivas de seu ser. Como afirma a autora (1986, apud White, 2002), “as cerimônias de definição abordam os problemas de invisibilidade e da marginalidade; são estratégias que brindam cada indivíduo com oportunidades para serem vistos em seus próprios termos, reunindo as testemunhas de sua existência, seu mérito e sua vitalidade” (p. 267). Michael White transportou as ideias de cerimônia de definição e de testemunha externa para o campo da terapia narrativa de forma especial e cuidadosa. As testemunhas externas podem ser um grupo que trabalha de acordo com a prática da equipe reflexiva. 21 A testemunha externa consiste em um público convidado a participar de uma conversação terapêutica que pode pertencer à família ou rede social do cliente, ou ainda um desconhecido seu que faça parte de sua comunidade. Uma outra alternativa para este tipo de recrutamento consiste no terapeuta recorrer a listas de pessoas por ele atendidas previamente que passaram pelo mesmo tipo de problema pelo qual o cliente atual está vivendo. Este indivíduo pode fazer parte de apenas um único encontro ou estar presente regularmente nas sessões terapêuticas. Quando há mais de uma testemunha externa, especialmente quando é uma equipe trabalhando em conjunto, os membros da equipe se ajudam mutuamente em suas reflexões. Por exemplo, após uma testemunha externa ter falado, outra pode fazer algumas perguntas sobre o que ela/ele terminou de dizer, a fim de que o processo fique mais significativo. Enquanto a testemunha externa estiver falando no meio do grupo, o cliente fica ouvindo. Ter alguém testemunhando a conversação terapêutica pode ser muito significativo, especialmente se a testemunha externa ouvir e responder de maneira clara (Russel & Carey, 2004). Por muito tempo a prática da testemunha externa privilegiou o aspecto da curiosidade. Hoje, são priorizadas as metáforas de validação e a ressonância. Quando o cliente tem oportunidade de ouvir o relato da testemunha externa que, de alguma maneira se conecta com o que ele está passando, é possível fazer uma conexão entre essas duas vidas, remetendo-se aos temas e valores que estão sendo compartilhados. Considerações Finais Sem sombra de dúvida, a prática narrativa de Michael White consiste em movimentos “acrobáticos” que revelam originalidade, equilíbrio, ousadia e domínio de intervenções terapêuticas pautadas no poder generativo da linguagem. Situado no domínio linguístico novo-paradigmático, este mestre brinda na cena terapêutica conceitos advindos das mais distintas áreas de conhecimento – a antropologia, a filosofia, a teoria literária, etc. Ao fazer uma analogia entre a lacuna existente entre a proposta do autor, a expressão do texto e a conduta do intérprete, White compõe a construção de um processo terapêutico de mão dupla, de histórias alternativas que ampliem o repertório obtuso exposto pelo cliente em sua versão dominante e saturada do problema. Uma vez limitado em sua “miopia”, o terapeuta ressurge como interlocutor que ilumina a “estrada” obscura, promovendo o encontro do cliente com seu repertório de acontecimentos extraordinários, reposicionando-o 22 em suas competências. Estes são “tesouros” recuperados que funcionam como ferramentas para a batalha atual, batalha esta travada contra o problema, a partir da aliança estabelecida entre o cliente e seu terapeuta (externalização do problema). São as conversações de re-autoria que propiciam esta garimpagem preciosa, associada às figuras significativas (clube da vida) que compõem e influenciam a construção identitária da pessoa do cliente. Nesse re-membramento, alguns convidados, externos ou internos à vida dele participam de sua terapia na condição de testemunhas externas, revelando experiências semelhantes e já mais elaboradas ou até superadas com relação àquelas expostas pelo cliente. Esse “comércio” emotivo favorece a percepção de que não estamos sozinhos em nossos dilemas e, assim como essas testemunhas, merecemos perceber as vantagens de cometermos acrobacias que disseminem um novo colorido em nossas vidas. REFERÊNCIAS ANDERSEN, T. (1996). The reflectingTeam: Dialogues about Dialogues. Nueva York: W.W. Norton. ARDERSON, H. (1999). Conversación, lenguage y posibilidades. Un enfoque posmoderno de la terapia. Buenos Aires: Amorrortu. 370 p. ANDERSON, H.; GOOLISHIAN, H. (1988). Human Systems as linguistic systems: preliminary and evoking ideas about the implications for clinical theory. Family Process, 27: 371-94. ALVES, R.; BRANDÃO, C. R. (2006). Encantar o mundo pela palavra. São Paulo: Papirus. 123 p. BATESON, G. (1972). Steps to an ecology of mind. New York: Ballantine Books. BOSCOLO, L.; CECCHIN, G.; HOFFMAN, L.; PENN, P. (1993). A Terapia Familiar Sistêmica de Milão. Porto Alegre: Artes médicas. 344p. BRUNER, J. (1986). Actual minds, possible worlds. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press. CEBERIO, M. R.; WATZLAWICK, P. (1998). La Construcción Del Universo. Barcelona: Herder. 220p. 23 CORREIA, M., F. B. (2002). A Constituição social da mente: (re) descobrindo Jerome Bruner e construção de significados. Estudos de Psicologia. Universidade Federal da Paraíba, 8 (3), 505-513. http://www.scielo.br/pdf/epsic/v8n3/19973.pdf. Acessado em 24/05/07. FOUCAULT, M. (1987). Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes. GERGEN, K. J.; KAYE, J. (1998). Além da Narrativa na Negociação do Sentido Terapêutico. In: GERGEN, K. J.; McNAMEE, S. Terapia como Construção Social. Porto Alegre: Artes Médicas. 201-222. GERGEN, K. J.; WARHUS (2001). La Terapia como una Construccion Social: dimensiones, deliberaciones, y divergencias. GERGEN, K. J. (1994). Realities and relationships – soundings in social construction. Cambridge. M>A: Harvard University Press. GRANDESSO, M. (2000). Sobre a reconstrução do significado na prática clínica. Uma análise epistemológica e hermenêutica da prática clínica. São Paulo: Casa do Psicólogo. 422 p. LAX, W. D. (1998). O Pensamento Pós Moderno na Prática Clínica. In: GERGEN, K. J.; McNAMEE, S. Terapia como Construção Social. Porto Alegre: Artes Médicas. 86-105. MYERHOFF, B. (1982). Life history among the elderly: Performance, visibility and remembering. In J. Ruby (comp.) A crack in the mirror: Reflexive perpectives in anthropology. Filadelfia: University of Pennsylvania Press. MORGAN, A. (2007). O que é terapia narrativa? Uma introdução de fácil leitura. Porto Alegre. Traduzido e publicado em português pelo Centro de Estudos e Práticas Narrativas. 128 p. RUSSEL, S.; CAREY, M. (2004). Narrative Therapy, Responding to Your Questions. Adelaide: Dulwich Centre Publications. STRATHERN, P. (2000). Foucault em 90 minutos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 85 p. WHITE, M.; EPSTON, D. (1993). Medios Narrativos para fines terapéuticos. Mexico-Buenos Aires-Barcelona: Paidós. 222 p. http://www.scielo.br/pdf/epsic/v8n3/19973.pdf.%20Acessado%20em%2024/05/07 http://www.scielo.br/pdf/epsic/v8n3/19973.pdf.%20Acessado%20em%2024/05/07 24 _______________. (1990). Narrative Means to Therapeutic Ends. New York: Norton. (também publicado como Literate Means to Therapeutic Ends, 1989, Adelaide: Dulwich Centre Publications.) WHITE, M. (2002). Reescribir la vida. Entrevistas y ensayos. Barcelona: Gedisa. 221p. ZIMMERMAN, J. L.; DICKERSON, V. C. (1996). If Problems Talked: Narrative Therapy in Action. Nueva York: Guilford Press. 20 p. Obs: Este artigo foi publicado originalmente na Revista Pensando Famílias, 11(2), dez. 2007; (141-164).
Compartilhar