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2 Dedicado a todos aqueles que ajudam a construir a história da melhor de minas. 3 Compêndio para estudo prático e orientado do primeiro período do curso de Medicina da Universidade Estadual de Montes Claros Colaboradores: Jerson Antônio Leite Thiago Carvalho Pires Apoio: Associação Atlética Acadêmica Mário Ribeiro Montes Claros 2014 Sucesso! INTERPRETAÇÃO RACIOCÍNIO TEORIA 4 Prefácio Cidadão, primeiramente gostaria de parabeniza-lo pela magnífica conquista no vestibular mais concorrido do país e o consequente egresso numa das melhores faculdades de medicina do Brasil. Este compêndio especialmente feito para mentes habilidosas como a sua conta com a apresentação de fatos de arrebatadora inquietude que instigam seu aprendizado e o leva a tecer comentários mais críticos a respeito da medicina contemporânea. Não raro também se encontra, pelos corredores do CCBS, cidadãos que utilizam desse recurso como mecanismo de ajuda nas tutorias. Sem dúvida, o “Compêndio de Medicina” é uma arma poderosa para esse fim, no entanto, deve servir como complemento e estar associado às demais formas de apreensão do conteúdo, bem como artigos e livros largamente utilizados como fontes de pesquisa e reconhecidamente marcantes na literatura científica. A missão primordial desse livro é fazer com que você tenha uma nota satisfatória no Exame de Avaliação Cognitiva, no entanto, nossos objetivos se estendem à formação de um calouro realmente ativo no processo de ensino-aprendizagem, bem como um profissional humanizado e ciente da história pela qual seu curso passou até chegar aos dias atuais. Também é importante compreender as influências que a Medicina sofreu ao longo do tempo, as metodologias incrustadas nos currículos médicos e o modelo ético pertencente a essa profissão. Silvio Tibo “Honra o médico por causa da necessidade, pois foi o Altíssimo quem o criou. Toda a medicina provém de Deus. A ciência do médico o eleva em honra e ele é admirado na presença dos grandes” Eclesiástico, 38 5 ÍNDICE Módulo 1 – Introdução ao Estudo da Medicina Problema 1: “Novos desafios”.........................................................................................................07 Problema 2: “A Natureza do Homem”...........................................................................................10 Problema 3: “O Modelo do Fracionamento”...................................................................................14 Problema 4: “As Verdades Absolutas”..........................................................................................22 Problema 5: “Comportamento de Risco e Cultura”........................................................................25 Problema 6: “Diário de um Médico”................................................................................................28 Problema 7: “Investigando uma Situação de Saúde”.....................................................................34 Problema 8: “Dilemas da Prática Médica”......................................................................................43 Questões – Introdução ao Estudo da Medicina.............................................................................47 Módulo 2 – Concepção e Formação do Ser Humano Problema 1: “Pátria que me Pariu”.................................................................................................51 Problema 2: “Dança de Salão”.......................................................................................................53 Problema 3: “Maluca por uma Gravidez”........................................................................................61 Problema 4: “Eventos da Gravidez”...............................................................................................67 Problema 5: “Diário de uma Gestação”..........................................................................................75 Problema 6: “Diário de uma Gestação”..........................................................................................83 Problema 7: “Menor que o Esperado”...........................................................................................87 Problema 8: “Herança Genética”...................................................................................................90 Problema 9: “Difícil Decisão”..........................................................................................................96 Questões – Concepção e Formação do Ser Humano..................................................................102 6 Módulo 3 – Metabolismo Problema 1: “Dieta Preocupante”.................................................................................................105 Problema 2: “Energia, Reserva e Uso” (Primeira Sessão)..........................................................144 Problema 2: “Energia, Reserva e Uso” (Segunda Sessão)..........................................................185 Problema 2: “Energia, Reserva e Uso” (Terceira Sessão)...........................................................210 Problema 3: Sobre Metabolismo de Ácidos Graxos....................................................................226 Problema 4: Sobre Aminoácidos e Ciclo da Ureia.......................................................................232 Problema 5: O Etanol e Sua Absorção........................................................................................243 Problema 6: Diabetes...................................................................................................................252 Problema 7: Vitaminas.................................................................................................................257 Considerações da A.A.A.M.R........................................................................................................265 7 Problema 1: “Novos Desafios” Ana Carolina, 18 anos, natural de Ponte Nova – MG é caloura do Curso Médico da Unimontes. Recém-chegada à cidade, para ela tudo é novidade: os colegas, os professores, o fato de estar morando longe da família. Mas o que mais a surpreende é a metodologia adotada pelo curso – PBL – do qual se dizia coisas antagônicas. Quais seriam os princípios deste método? O que é metodologia ativa de aprendizagem? Como é a dinâmica das sessões tutoriais? Qual o papel do estudante dentro do método? Ana Carolina tinha uma certeza: sempre teve o professor como referência e como fonte de informação, e desta forma ela conseguiu ser vitoriosa nos exames. Enfim, as coisas parecem estar indo muito bem assim. Como pode, portanto, a nova metodologia ser melhor que a tradicional? Nesse primeiro problema, não elencaremos nenhum questionamento, afinal, eles já aparecem no próprio texto-problema. No entanto, a partir de leitura minuciosa é possível produzir alguns objetivos de aprendizagem, que são eles: Estudar, pesquisar e compreender quais são os métodos ativos de aprendizagem. Compreender a dinâmica das sessões tutoriais, suas vantagens e desvantagens. Identificar o papel e a interação entre os atores no método PBL. Pesquisar o histórico, embasamento filosófico, origens do método PBL e quais instituições adotam o método. Cumprindo o que foi exposto pelo primeiro objetivo, podemos dividir as metodologias ativas de aprendizagem entre o Método da Problematização e o Método da Aprendizagem Baseada em Problemas (ABP ou PBL). Nas duas propostas, o ensino e a aprendizagem ocorrem a partir de problemas. Na ABP, o estudante deve adquirir a capacidade de gerenciar a autoaprendizagem. Os estudantes trabalhamem pequenos grupos sob a orientação de um tutor (docente) e aprendem trabalhando na solução de problemas elaborados com a finalidade de fornecer um contexto significativo para sua aprendizagem. Na Problematização, professores e estudantes são mediatizados pela realidade que apreendem e da qual extraem o conteúdo da aprendizagem a fim de atuarem nela e, assim, possibilitar a transformação social. Portanto, o que é aprendido não decorre da imposição ou da memorização, mas do nível crítico de conhecimento ao qual se chega pelo processo de compreensão, reflexão e crítica. A Problematização é uma alternativa de metodologia de ensino, os problemas são extraídos da realidade pela observação realizada pelos alunos. Na Aprendizagem Baseada em Problemas, enquanto proposta curricular, os problemas de ensino são elaborados por uma equipe de especialistas para cobrir todos os conhecimentos essenciais do currículo. É preciso ficar atento a essa diferenciação entre um método e outro. A primeira referência para essa metodologia da Problematização é o Método do Arco, de Charles Maguerez. Nesse esquema, constam cinco etapas que se desenvolvem a partir da realidade ou do recorte da realidade: Observação da realidade; Pontos-chave; Teorização; Hipóteses de Solução e Aplicação à realidade (prática). Com relação ao Método da Problematização e o Método da Aprendizagem Baseada em Problemas, a primeira deve ser entendida como uma metodologia que pode ser utilizada para o 8 ensino de determinados temas de uma disciplina e nem sempre é apropriada para todos os conteúdos; a segunda trata-se de uma metodologia que passa a direcionar toda uma organização curricular. A primeira opção é uma opção do professor e a segunda é uma opção de todo um corpo docente, administrativo e acadêmico, já que as mudanças afetam a todos. Ao contrário da Aprendizagem Baseada em Problemas, em que todos os objetivos cognitivos são previamente estabelecidos, na Metodologia da Problematização não há controle total dos resultados em termos de conhecimentos. Eles são buscados para responder ao problema em estudo, este entendido amplamente, considerando-se suas possíveis causas e determinantes, que em geral ultrapassam os aspectos técnico-científicos. Na Aprendizagem Baseada em Problemas, as hipóteses são elaboradas pelos alunos sobre as possíveis explicações do problema antes de seu estudo, como uma forma de estimulá- los a partir dos conhecimentos que já dispõem pelas experiências anteriores. Na Problematização, as hipóteses, porém, são formuladas após o estudo, quando já contando com informações científicas, técnicas, legais, históricas, empíricas ou outras, formulam as hipóteses de solução, que orientarão a intervenção na realidade da qual se extraiu os problemas. Ambas as propostas incluem também o trabalho em grupo. Na Metodologia da Problematização, o grupo trabalha junto o tempo todo, com a supervisão de um professor. Na Aprendizagem Baseada em Problemas, o grupo inicia junto o conhecimento e discussão do problema e retorna depois para rediscussão no grupo tutorial, quando os estudos individuais já foram feitos. Professores especialistas podem ser consultados durante o estudo. Abordado agora o segundo objetivo, temos ciência de que o grupo tutorial desenvolve suas atividades obedecendo a uma dinâmica própria, passando por oito passos, que consistem em: 1. Ler atentamente o problema e esclarecer os termos desconhecidos; 2. Identificar questões (problema) propostos pelo enunciado; 3. Oferecer explicações para estas questões com base no conhecimento prévio que o grupo tenha sobre o assunto (formulação de hipóteses); 4. Resumir estas explicações; 5. Estabelecer objetivos de aprendizagem que levem o estudante à comprovação, aprofundamento e complementação das explicações; 6. Estudar individualmente, respeitando os objetivos estabelecidos; 7. Rediscussão no grupo tutorial dos avanços do conhecimento obtidos pelo grupo; 8. Avaliação. O PBL aumenta o senso de responsabilidade do estudante, pois ele precisa aprender por conta própria. Estimula a leitura, o emprego do raciocínio lógico e a discussão. Incita o estudante a investigar e a resolver problemas. Desenvolve a habilidade de se trabalhar em grupo. Permite o cruzamento de informações de diferentes disciplinas e especialidades, sem falar que promove o conhecimento de forma mais contextualizada e não apenas o entendimento do fato isolado. O método do PBL oferece a desvantagem de ser mais caro, o que diminui os investimentos pessoais em professores, originando uma secundarização da docência, pois os docentes não encaram as aulas com o mesmo profissionalismo. Além disso, no PBL, os estudantes podem recorrer a fontes de pesquisa duvidosas, o que empobrece a discussão e torna o método um alvo de críticas, considerando-o até como uma metodologia superficial. Atentando-nos ao terceiro objetivo, vamos observar que os atores do PBL são o tutor, o coordenador, o relator e os demais estudantes. É papel do tutor conhecer os objetivos e estrutura do módulo temático, ter sempre em mente que a metodologia PBL é centrada no estudante e não no professor, assumir a responsabilidade pedagógica no processo de aprendizagem, orientar na 9 escolha do coordenador em cada grupo tutorial, estimular a participação ativa de todos os estudantes do grupo, não ensinar ao estudante – ajuda-lo a aprender. O coordenador deverá iniciar a atividade, deixando bem claros os objetivos do trabalho, manter sempre presente o objetivo da discussão e evitando que o grupo se encaminhe para rumo diferente do fim proposto. É também sua função obter participação de todos os membros a fim de que todos contribuam para a resolução do problema, não se esquecendo também do seu desempenho como membro sujeito às mesmas regras e coordenar a indicação do relator feita pelo grupo. É papel do relator fazer anotações, expressando fielmente as conclusões do grupo, resumir e expressar ideias por escrito, expor de forma clara, sucinta e fiel as conclusões do grupo e responder questões com a cooperação do seu grupo. Atentos agora ao quarto objetivo, salientando ainda que o embasamento filosófico de ensino centrado no estudante já foi discutido anteriormente, poderemos nos concentrar no histórico do método PBL, que surgiu no final da década de 60 nas faculdades de Medicina da Universidade de MacMaster no Canadá e Maastricht, na Holanda. No Brasil, algumas faculdades que adotam o PBL são: Universidade Estadual de Londrina (UEL), Faculdade de Medicina de Marília (FAMEMA), Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES), entre várias outras. 10 Problema 2: “A Natureza do Homem” Cena 1: No templo de Asklépios, Grécia antiga, 600 a.C. É madrugada e vários corpos dormem sobre o chão. No altar estão as oferendas que os doentes trouxeram como pagamento. A porta lateral se abre e sacerdotes adentram o recinto, sendo seguidos por um homem que parece ser o mais importante do séquito. Traz enrolado no seu antebraço esquerdo, uma cobra, e um fumegante recipiente pende da sua mão direita. Eles dirigem-se lentamente a cada doente, param solenemente, cercando-os. O sumo sacerdote se abaixa, pergunta ao doente qual a sua queixa, profere algumas orações ininteligíveis, agita o recipiente impregnando de fumaça o queixoso e parte para o doente seguinte. Após percorrer toda a sala, a comitiva se retira, não sem antes recolher todas as oferendas. Cena 2: Escola de Cós, Grécia antiga, 400 a.C. Um homem jaz em uma pedra recoberta por uma lã de carneiro. Na sua cabeceira estão um ancião e dois jovens. O homem mais velho pergunta ao doente suas queixas, onde ele mora, como é o clima da sua região, qual é a sua dieta e a sua profissão e quando começaram os “ataques”.O doente está assustado e pergunta o que ele teria feito de errado para que os deuses o castigassem daquela forma. Hipócrates responde-lhe que os seus males não são devidos a castigos divinos, mas ao desequilíbrio natural entre quatro elementos chamados humores. Aos dois jovens, continua a falar sobre a nova teoria sobre o adoecer humano, preceituando, sobretudo sobre a ética na prática médica. Nesse problema nós poderíamos nos questionar como foi a evolução da Medicina do mito para a razão, além de questionarmos sobre quem havia sido Hipócrates e como ele foi visto pela sociedade. Qual seria, ainda, a teoria dos quatro humores? Como era a ética médica segundo Hipócrates? Quais as contribuições de Hipócrates para a Medicina? Como foi a evolução do conceito de saúde da época de Hipócrates até hoje? A leitura minuciosa do problema e atenção maior aos questionamentos apresentados permite que nós elenquemos algumas estratégias de busca de respostas e formulemos os seguintes objetivos desse estudo: Pesquisar sobre Hipócrates: contribuições para Medicina; Entender a evolução do conceito de saúde dos tempos anteriores a Hipócrates até os dias de hoje; Compreender a evolução da prática médica mística para a natural/científica; Pesquisar o modelo de ética médica na época de Hipócrates. Iniciando o nosso estudo pelo primeiro objetivo, vamos nos atentar a um fato importante: a existência da coleção dos tratados médicos hipocráticos, que é uma realização coletiva, uma obra plural da qual se obteve grandes diferenças teóricas, suficiente para que se possa criar uma pluralidade de doutrinas que, interpretada e comentada, resultou na construção da Medicina ocidental. 11 No período helenístico, na cidade de Alexandria, surgiram os primeiros comentários críticos à coleção hipocrática. A partir de então, o corpus hippocraticum serviu como modelo de atuação e também como modelo para erros a serem corrigidos. É nesse contexto, em análise à obra hipocrática, que surge a separação entre dois adeptos da Medicina dogmática (acreditam que a teoria serve como ponto de partida do raciocínio) dos adeptos da Medicina empírica (sustentam que a experiência ou observação empírica é que servem como ponto de partida). Após o período helenístico, a segunda e mais importante interpretação do legado hipocrático foi realizada pelo trabalho de Galeno, que além de comentar os trabalhos de Hipócrates, fez uma compilação dos comentários anteriores. Mas esse chamado hipocratismo galênico durou até o século XV, quando médicos e filósofos, influenciados por humanistas, passaram a exigir obras “puras”, livres de interpretação. A maior parte dos tratados da coleção hipocrática, que agrupam aqueles considerados fundamentais para o pensamento médico que compôs a tradição futura, surgiu entre os anos 420 a.C. e 350 a.C., embora alguns sejam bem anteriores e outros bem posteriores. A “questão hipocrática”, ou seja, a discussão de quais tratados teriam, de fato, sido escritos por Hipócrates não está resolvida. Os tratados hipocráticos foram, muito provavelmente, utilizados como material de ensino e orientação prática e teórica, numa época em que a literatura científica começou a substituir o ensino oral. Hipócrates provoca, portanto, uma ruptura na forma como a Medicina era ensinada. Curiosidades: Hipócrates pertenceu a escola de Cós, pois sua família descendia diretamente dos asclepíades de Cós; Quando o médico pretendia estabelecer-se numa cidade para clinicar, o nome do professor era a única exigência solicitada pela assembleia para a comprovação da formação médica; Por pertencer a uma família de origem aristocrática Hipócrates recebeu, antes da formação médica, a educação formal grega; Na época de Hipócrates o ensino e a prática da Medicina não eram regulamentados, era uma época em que o médico, para estabelecer-se numa cidade, precisava convencer a população a contratá-lo. Sem esquecer as diferenças doutrinárias, a pluralidade de autores e a cronologia que se estende do século V a.C. ao período greco-romano, é possível retirar desse conjunto de escritos os conceitos fundamentais gerais que forneceram os instrumentos teóricos e práticos para a atuação médica, tais como o conhecimento da natureza do corpo e de suas alterações na doença, a maneira de reconhecer e trata-las, a identificação das suas causas, a formação ideal (moral e intelectual) do médico e sua conduta no atendimento clínico e, por fim, o domínio dos instrumentos e das técnicas de intervenção dos casos cirúrgicos e ortopédicos, conhecimento mais do que essencial numa época de atletas e esportistas contumazes. 12 Teoria dos Quatro Humores Nos tratados “Sobre a natureza do homem e dos humores”, a doutrina humoral é sistematizada com maior clareza. Os elementos primários constituintes do corpo são a água, o fogo, o ar e a terra. Tais elementos geram as qualidades que, organizadas em pares, dão origem aos quatro humores (chymós). As doenças dependerão, em sua maioria, de uma discrasia ou desequilíbrio entre a composição natural de tais humores. ELEMENTOS QUALIDADES HUMORES Ar Quente e Úmido Sangue Fogo Quente e Seco Bile Amarela Terra Fria e Seca Bile Negra Água Fria e Úmida Fleugma/Pituíta A dynamis, uma propriedade da physis, serviu como plano de fundo para a teoria humoral, uma vez que cada humor resulta na interação de tais dynameis ou virtudes operativas. Após compreender as contribuições de Hipócrates para a Medicina, passemos para a busca do entendimento da evolução do conceito de saúde dos tempos anteriores a Hipócrates até os dias de hoje, que se trata do segundo objetivo do problema. O conceito de saúde reflete a conjuntura social, econômica, política e cultural. Ou seja, saúde não representa a mesma coisa para todas as pessoas. Dependerá da época, do lugar, da classe social. Dependerá de calores individuais, dependerá de concepções científicas, religiosas, filosóficas. A Medicina grega representa uma importante inflexão na maneira de encarar a doença. É verdade que, na mitologia grega, várias divindades estavam vinvuladas à saúde. Os gregos cultuavam, além da divindade da Medicina, Ausclépius ou Esculapios, duas outras deusas, Higiéia, a Saúde, e Panaceia, a Cura, filhas do deus Ausclépius. Essa visão religiosa antecipa a entrada em cena de um importante personagem: o pai da Medicina, Hipócrates de Cós (460 – 377 a.C.), que tinha uma cisão racional da Medicina, bem diferente da concepção mágico-religiosa antes descrita. A definição de saúde, para Hipócrates, estava intimamente relacionada ao equilíbrio dos humores. No oriente, a concepção de saúde e de doença seguia e segue um caminho diferente, mas de certa forma análogo ao da concepção hipocrática. Fala-se de forças vitais que existem no corpo: quando funcionam de forma harmoniosa, há saúde; caso contrário, sobrevém a doença. Na Idade Média europeia, a influência da religião cristã manteve a concepção da doença como resultado do pecado e a cura como questão de fé; o cuidado de doentes estava, em boa parte, entregue a ordens religiosas, que administram inclusive o hospital. No século XVII, o desenvolvimento da mecânica influenciou as ideias de René Descartes. Ele postulava um dualismo mente-corpo, o corpo funcionando como uma máquina. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento da anatomia, também consequência da modernidade, afastou a 13 concepção humoral da doença, que passou a ser localizada nos órgãos. No famoso conceito de François Xavier Bichat, saúde seria o “silêncio dos órgãos”. Segundo definição da Organização Mundial de Saúde (OMS), saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não de mera ausência de doença ou invalidez.Com esta definição, a OMS ampliou a noção tradicional de saúde, incorporando outros elementos para a conceituação de uma situação que depende não só da higidez biológica, mas também de um estado psíquico de equilíbrio e das relações com o indivíduo. Trata-se da definição atual para o complexo saúde-doença. Agora trataremos do terceiro objetivo, que discute a evolução da prática médica mística para a natural/científica, evolução essa que já foi discutida dentro das contribuições de Hipócrates para a Medicina. A ideia da natureza do corpo ou da physis é a base da Medicina hipocrática. A physis é o princípio formador do corpo, regendo as funções normais do organismo e o harmonizando, mas a physis também rege a doença e os seus sintomas e é por esse motivo que a doença era para o modelo hipocrático como um fato natural e não sagrado. Aquilo que ocorre por necessidade ou fatalidade divina não permite a ação ou intervenção humana. Já aquilo que ocorre acidentalmente pode ser evitado e suprimido por uma techné, tal como a Medicina. Por fim, tratando do quarto objetivo, vamos destacar o modelo da ética médica na época de Hipócrates. O entendimento da ética médica pode ser dividido em quatro períodos: tempo da religiosidade, tempo dos filósofos, era monástica e predomínio laico. Nos povos pré-históricos e entre aqueles que viveram nos primeiros séculos da Antiguidade a prática da Medicina e a religião estavam tão entrelaçados que os valores religiosos tinham predominância sobre os valores morais propriamente médicos. Há que se lembrar de que nessas antigas sociedades a prática médica era, normalmente, conduzida por sacerdotes, cujo poder para efetivar a cura somava aos seu conhecimentos terrenos a capacidade de auferir o beneplácito da divindade. No tempo dos filósofos, que é aquele que nos interessa, se dá ênfase no juramento hipocrático, o mais antigo código de ética médica conhecido. Possuía em sua parte inicial uma invocação aos deuses, o que permite coloca-lo como produto de sua época histórica, na qual a Medicina ainda não era considerada atividade essencialmente laica. O restante do juramento é composto por deveres gerais do médico para com a sociedade e constituído de proibições com uma única afirmação: conservarei pura e santa a minha vida e minha arte. Tal imperativo exige mais do médico do que da média dos cidadãos e demais profissionais. Consciente do caráter social da Medicina, Platão via os aspectos éticos inerentes à profissão, que transmitiu em trechos como: nenhum médico, exercendo o seu ofício, considera preferencialmente o seu bem no que prescreve, mas o do paciente; para o médico verdadeiro é também uma regra ter o corpo humano como sujeito e não como meio de ganhar dinheiro, pensamento que era compartilhado com Aristóteles. 14 Problema 3: “O Modelo do Fracionamento” Suzana, bancária, 33 anos, apresenta uma série de sintomas inespecíficos, tais como: cansaço, mal estar, palpitações e tristeza. Procura um cardiologista, que após realizações de exames, informa-lhe que do ponto de vista “cardiológico” não apresenta nenhuma alteração e a encaminha ao endocrinologista, devido a ligeira alteração no seu exame de glicose. A mesma situação ocorre durante a sua passagem pelo endocrinologista, que a encaminha ao reumatologista devido sutil alteração em outro exame específico. O reumatologista após avaliação clínica e laboratorial, a encaminha ao pneumologista, pois o problema de Suzana não era “reumatológico”. Nesta peregrinação, Suzana teve um sonho: encontra-se num labirinto que possui várias salas pequenas, cada uma delas com uma mesa e duas cadeiras. Sentado numa delas está um médico e a outra está vazia. A todos aos que encontra na sala ela pergunta a mesma coisa: por que a Medicina não a avalia de uma maneira integral, por que tantas especialidades? Ela só obtém uma resposta dos médicos: René Descartes! Com relação a esse problema, podem ser levantados os seguintes questionamentos: Quem desenvolveu o modelo filosófico que se associa a prática hegemônica fracionada da Medicina? De onde surgiu a necessidade das especializações e quais são suas vantagens e desvantagens? Como se estabelece o relacionamento médico-paciente nesse contexto? Quais os tipos de especialização? Quais os tipos de modelo médico? Diante dos questionamentos apresentados, podemos formular os seguintes objetivos de aprendizado: Compreender os modelos filosóficos da prática médica; Pesquisar o fracionamento da Medicina evidenciado nas especialidades médicas; Identificar conceitos do paradigma cartesiano. Com relação ao primeiro objetivo, pode-se fazer uma divisão sistemática dos modelos explicativos do processo saúde-doença. O primeiro a ser citado nesse histórico é o modelo da Medicina mágico-religiosa, predominante na antiguidade, se inseria em um contexto religioso- mitológico no qual o adoecer era resultante de transgressões de natureza individual ou coletiva, sendo requerido para reatar o enlace com as divindades, o exercício de rituais que assumiam as mais diversas feições, conforme a cultura local, liderados pelos feiticeiros, sacerdotes ou xamãs. Avanço significativo no pensamento médico ocorre quando se dá um desvio do foco de interesse das forças sobrenaturais para o portador da doença, passando a mesma, gradativamente, a ser vista como um fenômeno natural, passível de ser compreendido e liberado da intromissão de forças divinas ou malévolas. Esse novo enfoque, que poderia ser designado como medicina racional teve seus primórdios no Egito (papiros com fragmentos de textos médicos datam de três mil anos antes de Cristo). No ocidente, a aproximação da causalidade não-sobrenatural foi feita com os filósofos da Grécia Clássica. O alquimista Paracelso (1493-1541) contribuiu significativamente para romper com esse modelo médico e estabelecer uma transição entre a escola galênica que sustentava o empirismo e as teorias hipocráticas, como a dos humores, e o modelo biomédico. Ele se opunha vivamente às ideias do passado. 15 O modelo biomédico ou mecanicista, hoje predominante, tem suas raízes históricas vinculadas ao contexto do Renascimento e de toda a revolução artístico-cultural que ocorre nessa época, associada, igualmente, ao projeto expansionista das duas metrópoles de então – Portugal e Espanha. Como precursores significativos das mudanças radicais de ordem técnico-científica ocorridas a partir do século XV hão de ser citadas as contribuições dos astrônomos, particularmente Copérnico e Galileu e, mais adiante, Kepler. Temos ainda a contribuição marcante de Descartes, que será tratada em um objetivo específico, e a contribuição de Isaac Newton, a quem coube a criação de teorias matemáticas que confirmaram a visão cartesiana do corpo e do mundo como uma grande máquina a serem explorados. O modelo biomédico, inspirado na visão mecanicista do ser humano, considera que saúde é mera ausência de doença e que, como uma máquina, se uma das peças se “avaria”, há que se centrar na sua reparação. De acordo com esta perspectiva, o indivíduo tem um papel passivo no controle do seu bem-estar, limitando-se a procurar um técnico que imediatamente se responsabiliza pela “cura” dos aspectos biológicos da sua saúde, através da cirurgia ou de fármacos. Se este modelo respondeu bem às necessidades numa época em que havia um predomínio de mortes por causas infecciosas, quando a evolução da ciência encontrou soluções para muitas doenças agudas, diversas questões foram levantadas. Surgiu, assim, outro modelo, neste caso o modelo biopsicossocial. Trata-se de uma perspectiva que dá importância já não só aos aspectos biológicos da saúde humana, mas também a aspectos psicológicos e sociais. Atentos ao segundo objetivo, é importante comentar que o entendimento do corpo humano como uma máuina, a partirdos preceitos cartesianos evidenciados no “Discurso do Método”, passou a exigir uma divisão do corpo, a máquina, em várias partes, peças, e buscar especialistas em cada uma delas. Daí surge pelo modelo biomédico o fracionamento da Medicina. ANEXO 1: Relação das Especialidades Médicas da resolução do Conselho Federal de Medicina de 2012. RELAÇÃO DAS ESPECIALIDADES RECONHECIDAS 1. Acupuntura 2. Alergia e Imunologia 3. Anestesiologia 4. Angiologia 5. Cancerologia 6. Cardiologia 7. Cirurgia Cardiovascular 8. Cirurgia da Mão 9. Cirurgia de Cabeça e Pescoço 16 10. Cirurgia do Aparelho Digestivo 11. Cirurgia Geral 12. Cirurgia Pediátrica 13. Cirurgia Plástica 14. Cirurgia Torácica 15. Cirurgia Vascular 16. Clínica Médica 17. Coloproctologia 18. Dermatologia 19. Endocrinologia e Metabologia 20. Endoscopia 21. Gastroenterologia 22. Genética Médica 23. Geriatria 24. Ginecologia e Obstetrícia 25. Hematologia e Hemoterapia 26. Homeopatia 27. Infectologia 28. Mastologia 29. Medicina de Família e Comunidade 30. Medicina do Trabalho 31. Medicina de Tráfego 32. Medicina Esportiva 33. Medicina Física e Reabilitação 34. Medicina Intensiva 35. Medicina Legal e Perícia Médica 36. Medicina Nuclear 37. Medicina Preventiva e Social 38. Nefrologia 17 39. Neurocirurgia 40. Neurologia 41. Nutrologia 42. Oftalmologia 43. Ortopedia e Traumatologia 44. Otorrinolaringologia 45. Patologia 46. Patologia Clínica/Medicina Laboratorial 47. Pediatria 48. Pneumologia 49. Psiquiatria 50. Radiologia e Diagnóstico por Imagem 51. Radioterapia 52. Reumatologia 53. Urologia ANEXO 2: Relação das Áreas de Atuação Reconhecidas da resolução do Conselho Federal de Medicina de 2012. RELAÇÃO DAS ÁREAS DE ATUAÇÃO RECONHECIDAS 1. Administração em Saúde 2. Alergia e Imunologia Pediátrica 3. Angiorradiologia e Cirurgia Endovascular 4. Atendimento ao Queimado 5. Cardiologia Pediátrica 6. Cirurgia Crânio-Maxilo-Facial 7. Cirurgia do Trauma 8. Cirurgia Videolaparoscópica 9. Citopatologia 10. Densitometria Óssea 18 11. Dor 12. Ecocardiografia 13. Ecografia Vascular com Doppler 14. Eletrofisiologia Clínica Invasiva 15. Endocrinologia Pediátrica 16. Endoscopia Digestiva 17. Endoscopia Ginecológica 18. Endoscopia Respiratória 19. Ergometria 20. Foniatria 21. Gastroenterologia Pediátrica 22. Hansenologia 23. Hematologia e Hemoterapia Pediátrica 24. Hemodinâmica e Cardiologia Intervencionista 25. Hepatologia 26. Infectologia Hospitalar 27. Infectologia Pediátrica 28. Mamografia 29. Medicina de Urgência 30. Medicina do Adolescente 31. Medicina do Sono 32. Medicina Fetal 33. Medicina Intensiva Pediátrica 34. Medicina Paliativa 35. Medicina Tropical 36. Nefrologia Pediátrica 37. Neonatologia 38. Neurofisiologia Clínica 39. Neurologia Pediátrica 19 40. Neurorradiologia 41. Nutrição Parenteral e Enteral 42. Nutrição Parenteral e Enteral Pediátrica 43. Nutrologia Pediátrica 44. Pneumologia Pediátrica 45. Psicogeriatria 46. Psicoterapia 47. Psiquiatria da Infância e Adolescência 48. Psiquiatria Forense 49. Radiologia Intervencionista e Angiorradiologia 50. Reumatologia Pediátrica 51. Sexologia 52. Toxicologia Médica 53.Transplante de Medula Óssea 54. Ultrassonografia em Ginecologia e Obstetrícia No total, são mais de 50 especialidades médicas distribuídas em mais de 50 áreas de atuação, segundo resolução CFM Nº 2.005/2012. Fazendo a identificação de conceitos do paradigma cartesiano no modelo mecanicista fracionado, portanto, cumprindo o terceiro objetivo, veremos que o papel de René Descartes(1596-1650) para a filosofia e a matemática é tão decisivo que, muitas vezes, é relegado para segundo plano o facto de também ser médico e se ter interessado bastante pela Medicina. Descartes chegou mesmo a abordar esta ciência à luz do seu novo método num dos seis capítulos de sua célebre obra “Discurso do Método”, tendo apresentado explicações, em particular, para o funcionamento do coração humano, bem como para a circulação do sangue. Descartes resume a Lógica e enumera apenas quatro regras, quatro passos a serem dados no caminho de seu método: “O primeiro era o de jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como tal; isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção. E de nada incluir em meus juízos que não se apresentasse tão clara e distintamente a meu espírito, que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida”. “O segundo, o de dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas parcelas quantas possíveis e quantas necessárias fossem para melhor resolvê-las”. 20 “O terceiro, o de conduzir por ordem meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir, pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais compostos, e supondo mesmo uma ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros”. “E o último, o de fazer em toda parte enumerações tão completas e revisões tão gerais, que eu tivesse a certeza de nada omitir”. RELATÓRIO DE FLEXNER Às vésperas de completar cem anos de publicação, o Relatório Flexner e a figura de seu autor são, até hoje, foco de debates e polêmica. Aqui será discutido os aportes de Abraham Flexner para a educação médica a partir da publicação de seu relatório, em 1910. As profundas mudanças que aconteceram em diferentes áreas do conhecimento nas últimas décadas provocaram grande impacto sobre as estratégias de ensino-aprendizagem e os processos de produção, desenvolvimento e distribuição do conhecimento. As neurociências e a psicologia cognitiva desvendaram grande parte dos processos por meio dos quais aprendemos. Demonstraram, por exemplo, que fatos e conceitos são mais facilmente recordados e mobilizados quando ensinados, praticados e avaliados no contexto em que são usados. Isto exige a reconfiguração das situações e ambientes de ensino-aprendizagem disponibilizados para os estudantes em sua formação O aumento incontrolável e incontornável do volume e a grande transitoriedade da base de conhecimentos necessários à prática de uma profissão, a médica em particular, exigem que a capacidade para aprender durante toda a vida – aprender a aprender – seja desenvolvida desde o processo de graduação. A distribuição do cuidado da saúde também sofreu modificações importantes. O acesso à saúde das pessoas e comunidades é considerado hoje um direito social. Isto, ao lado do maior acesso às informações em saúde e da conscientização das pessoas, mudou as expectativas e exigências da população quanto às condições de oferta dos serviços e trouxe modificações importantes nas relações entre o médico e seu(s) paciente(s). A mudança do perfil epidemiológico da população, com o grande predomínio das doenças crônico-degenerativas, também exigiu um reordenamento das ações e estratégias na saúde, com sérias implicações na formação dos profissionais. Cada vez mais, o trabalho multiprofissional e os conhecimentos interdisciplinares se fazem necessários para enfrentar as complexas necessidades de saúde das pessoas e comunidades. Os conhecimentos e práticas da saúde coletiva, o entendimento e a participação na construção das políticas públicas e na organização dos serviços de saúde tornam-se competências necessárias e imprescindíveis ao desempenho dos profissionais da saúde. Nesses novos contextos, aumentam muito as dificuldades de integrar os conhecimentos, as habilidades e as atitudes dos profissionais em formação, com o intuito de desenvolver a competência necessária para dar conta das demandas da saúde em nossos dias. 21 Os desenhos curriculares tradicionais, nesses novos contextos, precisam ser completamente redesenhados.Os cenários e as estratégias de ensino-aprendizagem necessitam ser repensados e reestruturados, e o processo de avaliação da aprendizagem deve sofrer uma total ressignificação. A certificação e a acreditação das escolas médicas também estão sofrendo grandes modificações. As críticas ao modelo ainda hegemônico da educação médica, o modelo proposto por Flexner há quase cem anos, estão finalmente sendo seriamente consideradas. Independentemente dos interesses e motivações envolvidos, abre-se a oportunidade de considerar novas e antigas questões relacionadas à educação médica, mas que envolvem fundamentalmente questões muito mais amplas, como as concepções de saúde-doença, os modelos de atenção em saúde e as políticas públicas para o setor, entre outras. A participação de amplos setores neste processo – profissionais, estudantes, instituições representativas da categoria, instâncias reguladoras e o controle social – pode garantir que as transformações, de fato, contribuam para a formação de médicos que desempenhem suas atividades profissionais considerando as multidimensões das pessoas que necessitam de cuidados de saúde e desenvolvam suas ações abordando toda a amplitude do processo da saúde e da doença e seus determinantes. O modelo flexneriano prevalente ainda hoje foi feito a partir do seu estudo em mais de 150 escolas de Medicina do Canadá e dos Estados Unidos durante o período de seis meses. Essa pesquisa demorada foi financiada pelo magnata Rockfeller e por indústrias farmacêuticas. A pesquisa e suas conclusões propuseram uma mudança de pensamento em relação à Medicina, bem como o estabelecimento de profunda reforma nas escolas norte-americanas, buscando maior excelência nas instituições, pautada no princípio da racionalidade científica. As escolas médicas, antes autônomas, passariam a ser integradas às universidades e haveria a implementação da experimentação e práticas clínicas já observadas em escolas médicas da Alemanha e França. Flexner propunha ainda um aumento na carga horária e nas disciplinas do currículo médico, que para ele ainda era insuficiente. O aumento indiscriminado de escolas médicas despreparadas e a formação de profissionais desqualificados foram as causas da busca por essa pesquisa. Flexner se apoia no estudo médico centrado na doença de forma individual e concreta. O social, o coletivo, o público e a comunidade não eram levados em conta no processo de saúde e doença, o que implica numa grande aproximação e influência ao modelo biomédico. Enquanto por um lado o trabalho de Flexner permitiu reorganizar e regulamentar o funcionamento das escolas médicas, por outro desencadeou um processo terrível de extirpação de todas as propostas de atenção em saúde de maneira não só biológica, mas também psicológica e social. 22 Problema 4: “As verdades absolutas” Angélica, 23 anos, estudante, mora em um bairro próximo ao Distrito Industrial de Montes Claros e apresenta quadro alérgico. Após tratamento convencional com diversos antialérgicos, apresenta melhora parcial dos seus sintomas. Um colega de trabalho chama- lhe a atenção que seu problema surgiu após a morte da sua mãe e sugere-lhe outras abordagens médicas como homeopatia, psicanálise ou uma prática que siga o modelo biopsicossocial. Angélica, procurando se informar pela internet, percebe diferenças significativas nas explicações e nas abordagens destas outras racionalidades ao adoecer humano, em comparação ao que antes experimentara. Nota, inclusive, que os médicos que a tratavam e as pessoas em geral têm opiniões distintas sobre estes outros métodos: uns desacreditam, outros aconselham, a maioria desconhece. Com relação a esse problema, podem ser feitos os seguintes questionamentos: Quais são os campos de atuação da Medicina complementar? Quais as outras racionalidades médicas alternativas que contrapõem o modelo biomédico? Em que contexto surgiu a homeopatia? O que é homeopatia e psicanálise? Qual a relação entre holismo e homeopatia? Quais são os resultados efetivos da Medicina alternativa? É possível uma convivência harmoniosa entre a Medicina alternativa e a tradicional? A partir desses questionamentos, é possível elencar como objetivos os seguintes comandos: Compreender o que é a medicina complementar, com ênfase em Homeopatia e Psicanálise; Pesquisar a origem, a prática, embasamento filosófico, os resultados e o conceito de saúde relacionado a cada racionalidade citada no objetivo 1; Identificar a interação entre as Medicinas alternativas e sua relação com o modelo biomédico e com o biopsicossocial. Iniciando a discussão pelo primeiro objetivo, verificaremos que na maior parte das sociedades, as pessoas que sofrem de algum desconforto físico ou abalo emocional têm várias maneiras de se auto-ajudar ou buscar ajuda de outros. Quanto maior e mais complexa a sociedade na qual o indivíduo vive, maior a probabilidade da disponibilidade dessas alternativas terapêuticas. Além deste sistema médico “oficial” que conhecemos e que inclui a profissão de médico e enfermeiro, geralmente coexistem sistemas menores, alternativos, também denominados de subculturas médicas. Analisando qualquer sociedade complexa, é possível identificar três alternativas de assistência a saúde, sobrepostos entre si: a informal, a popular e a profissional. A alternativa informal é o campo leigo, não-profissional e não-especializado da sociedade, em que as pessoas recorrem sem pagamentos e sem consulta de médicos. Dentre as alternativas consideradas informais estão o autotratamento ou automedicação, conselho ou tratamento recomendado por um parente, amigo, vizinho ou colega de trabalho. Há estimativas de que cerca de 70% a 90% dos tratamentos de saúde ocorrem informalmente. A alternativa popular é especialmente ampla em sociedades nã-ocidentais, nela determinados indivíduos tornam-se especialistas em métodos de cura, que podem ser sagrados, seculares ou uma combinação de ambos. Esses curandeiros não fazem parte do sistema médico 23 “oficial” e ocupam uma posição intermediária entre a alternativa informal e a profissional. Como exemplos temos as parteiras, extratores de dentes, curandeiros espirituais, etc. Por último e não menos importante está o setor profissional, alternativa que compreende as profissões sindicalizadas e sancionadas legalmente, como a Medicina científica ocidental ou alopatia, bem como suas respectivas especialidades e, entre elas, se encontra a Homeopatia e a Acupuntura. No mesmo setor encontra-se também a Psicanálise, embora esta não seja uma especialidade, mas um campo clínico. Vamos nos concentrar agora na origem, a prática, o embasamento filosófico, os resultados e o conceito de saúde relacionado à Homeopatia e a Psicanálise, caracterizando o cumprimento do segundo objetivo. A Homeopatia surgiu no fim do século XVIII, início do século XIX com seu fundador Samuel Hahnemann (1755-1843). Trata-se de um sistema terapêutico que utiliza os quatro seguintes fundamentos: 1. Lei dos semelhantes = Segundo essa lei, as substâncias existentes na natureza (de origem mineral, vegetal e animal) têm a potencialidade de curar os mesmos sintomas que são capazes de produzir. 2. Experimentação no homem são = As experiências com substâncias preparadas homeopaticamente devem ser realizadas em homens sãos para que possam ser usados para curar homens doentes. As experiências são realizadas pela administração de uma determinada substância em um grupo de experimentadores saudáveis e depois se observa o aparecimento de sintomas e sensações decorrentes dessa administração. Os resultados são coletados e compõem o que chamamos de Patogenesias do medicamento em questão. Obs.: Patogenesia é o conjunto de sinais e sintomas que um organismo sadio apresenta ao experimentar determinada substância medicinal. Éesse conjunto que o médico homeopata recorre a fim de encontrar o medicamento ideal para o caso, o chamado medicamento Simillimum. 3. Doses mínimas e dinamizadas = Hahnemann observou que à medida em que o medicamento ia sendo diluído, mais energia as substâncias pareciam desprender pelo processo de agitação. Não era a quantidade de substância que importava, ao contrário, quanto menor a quantidade/presença e quanto mais agitado era a diluição, maior o potencial de energia curativa possuíam. 4. Medicamento Único = Hahnemann recomendava o uso de apenas um medicamento de cada vez, ou seja, o mediamento que contivesse o maior número de sintomas que o paciente apresenta. Existem divergências, como em todas as especialidades médicas e em todas as áreas do conhecimento humano. Temos basicamente duas tendências: a UNICISTA, que usa apenas um medicamento para tratar todos os sintomas de um determinado paciente, e a PLURALISTA, que usa vários medicamentos, um para cada grupo de sintomas do paciente, como é feito na Alopatia. 24 Para a Homeopatia, todos os seres vivos apresentam uma espécie de “força organizadora” que ajuda a manter os vários tipos de organismos em estado mais ou menos saudável (mantém nossa saúde em dia). Podemos chama-la, também, de “força vital” ou princípio vital. A perturbação desta força estabilizadora pode ter como consequência a primeira etapa de um mal estar. A Homeopatia considera a doença uma desarmonia que precede à alteração em toda parte no seu organismo. A força vital, perturbada por tal anormalidade, fornece ao organismo as sensações desagradáveis. Os resultados clínicos são a propaganda principal da Homeopatia, responsável pelo seu crescimento no mundo e constatado pela própria Organização Mundial da Saúde, em seus sucessivos relatórios dos últimos anos. Vale ressaltar que uma parcela expressiva destes pacientes percorrem previamente outros caminhos de tratamentos, e poderiam bem ter obtido resultados de efeito placebo com qualquer outra técnica ou por simples sugestão. É importante salientar que a OMS, além de constatar o crescimento do uso da Homeopatia nos diversos continentes, vem também adotando como estratégia o incentivo aos demais países. Olhando para os resultados já obtidos e verificados, podemos afirmar que o método homeopático tem o direito de ser utilizado na Medicina do século XXI. A pesquisa revela importante melhora clínica em 70% dos pacientes. Em certas condições patológicas específicas, a eficácia da Homeopatia obteve uma elevada razão de significação estatística. Falaremos agora da Psicanálise, uma área independente do conhecimento ligada a Psicologia. Não se trata de um ramo da Medicina, pois se abstém de agir no organismo tanto por exames quanto pelo uso de medicação. A palavra, unicamente a palavra, é o meio pelo qual a Psicanálise age. A Psicanálise nasceu na Áustria e teve como grande criador Sigmund Freud (1856-1939), que era médico em Viena e fundamenta a Psicanálise na prática médica, recuperando para a psicologia a importância da afetividade. O objeto de estudo da Psicanálise é o inconsciente, o que quebra com a tradição da psicologia como ciência do consciente e da razão. A Psicanálise utiliza-se da interpretação para buscar o significado oculto das coisas. Seu método de investigação consiste em buscar o significado inconsciente das palavras, ações e produções imaginárias de um indivíduo. Freud insiste na ideia de que a pulsão é um “representante” daquilo que ele chama de “força”, pois ela mantém em vida e em funcionamento o organismo e o psiquismo numa perfeita unidade, assim como a “força vital” na Homeopatia de Hahnemann. Dois pesquisadores do Centro Médico da Universidade de Hamburg-Eppendorf conduziram uma meta-análise sobre a perspicácia da Psicanálise. A psicoterapia psicanalítica mostrou-se duas vezes mais eficaz que as demais terapias no geral. Quase quatro vezes mais eficaz para problemas funcionais de personalidade e largamente mais eficaz para problemas relativos a funcionamento social e transtornos mais complexos. 25 Problema 5: “Comportamento de Risco e Cultura” Em pesquisa antropológica realizada na cidade de Santos, litoral de São Paulo, com um grupo de mulheres que, embora fossem informadas sobre os perigos a que estavam expostas, bem como sobre as formas de prevenção de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) e de HIV/AIDS, continuavam se contaminando. De diferentes maneiras, essas mulheres, sabiam da possibilidade do parceiro estar contaminado, seja pelo conhecimento do uso de drogas injetáveis, por avisos de familiares e conhecidos, ou por desconfiarem dos companheiros terem práticas de risco para contaminação pelo HIV. Contudo, não exigiam o uso da camisinha e não questionavam tais práticas dos parceiros e, como consequência acabaram sendo contaminadas. O desenvolvimento desta questão relaciona a exposição ao perigo de contaminação não à ignorância ou irresponsabilidade, mas à forma como estas mulheres constroem, do ponto de vista cultura, as classificações sobre a doença. Tais classificações se justificam, fundamentalmente, na categoria “amor”, conforme foi definido pelas entrevistadas. O não fazer nada para se prevenir da doença não é resultado de uma decisão individual, mas está inserida em todo um contexto sociocultural. Com base nesse problema, podemos fazer os seguintes questionamentos iniciais: O que é estudo antropológico dentro da Medicina e qual sua contribuição na prática médica? Qual a influência dos fatores socioculturais na saúde da população? Como se constrói a influência sociocultural na concepção de saúde? Como o profissional da saúde pode interferir no comportamento em relação à doença? A inserção da Antropologia tratada nesse problema nos leva a elencar dois objetivos claros de aprendizagem: Compreender o que é um estudo antropológico e sua importância na Medicina; Entender a influência dos fatores socioculturais no processo saúde-doença. Principiando nosso estudo, perceberemos que o estudo antropológico envolve a realização de três processos distintos, mas que se relacionam e são fundamentais no processo de construção do pensamento antropológico, são eles: etnografia, etnologia e antropologia cultural ou social. Abordada na ciência antropológica, a etnografia é um método tradicional que visa realizar a descrição dos significados pertencentes a um determinado grupo. Todo grupo social atua atribuindo significados às suas experiências de vida. A etnografia atua enfatizando a exploração da natureza e de um fenômeno social particular: realiza pesquisas e entrevistas em profundidade, inicia observação, analisa o discurso dos informantes, investiga os detalhes de um fato, lança perspectiva microscópica e por fim interpreta os significados e práticas sociais. A etnografia investiga a realidade de um grupo e o saber gerado a partir do ponto de vista do outro. Essa ferramenta antropológica praticamente inaugurou as aplicações dos métodos na Antropologia. A etnologia representa um primeiro passo em direção à síntese. A partir da etnografia, a etnologia estuda os fatos documentados no sentido antropológico cultural e social. A etnologia analisa e compara as culturas estudadas pela etnografia. É um campo de pesquisa e estudos que visa enxergar as diferenças entre as sociedades através de toda vida social, relações entre pessoas e expressões de cada grupo. 26 Em toda parte onde encontramos os termos antropologia cultural ou social, eles estão ligados a uma segunda e última etapa de síntese, tomando por base as conclusões da etnografia e da etnologia. A antropologia visa a um conhecimento global do homem, abrangendo seu objeto em toda sua extensão histórica e geográfica, aspirando a um conhecimento aplicável ao conjunto do desenvolvimento humano desde,digamos, os hominídeos até as raças modernas, e tendendo para todas as sociedades humanas. Pode-se dizer, assim, que existe entre a antropologia e a etnologia a mesma relação que se definiu acima entre a etnologia e a etnografia. Todos os conceitos acima propostos foram elaborados pelo antropólogo Lévi-Strauss que, por fim, escreveu que a etnografia, etnologia e a antropologia não constituem três disciplinas diferentes, ou três concepções diferentes dos mesmos estudos. São, na verdade, três etapas ou três momentos de uma mesma pesquisa, e a preferência por este ou aquele destes termos exprime somente uma atenção predominante voltada para um tipo de pesquisa, que não poderia nunca ser separado dos outros dois. Autores que se denominavam “folcloristas”, cuja principal preocupação era recuperar as tradições regionais do mundo rural brasileiro, produziram grande variedade de obras com diferentes graus de complexidade a respeito de “medicina popular”. Em geral, o conjunto desses trabalhos é impregnado de caráter ideológico e etnocêntrico e, por esse motivo, sua contribuição para o desenvolvimento científico do tema é precária. De um modo geral, a maioria dos autores “folcloristas”, quando apresentam uma preocupação teórica ou uma elaboração mais complexa do tema consideram a “medicina popular” como um conjunto de crenças e práticas “rústicas” e “imitativas”, resultando da difusão de medicinas eruditas passadas e das diferentes etnias que compuseram a população brasileira. De um modo geral, os estudos antropológicos até essa época não observaram os elementos sociais como integrados num sistema coerente. Assim, a “medicina popular” era vista como uma colcha de retalhos costurada por influências passadas sem conexão lógica e sociológica entre eles. Evidentemente, essa perspectiva revela-se atualmente como uma base epistemológica pobre para a apreensão da realidade social. Difusionismo Cultural = A hipótese difusionista sustenta que os diversos povos terrestres receberam influências dos vizinhos e dos diversos contatos que estabeleceram ao longo da história e que a maior parte das inovações sociais, técnicas, mitos, entre outros, se propagaram pelas migrações e pelos contatos estabelecidos entre os povos. 27 Evolucionismo Cultural = De acordo com a teoria evolucionista da humanidade, a história do homem seguiu, desde sempre, um mesmo caminho, linear e progressivo. Analisando algumas condições entendidas como universais, pode-se traçar o caminho realizado pelo homem desde seus primórdios até os dias de hoje, evidenciando uma diferença temporal entre aqueles que ainda não possuíam determinados estágios desenvolvidos. As décadas de 50 e 60 foram marcadas pela presença da teoria funcionalista nas ciências sociais, o que significa dizer que os factos sociais passaram a ser observados uns em relação com os outros, dentro de um sistema global. No entanto, falta ao funcionalismo ir além da superfície da realidade social para que possa apreender a sua estrutura profunda. Fernandes e Fontenelle, dois folcloristas, percebem o mundo tradicional e, dentro dele, suas crenças e práticas de cura, como um conjunto assistemático em via de desintegração, uma vez que são disfuncionais ao contexto sócio urbano moderno (influência do funcionalismo). Esse pressuposto não se mantém, na medida em que, apesar da urbanização, persistem e se desenvolvem saberes e práticas de cura populares como têm demonstrado várias pesquisas. A solução para a análise epidemiológica, portanto, era adotar o conhecimento de medidas sociais e também psicológicas envolvidas nos fatores e determinantes. Na Medicina, por exemplo, destaca-se a importância do pensamento antropológico na apreensão global da doença por meio de aspectos biopsicossociais e não tão somente biológicos, como prega o modelo biomédico. 28 Problema 6: “Diário de um Médico” Primeiro encontro: Sabrina, 16 anos. A mãe relata graves problemas de relacionamento consigo e com os professores da escola, chegando a agressões físicas em duas situações. Responde-me curta e quase monossilabicamente. Diz que não vai tomar nenhuma medicação, que ela não está maluca, que o sistema é que é uma droga e que ela não via motivos para a consulta. Segundo encontro: Peço à mãe que nos deixe conversar a sós. Após as agressões iniciais, pergunto-lhe: “Porque sua agressividade para comigo, se você não me conhece?” Surpreendentemente, ela me responde: “Antes de você poder me ferir, eu te ataco”. Terceiro encontro: Pergunto sobre o falecimento do pai, quando Sabrina contava cinco anos de idade. Esta, primeiro, diz não se lembrar de nada, voltando novamente a ser agressiva comigo: “...o que você tem a ver com isso?” “O que isso tem a ver comigo?” Nesta hora lembro-me de como minha própria filha, por vezes mostrava-se agressiva comigo. Senti certa antipatia pela garota a minha frente, mas coloquei este sentimento de lado e continue a entrevista. Após alguns minutos, Sabrina começou a chorar: “Não quero me ligar a ninguém, pois tenho certeza que você também vai me abandonar”. Com relação a esse problema, é possível fazer, entre outros, os seguintes questionamentos: Qual a importância da relação médico-paciente? Quais os fundamentos da relação médico-paciente? Como a ética interfere nas relações médico-paciente? Quando ser imparcial ou parcial na relação médico-paciente? A imagem do médico influencia na relação médico-paciente? Como a subjetividade do médico deve ser trabalhada para beneficiar a relação médico-paciente? O que é transferência e contratransferência? Como objetivos de aprendizagem, podemos elencar os seguintes: Compreender a relação médico-paciente em seus múltiplos aspectos: ética, subjetividade, fundamentos, princípios; Conceituar transferência e contratransferência. Atendendo ao primeiro objetivo, notaremos que apesar da maior atenção que a comunidade médica vem dando aos aspectos emocionais e mentais como sendo extremamente importantes na gênese ou desencadeamento de inúmeras doenças, é ainda, por vezes, muito difícil ao médico estabelecer com o paciente boa relação, sem dúvida proveitosa para ambos. A formação e o modo de atuação do médico estão, hoje, permeados de tal forma por uma mentalidade tecnicista que, na prática, o médico acaba por encarar o corpo humano quase como sendo apenas uma máquina, e suas desordens – doenças – como situações decorrentes de desarranjos anatômicos, fisiológicos ou bioquímicos. 29 Essa mentalidade, não raro, gera situações em que encontramos grande dificuldade em fazer com que o paciente admita que os aspectos mentais são importantes no desencadeamento da doença. É preciso mudar essa perspectiva e evidenciar que a situação psicológica e social interferem nesse contexto. A relação médico-paciente pode cumprir o papel de mudar a forma como se encara a doença. Obviamente, não há como criar esquemas prontos para que possamos envolver os pacientes dessa forma participativa que propomos, pois cada paciente e cada médico são indivíduos com características próprias. No entanto, é imprescindível, por exemplo, estabelecer um bom “rapport” (“entrar em sintonia”) no início da consulta com o paciente. Gostaria aqui de pontuar e comentar algumas das necessidades das pessoas quando buscam um relacionamento, e que, portanto, são os elementos fundamentais na relação médico- paciente: segurança = é a necessidade de se sentir seguro em relação ao outro. O paciente precisa ter certeza de que encontrará no médico alguém que possa dar proteção às suas necessidades, podendo, sem medo, expor-se física e psicologicamente; validação = é a afirmação da importância da pessoa dentro de um relacionamento. É importante, para o paciente, que suas necessidades sejam reconhecidas como verdadeirase aceitas pelo médico; aceitação = é a necessidade de o paciente sentir-se aceito por uma outra pessoa estável, confiável e protetora, presente na figura do médico; confirmação da experiência pessoal = é o desejo de estar à frente de alguém que é semelhante, que compreende, como se tivesse vivido situações parecidas (pode ser documentado na Medicina narrativa); auto definição = é a necessidade de reconhecimento e aceitação da própria identidade, percebendo, então, que o médico o reconhece como indivíduo e aceita sua história. É necessário se aceitar e se afirmar para ser creditado; impacto sobre a outra pessoa = é a necessidade de que, na relação, a outra pessoa se sensibilize, é o paciente ver que o médico não está distante e insensível. Demonstrar compaixão se o paciente está triste, fornecer proteção e segurança se ele está assustado, leva-lo a sério se está com raiva, ou compartilhar se o mesmo está alegre; iniciativa = estar diante de alguém que toma iniciativas, indicando caminhos, telefonando, se necessário, para ter notícias, etc. Tipos de Pacientes Coléricos = Determinados, dominadores, impulsivos, tendem a dominar a situação. Vale a pena, nessas situações, propor desafios, convidar a pensar a respeito, conduzir o diálogo de modo que 30 o paciente se sinta estimulado a pensar de outra forma, bem como observar novos aspectos relacionados a si mesmo e a sua doença. Fleumáticos = Tranquilos, observadores, passivos, dedutivos, costumam aceitar colocações, mas pensam metódica e cuidadosamente a respeito, refletem, procuram novos dados que lhes permitam avaliar melhor a situação, e talvez necessitem de um tempo maior para digerir tudo que ouviram, É importante que o médico lhes forneça todas as informações e dados que julgar úteis. Melancólicos = Sensíveis, emotivos, intuitivos, geralmente desenvolvendo relacionamentos pouco numerosos, porém profundos. Há que se ter muito cuidado no modo de informa-los, sobretudo quando as informações podem gerar algum tipo de medo ou ansiedade, pois tendem a ficar deprimidos. Sanguíneos = Lábeis, sedutores, atraentes, de relacionamentos fáceis e numerosos, porém tendendo a superficiais. Provavelmente aceitarão facilmente os argumentos e orientações do médico, o que não quer dizer que realmente estarão convencidos de tudo o que o médico disse. É importante o médico não o contrapor, mas buscar, de forma paciente e firme, que o paciente se conscientize da situação, determinando-se a seguir a orientação. É importante, neste momento, observar algumas situações onde a relação médico-paciente estará prejudicada, dificultando a informação e o envolvimento do paciente em um processo terapêutico: 1. Quando o médico se vê em uma posição superior à do paciente, podendo assumir posturas autoritárias e prepotentes; 2. Quando o médico demonstra falta de confiança e determinação; e 3. Quando o médico se revela desinteressado e sem perspectiva. Passamos agora a buscar as informações que permitem que possamos descrever os fenômenos da transferência e contratransferência, caracterizando o segundo objetivo do problema. O termo "transferência" foi utilizado pela primeira vez por Freud em 1895, como uma forma de resistência, ou seja, um obstáculo ao processo analítico, como meio de evitar os conteúdos da sexualidade infantil que ainda permanece ligada às "zonas erógenas", as quais, na evolução normal, já deveriam estar desligadas. Foi em 1912 que Freud publicou a primeira obra exclusivamente dedicada à transferência, denominada “A dinâmica da transferência”, na qual explica como a transferência é necessariamente relacionada ao tratamento psicanalítico. Freud enfatiza que a transferência não se deve ao tratamento psicanalítico, mas é devido à neurose. O autor explica que se a necessidade de amar de algum indivíduo não é totalmente satisfeita pela realidade, ele irá se aproximar de cada pessoa que conhecer inclusive o médico. Por isso, para ele, a transferência é um dos elementos fundamentais para caracterizar o método de tratamento psicanalítico. Freud, no inicio de seu trabalho, tentava explicar às pacientes o que ele percebia; ele falava para elas como se instalavam os conflitos e como elas estavam vivendo esta briga interna. Mas muito cedo, e isto aconteceu ainda quando trabalhava com Breuer, percebeu que as pacientes viviam desejos intensos para com o médico. O próprio Breuer, tomado de surpresa por Ana O., quase teve seu casamento desmoronado. Havia então um fenômeno típico, perigoso com o qual era preciso se acautelar. No caso Dora, ficou bem claro para Freud que o rompimento do trabalho depois de apenas três mêses de análise, ocorreu por causa dos desejos intensos da paciente e que ele não 31 percebeu em tempo e não mostrou a ela. Havia os sintomas histéricos de Dora, mas, diz Freud, surgiu um novo sintoma: a transferência. Transferências são reedições, reduções das reações e fantasias que, durante o avanço da análise, costumam despertar-se e tornar-se conscientes, mas com a característica de substituir uma pessoa anterior pela pessoa do médico. Dito de outra maneira: toda uma série de experiências psíquicas prévias é revivida, não como algo do passado, mas como um vínculo atual com a pessoa do médico. Algumas são simples reimpressões, reedições inalteradas. Outras se fazem com mais arte: passam por uma moderação do seu conteúdo, uma sublimação. São, por tanto, edições revistas, e não mais reimpressões. Bion (2000) diz que a importância da transferência está em seu uso na prática da psicanálise e que ela deve ser observada tanto por analisandos como por analistas, essa é a sua força e sua fraqueza. A sua força é devido a estar disponível às duas pessoas e, portanto, passível de ser discutido por elas; sua fraqueza, porque o fato é inefável e não pode ser discutido por mais ninguém”. Segundo Laplanche e Pontalis (2001), a transferência é entendida como: O processo pelo qual desejos inconscientes se atualizam sobre determinados objetos no quadro de um certo tipo de relação estabelecida com eles e, eminentemente, no quadro da situação analítica. Trata-se aqui de uma repetição de modelo infantil vivido com um sentimento de atualidade acentuada. “Freud postula que o paciente não recorda coisa alguma do que esqueceu e reprimiu, mas expressa-o pela atuação, ou seja, ele reproduz o reprimido não como uma lembrança, mas como uma ação repetitiva e inconsciente.” “Foi apenas em 1909 que Freud parou de considerar a transferência como algo contra- produtivo para o processo analítico. Pois, até então, a transferência era considerada um obstáculo para a análise, uma resistência do paciente.” Tipos de Transferências A ocorrência da transferência parece ter um caráter ambivalente, e essa relação se destaca tanto no relacionamento analista-paciente quanto o inverso, ou seja, dificultando a fluidez da análise. No entanto a transferência é condição para que o tratamento ocorra e, ao mesmo tempo, a maior resistência possível ao tratamento. “Em 1912 Freud descreveu três diferentes tipos de transferência: a negativa, a erótica e a positiva. Sendo que a negativa e a erótica eram consideradas como as que dificultavam o trabalho terapêutico, e a positiva como a que auxiliava o trabalho terapêutico.” Transferência Negativa Segundo Löst, s.d., a transferência negativa era considerada como transferência de sentimentos hostis em relação ao analista, podendo também representar uma forma de defesa contra o aparecimento da transferência positiva, podendo coexistir, mesmo que infimamente com a transferência positiva. Transferência Erótica 32 A transferência erótica era considerada aquela onde o analisando transfere para a pessoa do analista sentimento de amor, ou seja, quando o paciente diz estar apaixonado pela pessoa do analista. Quando isso acontece,o paciente perde o interesse no tratamento e fica “inteiramente sem compreensão interna e absorvido em seu amor”. O foco das sessões será o amor que o paciente exige que seja retribuído e esse é exatamente o objetivo do paciente. O paciente esta resistindo à análise. Ele coloca suas defesas em prática para não se lembrar ou admitir certas situações passadas. Transferência Positiva Freud a conceitualizou da seguinte forma: “Transferência positiva é ainda divisível em transferência de sentimentos amistosos ou afetuosos, que são admissíveis à consciência, e transferência de prolongamentos desses sentimentos no inconsciente.” Resistência e transferência são mecanismos de defesa imprescindíveis para a realização do tratamento. Sem elas, não há psicanálise. Uma aparece na tentativa de encobrir e se defender de lembranças dolorosas, a outra como a repetição de uma relação objetal passada, e as duas trazem consigo pilares fundamentais com material riquíssimo. Uma vez que, para que a transferência adquira contornos de resistência é necessário o suporte da transferência afetuosa. É sabido que FREUD não deixou nenhum estudo sistematizado sobre a contratransferência, embora tenha reconhecido a sua existência e a necessidade de mantê-la sob rigoroso controle, a fim de evitar os seus perigos. Castro (2005) diz que em 1910, surgiu o conceito de contratransferência, como sendo uma reação do analista provocada pela transferência do paciente, e, como tal, algo a ser superado ou ultrapassado para que o analista volte a trabalhar em condições adequadas. No trabalho de 1912, Freud conclui que o médico tenta compelir o paciente a ajustar seus impulsos emocionais ao nexo do tratamento e da história de sua vida, submetendo-os à consideração intelectual e a compreendê-los à luz de seus valores psíquicos. E que “esta luta, entre o médico e o paciente, entre o intelecto e a vida instintual, entre a compreensão e a procura da ação, é travada, quase exclusivamente nos fenômenos das transferências”. Segundo Isolan (2005), a contratransferência inicialmente passou pelas mesmas vicissitudes da transferência, sendo vista como uma manifestação indesejável no tratamento. O conceito de contratransferência foi introduzindo por Freud que o definiu como sendo aquilo que "surge no médico como resultado da influência que exerce o paciente sobre os seus sentimentos inconscientes". Segundo Laplanche e Pontalis (2001) o fenômeno da contratransferência se ampliou depois de Freud, principalmente a medida em que o tratamento foi sendo compreendido enquanto uma relação e também com a expansão da psicanálise a novos campos, a análise de pacientes psicóticos e de crianças, onde as reações inconscientes do analista podiam ser mais solicitadas. Após Freud, o conceito tomou novas conotações, ampliando consideravelmente a sua compreensão. Pode-se dizer que quase cada autor que escreveu sobre o fenômeno da contratransferência nestas últimas décadas, apresentou sua própria versão. Há desde os que consideram como contratransferência a totalidade das reações do analista como relação ao paciente, aos que limitam o conceito às respostas eliciadas pela contratransferência do paciente, sem falar na concepção atualmente mais divulgada, segundo a qual a contrantransferência 33 compreende as reações oriundas do inconsciente do analista, vinculadas experiências da infância do analista, projetadas na relação analítica. Posteriormente, Freud já percebia o valor da contratransferência e recomendava: "o analista deve voltar seu próprio inconsciente como um órgão receptor para o inconsciente transmissor do paciente, de modo que o inconsciente do médico possa, a partir dos derivados do inconsciente que se comunicam reconstruir o inconsciente do paciente". Transferência e contratransferência são conceitos centrais na compreensão da relação terapêutica nas diversas vertentes da psicanálise. Desde o início de sua prática clínica, Freud depara-se com a dinâmica da transferência. Podemos entender e concluir que a Transferência foi considerada por Freud um instrumento central de todo tratamento analítico e foi reconhecendo, gradativamente que os pacientes repetiam na sua relação com o médico (psicanalista) aquilo que tinha vivido na infância com outras pessoas. A contratransferência, um dos conceitos fundamentais do campo analítico, é uma das mais complexas e controversas entre as diferentes correntes psicanalíticas e, permanece ainda hoje problemática. A partir dos textos descritos por alguns teóricos a contratransferência é uma reação inevitável causada no analista. Quanto mais analisado ele for, menos ele sucumbirá aos efeitos contratransferenciais. 34 Problema 7: “Investigando uma Situação de Saúde...” Um acadêmico do curso de Medicina estava atendendo em uma unidade de saúde da Estratégia Saúde da Família (ESF), ele nota que, a partir do início daquele ano, os alunos de uma escola pública têm sido encaminhados frequentemente por apresentarem um determinado quadro nosológico. Ele também percebe que esta situação não está acontecendo em outras escolas públicas da região. A diretora do educandário esteve no centro de saúde, pois, segundo ela, os professores estão querendo fechar a escola por tempo indeterminado com medo da situação. Numa reunião convocada no centro de saúde para tratar do assunto, foi decidido que a equipe deveria fazer um estudo epidemiológico para definir as causas possíveis do aumento da prevalência e da incidência dos casos desta morbidade. Como não havia pessoas suficientes para serem deslocadas a esta tarefa no corpo funcional, o acadêmico recebeu a incumbência de realizar um estudo para definir as causas ou associações epidemiológicas. Com relação ao problema apresentado, podem ser feitos os seguintes questionamentos: Como se faz um estudo epidemiológico? O que é um estudo epidemiológico? O que é um quadro nosológico? Qual a definição de prevalência, incidência, causas ou associações epidemiológicas? Quais os tipos de estudos existentes na epidemiologia? O que é endemia, epidemia e pandemia? Dados os questionamentos e levando em consideração o assunto proposto pelo problema, é possível estabelecermos como objetivos de aprendizagem: Compreender os estudos epidemiológicos: características, aplicabilidades, objetivos, vantagens e desvantagens; Conceituar os termos epidemiológicos e entender os cálculos de incidência e prevalência. Atentos ao primeiro objetivo, veremos que desde os primórdios do pensamento ocidental na Grécia Antiga, havia um antagonismo entre duas filhas do deus Asclépios: Panacéia (padroeira da Medicina curativa) e sua irmã Higéia (padroeira da promoção de saúde por meio de ações preventivas). Muitos autores acreditam que a Epidemiologia nasceu com Hipócrates. De fato, a estrutura e conteúdo dos textos hipocráticos sobre as epidemias e sobre a distribuição de enfermidades nos ambientes, por sua clara adesão à tradição higéica, sem dúvida antecipam o chamado raciocínio epidemiológico. Conceito de Epidemiologia: A Epidemiologia é o eixo da saúde pública. Proporciona as bases para avaliação das medidas de profilaxia, fornece pistas para diagnose de doenças transmissíveis e não-transmissíveis e enseja a verificação da consistência de hipóteses de causalidade. 1. Estuda a distribuição da morbidade e da mortalidade a fim de traçar o perfil de saúde- doença nas coletividades humanas; 35 2. Realiza testes de eficácia e de inocuidade de vacinas; 3. Desenvolve a vigilância epidemiológica; 4. Analisa os fatores ambientais e socioeconômicos que possam ter alguma influência na eclosão de doenças e nas condições de saúde; 5. Constitui um dos elos de ligação comunidade/governo, estimulando a prática da cidadania
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